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Formalismo como Conceito Sociológico


Uma introdução ao conceito weberiano de direito

Samuel Rodrigues Barbosa

Max Weber (Erfurt, 1864 – Munique, carreira universitária: Sobre a história das
1920) cursou direito e chegou a advogar. companhias comerciais na Idade Média.
Mas foi como professor, e não como “prati- Segundo fontes sul-europeias [Zur Ges-
cante”, que ele veio a se ocupar com o di- chichte der Handelsgesellschaften im Mit-
reito. As investigações jurídicas possuem telalter. Nach südeuropäischen Quellen],

uma posição-chave em sua vasta obra, não de 1889, e A história agrária romana e
sua significação para o direito público e
da perspectiva dogmática (ele não foi um
privado [Die römische Agrargeschichte
“doutrinador”), mas a partir de outras dis-
in ihrer Bedeutung für das Staats - und
ciplinas, como a economia, a história, a
Privatrecht], de 18912. Após esses trabalhos
sociologia – muito embora, durante um
sobre a história do direito, Weber escreveu,
curto período, tenha sido professor de di-
na primeira década do século XX, alguns en-
reito comercial e cambiário1.
saios de teoria da ciência, vários dos quais
Os estudos sobre o direito datam de merecem destaque para elucidar os princí-
suas duas teses, exigidas para se iniciar a pios metodológicos de uma perspectiva não

1.
Vide a biografia de Weber escrita por sua mulher (WEBER,
2003). 2.
Do último livro, há tradução em português (WEBER, 1994).

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dogmática para a conceituação do direito3. Igualmente, há uma linhagem da teoria so-


Um, em especial, intitula-se “Stammler e cial que também pergunta pelo formalismo
a Superação da Concepção Materialista de do direito; não é uma investigação centra-
História” [“R. Stammlers ‘Überwindung’ da na “clarificação conceitual”, preocupada
der materialistischen Geschichtsauffas- com o que os juízes fazem quando são for-
sung”], de 1907, elaborado em resposta ao malistas ou devem fazer (ou não) para sê-
livro recém-publicado do jus-filósofo Rudolf -lo. O acento é colocado nos nexos do direi-
Stammler. Até o final da vida, Weber se ocu- to formal com a economia e a política. De
pou com o direito, como revela sua última Neumann a Habermas, de Selznick/Nonet
obra, que permaneceu inacabada. Ela ficou a Teubner, a linhagem parte de Weber, que
conhecida como Economia e Sociedade colocou no centro do debate sociológico o
[Wirtschaft und Gesellschaft], editada pela problema do formalismo6. Pela primeira
primeira vez por sua mulher em 1922. Nesta vez, as qualidades formais do direito foram
obra, aparecem os resultados de pesquisas investigadas sob uma perspectiva evolucio-
anteriores, que a bem da verdade não se li- nária e comparativa. A pergunta central é a
mitavam ao direito, a exemplo dos estudos respeito da aquisição evolutiva das quali-
sobre legitimidade e dominação, sobre a re- dades formais no quadro mais amplo da
lação entre economia e religião. O direito racionalização social e cultural típicas do
aparece, em especial, na Parte I, Capítulo I Ocidente, e, com base nisso, faz-se o diag-
– “Conceitos sociológicos fundamentais”; na nóstico da época – as contraditórias ten-
Parte II, Capítulos I – “A economia e as or- dências antiformais da sua época.
dens sociais” e VII – “Sociologia do direito”.
No capítulo “Sociologia do Direito”7,
Em outro trabalho, comentamos as duas
Weber pergunta “pelo grau e tipo [Art] da
primeiras entradas4. Já neste texto, esco-
racionalidade do direito” (WEBER, 1980, p.
lhemos discutir o conceito weberiano de
395; WEBER, 1999a, p. 11). O problema do
direito formal, que é central para sua socio-
grau é estudado com a distinção racional/
logia do direito.
irracional: podemos falar em direito mais
***
ou menos racional; bem como pesquisar
O formalismo como problema de pes- sua “direção”, isto é, sua racionalização.
quisa é recorrente na teoria do direito5. Mas o que do direito sofre a racionalização?

3.
Foram reunidos em uma coletânea (WEBER, 1988; e, em
português, WEBER, 1993). 6.
Vide, como exemplo dessa linhagem, Teubner (1983); e, no
4.
Ver Barbosa (2007). Brasil, Rodriguez (2009).
5.
Para trabalhos de duas épocas diferentes: Bobbio (1958) e 7.
Trata-se do Capítulo 7 da segunda parte da obra póstuma
Schauer (1988). Economia e sociedade (WEBER, 1980; WEBER, 1999a).

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Esse é o problema do tipo, respondido com fundamentada significa que o julgamento


o par formal/material. Desse modo, é possí- não é simplesmente ad hoc, mas transcen-
vel falar em racionalização formal ou mate- de a “irracionalidade do caso concreto”.
rial do direito. Os pares racional/irracional Weber subdivide a generalização em
e formal/material se combinam para consti- “obtenção analítica de proposições jurídi-
tuir quatro tipos-ideais de direito: formal cas” e “trabalho sintético de construção jurí-
irracional; material irracional; formal racio- dica” (WEBER, 1980, p. 395-396; WEBER,
nal; e formal material. 1999a, p. 12). A analítica se fundamenta
Nosso interesse está centrado na ra- numa casuística e a fomenta (circularidade
cionalização do direito. E aqui, como alhu- constatável no processo histórico). Em ou-
res, “racional” pode ter muitos sentidos tras palavras, a partir da comparação de ca-
“dependendo das direções que toma a ra- sos e decisões que foram colecionados, é
cionalização no desenvolvimento [Entfal- possível generalizar uma proposição jurídi-
tung] do pensamento jurídico” (WEBER, ca. Penso, por exemplo, na proposição “o
1980, p. 395; WEBER, 1999a, p. 11). A racio- acessório segue o principal”. A generalização
nalização, definida como manipulação inte- aqui depende da análise do conjunto de ca-
lectual [Denkmanipulation], divide-se em sos e decisões anteriores.
duas direções principais: a generalização e
A construção sintética, por sua vez, diz
a sistematização. Quanto mais generalizado
respeito à consistência de um conjunto de
ou sistematizado, mais racional o direito.
proposições reunidas em algum “instituto
Sem prejuízo da redundância, vale dizer: ra-
jurídico” como família, propriedade etc.
cionalização do direito significa o trabalho
Nesse caso, lembro a proposição “o vendedor
de generalização ou sistematização.
responde pelo perecimento da coisa antes
Generalização designa “a redução dos da tradição”. Em que se fundamenta essa ge-
fundamentos [Gründe] que determinam a neralização? Tal proposição faz parte de um
decisão, no caso concreto, a um ou a vários conjunto de outras proposições: responde o
‘princípios’: tais são as ‘proposições jurídi- vendedor, porque antes da tradição é ele o
cas’ [Rechtssätze]”8 (WEBER, 1980, p. 395; proprietário, ainda que a coisa já tenha sido
WEBER, 1999a, p. 11). Que a decisão seja vendida. Instituto jurídico significa a tipifi-
cação das características relevantes nos fa-
8.
“Para nossas concepções atuais”, as proposições jurídicas tos (no exemplo, houve ou não a tradição?) e
são “deduzidas [‘de normas estatuídas’] pelo trabalho do
pensamento jurídico” (WEBER, 1980, p. 394; WEBER, a síntese de proposições. Essas duas espé-
1999a, p. 10). Weber, pois, distingue norma de proposição. cies de generalização correm paralelas, não
Proposições são racionalizações a partir das normas posi-
tivas e são aplicadas aos casos. são etapas cumulativas, ao contrário, pois a

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sublimação da analítica pode se combinar ***


com construção deficiente. Formal não se confunde com proces-
O segundo grau/segunda direção da sual. O direito civil pode ser formal e a
racionalização do direito é a sistematiza- aplicação do direito, como o salomônico,
ção, definida, “segundo o nosso modo atual ser material. Se empregarmos a classifica-
de pensar”, como: ção antiga entre direito substantivo e adje-
tivo, direito formal pode se referir tanto ao
“ o inter-relacionamento de todas as proposi-
ções jurídicas obtidas mediante a análise, que
direito substantivo quanto ao adjetivo.
formem entre si um sistema de regras logica- Distinção central é aquela entre dois
mente claro, internamente sem contradições
tipos de formalismo: o sensível e o lógico.
e, acima de tudo, em princípio, sem lacunas”
(WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p. 12). Determinada palavra foi dita, um rito pre-
viamente fixado foi seguido, uma assina-
Bem se vê a diferença da sistematiza- tura, selo ou outra marca foi colocado – se
ção para a generalização (mesmo a sintéti- características como essas, salientes na
ca). Agora, a exigência é de consistência de visibilidade mesma dos atos, definem a de-
todas as proposições, ao passo que na gene- cisão a ser tomada, diz-se que o formalis-
ralização sintética não há a exigência da mo é sensível ou externo.
consistência de todos os institutos e, por- Esse formalismo sensível pode ser
tanto, de todas as proposições, mas apenas mais ou menos racional. O exemplo extre-
a consistência das proposições dentro de mo de um direito formal irracional é o
cada instituto. Outro aspecto é que o gaba- de decisões baseadas pelo emprego de
rito da passagem vem da teoria do direito meios mágicos (como as consultas a orá-
da época. Na definição, aparecem os dois culos). Somente “à pergunta feita de ma-
problemas canônicos: da consistência (au- neira formalmente correta dão os meios
sência de contradições/antinomias) e da mágicos a resposta certa” (WEBER, 1980,
completude (ausência de lacunas). Isso é p. 446; WEBER, 1999a, p. 74). “Maneira
indicativo de como a sistematização vem a
formalmente correta” significa o estar de
ser uma aquisição tardia. A racionalidade
acordo com o rito, com fórmulas solenes
como sistematização não teria alcançado
etc. Uma palavra errada faz perder o pro-
nem o direito romano (clássico ou do jus
cesso. Diz-se que esse caso extremo é irra-
commune) nem o direito inglês9.
cional: em primeiro lugar, porque não há a
discutibilidade, o meio mágico não é a pro-
9.
“O que faltara em grande medida aos juristas romanos – as va da verdade ou falsidade de um fato; em
categorias sistemáticas puras – foi criado agora” (WEBER,
1980, p. 492; WEBER, 1999a, p. 129). segundo lugar, porque da decisão mágica

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não se extrai uma proposição jurídica que “por avaliações totalmente concretas de
possa ser aplicada a outros casos futuros. cada caso”, em vez “de depender de nor-
Irracionalidade, pois, no sentido de não mas gerais” (WEBER, 1980, p. 396; WE-
generalizável. O ominoso é ad hoc. BER, 1999, p. 13) – essa é a nota de irracio-
nalidade. O outro elemento definidor,
Mas o formalismo sensível pode so-
“material”, é que essas avaliações são “de
frer a racionalização por generalização.
natureza ética emocional ou política”
Com base em uma casuística analógica de
(WEBER, 1980, p. 396; WEBER, 1999a, p.
precedentes, a prática jurídica criou “es-
13). O famoso julgamento de Salomão,
quemas de contratos e queixas pratica-
considerado tipicamente, é um exemplo.
mente úteis, orientados nas necessidades
Por sua vez, no direito racional material
concretas, tipicamente repetidas, dos inte-
são aplicadas normas gerais
ressados do direito” (WEBER, 1980, p. 457;
WEBER, 1999a, p. 87).
“daquela
com dignidade qualitativamente diferente
das generalizações lógicas de inter-
No caso do formalismo lógico, as ca-
pretações abstratas do sentido: imperativos
racterísticas juridicamente relevantes são éticos ou utilitários ou de outras regras de
descobertas pela aplicação de conceitos oportunidade ou máximas políticas que rom-
pem tanto o formalismo das características
jurídicos abstratos. “Negócio jurídico”, por
físicas quanto o da abstração lógica” (WE-
exemplo, é uma abstração conceitual que BER, 1980, p. 397; WEBER, 1999a, p. 13).
não se reduz a características sensíveis.
Admite-se, por exemplo, que o silêncio ***
possa obrigar. Perde-se, com isso, a “uni- A racionalização formal e material do
vocidade das características externas”. direito faz parte de um quadro maior. No fa-
Saliento, ainda, que o formalismo lógico é moso prefácio aos estudos sobre religião10,
racional naquele grau mais elevado, após enumerar variadas manifestações do
racionalismo ocidental, ressaltada sua pe-
“ somente a abstração interpretadora do sen-
tido faz com que surja a tarefa especificamen-
culiaridade e significado universal vis-à-
-vis outras manifestações do racionalismo,
te sistemática: a de coordenar e racionalizar,
com os meios da lógica, as regras jurídicas, Weber salienta que por “racionalismo”
cuja vigência é reconhecida num sistema, in-
ternamente consistente, de disposições jurí-
dicas abstratas” (WEBER, 1980, p. 396; WE- “ pode -se entender coisas muito diferen-
tes... Cada um desses âmbitos [v.g., a técni-
BER, 1999a, p. 13). ca, o trabalho científico, a guerra, o direito]

Weber chama de direito irracional 10.


Publicado no Brasil como prefácio ao primeiro estudo dedi-
material aquelas decisões determinadas cado à ética protestante (WEBER, 1999b).

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pode, além disso, ser ‘racionalizado’ segun- racionalização; (2) um exemplo do confli-
do alvos [Zielrichtungen] e pontos de vista
to entre as esferas jurídica e econômica
últimos muito diferentes, e o que de um pon-
to de vista for racional poderá ser irracional acerca do ponto de vista sobre a caracteri-
de outro. Racionalizações têm existido nos zação do “racional” e a propalada correla-
mais diversos âmbitos da vida [Lebensgebie- ção entre formalismo do direito e capita-
ten] de diferente espécie em todos os círcu-
lismo moderno.
los culturais. Para caracterizar sua diferença
do ponto de vista da história da cultura, (1) O processo de racionalização for-
deve -se ver primeiro em que esfera e direção
mal ou material possui portadores (Träger),
ocorreram” (WEBER, 1988a, p. 11-12; WE-
BER, 1999b, p. 11). isto é, agentes que podem ser mais ou me-
nos especializados. Eles formam uma le-
Sem mais, vamos fazer a sinonímia gião: sábios versados em direito, sacerdotes,
entre esferas e esferas culturais de valor, funcionários eleitos, escribas, jurados, notá-
entendidas como o conjunto de ideias que rios, conselheiros legais os mais diversos.
possuem uma legalidade própria [Eigen- Dois portadores são de especial im-
gesetzlichkeiten]; e, por âmbitos da vida, portância: o advogado profissional e o ba-
a conexão entre ideias e interesses que charel; cada qual é produto de uma confi-
regulam legitimamente a posse e a distri- guração distinta do ensino jurídico: ou “o
buição de bens . Podemos chamar de ra-
11
ensino do direito por práticos”; ou “o ensi-
cionalização cultural o processo de dife- no teórico do direito em escolas jurídicas
renciação das esferas culturais de valor a especiais e na forma de um tratamento ra-
partir do desencantamento das visões de cional-sistemático” (WEBER, 1980, p. 456;
mundo religiosas. A efetivação dos valores WEBER 1999a, p. 86).
[Wertverwirklichung] ocorre nos âmbi- O exemplo lembrado para o primeiro
tos da vida . Vejamos brevemente: (1) um
12
tipo é o do ensino jurídico monopolizado por
exemplo de legalidade própria da esfera corporações de advogados. Para o segundo,
jurídica e sua relação com portadores da a formação universitária. A diferença entre
ambos está no tipo de racionalização for-
mal: o primeiro avança à generalização
11.
Essas definições vêm de Habermas 1995, p. 321; Haber-
mas, 1984, p. 234. Para uma conceituação algo diferente, formal sensível; o segundo alcança uma
cf. Schluchter (1981, p. 20). Alhures, Weber troca âmbitos
da vida por ordens da vida [Lebensordnungen]. Valores são
sistematização formal lógica. A diferença
pretensões de validade que se tornam motivos para a ação entre os dois tipos de formalismo é o critério
(SCHLUCHTER, 2000, p. 23; cf. ainda SCHLUCHTER,
1981, p. 18). Cf. para o problema da diferenciação das es- para explicar a diferença de estilo entre o
feras de valor, Terra (2003, p. 18). common law e o direito continental (WE-
12.
A diferença entre racionalização cultural e societal em Ha-
bermas, 1995, p. 225 -239; Habermas, 1984, p. 157-168. BER, 1999a, p. 86-89).

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Sobre o formalismo sensível ou empíri-


co dos advogados ingleses, Weber sintetiza: “ Os conceitos que cria têm caráter de nor-
mas abstratas que, pelo menos em princípio,
são construídas de modo rigorosamente for-

“ Este tipo de ensino jurídico produziu, por


sua natureza, vinculado a precedentes e ana-
mal e racional, mediante a interpretação lógi-
ca do sentido, e delimitadas entre si. Seu ca-
logias, um tratamento formalista do direito. ráter racional-sistemático pode conduzir o
Já a especialização artesanal dos advogados pensamento jurídico a uma considerável
impedia a visão sistemática da totalidade da emancipação das necessidades cotidianas
matéria jurídica. [...] os conceitos, que ela dos interessados no direito [...]. Uma vez de-
formou, estavam orientados por situações, sencadeadas as necessidades puramente ló-
de fato materiais, palpáveis e correntes na gicas da doutrina jurídica, sua força, e a da
experiência cotidiana e, nesse sentido, for- prática por elas dominada, pode ter a conse-
mais; constelações que ela delimitava conve- quência de que as necessidades dos interes-
nientemente entre si segundo características sados, como força motriz da elaboração do
externas e unívocas” (WEBER, 1980, p. 457; direito, acabam quase eliminadas” (WEBER,
WEBER, 1999a, p. 87). 1980, p. 459; WEBER, 1999a, p. 89).

Se não há uma racionalidade siste- Sem maior aprofundamento, interes-


mática, há racionalidade por generaliza- sa a nós observar que, particularmente no
ção. O recurso a precedentes e a analogias caso continental, falar em formalismo im-
são elementos destacados por Weber para plica “levar a sério” o papel da dogmática

definir a generalização (analítica das pro- jurídica.

posições), como vimos acima. Além disso, (2) A diferença entre os dois tipos de
é um direito formal, como expressamente formalismo permite analisar o modo mati-
afirmado na passagem, mas um formalis- zado como Weber relaciona direito e capi-
mo sensível ou empírico13. Até Austin, o talismo moderno:
conceito de ciência do continente mal po-
deria ser aplicado à jurisprudência ingle- “ nesse tipo específico de logicização do direi-
to não tinham, de modo algum, participação
sa; e a impossibilidade da codificação pla- decisiva, como na tendência a um direito for-
nejada por Bentham se explica pelo mal, necessidades da vida dos interessados
burgueses num direito ‘calculável’. Pois a esta
racionalismo formal característico do di-
necessidade, como toda experiência mostra,
reito inglês (WEBER, 1999a, p. 150). corresponde do mesmo modo e frequente-
mente até melhor um direito formal empírico,
Quanto ao direito formal racional do
vinculado a precedentes judiciais. As conse-
ensino universitário moderno, quências da construção jurídica puramente
lógica comportam-se, antes pelo contrário,
muitas vezes de modo totalmente irracional e
13.
“O pensamento jurídico inglês é, ainda hoje, apesar de toda
disparatado em relação às expectativas dos
a influência pela exigência cada vez mais rigorosa de uma
instrução científica, em altíssimo grau, uma arte ‘empírica’” interessados no comércio” (WEBER, 1980, p.
(WEBER, 1999a, p. 149). 493; WEBER, 1999a, p. 129-131).

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Sem entrar na discussão de passagens materialização” do direito privado, como a


conflitantes que podem ser encontradas no previsão da boa-fé ou como a guinada para
corpus weberiano14, nessa passagem espe- o direito social do Estado gestor. Mas We-
cífica o direito formal sensível aparece mais ber encontra tendências antiformais no
adequado que o formalismo lógico ao de- âmbito da administração da justiça. De
senvolvimento de um direito calculável um lado, a “tentativa do restabelecimento
para os interessados burgueses. O direito de um padrão valorativo objetivo”, de ou-
racional formal lógico, com sua legalidade tro, fazer do juiz um “profeta”.
própria, “emancipado das necessidades dos Sendo cético acerca da fundamenta-
interessados no direito”, entra em conflito ção racional de juízos de valor, a busca de
“muitas vezes” com as expectativas da ação um padrão valorativo objetivo é debitado
social econômica. O direito racional formal na conta do renascimento do jusnaturalis-
lógico, cultivado como cultura literária, mo – que é o caso típico de um direito ma-
como dogmática universitária, é muitas ve- terial racional (e racional no mais alto
zes irracional do ponto de vista econômi- grau, como sistema). A busca “ansiosa da
co. Um detalhe importante é que o forma-
ideia de um direito suprapositivo”, na ex-
lismo sensível também é calculável. Nesse
pressão de Weber, talvez esteja mais viva
sentido, há uma afinidade entre o formalis-
do que nunca.
mo sensível do caso inglês com o capitalis-
Quanto ao juiz profeta, escreveu:
mo. De todo modo, no capitalismo político
(vide o mercantilismo), nem mesmo há a
busca do formalismo sensível – antes o ca- “ não é certo se juiz burocrático em países
com direito codificado será feito um profeta
pitalista se aproveita de privilégios conce- jurídico simplesmente sobrecarregando-lhe a
didos pelas monarquias, que é um exemplo coroa de ‘criador’. Em todo caso, diminuirá
fortemente a precisão jurídica do trabalho, tal
de direito irracional material (WEBER, como se manifesta nas fundamentações dos
1999a, p. 123-124). julgamentos, quando arrazoados sociológi-
cos e econômicos ou éticos, ocupam a posi-
*** ção dos conceitos jurídicos” (WEBER, 1980,
Por fim, queremos anotar brevemen- p. 512; WEBER, 1999a, p. 152-153).

te algo do diagnóstico da época. Weber


Weber estudou alhures o papel dos
discerniu várias tendências antiformalis-
profetas do Israel Antigo na configuração
tas contraditórias. A literatura sociológica
do direito. Como portadores de carisma,
tem enfatizado aquelas tendências de “re-
eles revolucionavam o direito tradicional de
corte sacerdotal. A hipótese de Weber é que
14.
Para o problema do capitalismo e do formalismo no caso
inglês, ver Trubek (2007). o juiz do direito continental – um quadro da

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burocracia, isto é, recrutado por concurso, TEUBNER, Günther. 1983. Substantive and reflexive ele-
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com garantias, formas de vencimento que o
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