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AURORA ano V número 8 - AGOSTO DE 2011 ISSN: 1982-8004 www.marilia.unesp.

br/aurora

A RURALIDADE ONTEM E HOJE:


Uma análise do rural na contemporaneidade.

FERNANDA CRISTINA LAUBSTEIN1

Resumo: Com a modernização tecnológica verificada no campo da agricultura a partir da década


de 1960, diversas pesquisas sobre o meio rural brasileiro têm apontado para um quadro de
desarticulação das comunidades rurais a partir do êxodo rural verificado no processo de
industrialização e mecanização da produção agrícola. Contudo, a predominante idéia de que o meio
rural perdeu suas características essenciais ao ser tomado por processos de produção, serviços e
modos de vida tipicamente urbanos, passou a ser questionada por alguns autores que sustentam
essas transformações sociais no campo enquanto promotoras de um „novo rural‟ uma vez que
constatam neste espaço, o surgimento de novas atividades econômicas não agrícolas e,
conseqüentemente, a emergência de novas práticas políticas, econômicas e sociais. Segundo estes
autores o desafio da sociologia rural na atualidade seria o de requalificar o olhar sobre as dinâmicas
da ruralidade e desenvolver novas concepções teóricas que permitam apreender o sentido e a
direção destas transformações. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é analisar criticamente o uso
do termo „novo rural‟ no quadro das pesquisas sociais sobre a ruralidade contemporânea.
Palavras-chave: Sociologia Rural, Modernidade, Nova Ruralidade

Abstract: With the technological modernization verified in the field of the agriculture starting
from the decade of 60, several researches in the Brazilian rural way they have been appearing for a
picture where the rural communities lose the integration because of the rural exodus verified in the
industrialization process and mechanization of the agricultural production. However, the
predominant idea that the rural way lost your essential characteristics when being taken typically by
production processes, services and life manners urban, it became questioned by some authors that
sustain those social transformations in the field while promoters of one „new rural‟ once they verify
in this space, the appearance of new economical activities not agricultural and, consequently, the
emergency of new practices political, economical and social. According to these authors the
challenge of the rural sociology at the present time would be to qualify in a different way the glance
on the dynamics of the rurality and to develop new theoretical conceptions that allow apprehending
the sense and the direction of these transformations. In that way, the objective of this work is to
analyze critically the use of the term 'new rural' in the picture of the social researches on
contemporary rurality.
Keywords: rural sociology. modernity. new rurality.

INTRODUÇÃO econômica. Os processos de urbanização,

O
industrialização e modernização da
modelo predominante de agricultura, ancorados neste modelo e no
desenvolvimento da agricultura modo de produção capitalista, foram
gestado nas sociedades industriais e concebidos como hegemônicos e inevitáveis,
capitalistas, implementado, sobretudo, no ou até mesmo necessários, em escala
pós-guerra, foi norteado por uma planetária. No entanto, ao privilegiar o
determinada racionalidade técnica e crescimento econômico, este modelo
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resultou em ampla degradação ambiental, em Oliveira Vianna (1923), Gilberto Freyre


êxodo rural acelerado, no crescimento (1933), Caio Prado Jr. (1963) e Antonio
desordenado dos centros urbanos e na Cândido (1964). Analisa cada um destes
marginalização socioeconômica de uma trabalhos e suas específicas contribuições
grande parcela da população mundial. teóricas – tendo em vista o fato de serem de
décadas e regiões diferentes – na tentativa de
A partir deste quadro analítico, já promover uma definição sociológica do
bastante conhecido nas Ciências Sociais, a modo de vida das populações camponesas, a
maior parte das construções teóricas sobre o qual chamou de „campesinato‟:
espaço rural a partir dos anos 60, quando
ocorreu a chamada „Revolução Verde‟, A descrição das características do
aponta para um quadro crescente de campesinato, vistas por diversos autores e
despovoamento e desarticulação das em regiões diferentes, faz chegar à
comunidades rurais, o que acabaria, nesta conclusão de que certos traços o definem,
perspectiva, culminando com o seu sejam quais forem os detalhes que
diferenciam os camponeses de regiões
desaparecimento (Ferreira, 2002). No diversas do globo. Estes traços são os
entanto, verifica-se na mesma época, o seguintes: o camponês é um trabalhador
surgimento de estudos científicos sobre a rural cujo produto se destina
vida rural no Brasil que vieram a questionar primordialmente ao sustento da própria
essa construção teórica de ruralidade família, podendo vender ou não o
enquanto modo de vida demarcado pelo excedente da colheita, deduzida a parte do
isolamento. aluguel da terra quando não é
proprietário; devido ao destino da
Maria Isaura Pereira de Queiroz em produção, é ele sempre policultor. O
seu livro „O campesinato brasileiro‟, caráter essencial da definição de
publicado em 1973, faz uma interessante camponês é, pois, o destino dado ao
revisão bibliográfica de teorias existentes produto, pois este governa todos os
sobre o rural até aquela década, apontando outros elementos com ele correlatados.
para a insustentabilidade de estudos como os Assim, dificilmente cultivará grandes
extensões de terra; por outro lado, não
de Sylvio Romero e de Euclides da Cunha, sendo a colheita destinada à obtenção do
os quais propuseram as primeiras hipóteses lucro, não deve ele ultrapassar certo nível
explicativas sobre a conservação de modos de gastos a fim de não onerar a
de vida que pareciam inteiramente disponibilidade econômica familiar – de
desligados daqueles que se observavam nas onde se empregar preferencialmente
áreas urbanas: sistema de cultivo e instrumentos
rudimentares, e se utilizar mão-de-obra
Apoiadas nas teorias da época, as familiar. (...) Economicamente, define-se
hipóteses ganharam foro de explicação o camponês pelo seu objetivo de plantar
definitiva, e constituíram daí por diante as para o consumo. Sociologicamente, o
coordenadas dentro das quais os campesinato constitui sempre uma
fenômenos do mundo rural brasileiro camada subordinada dentro de uma
passaram a ser observados. Isto é, estes sociedade global – subordinação
foram vistos através de interpretações que econômica, política e social (QUEIROZ,
agiam como limitadores das observações e 1973).
das conclusões (QUEIROZ, 1973).
Em toda a sua obra, Maria Isaura
Observa a autora, uma saga de Pereira de Queiroz tenta dar ao „sitiante‟
trabalhos que tiveram a intenção de uma construção sociológica que considere
descrever e interpretar as populações suas relações de trabalho e de vida social, no
camponesas no Brasil, destacando em intuito de contrariar a sociologia rural
termos de influências teóricas, os estudos de existente até então, a qual tinha por base um
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determinado isolamento daquilo que a conseqüentemente, novas concepções acerca


literatura chamou de „caipira‟. Apesar da da ruralidade.
importante contribuição científica feita por
esta autora, constata-se que no Brasil, o Um conjunto de atividades
meio rural sempre foi referenciado como um diferentes das tradicionais passou a ser
espaço voltado para a produção agrícola, desenvolvido no campo. Essas atividades
marcado pelo isolamento, pelo caracterizam-se pela incorporação de novos
despovoamento e pela precariedade das produtos agropecuários, industriais,
relações sociais, em oposição à cidade, prestação de serviços e atividades de
depositária privilegiada das ações do poder entretenimento, caracterizadas pela busca
público, dos serviços e dos equipamentos. por espaços bucólicos e/ou marcados pela
tradição cultural, nos momentos de ócio.
Com o avanço do sistema capitalista Essas atividades emergentes em vários
a partir da década de 50, o rural passou a ser pontos do globo entusiasmaram grupos de
visto apenas como cenário oficial da estudiosos brasileiros que passaram a falar
produção econômica determinante das de um „novo rural‟ no Brasil.
relações de poder no país (a produção
agrícola) e, assim sendo, um território Estes estudiosos defendem a idéia de
inteiramente prescrito e comandado por que as atividades no meio rural hoje passam
estas mesmas relações, no qual se verifica a ser articuladas a outros temas e
um modo de viver urbano portador, preocupações, tais como a segurança
segundo Lefebvre, de „sistemas de objetos‟ e alimentar, a qualidade dos alimentos, a
„sistemas de valores‟ tipicamente urbanos: proteção do meio ambiente, a valorização
dos diferentes tipos de territórios e a geração
Os mais conhecidos dentre os elementos de oportunidades de emprego, de renda e
do sistema urbano de objetos são a água, a lazer:
eletricidade, o gás (butano nos campos)
que não deixam de se fazer acompanhar Além das mudanças e transformações na
pelo carro, pela televisão, pelos utensílios redefinição do que seja o rural, muito tem
de plástico, pelo mobiliário moderno o se falado num processo de revitalização
que comporta novas exigências no que diz dos espaços rurais, ou seja, aos espaços
respeito aos serviços. Entre os elementos rurais têm sido associadas visões sobre a
do sistema de valores, indicamos os diversidade e diversificação da economia
lazeres ao modo urbano (danças, de uma determinada região, a inserção de
canções), os costumes, a rápida ação das atividades não-agrícolas, pela valorização
modas que vem da cidade. E também as dos seus atributos e potencialidades locais
preocupações com a segurança, as referentes ao seu entorno físico, sócio-
exigências de uma previsão referente ao cultural e a vinculação de sua população
futuro, em suma, uma racionalidade ao manejo dos recursos naturais,
divulgada pela cidade (LEFEBVRE, 1969, favorecendo e conformando dinâmicas
p. 17). territoriais específicas (ABRAMOVAY,
2000).
Porém, as atuais contradições
econômicas, sociais e ambientais ligadas ao Argumenta-se que o meio rural, ao
modo de produção econômica do país, têm realizar diversificadas atividades agrícolas e
suscitado uma nova forma de se pensar as não-agrícolas, tem possibilitado uma nova
funções do espaço rural para além da construção social de seu espaço,
produção de alimentos e de matérias-primas, necessitando assim de uma nova concepção
o que têm despertado novas práticas teórica acerca da ruralidade. O que se
econômicas e sociais no campo e questiona diante disso é „até que ponto se
pode considerar esse novo rural como sendo

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realmente rural‟, ou seja, „será que este mudança mais rápida no sentido da
espaço – atualmente repleto de práticas modernização.
econômicas e sociais tipicamente urbanas –
pode ser considerado rural simplesmente A primeira tendência se norteia por
por estar geograficamente localizado nos indagações de tipo teórico. Aborda os
limites da cidade?‟ problemas da sociologia rural numa
perspectiva global, através de uma grande e
Sistematizam-se aqui algumas constante indagação do que é o urbano. A
reflexões que objetivam compreender as segunda, como muito bem nota o autor
atuais configurações sociais do espaço rural Henri Mendras, não se interessa por essas
para pensar as possibilidades de uso do diferenciações. Para ela o urbano e o rural
termo que recorrentemente têm se são domínios perfeitamente distintos e
verificado entre pesquisadores da sociologia definidos, estando o meio rural em processo
rural. O conceito de „novo rural‟ exige de diferenciação expresso na adoção cada
primeiramente um questionamento do rural vez maior de modernas técnicas de trabalho,
enquanto categoria de pensamento, o que na mecanização da lavoura e numa
possibilita uma reflexão teórica importante especialização cada vez maior do trabalho.
dentro dessa discussão. Essa segunda tendência aceita como
inevitável uma homogeneização cada vez
Retornaremos assim ao rural anterior maior dos dois espaços, tendendo o rural a
às transformações econômicas da década de se confundir com o urbano no que diz
1960 e, conseqüentemente, a um debate que respeito às instituições, serviços e
naquele momento histórico já se comportamentos.
caracterizava pela diversidade de olhares e
concepções teóricas sobre a estrutura e o A tendência francesa indaga a
papel social do campo, considerando que a própria existência dessa homogeneização,
mesma diversidade de análises se faz preocupando-se prioritariamente com os
presente até hoje na sociologia rural rumos reais que seguem os processos de
brasileira e precisa ser revista. mudança no meio rural e no meio urbano,
sendo a adaptação de ambos os meios um
subproduto de um programa de trabalhos
que é, antes de mais nada, teórico. Analisa o
RAÍZES TEÓRICAS DA SOCIOLOGIA
meio rural e o meio urbano enquanto esferas
DO MUNDO RURAL
interconectadas que pressupõem a
De acordo com a autora Maria complementaridade de um meio sobre o
Izaura Pereira de Queiroz, cujas pesquisas outro, como parte de um conjunto social
tiveram grande contribuição na definição mais amplo ao passo que a tendência
dos campos de pesquisa da Sociologia Rural americana concebe os mesmos espaços
e, portanto, de seu objeto, duas tendências como extremos de uma escala de muitas
muito importantes marcaram os estudos graduações, onde a as particularidades de
sobre o meio rural até meados da década de cada espaço estão cada vez mais diluídas.
1960: a tendência francesa, cujos trabalhos Ambas estão baseadas na perspectiva do
(mesmo os de pesquisa de campo) se „continnum‟ que procura resolver um
orientaram sempre para uma definição cada questionamento anterior da sociologia rural
vez mais refinada do objeto da Sociologia que eram as teorias „dicotômicas‟.
Rural e a tendência americana, voltada para a
As definições existentes do que seja
prática imediata, que pretende dominar um
rural e urbano, de uma forma geral, são
aspecto considerado atrasado e insatisfatório
associadas a essas duas grandes abordagens:
da realidade social para promover nele uma
a dicotômica e a de continuum. Na primeira,
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a ênfase recai sobre as diferenças que se 1. Ocupacionais: diferenças no


estabelecem entre estes dois espaços, sendo envolvimento das atividades. No rural,
o campo pensado como algo que se opõe à desde jovens, as pessoas se ocupam com
cidade. Na segunda, ocorre uma um único tipo de atividade, a coleta e o
aproximação entre o espaço rural e a cultivo;
realidade urbana. As definições clássicas, 2. Ambientais: os rurais sofrem influência
formuladas a partir do final do século XIX, direta do contato com a natureza e das
partem da observação de vários aspectos da condições climáticas;
realidade para ressaltar as principais
características do espaço rural, constituindo- 3. Tamanho das comunidades: correlação
se em um alicerce para formulações de negativa entre tamanho da comunidade e
pessoas ocupadas na agricultura;
conceituações dicotômicas entre o rural e o
urbano. De acordo com Blume (2004, p.18), 4. Diferenças na densidade populacional:
as rurais são relativamente mas baixas do
[...] os primeiros debates e reflexões que as urbanas, devido ao cultivo;
surgem sistematizadas por uma leitura que
assume o rural como uma realidade 5. Diferenças na homogeneidade e
específica e oposta ao urbano, embasada heterogeneidade da população: os rurais
pelos estudos das diferenças entre tendem adquirir características
comunidade e sociedade, de Ferdinand semelhantes por se envolverem nas
Tönnies. Este antagonismo dualístico para mesmas funções, são mais homogêneos,
o rural era o tema da corrente pois não sofrem os problemas de uma
denominada de dicotômica. intensiva divisão do trabalho.

Marx e Weber ressaltam que, pouco Todas as características descritas


antes da disseminação do capitalismo mencionam a existência de duas realidades
urbano-industrial pelo mundo, originou-se que se opõem. Porém, em vários países,
um conflito entre duas realidades distintas: o simultaneamente às profundas alterações
urbano, símbolo de incorporação do sócio-espaciais, observou-se, durante o
capitalismo e do progresso da técnica, e o século XX, a modificação da característica
rural, refúgio da aristocracia decadente e de primária que constitui o embasamento dessa
antigas relações e formas de vida. A visão: o campo passa a abrigar de forma
dicotomia entre rural e urbano procurava expressiva as atividades do tipo não
representar, portanto, as classes sociais que agrícolas.
contribuíram para o aparecimento do
capitalismo industrial ou que a ele se A indústria fez a cidade explodir e
opunham na Europa do século XVII e não a desencadear o processo de urbanização
um corte geográfico propriamente dito. A extensiva, com a incorporação das periferias
partir disso, o urbano passa a ser associado mais ou menos distantes pelo tecido urbano.
ao novo, ao progresso capitalista das O crescimento das cidades, a industrialização
fábricas, e o rural, ao velho, ou seja, à velha da agricultura e o transbordamento do
ordem social vigente (Silva, 1996). urbano nas áreas rurais, verificados em
vastas regiões do mundo no decorrer do
Como podemos observar de maneira século XX, sugerem que a transição entre os
resumida em Blume (2004), Sorokin & espaços rural e urbano deve ser entendida de
Zimmermann identificam uma série de acordo com a formulação teórica do
diferenças empíricas marcantes entre as continuum. Nessa perspectiva, a polarização
áreas rurais e urbanas que se relacionam antagônica é substituída por um gradiente de
principalmente com as seguintes variações espaciais.
características:

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O problema fundamental desta interferências e continuidades, as relações


noção de continnum é justamente a entre o campo e a cidade não destroem as
tendência a privilegiar uma visão centrada no particularidades dos dois pólos e, por
urbano, relegando o rural novamente ao conseguinte, não representam o fim do rural.
pólo atrasado desta inter-relação. A noção Para ela as transformações do rural,
de continnum tem como base a dicotomia já intensificadas pelas trocas materiais e
conceitualmente postulada, a qual acaba se simbólicas com o urbano, fazem emergir
sobrepondo ao antigo conceito de rural uma nova ruralidade.
como um lugar de permanência de mão-de-
obra barata e desqualificada. (Wanderley,
2001).
O RURAL NA
Os encantos com a efervescência CONTEMPORANEIDADE
urbana relegaram o rural a um lugar
Podemos compreender através da
marginal, palco de tradições e práticas
reflexão teórica presente neste trabalho que
tradicionais residuais, sendo que as noções
as atuais mudanças no meio rural seguem
de progresso e desenvolvimento foram
uma direção não prevista pelas premissas da
identificadas apenas como parte da
sociologia rural. Com isso está sendo
sociedade urbana industrial. Para Silva, 1996,
colocado em questão o mito fundador da
as leituras das transformações recentes,
sociologia rural que instituiu a oposição
baseadas na “urbanização do campo”
entre campo e cidade como realidades
mantêm essa mesma lógica relegando o
espaciais e sociais descontínuas, mas em
espaço especificamente rural à tradição e ao
relação de subordinação do primeiro à
atraso.
segunda.
Esta vertente das teorias da Destaca-se na formulação desse mito
urbanização do campo e do continnum rura- o pressuposto de que as diferenças entre
urbano aponta para um processo de rural e urbano tenderiam a desaparecer
homogeneização espacial e social que se como resultado do processo de urbanização
traduziria por uma crescente perda de tido como natural e inevitável. Nesses
nitidez das fronteiras entre os dois espaços, termos o desenvolvimento do campo se
sugerindo dessa forma, o fim da própria daria nos moldes da cidade resultando na
realidade rural. O problema estaria em não expansão e generalização do urbano, o que
considerar que a realidade rural é levaria ao fim o próprio objeto da sociologia
socialmente distinta da realidade urbana e rural e a dualidade sobre a qual essa
isso não nos leva necessariamente a reforçar disciplina se constituiu (Martins, 1981).
qualquer visão dicotômica para preservar as
singularidades do campo. O questionamento de tais
pressupostos desencadeia um importante
É fato que a noção de continnum ou debate sobre a definição da ruralidade na
de um processo inter-relacional atualidade. Permeando este debate está a
recorrentemente tem sido utilizada para idéia de que a cada parte desta dualidade
caracterizar uma homogeneização dos correspondem características próprias
espaços –urbano e rural – e que muitas verificadas empiricamente. A busca da
interpretações baseadas nessa noção têm essência do rural e do urbano envolveu um
formulado a hipótese de que o desfecho dos amplo debate ao longo de século XX,
processos recentes de transformação seria o mobilizando um grande número de autores
fim do rural dado pela urbanização completa que se espalharam por uma variada gama de
do campo, mas Wanderley, 2000, reforça posições e argumentos. Entre estes, destaca-
que mesmo ressaltando as semelhanças, se a associação, quase consensual, entre o
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rural e o agrícola que acabou por reduzir a de que estaríamos observando uma
sociologia rural à sociologia da atividade aproximação entre os padrões de vida da
agrícola ou, mais especificamente, à população rural e urbana. No entanto,
sociologia do desenvolvimento da essa aproximação se daria de diferentes
agricultura, já que muitos dos estudiosos modos e se expressaria em um „mosaico
de formas e de cores em que se impõem
desse campo se voltaram para a análise do as culturas (KAYSER, 2000).
rural a partir da perspectiva de sua
modernização. A partir da análise de dados
censitários sobre a França, Kayser identifica
Partindo da definição do rural pela ótica
da escassez, da falta e do atraso,
uma mudança do ritmo do êxodo rural que
constituiu-se uma sociologia baseada estaria dando lugar a um movimento, ainda
muito mais na imagem criada pelos de difícil qualificação de retorno da
sociólogos sobre como o rural (e seus população urbana ao campo, constatando a
habitantes) deveria ser, do que na análise revitalização social e econômica recente de
do modo de ser e fazer das populações áreas ou localidades rurais que deixaram de
tidas como rurais (MARTINS, 2000). ter sua dinâmica centrada na atividade
A essa característica comum à agrícola, mas que nem por isso passaram a se
maioria das abordagens sobre o rural – a confundir com as realidades urbanas.
centralidade da agricultura na organização de É nessa direção que podemos
sua vida social – encontram-se associadas reconhecer uma corrente de pensamento
outras características, tais como a relação que se opõem à idéia de generalização do
específica com a natureza e fraca densidade padrão de vida urbano, sustentando-se na
demográfica responsável, para alguns, pelas defesa da permanência das diferenças
relações sociais sustentadas no espaciais e sociais, contextualizadas por
interconhecimento. (MENDRAS, 1976). processos históricos de reelaboração
No entanto, as dinâmicas atuais das contínua da dualidade campo-cidade,
sociedades rurais têm introduzido novos engendrando novas ruralidades.
ingredientes ao debate dando margem a (WANDERLEY, 2000).
formulação de outras correntes A mesma autora enfatiza também as
interpretativas. Uma vez que a dinâmica do diferenciações presentes nas representações
mundo rural não cabe mais na afirmação da sociais do rural. Mesmo com os atuais graus
tendência de seu esvaziamento social, de homogeneização e indiferenciação,
econômico e cultural, tornou-se possível provocados pelos processos de globalização,
para alguns autores falar em “renascimento “as representações sociais dos espaços rurais
rural”. Renascimento este que não se e urbanos reiteram diferenças significativas
identifica à „modernização do rural‟ nos que têm repercussão direta sobre as
padrões da cidade, mas à constituição de identidades sociais, os direitos e as posições
novas formas de sociabilidade e de relações sociais dos indivíduos e grupos, tanto no
sociais sustentadas numa complexa rede de campo quanto na cidade” (WANDERLEY,
atores sociais que não pode mais ser 2001, p.33).
compreendida pura e simplesmente como
Mais importante do que uma
um processo de urbanização que se
definição precisa das fronteiras entre o rural
encaminha na direção da homogeneização
e o urbano é buscar os significados, do
espacial e social entre o campo e a cidade.
ponto de vista dos diferentes agentes, das
Este fenômeno nega tanto o fim do rural práticas sociais que operacionalizam as
como o da dualidade, ambos previstos interações entre estes espaços (Carneiro,
pelo modelo da modernização 1998, p. 7). Neste sentido, há um
homogeneizadora, mas permanece a idéia ressurgimento que transcende a um simples
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esforço de retomada teórica do campo. rural ou seria a expressão de um novo olhar


Estes esforços buscam incluir o campo e informado por outras lentes que permitiram
seus agentes sociais no contexto dos enxergar – sobre uma variedade de espaços
diferentes processos de transformação pelos socialmente habitados – uma realidade
quais passa a sociedade ocidental dinâmica, mutável e com plasticidade que até
contemporânea. então era definidora da urbanidade?
Estes dois espaços não possuem divisões Carneiro enfatiza estes e outros
ou fronteiras tão explícitas, pois há um questionamentos acerca do rural enquanto
processo permanente de interações e categoria de pensamento e afirma que o
intercâmbios que precisam ser levados em esgotamento do modelo modernizador nos
conta nas análises, sem perder as possibilitou um olhar crítico no sentido de
especificidades e identidades de cada um
nos liberarmos da imagem hegemônica do
(CARNEIRO, 1998).
rural como espaço da tradição e
Segundo Maria José Carneiro, impermeável a mudanças e, assim, passamos
algumas questões de conteúdo metodológico a reconhecer, também no chamado mundo
se impõem nesse novo contexto: até que rural, uma diversidade de dinâmicas e atores
ponto é possível continuarmos operando sociais
com os mesmos instrumentos analíticos
elaborados em outros contextos históricos,
econômicos e sociais? Qual o sentido que CONSIDERAÇÕES FINAIS
devemos atribuir ao rural na
contemporaneidade? Em outros termos, até Obviamente o debate que este
que ponto categorias genéricas como „rural‟ trabalho suscita, sobre a exclusão do rural e
e „urbano‟ são ainda pertinentes para de suas populações das reflexões teóricas e
qualificar espaços e universos sociais nas interpretações da realidade, não é novidade e
sociedades contemporâneas? tão pouco se trata de uma criação exclusiva
da modernidade. Este tipo de pensamento
Indagações desse tipo têm levado a excludente remonta aos pensadores gregos e
uma série de tentativas de respostas que, à construção de conceitos como cidadania e
grosso modo, encaminham dois outros cidadão, tão caros ao pensamento moderno
conjuntos de questões: é o rural como ocidental.
categoria analítica que está em jogo e com
ela estaria também sendo questionada a O advento da modernidade – na
dualidade que a sustenta ou será que a esteira da filosofia iluminista que entendia a
emergência de novas ruralidades estaria cidade como “lugar da virtude, da cidadania
apontando para novas dinâmicas nos e da civilização” – marca também a
espaços compreendidos nessa dualidade, reconquista do domínio político da cidade,
sem, no entanto, ameaçar o seu conteúdo incorporando ou transformando a estrutura
heurístico? feudal, dando um novo significado ao
Em resumo, trata-se da necessidade sistema urbano a partir da industrialização.
de elaboração de abordagens alternativas que Pode-se verificar também que o
consigam dar conta desses novos cenários papel secundário e residual do rural se faz
ou trata-se apenas de redefinir as presente nas reflexões de Marx sobre o
características desse „novo rural‟ e assim desenvolvimento do sistema capitalista
restituir o eu conteúdo classificatório ou ocidental onde há uma centralidade
analítico? É necessário pensar o que afinal (inclusive a partir de noções e conceitos
está em jogo ao falarmos de nova ruralidade: como a divisão social do trabalho, práxis,
é a constatação de novas dinâmicas sociais, produção e reprodução, etc.) da noção de
culturais e econômicas em curso no mundo cidade e da oposição desta com o campo.
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Na divisão social do trabalho ocorre Porém, mais importante que tentar


primeiro uma separação entre trabalho definir ou redefinir as fronteiras do rural e
industrial e comercial (dentro do espaço do urbano seria orientarmos nossos esforços
urbano) e, segundo, destes com o trabalho para a busca dos significados das práticas
agrícola materializando a divisão e a sociais que tornam operacional esse tipo de
oposição entre campo e cidade. interação (e distinção) a partir do olhar dos
atores sociais. Seria o caso, então, de
O encantamento pela efervescência percebermos essas categorias como
dos espaços urbanos e suas possibilidades representações sociais que podem ser
relegou o rural ao esquecimento ou a uma manipuladas ou resgatadas na mobilização
posição de antítese, de oposição à cidade, ao de ações coletivas. Nestes termos, a questão
urbano e ao moderno (como o lugar de principal seria a de identificar o lugar e o
manutenção de resquícios feudais), mas o significado que essas categorias preenchem
surgimento de novos atores sociais no nas relações sociais em um espaço
campo se insere em um contexto de determinado.
transformações sociais, econômicas, políticas
e culturais da modernidade ocidental que são As mudanças que permeiam as
exacerbadas pelo que se tem denominado de dinâmicas sociais, econômicas e culturais do
globalização. Esta globalização é constituída, meio rural trazem à tona a necessidade de
basicamente, por rearranjos nos processos uma reflexão teórica sobre as categorias que
de acumulação do capital que atingem todas foram, até o momento, utilizadas pela
as dimensões da vida, inclusive o meio rural sociologia rural, pois, a nível internacional,
brasileiro, abrindo espaço para novas verifica-se a incorporação de novas questões
interações com o espaço urbano. e novas perspectivas teórico-metodológicas
para entender velhos problemas. A
A modernidade – historicamente um sociologia rural depara-se hoje com o
conceito relacional identificado com a cidade desafio de realizar um debate científico e
– produz representações sociais e valores livre de conotações ideológicas que objetive,
que perpassam os itinerários de vida e a partir dessas inovações teórico-
influenciam a reconstrução da identidade das metodológicas, contemplar as mudanças da
populações rurais. Os processos sociais realidade compreendendo o protagonismo e
possibilitam, no entanto, releituras e a criatividade das populações rurais,
reapropriações destes valores, criando sobretudo das populações camponesas que
oportunidades e perspectivas de vida que se se reinventam mundo afora.
diferenciam do modo de vida moderno.
Análises sustentadas na dicotomia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
rural-urbano acabaram por produzir camisas
de força incapazes de conter a complexidade ABRAMOVAY, R. Paradigmas do
da realidade. Resulta então que é a realidade capitalismo agrário em questão. São
que passa a ser ambígua, contendo Paulo: HUCITEC; Rio de Janeiro:
características empíricas (ou indicadores) de ANPOCS; Campinas: Editora da
um e de outro pólo da oposição. Estamos UNICAMP, 1991.
falando, portanto, de uma antiga categoria
reapropriada para resolver uma velha e ______.“Do setor ao território: funções e
estruturante dicotomia que ressurge no medidas da ruralidade no desenvolvimento
debate sobre a dinâmica da ruralidade nas contemporâneo”. In: Interrelações entre as
sociedades contemporâneas. transformações demográficas e a agenda
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1
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL), mestranda do Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus
de Marília/SP.

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