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Real no Passe

Cito Lacan em 18 de novembro de 1975, Seminário 23: “Nós não cremos no


objeto, mas constatamos o desejo e dessa constatação nós induzimos a
causa como objetivada. O desejo encontra obstáculos.” Lacan inventa o
Real para encarnar o obstáculo e poder rompê-lo. Diz: “somente o nó é o
suporte concebível de uma relação entre o que quer que seja com o que
quer que seja.” Como se aproximar desse quarto termo que é o furo que é
essencial ao nó borromeano?

É na medida em que o sinthoma se religa ao inconsciente e que o Imaginário


se liga ao Real, que nós temos a ver com algo que se fez sinthoma.
O gozo dito fálico se situa aí, na conjunção do simbólico com o Real. As três
rodelas participam do Imaginário enquanto consistência, do Simbólico
enquanto furo e do Real enquanto ex-sistência. Elas se compõem em um nó
triplo e o que ex-siste, que é verdadeiramente quarto: o sinthoma.
O significante faz furo no corpo tórico. O nó não é modelo, é suporte. Não é
realidade, é Real.

Um corpo tórico turbilhona, engole, há momentos em que expele, cospe.


Expele o quê? O nome. Qual a ligação da castração com a interdição do
incesto, é o que se chama a não-relação sexual. Em cartel mesmo que
sejam três, isso fará quatro. A mais uma (não toda) estará lá. Atravessa-se o
furo e se faz cadeia borromeana com palavras e letras que são invólucros de
significantes (matéria sonora). Quando é dois o furo está entre dois.

O sujeito barrado pelo significante diante do furo que está sempre lá, diz.
Não importa o que se diga, é do dizer que se trata. Faz-se S1 a Sn, como se
faz a1 até an. Há quem suture, preservando um mínimo, há quem desate e
ate sem cessar. Há tentativas de que haja nó efetivo e tentativas de
supressão da ex-sistência. A topologia permite dar mais um passo além da
imaginariedade. Se o imaginário é o corpo, a topologia vale por um corpo. É
um corpo porque há Simbólico e ex-sistência do Real. É uma construção
matemática feita da relação inex-istente entre o Simbólico e o Real. Há
modelos que recorrem ao imaginário puro, os nós recorrem ao Real.

O corte é o ato analítico no instante do “regard” – ver se vendo. Faz-se o


corte com algum elemento da sessão que faz a palavra vazia passar a cheia
até se esvaziar, pela repetição, no momento da interrupção.

A banda de Moebius. é o lugar do corte... ali é o furo. O nó é constituído no


furo... cortar o nó expõe o furo ... e se ata e desata e se enoda e desenoda
(há escuta).

O Toro. Em minha experiência analítica em que se fez passe, o corte foi em


tor (toro). Parti de uma frase de um companheiro que foi torturado: “tenho
que agarrar um touro pelos chifres”. Houve afânise e aspiração das letras. A
volta se deu pela angústia que não é sem objeto.

Do analista. Trabalha no campo da ex-sistência, fora da banda de Moebius.


A incógnita é unbewustte, l’une-bévue qui s’aile (a) moure. Moure como jogo
de significantes (o jogo).
Do analisante. O sujeito se constitui a partir do furo do simbólico. O
analisante entra em análise quando constitui demanda a partir da divisão
pela barra do significante. O analisante é corpo tórico que trabalha enquanto
sujeito do inconsciente. Aquele que escuta e faz ato no limite com o Real,
em reta infinita, é sujeito suposto-saber, objeto a , sinthome e dejeto no
momento de concluir.

Recortes clínicos: instante de ver, tempo de compreender, momento de


concluir
Estilo: escuta pelo grafo do desejo e escuta pelo nó borromeano
preservando a indecidibilidade do teorema de Gödel como gramática
pulsional, de um polo ao seu oposto. A função da pulsão de morte: Freud em
Além do Princípio do Prazer afirmou que o objetivo, o alvo (Ziel) da vida é a
morte. No entanto, há um paradoxo em Freud ao dizer que a pulsão de
morte é um conceito especulativo constituído para ajudar a explicar que a
vida tem como alvo a morte. Mas isso é somente parte da estória, a outra
parte se revela por um segundo paradoxo: a pulsão de morte obtém
satisfação por não atingir seu alvo. A inibição que previne a pulsão de
alcançar seu objeto é entendida pela teoria freudiana como sendo parte da
própria atividade da pulsão. O paradoxo da pulsão é de inibir a realização da
satisfação, a pulsão é inibida no exercício da experiência analítica. No final
da experiência analítica, ‘alíngua’, Lalangue se coloca a serviço da pulsão de
morte.

O analisante vai ao galpão, sobe até o andar mais alto e a partir do


quadrado formado pelo andar de cima faz foto-filmagem e vê se vendo
(enquadre).
A analisante diz de uma gravidez em que fez aborto, no início da análise
(houve corte para interromper a atuação). Dois anos depois já pode dizer: “é
estranho falar, eu não me senti grávida em nenhum momento... foi resultado
de um teste de gravidez. Ficou solto, não se encaixa, são nomes e palavras.
O que me fez parar a agitação absurda foi a dor (sem anestesia). Vomitei,
fiquei em posição fetal e em silêncio.
A analisante diz: “faz muito tempo que uma pessoa próxima de mim não
morre. Facilito a jogada para o outro. Eu sempre vou me anular perante o
outro. Como jogar sem ser objeto? Armei minhas próprias ciladas para cair.
Queria jogar sendo a dona da situação. (oscilação entre alienação e
separação)
A analisante diz: “estou engessada nessa estrutura... não é que eu não
goste mais dele...não gosto de estar ao lado dele... Ele pergunta ao filho de
dois anos: “você está chorando para sua mãe?” O filho de dois anos
responde: “sim”. A analisante diz: “E ele me culpa... ele acorda em mim
instintos de raiva, o sangue ferve... não quero isso para mim, quero ser
ouvida, quero ser olhada...” (gramática pulsional, não há relação sexual, há
furo, sintoma-ela, sintoma-ele)
A analisante diz: “por que eu caio nesse jogo? A que eu estou respondendo?
Não dá para eu ficar quietinha? Fui dando alguns cortes durante esse
período... pontuais”. O pai diz: “ela é analisada, está ficando mais difícil (cair
no jogo)”. A analisante diz: “o que eu quero controlar?” A mãe acabou de
morrer. A analisante diz ao vê-la partindo: “Vai, tou te olhando, vai que eu
estou te vendo...”. A mãe diz: “eu vou”. A analisante diz: “Vai que eu fico
bem”. Marcou a sessão seguinte e não compareceu.
A analisante volta na sessão seguinte e diz que esqueceu... foi levar as
cinzas da mãe... ”deixei algo para trás” há grito que vem de todos os lados,
há um esgoelar... as pessoas estão enlouquecidas... parece um pedido de
socorro... o silêncio pode ser um grito sem som. Lembra de cenas de dois de
seus filmes: “em “natureza morta” Lenita grita e me deixa me arrebata e me
deixa em suspensão. Em “Janelas” não há diálogo, só silêncio.
Na última sessão diz “simexezanga”. Coloco a tônica no si. “ O mineirês
emenda frase e palavra, algo que anda mais difícil. Quando jovem eu ficava
cortando essas palavras, mal sabia eu que lá a frente ia me servir. O pai lhe
entrega seu diário/agenda com as palavras que a analisante tinha recortado.
Tem uma hora que eu falo (nó!). E fala de Guimarães Rosa e como ele
brinca com essas palavras... “que palavra é aquela? - quais as variações de
uma palavra – nonada tem uma poética nessa estória toda.

Campo de extensão: palestra sobre o impacto da pandemia sobre a saúde


mental da mulher na segunda semana de “Mulheres em Resistência”,
organizada pela Associação de Docentes da Universidade Federal da
Paraíba que reúne 2600 membros. Inicio pelo ato de Antígona, 3º tempo da
trilogia tebana de Sófocles para dizer do ato. A palestra, que foi uma reflexão
a partir do discurso analítico, no intuito de convocar a psicanálise ao debate
da contemporaneidade, partiu do ato de Antígona em Sófocles, debateu
reflexões de Agamben sobre o poder da morte e da cultura da morte na
atualidade, tratou da dinâmica da pulsão de morte em Freud e do desejo em
Lacan. A resposta foi boa. A debatedora, especialista em teoria literária,
discorreu sobre Antígona e sua função e fez distinção entre o coro e o povo.
Disse que o coro em Antígona representaria a elite da cidade ateniense e
não o povo tratado como massa amorfa, que são considerações presentes
na obra de Raymond Williams, marxista da cultura, e lembra uma frase do
filho de Creonte que escutava o povo às escondidas: “o povo está do lado de
Antígona”. Ao final diz-se emocionada e diante da reflexão comenta
“estamos todos em análise”.
Cito Lacan em Dissolução, Seminário 27 de 1980:

“É claro que meu nó borromeano não diz tudo – sem o qual, no
entanto, eu não teria chance de me situar no que há...porque há não-todo
(pas-tout), como digo... não-todo, certamente do Real que abordo em minha
prática.

Observem que em meu nó o Real permanece constantemente


representado pela reta-infinita, ou seja, pelo círculo não-fechado que a reta
infinita supõe; é isso que se mantém para que o nó só possa ser admitido
como não-todo (pas-tout).

Mas me situo melhor do que Freud no Real voltado para o que diz
respeito ao Inconsciente, pois o gozo do corpo faz obstáculo ao encontro do
inconsciente, opacifica a experiência analítica – daí meus matemas, os quais
procedem do fato de que o simbólico seja o lugar do Outro [Ⱥ] (embora não
haja Outro do Outro).

Por consequência, o que a 'alíngua' (lalangue) pode fazer de melhor é


colocar-se a serviço da pulsão de morte (todestrieb) – uma ideia genial de
Freud e também uma ideia grotesca.

Contudo, o mais importante é que se trata de uma ideia que confirma


o seguinte: a 'alíngua' (lalangue) só é eficaz ao passar pelo escrito e pela
escritura do nó”.

“Freud tem a ideia de que a pulsão de morte (Todestrieb) é explicável


pelo deslocamento o mais baixo possível do umbral tolerado de tensão pelo
corpo: trata-se daquilo que ele nomeia de 'além do princípio do prazer”. E
não é isso. Em Lacan é a pulsão de morte que tem função no aparelho
psíquico, de inibir o alvo, de desmontar o gozo até o desaparecimento pelo
corte sobre o furo do simbólico fazer desaparecer sujeito e objeto e aspirar
as letras que restam de ‘alíngua’ e são aspiradas pelo toro (corpo tórico).

“É preciso dizer com clareza que é propriamente em Freud que há o
índice de um pensamento mais delirante do que em qualquer outro que eu
tenha compartilhado”. São vocês (no caso os passadores), com suas
presenças, que fazem com que Lacan possa dizer d’isso.”

Cito o coro em Antígona no verso 332 em o jogo do dokei dokein


Polla ta deina kouden an-
Throupou deinôteron pelei
Há muitas coisas inquietadoras no mundo,
Mas não há nada mais perturbador do que o homem

Cito Lacan em Dissolução, Seminário 27: “Je m’em barre!” Tradução: caio fora,
desapareço como passante.

Fim do passe para o segundo passador em 19 de março de 2021

Ivanisa Teitelroit Martins

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