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Max Weber (Erfurt, 1864 – Munique, carreira universitária: Sobre a história das
1920) cursou direito e chegou a advogar. companhias comerciais na Idade Média.
Mas foi como professor, e não como “prati- Segundo fontes sul-europeias [Zur Ges-
cante”, que ele veio a se ocupar com o di- chichte der Handelsgesellschaften im Mit-
reito. As investigações jurídicas possuem telalter. Nach südeuropäischen Quellen],
uma posição-chave em sua vasta obra, não de 1889, e A história agrária romana e
sua significação para o direito público e
da perspectiva dogmática (ele não foi um
privado [Die römische Agrargeschichte
“doutrinador”), mas a partir de outras dis-
in ihrer Bedeutung für das Staats - und
ciplinas, como a economia, a história, a
Privatrecht], de 18912. Após esses trabalhos
sociologia – muito embora, durante um
sobre a história do direito, Weber escreveu,
curto período, tenha sido professor de di-
na primeira década do século XX, alguns en-
reito comercial e cambiário1.
saios de teoria da ciência, vários dos quais
Os estudos sobre o direito datam de merecem destaque para elucidar os princí-
suas duas teses, exigidas para se iniciar a pios metodológicos de uma perspectiva não
1.
Vide a biografia de Weber escrita por sua mulher (WEBER,
2003). 2.
Do último livro, há tradução em português (WEBER, 1994).
3.
Foram reunidos em uma coletânea (WEBER, 1988; e, em
português, WEBER, 1993). 6.
Vide, como exemplo dessa linhagem, Teubner (1983); e, no
4.
Ver Barbosa (2007). Brasil, Rodriguez (2009).
5.
Para trabalhos de duas épocas diferentes: Bobbio (1958) e 7.
Trata-se do Capítulo 7 da segunda parte da obra póstuma
Schauer (1988). Economia e sociedade (WEBER, 1980; WEBER, 1999a).
não se extrai uma proposição jurídica que “por avaliações totalmente concretas de
possa ser aplicada a outros casos futuros. cada caso”, em vez “de depender de nor-
Irracionalidade, pois, no sentido de não mas gerais” (WEBER, 1980, p. 396; WE-
generalizável. O ominoso é ad hoc. BER, 1999, p. 13) – essa é a nota de irracio-
nalidade. O outro elemento definidor,
Mas o formalismo sensível pode so-
“material”, é que essas avaliações são “de
frer a racionalização por generalização.
natureza ética emocional ou política”
Com base em uma casuística analógica de
(WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p.
precedentes, a prática jurídica criou “es-
13). O famoso julgamento de Salomão,
quemas de contratos e queixas pratica-
considerado tipicamente, é um exemplo.
mente úteis, orientados nas necessidades
Por sua vez, no direito racional material
concretas, tipicamente repetidas, dos inte-
são aplicadas normas gerais
ressados do direito” (WEBER, 1980, p. 457;
WEBER, 1999a, p. 87).
“daquela
com dignidade qualitativamente diferente
das generalizações lógicas de inter-
No caso do formalismo lógico, as ca-
pretações abstratas do sentido: imperativos
racterísticas juridicamente relevantes são éticos ou utilitários ou de outras regras de
descobertas pela aplicação de conceitos oportunidade ou máximas políticas que rom-
pem tanto o formalismo das características
jurídicos abstratos. “Negócio jurídico”, por
físicas quanto o da abstração lógica” (WE-
exemplo, é uma abstração conceitual que BER, 1980, p. 397; WEBER, 1999a, p. 13).
não se reduz a características sensíveis.
Admite-se, por exemplo, que o silêncio ***
possa obrigar. Perde-se, com isso, a “uni- A racionalização formal e material do
vocidade das características externas”. direito faz parte de um quadro maior. No fa-
Saliento, ainda, que o formalismo lógico é moso prefácio aos estudos sobre religião10,
racional naquele grau mais elevado, após enumerar variadas manifestações do
racionalismo ocidental, ressaltada sua pe-
“ somente a abstração interpretadora do sen-
tido faz com que surja a tarefa especificamen-
culiaridade e significado universal vis-à-
-vis outras manifestações do racionalismo,
te sistemática: a de coordenar e racionalizar,
com os meios da lógica, as regras jurídicas, Weber salienta que por “racionalismo”
cuja vigência é reconhecida num sistema, in-
ternamente consistente, de disposições jurí-
dicas abstratas” (WEBER, 1980, p. 396; WE- “ pode -se entender coisas muito diferen-
tes... Cada um desses âmbitos [v.g., a técni-
BER, 1999a, p. 13). ca, o trabalho científico, a guerra, o direito]
pode, além disso, ser ‘racionalizado’ segun- racionalização; (2) um exemplo do confli-
do alvos [Zielrichtungen] e pontos de vista
to entre as esferas jurídica e econômica
últimos muito diferentes, e o que de um pon-
to de vista for racional poderá ser irracional acerca do ponto de vista sobre a caracteri-
de outro. Racionalizações têm existido nos zação do “racional” e a propalada correla-
mais diversos âmbitos da vida [Lebensgebie- ção entre formalismo do direito e capita-
ten] de diferente espécie em todos os círcu-
lismo moderno.
los culturais. Para caracterizar sua diferença
do ponto de vista da história da cultura, (1) O processo de racionalização for-
deve -se ver primeiro em que esfera e direção
mal ou material possui portadores (Träger),
ocorreram” (WEBER, 1988a, p. 11-12; WE-
BER, 1999b, p. 11). isto é, agentes que podem ser mais ou me-
nos especializados. Eles formam uma le-
Sem mais, vamos fazer a sinonímia gião: sábios versados em direito, sacerdotes,
entre esferas e esferas culturais de valor, funcionários eleitos, escribas, jurados, notá-
entendidas como o conjunto de ideias que rios, conselheiros legais os mais diversos.
possuem uma legalidade própria [Eigen- Dois portadores são de especial im-
gesetzlichkeiten]; e, por âmbitos da vida, portância: o advogado profissional e o ba-
a conexão entre ideias e interesses que charel; cada qual é produto de uma confi-
regulam legitimamente a posse e a distri- guração distinta do ensino jurídico: ou “o
buição de bens . Podemos chamar de ra-
11
ensino do direito por práticos”; ou “o ensi-
cionalização cultural o processo de dife- no teórico do direito em escolas jurídicas
renciação das esferas culturais de valor a especiais e na forma de um tratamento ra-
partir do desencantamento das visões de cional-sistemático” (WEBER, 1980, p. 456;
mundo religiosas. A efetivação dos valores WEBER 1999a, p. 86).
[Wertverwirklichung] ocorre nos âmbi- O exemplo lembrado para o primeiro
tos da vida . Vejamos brevemente: (1) um
12
tipo é o do ensino jurídico monopolizado por
exemplo de legalidade própria da esfera corporações de advogados. Para o segundo,
jurídica e sua relação com portadores da a formação universitária. A diferença entre
ambos está no tipo de racionalização for-
mal: o primeiro avança à generalização
11.
Essas definições vêm de Habermas 1995, p. 321; Haber-
mas, 1984, p. 234. Para uma conceituação algo diferente, formal sensível; o segundo alcança uma
cf. Schluchter (1981, p. 20). Alhures, Weber troca âmbitos
da vida por ordens da vida [Lebensordnungen]. Valores são
sistematização formal lógica. A diferença
pretensões de validade que se tornam motivos para a ação entre os dois tipos de formalismo é o critério
(SCHLUCHTER, 2000, p. 23; cf. ainda SCHLUCHTER,
1981, p. 18). Cf. para o problema da diferenciação das es- para explicar a diferença de estilo entre o
feras de valor, Terra (2003, p. 18). common law e o direito continental (WE-
12.
A diferença entre racionalização cultural e societal em Ha-
bermas, 1995, p. 225 -239; Habermas, 1984, p. 157-168. BER, 1999a, p. 86-89).
posições), como vimos acima. Além disso, (2) A diferença entre os dois tipos de
é um direito formal, como expressamente formalismo permite analisar o modo mati-
afirmado na passagem, mas um formalis- zado como Weber relaciona direito e capi-
mo sensível ou empírico13. Até Austin, o talismo moderno:
conceito de ciência do continente mal po-
deria ser aplicado à jurisprudência ingle- “ nesse tipo específico de logicização do direi-
to não tinham, de modo algum, participação
sa; e a impossibilidade da codificação pla- decisiva, como na tendência a um direito for-
nejada por Bentham se explica pelo mal, necessidades da vida dos interessados
burgueses num direito ‘calculável’. Pois a esta
racionalismo formal característico do di-
necessidade, como toda experiência mostra,
reito inglês (WEBER, 1999a, p. 150). corresponde do mesmo modo e frequente-
mente até melhor um direito formal empírico,
Quanto ao direito formal racional do
vinculado a precedentes judiciais. As conse-
ensino universitário moderno, quências da construção jurídica puramente
lógica comportam-se, antes pelo contrário,
muitas vezes de modo totalmente irracional e
13.
“O pensamento jurídico inglês é, ainda hoje, apesar de toda
disparatado em relação às expectativas dos
a influência pela exigência cada vez mais rigorosa de uma
instrução científica, em altíssimo grau, uma arte ‘empírica’” interessados no comércio” (WEBER, 1980, p.
(WEBER, 1999a, p. 149). 493; WEBER, 1999a, p. 129-131).
burocracia, isto é, recrutado por concurso, TEUBNER, Günther. 1983. Substantive and reflexive ele-
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com garantias, formas de vencimento que o
p. 239 -285, 1983.
imunizam do controle político – não possui
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