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Utilizando-se do conto, que em si contêm elementos

universais, este livro nos mostra um mundo literário


quase desconhecido do brasileiro, o mundo israelen­
se, com suas características próprias, que começam a
ser muito valorizadas na Europa e Estados Unidos.
Aqui em especial estão reunidos os autores da geração
“do Estado” , isto é, aqueles que vem produzindo des­
de a década de ‘50 até hoje. Eles refletem em seu
trabalho toda uma problemática ligada á criação e a
evolução política e social de Israel.
Ê um trabalho pioneiro em língua portuguesa, visando
iniciar uma série que aumentará ainda mais o inter­
câmbio cultural de dois mundos contemporâneos.

COLEÇÃO ISRREL-yCLIE
□nouocomo
ISRAELENSE
© Copyright
ACUM LTD.
e DEBORAH OWEN (pelos contos de Amos Oz)
Em termos de direitos autorais a publicação desta obra tornou-se possível graças ao
INSTITUTE FOR THE TRANSLATION OF HEBREW LITERATURE LTD.

Editor
Moysés Baumstein

Supervisão Editorial
Alberto Baumstein

Capa
Inlustração Moysés Baumstein

Produção
Helvética S/C Produções Editoriais Ltda.

Direitos reservados
Símbolo S. A. Indústrias Gráficas
01129 — Rua General Flores, 522 — Fone: 220-Ô267
01000 — São Paulo — SP
1978

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
COLEÇÃO ISRAEL-HOJE

Colaboradores deste volume:

Coordenação geral, seleção, orientação das traduções: RIFKA


BEREZIN
Introdução: PROF. GUERSCHON SCHAKED
Traduções: Ana Szpiczkowski, Cecilia K. Schnaider, Cléa Tania Salz-
stein, Dezi Siamban, Dora F. Blatyta, Eliana Langman, Ester A.
Dimenstein, Fani Stein, Frida G. Spiewak, lida Apor, Luba Kignel,
Rosilda L. Rozenchan, Miriam Rattner, Nancy Rozenchan, Nora
Rosenfeld, Rifka Berezin, Rosely Mandelman, Sônia W. Boguchwal,
Suely Dinah Goldstein.

Revisão de texto: Luiz Roberto Alves, Nancy Rozenchan, Zipora


Rubinstein.
Revisão Estilística: Kàte Windmüller, Mirna Pinsky, Nair Rebelo,
Nancy Rozenchan, Rifka Berezin

Agradecimento especial a Editora BNAI BRITH S/C LTDA., a


qual trabalhou conosco em regime de co-edição, tornando assim pos­
sível a edição desta obra.

«1

.
*A-


'
,
'

I
AMÓS OZ

Nasceu em Jerusalé ;m 1939. É formado pela Universidade


Hebraica de Jerusalém en: Filosofia e Literatura. É membro do Ki-
butz Hulda desde 1957. Trabalhou em cultura de algodão, em po­
mares e na função de professor na Escola do Kibutz. Serviu como
reservista numa unidade de Tanques nas guerras de Yom Kipur (1973)
e dos Seis Dias (1967).
Publicou coletâneas de contos e romances. O seu romance Meu
Michael, foi adaptado ao cinema. Vários de seus livros foram tra­
duzidos para o inglês, francês, holandês, espanhol, sueco, finlandês,
catalão, alemão e italiano.
As suas principais obras são: Nas Terras do Chacal, (1965 e
1975), Um Outro Lugar (1966); Meu Michael (1968), Até a Morte
(1971); Tocando na Água,Tocando no Vento (1973); A Montanha do
Mau Conselho.
Os dois contos aqui apresentados fazem parte da coletânea Nas
Terras de Chacal, escritos nos anos 1962-1965. Foram publicados pela
Editora Massada, Ramat Gan, 1965. Posteriormente foram reescritos
pelo autor e publicados pela Editora Am Oved, Tel Aviv, 1976.
A pedido do autor, traduzimos esses contos da nova versão,
publicada pela Editora Am Oved em 1976.

29
O CAMINHO DO VENTO

1
O último dia de Guideon Chenehav iniciou-se com um ama­
nhecer maravilhosos.
Tenra e quase outonal era a aurora. Vagos raios atacavam a
muralha de nuvens que cerrava o horizonte do nascente. Astuto, o dia
novo escondia as suas intenções e não dava sinal algum do calor
sufocante nele encoberto.
Uma luz violeta acende-se nas montanhas a leste. O vento ma­
tutino a atíça. Em seguida, raios luminosos rasgam a muralha de
nuvens. É dia. Brechas se abrem a dedos de luz. Finalmente, a bola in­
candescente eleva-se, é atirada à cordilheira de nuvens, e vencendo-a
no horizonte oriental, todo deslumbrante, o violeta delicado rendeu-
se e se retirou diante do vermelho brilhante e poderoso.
O toque de despertar estremeceu o acampamento militar poucos
minutos antes do nascer do sol. Guideon levantou-se caminhando
descalço e sonolento para fora da barraca, mirando o acúmulo de luz.
Com a mão magra e morena protegia os olhos que ainda desejavam
dormir. A outra mão, sem que ele o percebesse, abotoava a farda. Já
se ouviam vozes de homens e sons metálicos, e havia alguns, mais
ágeis, que sentados limpavam suas armas para a parada matutina.
Guideon entretanto, era lento. A visão do amanhecer despertou nele
uma emoção fatigada, talvez certos anseios imprecisos.
O nascer do sol já se completara e o rapaz continuava a dormir de
pé, até que alguém o empurrou e lhe disse:
— Vamos, mexa-se.
Retornou à barraca, arrumou a cama, limpou a submetralhadora
e apai hou os apetrechos de barbear. No caminho, entre os eucaliptos

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caiados de branco e a grande quantidade de cartazes de' cautela e dis­
ciplina, Guideon lembrou de repente que aquele era o Dia de Indepen­
dência, o diai cinco do mês de Iyar1 . Hoje a companhia ia realizar
ama exibição de pára-quedismo no vale de Yezreel. Guideon entrou
na barraca da toalete, ficou esperando até que algum espelho fosse
desocupado. Enquanto isso, escovava os dentes e pensava nas belas
moças. Dentro de uma hora os preparativos estariam concluídos e a
companhia subiria aos aviões e voaria até o local da descida. Muitos
cidadãos entusiasmados iriam aguardar os pára-quedistas e, entre
eles, também as moças. A descida de pára-quedas dar-se-ia perto do
[Kibutzl2 Nof Harish, a casa de Guideon, onde ele tinha nascido e
se criara até o dia do seu alistamento militar. Quando os seus pés
tocassem os torrõ.çs do campo, os garotos do Kibutz iriam cercá-lo,
pulariam sobre ele e gritariam: — Guideon, aqui está o nosso Gui­
deon!
Guideon meteu-se entre dois soldados muito maiores do que ele e
pôsfjse a ensaboar o rosto e a barbear-se apertado entre eles. Guideon
disse:
— Um dia quente...
Um dos soldados respondeu:
— Ainda não. Mas será.
E o outro soldado resmungou por trás:
— É melhor você terminar logo, em vez de ficar tagarelando des­
de cedo.
Guideon não se ofendeu. Ao contrário, por alguma razão essas
palavras despertaram nele uma intensa alegria. Enxugou o rosto e saiu
para o pátio de exercícios. A luz azulada havia se transformado, nesse
ínterim, em branco-acinzentada, uma luz sufocante e opaca.

Ainda na véspera, à noite, Chimchon Cheinboim3 já previra a


aproximação do forte calor. Por isso tinha corrido até a janela, assim
que despertara de manhã, para verificar, com satisfação, que também

1. Yar: 8.° mês do calendário judaico: coincide geralmente com o mês de maio.
2. Kibutz: colônia agrícola coletiva baseada na posse comum da propriedade.
3. Chimchon Cheinboim: é usual em Israel a mudança dos nomes de família para
nomes hebraicos, por tradução ou semelhança fonética. Assim, o pai manteve o iídiche
Cheinboim (árvore formosa) e o filho adotou o nome hebraico Chenehav (marfim).

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desta vez acertara. Abaixou então as persianas, para proteger o
quarto contra o calor, em seguida lavou o rosto, os ombros e o peito
coberto de pelo branco e denso. Barbeou-se e preparou o café com
pãozinho que havia trazido do refeitório na véspera. Chimchon
Ghjeinboim odiava profundamente o desperdício de tempo, sobretudo
nas produtivas horas da manhã: sair, ir ao refeitório comum, con­
versar, ler o jornal, trocar idéias e a metade da manhã já estava
perdida. Por isso acostumou-se a se satisfazer com um café e um
pãozinho e já às seis e dez, após ouvir o primeiro noticiário, sentava-
se o pai de Guideon à sua escrivaninha. No verão e no inverno, sem
concessões.
Sentou-se à escrivaninha observando por alguns instantes o mapa
dos povoados da nossa terra, pendurado na parede à sua frente; es­
forçava-se por lembrar um sonho angustiante que o dominara de
madrugada, praticamente antes de acordar. Mas o sonho tinha-lhe es­
capado da memória. Chimchon decidiu concentrar-se no trabalho e
não perder mais nenhum minuto.
Na verdade, hoje é dia de grande festa, mas não para se festejar
no ócio, e sim com trabalho. Até que chegue a hora de sair para ver lá
fora os pára-quedistas e Guideon, que talvez realmente esteja entre
eles, e não tenha adoecido na última hora. Ainda restavam a Chim­
chon algumas horas de trabalho. Um homem de setenta e cinco anos
não deve desperdiçar o seu tempo, sobretudo se as coisas que ele tem
para escrever são muitas, tantas a ponto de doer. O trabalho é imenso.
O nome de Chimchon Cheinboim não necessita de louvores. O
movimento trabalhista hebreu sabe honrar o nome de seus funda­
dores. Há dezenas de anos que o nome de Chimchon está envolto por
um halo, permanentemente. Há dezenas de anos que ele luta de corpo
e alma pela consagração de seus ideais de juventude. As derrotas e
decepções não quebrantaram sua fé nem a dobraram, mas enrique­
ceram sua alma com um traço de sábia melancolia; à medida que ia .
aprendendo a compreender as fraquezas dos outros e seus desvios
ideológicos, tornava-se cada vez mais intolerante para com suas
próprias fraquezas. E ele as reprimia com braço férreo e seguia viven­
do segundo os seus princípios, em linha reta como uma régua, com
implacável disciplina interior e também com uma espécie de alegria
oculta mas ardente.
Neste momento, entre as seis e as sete da manhã do Dia da In­
dependência, Chimchon Cheinboim ainda não é um pai enlutado.
Suas feições, porém, já condizem perfeitamente com essa auréola.
Uma expressão pesada e inteligente, que tudo vê, mas impassível ao

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que vê, marca o seu rosto entalhado. E seus olhos expressam uma tris­
teza irônica.
Está sentado à escrivaninha, o dorso emprumado, a cabeça in­
clinada sobre as páginas. E os cotovelos repousam. A escrivaninha é
de madeira simples, como os demais móveis do quarto, todos eles de
estrita necessidade e desprovidos de ornamentos; a cela de um monge
asceta e não a residência de um veterano do Kibutz.
Esta manhã não será de grande produtividade. Mais uma vez os
pensamentos se dispersam e como que vão ao encontro do sonho que
luziu e se apagou no fim da noite. É preciso lembrar o sonho; depois
que a gente se lembra pode esquecer, e então é possível também cori-
centrar-se no trabalho. De um cano eu me lembro. E um peixe
dourado ou algo parecido. Uma discussão com alguém. Nenhum
nexo. Agora ao trabalho. Aparentemente, o Movimento Operário
Israelense — “ Poalei Tzion” estava fundamentado, desde o princípio,
numa contradição ideológica irreconciliável, e somente à força de um
malabarismo verbal logrou encobrir esta contradição. A contradição,
porém, é apenas aparente, e os que esperavam dela se aproveitar a fim
de abalar ou destruir, não sabem o que dizem. A comprovação é
muito simples.
Chimchon Cheinboim é um homem de grande experiência de
vida. Sua existência ensinou-lhe quanta arbitrariedade e quanta tolice
pairam sobre a mão que decide as reviravoltas de nosso destino, tanto
o individual como o coletivo. A lucidez não eliminou de Chimchon
Cheinboim a pureza que nele pulsa desde, a sua juventude. A mais
bela e admirável das características de sua alma é a candidez teimosa:
como os seus antepassados íntegros e piedosos, cuja perspicácia não
atingiu a sua fé. Cheinboim jamais havia permitido que seus atos se
distanciassem de suas palavras: mesmo quando alguns dirigentes do
nosso movimento mergulharam no trabalho político e como que
casualmente abandonaram de todo o trabalho físico, Cheinboim não
abandonou o Kibutz. Ele rejeitou todos os cargos e funções fora
do Kibutz e somente após muitos conflitos aquiesceu em ser eleito
para a Assembléia-Geral do Trabalhadores. Até há poucos anos, seus
dias dividiam-se igualmente entre o trabalho físico e o intelectual: três
dias para o trabalho de jardinagem e três dias para os seus escritos
teóricos. O belo jardim do Kibutz Nof Harish é em sua maior parte
obra de Chimchon Cheinboim. Todos nós lembramos de como ele
plantava e podava, revolvia e regava, fertilizava e desbastava. Ele não
permitiu que sua posição de principal ideólogo do Movimennto o dis­
pensasse dos deveres de qualquer membro do Kibutz: guarda-no-
turna, plantões, mutirão no período da colheita. Nenhuma sombra de
falsidade tolda a vida de Chimchon Cheinboim desde sempre e até

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hoje. Todo ele é um bloco compacto de ideais e realizações que des­
conhece esmorecimentos ou hesitações. Assim escreveu a seu respeito,
no jornal, o Secretário-Geral do Movimento, há alguns anos por
ocasião dos setenta anos de Chimchon Cheinboim.
É verdade que houve momentos de profundo desespero. Houve
momentos de grande repugnância. Mas esses momentos, ele os trans­
formou em fontes secretas de energia impetuosa. Como dizem as
palavras da canção de marcha, tão amada por ele, e que lhe infunde
sempre uma energia embriagadora: nos montes, nos montes brilhou a
nossa luz; escalemos o monte, o ontem ficou para trás, porém, é longo
o caminho para o amanhã. Se este sonho tolo pudesse emergir das
névoas a revelar-se agora por completo, ser-lhe-ia possível atirá-lo es­
cadas abaixo e concentrar-se finalmente no trabalho. O tempo está
passando. Uma mangueira, um truque de xadrez, peixes dourados,
uma briga. Mas qual é o nexo?
Durante muitos anos viveu Chimchon solitário. Todas as suas
forças investiu-as na sua criação intelectual. A obra de sua vida cus­
tou-lhe a dolorosa desistência de constituir um lar. Em troca disso,
conseguiu preservar até a velhice uma lucidez juvenil e uma calorosa
cordialidade. Somente ao completar cinqüenta e seis anos, casou-se
repentinamente com Raia Grinspan, e com ela teve o filho Guideon:
em seguida separou-se dela e tornou a concentrar-se no trabalho in­
telectual. De fato, não se pode ser hipócrita, mesmo antes de seu
casamento com Raia Grinspan, Chimchon Cheinboim não levava vida
de monge. Sua personalidade atraía para ele as mulheres, da mesma
forma como atraía discípulos. Jovem ainda, sua vasta cabeleira
tornara-se branca e seu rosto crestado de sol estava marcado por um
entrelaçamento de linhas e fendas. Seu corpo troncudo, seus ombros
fortes e sábios, o som de sua voz que era quente, cético, e algo pen­
sativo, e ainda a sua solidão atraíam para ele as mulheres, como pás­
saros sonâmbulos. As más línguas atribuíam-lhe a paternidade de pelo
menos um dos garotos do Kibutz e também em outros locais con­
tavam-se histórias. Nós passaremos sobre isso em silêncio.
Aos cinqüenta e seis anos, decidiu que era digno de gerar um
herdeiro que levasse a sua marca e o seu nome para a próxima
geração. Por isso conquistou impetuosamente Raia, uma jovem sim­
plória e de fala vacilante, trinta e três anos mais jovem do que ele.
Três meses após o casamento, que se realizara com poucos convi­
dados, nasceu Guideon. E antes que o Kibutz se tivesse recuperado
da surpresa, Chimchon Cheinboim já tinha mandado sua mulher de
volta ao seu antigo quarto, voltando a dedicar-se ao seu trabalho in­
telectual. Esse fato teve muita repercussão e os conflitos interiores que
o precederam não foram nada fáceis para ele.

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Agora, vamos forçar o pensamento e impor à memória um
método ordenado: o sonho vai sendo captado. Ela veio ao meu quarto
e chamou-me para ir rapidamente ao local e acabar com o escândalo
que ali ocorria. Eu não perguntei quem ou o que, mas acompanhei-a
rapidamente. Alguém se havia permitido construir uma piscina no
gramado, à frente do refeitório. E eu fervia de raiva, pois ninguém
havia decidido fazer tal inovação; um tanque de água para embelezar
o gramado, à frente do refeitório, como se se tratasse do palácio de
algum nobre polonês! Gritei. Com quem? Este quadro não está claro.
Dentro do tanque havia peixes dourados, e um garoto enchia-o com
uma mangueira preta. Então imediatamente resolvi interrompê-lo,
mas o garoto não quis obedecer-me. Comecei a caminhar ao longo da
mangueira a fim de encontrar a torneira e interromper o jato d’água,
antes que alguém conseguisse transformar esse tanque num fato con­
sumado. Andei muito até que, de repente, descobri que eu caminhava
em círculo e que a mangueira não estava ligada a nenhuma torneira,
mas simplesmente voltava para o tanque e sugava as suas águas.
Tolice e maldade. Acabou-se. O programa original do Movimento
Operário Israelense deve ser entendido sem dialética, ao pé da letra,
palavra por palavra.
3
Após a separação de Raia Grinspan, Chimchon Cheinboim não
negligenciou os seus deveres de pai espiritual e nem fugiu às respon­
sabilidades. Desde que seu filho completou seis ou sete anos, ilu-
minou-o com os raios de sua personalidade. Na verdade, o menino
decepcionou um pouco. Com um menino como Guideon não se funda
uma dinastia. Durante toda a sua infância seu nariz escorria: uma es­
pécie de resfriado crônico ou talvez um choramingas. Um menino len­
to, desconfcertado, engolindo surras e ofensas e não devolvendo em
dobro. Um menino estranho, sempre às voltas com papéis dourados
de caixas de bombons, folhas secas, bichos de seda. E desde a idade de
doze anos, garotas de todos os tipos partiam-lhe o coração, uma após
outra. A toda hora tinha uma decepção amorosa e ele também pu­
blicava poemas tristes e paródias cruéis no jornalzinho das crianças.
Um jovem moreno, tenro, de uma beleza quase feminina, cortando
sempre os caminhos do Kibutz num silêncio obstinado. Não se des­
taca no trabalho. Não se destaca na vida social. Fala lentamente e,
com certeza, também pensa lentamente. Os poemas que ele compõe
parecem a Chimchon irremediavelmente sentimentais, e as paródias,
venenosas, sem qualquer refinamento espiritual. O apelido de Pi-
nóquio cai-lhe bem, não se pode negar. E o perene sorriso insupor­
tável que ele leva nos lábios, Chimchon o vê como uma cópia fiel,
deprimente, do sorriso de Raia Grinspan.

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Mas eis que há um ano e meio, Guideon surpreendeu o pai com
uma grande novidade: apareceu e pediu a Chimchon que assinasse o
consentimento para ele se alistar na divisão de pára-quedistas. O alis­
tamento de filhos únicos nessa divisão é condicionado à permissão as­
sinada pelo pai e pela mãe. Só depois que Cheinboim se certificou de
que seu filho não preparava mais uma de suas estranhas brincadeiras,
concordou em dar sua aprovação. E com entusiasmo: pois esta era
uma mudança promissora no desenvolvimento do rapaz, e lá eles o
transformariam num homem. Que se alistasse. Por que não?
Mas a oposição de Raia constituiu um obstáculo inesperado à in­
tenção de Guideon. Não, ela não assinaria aquele papel. De modo
algum. Fim.
Chimchon foi pessoalmente ao quarto de Raia, falou com ela,
apresentou argumentos, demonstrou, tudo em vão. Ela não assinava.
Sem argumentos. Fim. Cheinboim foi obrigado a atuar por vias in­
diretas para que o rapaz pudesse se alistar nos pára-quedistas. Chegou
a escrever uma carta particular ao próprio Yulek. Pediu-lhe um favor
pessoal. Que fosse permitido ao seu filho ingressar como voluntário.
A mãe não era emocionalmente estável. O rapaz seria excelente pára-
quedista. Chimchon assumia toda a responsabilidade e, a propósito,
jamais tinha pedido favores pessoais. Nem tornaria a pedir. Esta era
a única vez em toda a sua existência. Por favor, que Yulek fizesse o
que estivesse ao seu alcance.
No fim do mês de setembro, quando nos pomares os primeiros
indícios do outono, o jovem Guideon Chenehav foi alistado na
unidade de pára-quedistas.

A partir do momento em que Guideon se alistou, Chimchon


Cheinboim concentrou-se com maior intensidade em sua criação
teórica, que é a única marca pessoal que o homem deixa no universo.
Essa marca pessoal jamais se apagará dos registros do Movimento
Trabalhista Hebreu. E a velhice ainda estava distante. Aos setenta e
cinco anos ainda não se percebem falhas na sua vasta cabeleira e o seu
corpo ainda é movimentado por músculos silenciosos e rígidos. O
olho está alerta. O coração atento. Sua voz forte, seca e um pouco ás­
pera atua maravilhosamente sobre as mulheres de todas as idades.
Seus modos são contidos e ele comporta-se desprentesiosamente. É
desnecessário dizer que está ligado umbelicalmente à terra do Ki-
butz Nof Harish. Detesta profundamente grandes cerimônias e
solenidades, assim como altos cargos e funções. Somente com sua
pena ele registra o seu nome nas muralhas da nossa construção na­
cional e trabalhista.

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4

O último dia de Guideon Cheneav iniciou-se com um amanhec


radiante. Seus olhos pareciam enxergar até mesmo as gotas de orvalho
que se evaporam com o calor. Sinais ardiam de longe nos cumes das
montanhas orientais. Hoje é dia de festa, a festa da Independência do
Estado e também a festa de saltar de pára-quedas nos céus de casa.
Durante toda a noite envolveu-o um sonho, uma visão de folhas
caídas de outono, em florestas escuras setentrionais. Um aroma de
folhas caídas, grandes árvores cujos nomes desconhecia. Folhas
pálidas caíam a noite toda sobre as tendas do acampamento. Já
acordado pela manhã, zumbiam-lhe nos ouvidos os ruídos da floresta
setentrional e das grandes árvores cujos nomes desconhecia.
Guideon ama profundamente a doce queda entre o salto da porta
do avião e a abertura do dossel, do pára-quedas: o abismo aproxima-
se com a velocidade de um relâmpago, correntes de ar agitadas en­
volvem o seu corpo e fica estonteado pelo prazer. A velocidade é em-
briagadora, abandonada, ela assobia e urra, o corpo todo freme por
ela, agulhas queimam nas extremidades dos nervos e o sangue pulsa
forte e lateja. De repente, quando se dá um relâmpago ao vento, abre-
se o dossel. As tiras freiam a queda como se aparecesse um braço más­
culo, tranqüilo e determinado que o detivesse para cessar o desvario.
Fica-se como que preso nesses braços, sob as axilas. Em vez de um
prazer desenfreado, um prazer cerceado, protegido. O corpo forja-se
lentamente nas alturas, paira, hesita, é arrastado um pouco pela leve
brisa. Jamais se pode prever o lugar exato em que os pés tocarão o
solo — se sobre a encosta daquela colina ou defronte aos pomares — e
então, como um pássaro, distante e cansado, desce-se lentamente, vê-
se telhados, estradas, vacas no pasto, vagarosamente, como se
houvesse alternativa, e o poder de decisão fosse toda sua.
Súbito, a terra está nas solas dos pés e executa-se o rodopio
treinado, cuja finalidade é abrandar o golpe da queda. Em poucos
segundos deve-se recuperar a lucidez. O fluxo sangüíneo será freado.
As proporções voltarão à sua escala habitual. E somente um orgulho
cansado restará no coração, até que encontre o comandante e os com­
panheiros e se reintegre no ritmo da rápida reorganização.
Desta vez tudo isto acontecerá nos céus do Kibutz Nof Harish.
Os velhos do lugar erguerão cabeças suadas, suspenderão seus bonés e
tentqrão identificar Guideon entre os pontos cinzentos oscilando no
ar. Os garotos correrão pelo campo e também eles aguardarão avi­
damente o seu herói que descerá do céu. Mamãe sairá do refeitório, e
ficará lá fora piscando e falando sozinha. Chimchon deixará sua es-

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crivaninha por algum tempo, talvez leve uma cadeira para seu pe­
queno terraço e observará tudo com olhar pensativo e orgulhoso.
Depois o Kibutz recepcionará cordialmente toda a compa­
nhia. No refeitório vão preparar jarras de limonada gelada e haverá
caixotes repletos de maçãs ou, quem sabe, tortas feitas pelas com­
panheiras veteranas, e, sobre elas, em letras de creme, os cumprimen­
tos.
Às seis e trinta da manhã o sol já tinha superado o seu bailado
colorido e elevara-se, implacável, acima dos cumes das montanhas
orientais. Um calor sufocante desceu e oprimiu a terra. Os telhados de
zinco das barracas do acampamento aqueceram-se e refletiam um
fulgor ofuscante. As paredes absorviam para o interior uma densa
radiação chocante. Na estrada principal, ao lado da cerca do acam­
pamento, já se percebia um movimento animado de ônibus e cami­
nhões: o povo das vilas e aldeias principiava a afluir para a cidade
grande, a fim de assistir ao desfile militar. Através da cortina de pó,
era possível perceber a alvura das camisas brancas desses cidadãos
festivos e até mesmo ouvir suas canções alegres.
Os pára-quedistas encerraram os exercícios matutinos. A ordem
do dia do Chefe do Estado Maior já foi lida em voz alta e afixada no
quadro de avisos do acampamento. A refeição da manhã foi festiva e
constou de um ovo cozido, enfeitado por uma folha de alface cercada
de azeitonas por todos os lados.
Guideon, a cabeleira negra caindo-lhe sobre a testa, começou a
entoar uma canção suave. Os outros o acompanharam. Às vezes
alguém trocava um dos versos por outro zombeteiro e até de mau gos­
to. Aos poucos, as canções hebraicas foram sendo substituídas por
melodias árabes guturais, como que desesperadas.
O comandante da unidade, um loiro de bela aparência, a respeito
do qual circulavam lendas nas noites em torno das fogueiras, levan­
tou-se e disse: — Basta! Os pára-quedistas cessaram o canto, sor­
veram apressadamente os restos de café gorduroso nas canecas de
aluminio e saíram para as pistas de decolagem. Ordenaram-se em fila,
o comandante proferiu algumas palavras afetivas e até chamou seus
homens de o “ sal da terra’’, e em seguida ordenou a todos subir a
bordo dos aviões que os aguardavam.
Os comandantes das companhias estavam à porta das aeronaves e
examinavam o equipamento e as ligações das tiras. O próprio coman­
dante circulava entre os rapazes, batendo-lhes nos ombros, pilherian-
do, profetizando, animando: como se fosse a véspera de um combate
e houvesse perigo. Guideon, por sua vez, respondeu à batida no om-

39
bro com um rápido sorriso em seus lábios magros. Ele era magricela,
quase ascético, mas muito queimado do sol. Um olho perspicaz, como
o do lendário e loiro comandante, podería distinguir uma veia azul
que inchava no pescoço do rapaz e pulsava aceleradamente.
Então, o forte calor penetrou também nos armazéns escuros, ex­
tinguindo e expulsando, sem piedade, os últimos fortins de frescor,
queimando tudo com um ardor cinzento. O sinal foi dado. Os mo­
tores fizeram ressoar um estrondo abafado. Os pássaros fugiram da
pista. Os aparelhos estremeceram, moveram-se, rodaram pesadamen-
te e começaram a ganhar o impulso sem o qual a decolagem não seria
possível.

a • 5
É preciso sair ao campo para recebê-lo com um aperto de mão.
Cheinboim decidiu-se e fechou o caderno. Os meses de treina- >
mento no exército de fato fortaleceram o rapaz. Incrível, mas parece
que ele começou a amadurecer. Falta-lhe ainda aprender a tratar com
as mulheres. Deve libertar-se de vez e para sempre do embaraço e da
fraqueza. Isso ele deve deixar às mulheres, e ele mesmo, ser duro.
Como aprimorou a sua capacidade no xadrez! Em breve poderá
colocar o seu próprio pai em perigo e, talvez, um dia ainda o derrotar.
Ainda há tempo. Contanto que não se case com a primeira que se
entregue a ele. Deve dominar duas ou três delas antes que se case. E
dentro de poucos anos terá de trazer netos. Muitos. Os descendentes
de Guideon terão dois pais: meu filho os criará e eu lhes desenvolverei
o espírito. A segunda geração cresceu à sombra do nosso empreen­
dimento e por isso ficou complexada. Dialética. Mas a terceira
geração, esta constituirá uma maravilhosa síntese e um abençoado
produto: seus pais lhes transmitirão a espontaneidade e seus avós, o
espirito. Este será um legado magnífico, livre dos efeitos de uma
hereditariedade desvirtuada. Esta frase deve ser registrada no cader­
no, sua hora e seu lugar surgirão num dos próximos artigos. Vejo, na
minha mente, Guideon e seus companheiros e entristeço-me tanto:
emerge deles um desespero superficial, um vazio e uma cínica zom­
baria. Não sabem amar profundamente e não sabem odiar profun­
damente. Nem exaltação e nem repugnância. O desespero em si, não o
condeno. Ele é o eterno irmão da fé. Mas de que desespero se trata.
De um desespero másculo e irado e não de uma tristeza poética-
melancólica. Sente-se calmo, Guideon, pare de se coçar, pare de roer
as unhas. Lerei para você uma bela página de Brenner4- Você torce a

4. Brenner: escritor-ideólogo; um dos pioneiros da colonização em Israel. (1881- “*®


1921).

40
boca. Está bem. Não lerei. Vá para a rua e cresça como um beduíno.
Se é o que você quer. Mas se você não conhecer Brenner não saberá o
que é desespero ou fé. Nele você não encontrará poesias chorosas
sobre um chacal enredado na armadilha ou uma flor desfolhada. Em
Brenner tudo arde em fogo, tanto o amor como o ódio. Talvez vocês,
não, mas seus filhos verão com os próprios olhos a luz e a escuridão.
Um legado magnífico, livre dos efeitos de uma hereditariedade des­
virtuada. Nós não permitiremos que a terceira geração seja corrom­
pida por mimos e poesias de damas nobres e decadentes. Eis os aviões
que se aproximam. Recoloquemos Brenner em seu lugar e vamo-nos
orgulhar um pouco de você, Guideon Cheinboim.

Chimchon Cheinboim atravessou o gramado com largas pas­


sadas, subiu o caminho cimentado e dirigiu-se para o lado sudoeste,
um campo arado que fora escolhido para a aterrissagem dos pára-
quedistas. No caminho ia parando aqui e acolá, perto dos canteiros
ajardinados, e arrancava ervas daninhas que se escondiam sorrateiras
à sombra dos arbustos em flor. Os pequenos olhos azuis de Chein­
boim descobriam sempre as ervas daninhas. Realmente, devido à sua
idade, ele se retirara há poucos anos do seu trabalho de jardinagem,
mas enquanto respirasse não cessaria de vigiar, sem piedade, os can­
teiros, e arrancaria toda erva daninha. Nesses momentos ele pensava
em seu sucessor, quarenta anos mais jovem do que ele, o rapaz a quem
entregara toda a jardinagem, esse pintor de aquarelas que tinha
recebido um jardim florescente, e de mês para mês deixa tudo perecer
diante de nossos olhos.
Um grupo de garotos excitados passou correndo por Chimchon
Cheinboim. Os garotos estavam entretidos numa cruel discussão
detalhada a respeito dos tipos de aviões que circulam nos céus do vale.
Devido à corrida, a discussão se processava em altos brados. Chim­
chon agarrou um deles pela fralda da camisa, deteve-o à força,
aproximou seu rosto ao do menino e disse:
— Você é o Zaqui.
O menino disse:
— Largue-me.
— Por que todos estes gritos? Vocês só tem aviões na cabeça? E
correr assim entre as flores, onde está escrito: “ proibido pisar” — isto
lhes é permitido? Tudo é permitido? Tudo é livre? Olhe para mim
quando lhe falo. E responda como gente, senão...

41
Mas Zaqui aproveitou a torrente de palavras despejadas sobre
ele, e, de repente, astuto e selvagem, soltou-se da mão que o cingia,
saltou por entre os arbustos, fez uma careta de macaco malvado e
mostrou a língua.
Cheinboim apertou os lábios. Pensou por um instante na velhice,
mas num instante também afastou de seu coração esse pensamento e
disse a si mesmo: — Está bem, ainda cuidaremos também deste.
Zaqui, isto é, Azariah. Pelos meus cálculos, deve ter onze anos pelo
menos, ou talvez doze. Um selvagem. Um potro.
Os jovens tinham ocupado postos de observação nos altos da
torre da água, abarcando com os olhos a vastidão do vale. Esta visão
lembrava a Cheinboim um quadro de uma paisagem russa. Por um
momento, ele também ficou tentado a fazer a escalada até o topo da
torre, para poder observar o salto à distância, sossegado. Mas o pen­
samento sobre o másculo aperto de mão tão desejado levou-o a
alargar os seus passos enérgicos até chegar à proximidade dos campos.
Ali ficou parado, as pernas separadas, os braços cruzados sobre o
peito, a bela cabeleira branca caída sobre a testa. Ergueu a cabeça e
começou a acompanhar os dois aviões de carga com um olhar cinzen­
to e firme. As rugas do rosto de Chimchon Cheinboim enriqueciam as
suas feições. O mosaico talhado refletia uma rara mescla de orgulho,
a meditação e ainda uma leve ironia bem controlada. E as sobran­
celhas brancas e grossas recordavam, a quem as observasse, algo dos
ícones dos santos russo-ortodoxos. Quanto aos aviões, tinham, por
enquanto, completado uma volta, e o primeiro aproximava-se do
campo.
Os lábios de Cheinboim entreabiram-se ligeiramente deixando es­
capar um som contido e profundo: um velho canto russo ressoou em
seu peito. O primeiro esquadrão de pára-quedistas foi expelido da
abertura rasgada na fuselagem do avião. Figuras pequeninas e escuras
espalharam-se pelo espaço, como sementes das mãos do agricultor
que semeia, numa velha figura sionista.
Raia Grinspan botou então a cabeça para fora da janela da
cozinha, acenando vigorosamente com a concha que tinha na mão,
como que repeendendo as copas das árvores. Suas faces estavam-
vermelhas e molhadas de suor, devido ao forte calor. O suor grudava
seu vestido grosseiro às pernas fortes e muito peludas. Ela resfolegou,
coçando com as unhas da mão livre os cachos de cabelos mal cuidados
e, de repente, virou-se para dentro e gritou para as outras compa­
nheiras:
— Depressa! para a janela, companheiras! Lá está Guidi! Guidi
está no céu!

42
E calou-se assustada.
Ainda o primeiro grupo flutuava devagar como um punhado de
plumas por entre o céu e a terra e já o segundo avião baixou e expeliu
o grupo de Guideon Chenehav. Os pára-quedistas colocaram-se
apertados junto à abertura rasgada, comprimidos, ventre atrás de
dorso, seus corpos fundindo-se num só bloco, transpirante e arre­
piado. Quando chegou a vez de Guideon, o rapaz rangeu os dentes,
apertou os joelhos e como nascendo para dentro da luz do calor,
saltou e caiu. No mesmo instante, um urro de alegria selvagem,
prolongado escapou de sua garganta. Enquanto caía, via as terras de
sua infância erguendo-se para ele, caía e via os telhados e as copas das
árvores, caía e sorria para eles numa careta. Shalom, Shalom 5 a
vocês todos! — e caía para os vinhedos e para os caminhos cimen­
tados, para os galpões e para os canos cintilantes, e caía com o
coração alegre. Jamais em sua vida experimentara um amor tão
violento e arrepiante. Todos os seus músculos se alertaram e como
que uma fonte de prazeres fluía a partir de seu ventre, pelo dorso até a
nuca, até as raízes de seu cabelo. Como se tivesse enlouquecido,
Guideon gritava mais e mais de tanto amor, e suas unhas fincaram-se
nas palmas das mãos contraídas, quase até sangrar. Logo a seguir, as
correias do dossel esticaram-se e prenderam-lhe as axilas. Agarraram-
lhe com força os quadris. Num instante sentiu como se uma mão in­
visível o atraísse de volta para cima, para o avião, para o coração dos
céus. A doce queda já se transforma num balanço suave, lento, como
num berço ou como numa bóia dentro de uma piscina de água morna.
De repente foi tomado por um forte pânico: como me distinguirão de
baixo? Como poderão identificar o seu filho, na floresta de dosséis
brancos? Como me envolverão, e somente a mim, com os seus olhares
preocupados e amorosos? Mamãe e papai e as belas garotas e os
meninos pequenos, enfim, todos. Não posso estar misturado assim
dentre todos os pára-quedistas. Pois eu sou este. E é a mim que eles
amam. É isso.
Naquele mesmo instante estalou em Guideon uma idéia. Levou a
mão ao ombro e, puxando o cordão libertou o pára-quedas de re­
serva, destinado somente a casos de emergência. Quando o segundo
dossel se abriu sobre ele, sua velocidade diminuiu como se a força de
gravidade tivesse deixado de atuar sobre ele. Parecia que o rapaz era o
único a flutuar para o coração do universo, como uma gaivota, como
uma nuvenzinha solitária. Seus últimos companheiros tinham se
unido à terra endurecida e principiavam a dobrar os pára-quedas.
Guideon Chenehav, somente ele, continuava a flutuar mais e mais,

5. Shalom: saudação habitual (significa: Paz)

43
como que encantado, os dois dosséis gigantescos estendidos sobre sua
cabeça. Embriagado, feliz, absorveu as centenas de olhares fixos nele.
Nele, somente nele, na sua cintilante unicidade.
A fim de engrandecer e elevar este momento, rompeu do oeste
uma rajada de vento intenso, quase frio, cortando o calor, desman­
chando o cabelo dos espectadores e movendo um pouco para leste o
corpo do último pára-quedista.

Distante dali, na grande cidade, os milhares de cidadãos que


aguardavam o desfile militar receberam o repentino vento do mar com
um suspiro de alívio: talvez agora passasse o forte calor. Um olor frio
e salgado apiedou-se das ruas ardentes. O vento aumentou, investiu
uivando contra a copa das árvores, desalinhou as alamedas de cipres­
tes, desmanchou as folhagens dos pinheiros, ergueu espirais de poeira
e prejudicou a visão da demonstração de paraquedismo dos espec­
tadores. Com uma pompa real, como uma ave gigantesca e solitária,
Guideon Chenehav foi arrastado à estrada principal, a leste.
O grito de horror que irrompeu em uníssono de centenas de
gargantas não conseguiu chegar aos ouvidos do jovem. Todo exta­
siado, sonâmbulo e a cantarolar, continuava a se balançar lentamen­
te, em direção ao fio elétrico central, estendido sobre gigantescos pos­
tes. Os olhos da multidão fixaram-se horrorizados no pára-quedista e
na artéria elétrica que atravessa o vale de oeste a leste, com segurança,
retilínea. Cinco cabos paralelos, arcados entre os postes devido ao seu
peso, emitem uma zoeira tenaz e surda ao vento galopante.
Os dois dosséis de Guideon enroscaram-se no cabo superior.
Logo a seguir os pés do rapaz aterissavam sobre o cabo inferior. Seu
corpo estancou numa posição inclinada. As correias dos pára-
quedas, que o suspendiam pelos ombros e-pela cintura, impediram-no
de cair sobre a terra arada. Não fossem as solas dos seus sapatos feitas
de grossa camada de material isolante, uma faísca já teria derrubado o
rapaz no momento em que pousou, Mas o cabo já repelia o peso es­
tranho e começava a chamuscar-lhe as solas. Faíscas minúsculas
brilhavam e estouravam sob os pés de Guideon. Ele segurou com am­
bas as mãos as fivelas do pára-quedas. Seus olhos estavam arre­
galados e a boca, escancarada.
Imediatamente surgiu um dos oficiais, homem de estatura baixa,
todo suado; destacando-se dentre a multidão petrificada, gritou:
— Não toque nos cabos, Guidi. Estenda o corpo para trás e
afaste-se quanto puder.

44
O público todo, um bloco comprimido e apavorado, começou a
deslocar-se para o leste. Houve gritos. Houve pranto. Cheinboim
silenciou os gritos com voz metálica e ordenou calma a todos.
Precipitou-se numa corrida vigorosa, esmagando com a sola dos
sapatos os torrões de terra. Traçando uma linha reta e firme, chegou
até sob o cabo, empurrou os oficiais e os curiosos que o tinham
precedido e ordenou ao filho:
— Solte-se das correias, Guideon. Solte-se logo e você cairá.
Aqui é solo arado e nada lhe acontecerá. Solte e pule.
— Não posso.
— Não discuta agora. Solte-se e pule.
— Não posso, papai. Não posso, não posso.
— Não existe não posso. Solte-se e pule para baixo antes que seja
eletrocutado.
— Impossível. As correias se emaranharam. Eu não posso. Que
interrompam esta corrente rápido, pai, os meus sapatos já estão
queimando.
Alguns pára-quedistas já começavam a impor ordem, a afastar o
público, retirar os palpiteiros e desocupar o terreno sob os cabos.
Como que repetindo um juramento ou uma fórmula mágica, os pára-
quedistas iam dizendo incessantemente as palavras: “ Sem pânico,
tudo menos o pânico, por favòr.”
Ao redor, as crianças do Kibutz corriam, aumentando o
tumulto. De nada adiantavam recriminações e reprimendas. A muito
custo dois pára-quedistas irritados conseguiram agarrar Zaqui, que
começava a escalar estupidamente o poste elétrico mais próximo
emitindo de lá roncos e assobios e contorcendo o rosto em caretas, a
fim de atrair sobre si os olhares do público.
O oficial atarracado gritou de repente:
— O seu punhal. Você tem um punhal dentro do cinturão. Tire-
o e corte as correias.
Mas Guideon não ouvia ou não queria ouvir. Ele se pôs a chorar
em voz alta:
— Tirem-me, logo levarei um choque, pai, tirem-me daqui, não
posso descer sozinho.
— Pare de uivar, repreende-o Chimchon, mandaram você usar o
punhal e cortar as correias. Então faça o que lhe dizem. Sem uivos.

45
O rapaz obedeceu. Ainda chorava alto, porém, apalpou e encon­
trou o punhal e começou a retalhar as correias do pára-quedas, uma
após outra. Fez-se silêncio. Ouvia-se somente o choro de Guideon,
estranho e penetrante. Finalmente, restava ainda a última correia, à
qual Guideon estava preso, mas não ousou cortá-la também.
— Corte, berraram as crianças, corte e pule, vamos ver.
E Chimchon acrescenta com voz calma:
— O que você está esperando agora?
— Eu não posso, implora Guideon.
— Você pode, e como! disse o pai.
— A corrente — choramingou o rapaz — começo a sentir a
corrente. Tirem-me daqui depressa.
Os olhos do pai encheram-se de sangue e ele uivou:
— Medroso, envergonhe-se, medroso!
— Mas eu não posso. Quebrarei todos os meus ossos. É muito
alto.
— Você pode e deve. Só que você é um louco. Louco e covarde.

Uma esquadrilha de aviões a jato, a caminho da demonstração


aérea nos céus da cidade, passou sobre as cabeças. Os aviões estavam
ordenados numa formação precisa. Trovejaram e galoparam paia u
oeste, como uma matilha de cães selvagens. Quando os aviões se dis­
tanciaram, retornou o silêncio ainda maior. Também o rapaz parou
de chorar. Ele arremessou o punhal para o solo. A lâmina fincou-se
na terra, aos pés de Chimchon Cheinboim.
— O que você fez? gritou o oficial atarracado.
— Não foi de propósito — gemeu Guideon — escorregou de
minha mão. 4
Chimchon Cheinboim abaixou-se, pegou uma pedrinha e
arremessou-a com raiva contra a nuca do seu filho suspenso.
— Pinóquio, trapo, covarde, miserável que você é!
Nesse momento também o vento do mar parou.
Com toda a intensidade, o calor voltou a fustigar as pessoas e os
objetos inanimados. Um pára-quedista ruivo e sardento murmurou
para si mesmo: “ Ele tem medo de pular, esse tolo, e assim ele vai se

46
matar” . Uma jovem magricela e feia ouviu a frase, irrompeu do meio
da multidão e estendeu ambos os braços:
— Pule para mim, Guidi, nada lhe acontecerá.
É interessante — observa um veterano pioneiro em roupas de
trabalho, — é interessante saber se alguém teve a inteligência de
telefonar à Companhia de Eletricidade e providenciar para que in­
terrompam a corrente.
Afastou-se caminhando em direção aos prédios do Kibutz, no
alto da colina plana. Caminhava rapidamente, irritado, e de repente
assustou-se com uma rajada próxima e longa de tiros. Por um instante
o veterano pioneiro imaginou que estivessem atirando às suas costas.
Logo, porém viu o que se passava: o comandante da unidade, o belo e
loiro herói lendário, tentava romper a tiros os cabos elétricos.
Em vão.
Enquanto isso, chegava do pátio do Kibutz uma camioneta
gasta e dela retiraram algumas escadas, assim como o velho médico.
Após o médico, uma maca foi também retirada.
Naquele momento parecia que Guideon chegara a uma repentina
decisão. Com um forte pontapé jogou-se do cabo que espargia faíscas
azuladas, cambaleou no ar e ficou suspenso pela única correia, a meio
metro do cabo. A cabeça para baixo e as solas dos sapatos queimados
estrebuchando no ar, perto, muito perto do cabo inferior.
Era difícil aos lespectadores determinar com certeza, mas parecia
que ele ainda não fora atingido fortemente. Balançava-se no espaço,
frágil, virado como um cabrito sacrificado pendurado no gancho.
Esta visão provocou nos meninos uma exultação histérica,
éomeçaram a rir como se estivessem latindo. Zaqui batia com as
mãos no joelho, contorcia-se todo, sufocado. Começou a saltitar no
mesmo lugar e a berrar como um pequeno macaco maldoso.
O que fez Guideon Chenehav retesar de repente o pescoço e jun-
tar-se ao riso dos meninos? Talvez sua estranha posição tenha lhe
pertubado o cérebro: sua cabeça encheu-se de sangue, sua língua saiu
da boca, o topete foi puxado para baixo e só as pernas escoiceavam o
céu.

Uma segunda esquadrilha de aviões a jato cortou o pedaço de


céu. Uma dúzia de pássaros de aço, planejados para a beleza e para a

47
maldade, que refletiam a radiação do sol com um fulgor deslumbran­
te. Estavam ordenados numa formação de lâmina de punhal. Sua ira
fez estremecer a terra. Adiante para o oeste. E um silêncio profundo.

Entretanto, o velho médico sentou-se na maca, acendeu um


cigarro, ficou observando as pessoas, os soldados, as crianças a correr
e disse a si mesmo: — O que há de ser, será. E como está quente hoje.

De vez em quando, Guideon continuava a mugir um riso imbecil.


As pernas balouçantes descreviam círculos irregulares no espaço
poeirento. O sangue dos membros, concentrando-se na cabeça. Seus
olhos começaram a saltar. E o mundo escureceu. No lugar das ra­
diações rubras saltavam, ante seus olhos, manchas violáceas. Sua lín­
gua pendeu para fora. Os garotos interpretaram aquilo como sinal de
mofa. “ Pinóquio virado” , berrou Zaqui. “ Pinóquio virado, vai
parar de olhar para nós de olho torto? Talvez comece a caminhar
sobre as mãos!”

Cheinboim estendeu a mão para esbofetear o insolente. Mas atin­


giu o ar, porque o menino escapou para o lado. O velho acenou para o
loiro comandante e ambos segredaram por dois ou três minutos.
Naquele momento o rapaz não corre perigo imediato porque não tem ,
nenhum contato com a corrente. Mas é necessário livrá-lo. Não é pos­
sível que aquela comédia continue indefinidamente. Uma escada não
adiantará muito: é alto demais. Talvez seja possível armá-lo de novo
com o punhal, e convencê-lo a que corte a última correia e salte para a
lona. Pois isso é um exercício rotineiro no treinamento dos pára-
quedistas. O essencial é agir com rapidez, porque a situação é hu­
milhante. E os meninos. O oficial atarracado despiu sua camisa, em­
brulhando nela um punhal. Guideon estendeu as mãos para baixo e
tentou apanhá-lo. A camisa e o punhal, entretanto, passaram no vão
de seus braços encurvados e caíram no chão. Os meninos riram.
Somente após duas tentativas frustradas, Guideon conseguiu apanhar
a camisa e tirar dela o punhal. Ele o segurou com dedos entorpecidos e
pesados, devido ao sangue atraído para baixo. De repente, o rapaz
aproximou o punhal de sua face ardente. O aço refrescou-a. Ele teve
um momento de doçura.Abriu os olhos e viu um mundo virado. Tudo
lhe parecia uma farsa: a camioneta, o campo, as pessoas,-o pai, o
exército, os meninos e também o punhal em sua mão. Contorceu o
rosto para o grupo de meninos, riu do fundo do seu ser e ainda lhes
acenou com o punhal. Tentou dizer-lhes algo. Se eles se vissem,
daqui, virados, correndo, todos umas formigas assustadas, certamen­
te se juntariam ao seu riso. Mas o riso transformou-se em tosse.
Guideon sufocava e seus olhos se marejaram de lágrimas.

48
9

As palhaçadas de Guideon de cabeça para baixo despertaram em


Zaqui uma alegria demoníaca.
— Ele está chorando — berra o menino com maldade — Gui­
deon está chorando. Vejam as suas lágrimas. Ele está chorando. O
pára-quedista Pinóquio chora como o bebê Pinóquio. Vejam! Vejam!
Támbém desta vez o golpe do punho de Chimchon Cheinboim se
perde no ar.
— Zaqui — conseguiu Guideon gritar com voz surda e distorcida
— Zaqui eu te mato, eu te estrangulo, seu bastardo — e de repente riu
e calou-se.
Então, não há solução. Ele não vai cortar a última correia e o
médico teme que, se continuar assim por mais tempo, ele perderá os
sentidos. É preciso encontrar outra saída. Não se pode permitir que
aquilo continue o dia todo.
O caminhão do Kibutz atravessou pesadamente a terra arada e
deteve-se no lugar indicado por Chimchon Cheinboim. Sobre o ca­
minhão colocaram duas escadas, amarradas uma à outra, apressa­
damente, a fim de atingir a altura necessária. Dez braços fortes se­
guraram a escada por todos os lados. O lendário e loiro comandante
dos pára-quedistas começou a escalá-la. Mas áo alcançar o ponto de
junção das duas escadas, ouviu-se um rangido ameaçador e a madeira
curvou-se devido ao peso e à altura. O oficial, que era um homem
robusto e grandalhão, hesitou por um momento. Em seguida resolveu
descer e reforçar primeiro a junção das escadas. Desceu para o as­
soalho do caminhão, enxugou o suor da testa e disse: — Um momen­
to. Pensemos. — E eis que num piscar de olhos, antes que se con­
seguisse detê-lo, antes que se conseguisse distirigui-lo, já está o me­
nino Zaqui lá no alto da escada e já passou o ponto de junção das es­
cadas e saltou, macaco desesperado, para os degraus da escada su­
perior, e em sua mão há um punhal. Mas como chegou este à sua
mão? Ele começou a lutar com a correia tensa. Os espectadores de­
tiveram a respiração: parecia que o menino desprezava as leis da
gravidade, não se apoiava, não se cuidava, saltando nos altos do
degrau superior ágil, flexível, eficiente até a morte.
10

Com todo o seu peso, o calor oprimia o jovem suspenso. Seus


olhos iam se apagando. Sua respiração quase parava. Com um último
lampejo de lucidez, viu à sua frente o seu feio irmão e sentiu o seu

49
hálito em suas faces. Sentiu o seu cheiro. Viu os dentes incisivos que
sobressaíam da boca de Zaqui. Um terrível pavor se apoderou dele,
como se olhasse para um espelho e visse um monstro. O terror des­
pertou em Guideon as derradeiras forças. Escoiceou o espaço, de­
bateu-se, conseguiu virar-se, agarrou a correia e atirou-se para cima.
Com os braços estendidos jogou-se sobre o cabo e viu a luz. O calor
sufocante continuava a dominar o vale. E um terceiro vôo de aviões a
jato aturdiu a todos com seu rugido.
11

A situação de pai enlutado confere ao homem uma auréola de


martírio. Mas Cheinboim não medita agora a respeito dessa aura. Um
cortejo mudo e atônito acompanha-o a caminho do refeitório. E ele
sabe com certeza: agora ele deve ficar ao lado de Raia.
No caminho cruzou com o Zaqui, acalorado, arfante, herói. E
outros meninos à sua volta. Ele quase, quase salvou. Chimchon pôs a
mão trêmula na cabeça do seu menino e tentou falar. Sua voz o aban­
donou e os lábios tremeram em silêncio. Acariciou pesadamente a
cabeleira crespa e poeirenta. E ele jamais acariciara este menino até
então. Após alguns passos, tudo escureceu e o velho desmoronou
sobre um dos canteiros do gramado.
Na noite da festa da Independência o calor abrandou. Uma brisa
do mar consolava as paredes incandescidas. Um orvalho pesado caiu
toda a noite sobre'os gramados.
O que pretende o pálido círculo ao redor da lua? Geralmente
prenuncia o calor. Amanhã, por certo, o calor se renovará. Mês de
maio e depois dele virá o mês de junho. Um vento, passa entre os
ciprestes, à noite, e procura apaziguá-los entre um calor e outro. É o
caminho do vento, vem, cessa, e novamente vem. Nada de novo.
O NÔMADE E A VÍBORA

1
A fome os trouxera.
Acossados pela fome fogem para o norte. Eles e seus rebanhos de
animais empoeirados. De setembro a abril não caiu uma única chuva
sequer que aliviasse a seca no deserto. A terra argilosa transformou-se
em pó. A fome tomou conta dos acampamentos e dizimou os reba­
nhos dos nômades.

As autoridades militares estudaram a situação em caráter de


emergência. Não obstante as compreensíveis hesitações, resolveram
abrir aos beduínos os caminhos que levam ao norte. Não se pode
abandonar toda uma população, homens, mulheres e crianças, aos
horrores da fome.

Escuros, magros e musculosos, os homens do deserto infiltra­


vam-se pelas trilhas de areia, arrastando consigo seus rebanhos des­
nutridos. A maior parte do trajeto faziam-no serpenteando por leitos
secos de rios ocultos à população sedentária. Uma corrente obstinada
fluia em direção ao norte, evitando os lugares habitados e contem­
plando pasmados a visão dos povoados. Seus rebanhos escuros in­
vadem os campos amarelo-dourados, devorando a palha da colheita
ceifada com dentes fortes e vingativos. Os movimentos dos nômades
são furtivos e contidos; recuam diante de olhos vigilantes. Esforçam-
se em não encontrar ninguém, tentam ocultar sua presença.
Passa-se por eles num trator ruidoso levantando nuvens de poeira
e eles, solícitos, recolhem seus animais abrindo uma larga passagem,
muito mais larga do que o necessário. De longe, observam-nos con­
tinuamente como estátuas imóveis. O ar tórrido apaga a nitidez dos

51
contornos e confere a todos uma feição uniforme: o pastor com seu
bastão, a mulher com sua cria, o ancião de olhos perdidos na profun­
didade das órbitas. Alguns quase cegos ou talvez apenas simulando
cegueira com vaga intenção mendicante. Indecifráveis para nós.
Jamais chegaremos a penetrá-los.

Seus pobres carneiros não se assemelham em nada aos nossos es­


pécimes bem tratados: pencas de pequenos animais debilitados, com­
primindo-se uns aos outros, encolhidos num só bloco escuro e sub­
misso, humildes como seus pastores.

Os camelos são os únicos a desafiar a submissão. Do alto de seus


pescoços compridos cravam-nos com olhos fatigados um olhar
melancólico e escarnecedor. Seus olhos extravasam uma sabedoria
milenar e um tremor inominável agita seu pêlo com freqüência.

Às vezes logra-se surpreendê-los de perto. Atravessando os cam­


pos a pé, topa-se algumas vezes com um rebanho indolente, deitado
imóvel, golpeado pelo calor do meio-dia, como se tivessem fincado
raízes na terra ressecada. No centro, o pastor adormecido como um
bloco de basalto. Você se aproxima dele e lança-lhe a sua sombra
agressiva. Surpreendido, você constata que seus olhos estavam
abertos. Ele expõe a maior parte de seus dentes num sorriso con­
ciliador. Alguns brilham e outros estão carcomidos. Seu odor o
golpeia e você contrai o rosto numa careta. Sua expressão atua nele
como uma bofetada. Num movimento calmo ele se ergue, o tronco
ereto e os ombros curvados. Você crava nele um olhar frio, de olhos
azuis. Ele alarga o sorriso e emite um som gutural. Sua vestimenta é
uma síntese: um paletó europeu remendado e curto, de listas, sobre
utna esvoaçante túnica branca. Ele inclina a cabeça para um lado e um
brilho conciliador atravessa seus olhos por um instante. Se você não o
repreender, ele estende a mão esquerda e pede um cigarro em hebraico
rápido. Sua voz tem matizes sedosos, algo como a timidez da voz
feminina. Se você estiver de bom humor, você enfia um cigarro na
boca e joga outro generosamente na palma de sua mão esquerda. Para
sua surpresa, ele tira rapidamente do fundo da túnica um isqueiro
dourado e oferece-lhe uma chama bruxoleante. O sorriso não se apaga
de seus lábios. Um sorriso prolongado demais, um sorriso que não
convence. Um raio de sol se reflete no grosso anel de ouro que enfeita
o seu dedo e fere os seus olhos semicerrados.

Por fim, você volta as costas ao nômade e segue o seu cauninho.


Aõ final de uns cem ou duzentos passos você vira a cabeça e o vê
parado no mesmo lugar; o olhar penetrando em suas costas. Você

52
podería jurar que ele ainda sorri e continuará sorrindo por muito
tempo.
E ainda tem as suas canções toda a noite. Uma espécie de lamento
melancólico e prolongado paira à noite no ar, desde o pôr-do-sol até a
: madrugada. As vozes penetram até os confins do Kibutz .1 e opri­
mem nossas noites com um vago mal-estar. Mal a gente se deita para
dormir e o rufar de um tambor distante marca o compasso do nosso
sono, como as batidas de um coração relutante. As noites são quentes
e a atmosfera carregada de umidade. Retalhos de nuvens esparsas
acariciam a lua como cáfilas de camelos, camelos jovens sem guisos.
As tendas dos nômades são feitas de panos pretos. Mulheres des­
calças perambulam à noite sem fazer ruído. Cães magros e perversos
fogem do acampamento para desafiar a lua. Seus uivos enlouquecem
os cães do Kibutz. O melhor de nossos cães enlouqueceu certa noite:
invadiu o galinheiro e massacrou os frangos novos. Não foi por
maldade que os guarda-noturnos o fuzilaram, não havia outra al­
ternativa. Qualquer pessoa sensata não os recriminaria.
2

Talvez você imagina que a invasão dos nômades enriqueceu nos­


sas noites quentes de prostração com uma dimensão de poesia. Talvez
assim fosse para algumas de nossas moças solteiras. Nós, porém, não
podemos aceitar calados uma série de incidentes prosaicos e feios,
como por exemplo a febre aftosa, o dano às plantações e a praga dos
pequenos furtos.
A febre aftosa veio do deserto trazida pela saliva dos animais
nunca submetidos a qualquer controle veterinário. Embora tivés­
semos tomado medidas de precaução, o vírus contagiou nossos
carneiros e nosso gado, reduzindo a produção de leite e causando a
morte de alguns animais.
Quanto ao dano à colheita, temos de confessar que jamais lo­
gramos surpreender algum dos nômades em ação. Não achamos senão
pegadas de gente e de animais nos canteiros de legumes, nos pastos e
até no fundo dos pomares bem cercados. Que sentido teria avariar os
canos de irrigação, a sinalização das glebas de terra, os implementos
agrícolas normalmente deixados no campo e outros objetos sem im­
portância?

1. Kibutz — colônia agrícola coletiva baseada na posse comum da propriedade e


dos meios de produção.

53
Na verdade, não somos dos que passivamente toleram insultos.
Isto se aplica sobretudo aos jovens do Kibutz. Entre os mais velhos, os
fundadores, há os que professam as idéias de Tolstoi ou outras se­
melhantes. Manda o bom gosto que eu não me perca nos detalhes de
alguns atos isolados e excepcionais de vingança por parte de alguns
jovens cuja paciência se esgotara com o roubo de gado, tais como o
apedrejamento do garoto nômade suspeito ou a surra até a perda de
sentidos de um dos pastores na extremidade leste do campo, ao lado
das torneiras de água. Em defesa dos autores da vingança mais recen­
te, direi que o tal pastor tinha uma expressão de astúcia exasperante:
cego de um olho, o nariz quebrado, babando, e de suas mandíbulas —
assim juravam os autores da proeza — sobressaíam caninos com­
pridos e curvos como os de uma raposa. Um tipo com tal aparência é
capaz de qualquer maldade e eles certamente não esquecerão a lição.
Os furtos é que mais nos preocupavam. Passavam a mão nos
frutos verdes dos pomares, carregavam os cabeçotes das torneiras,
sumiam com pilhas de sacos abandonados no campo, penetravam
furtivamente nos galinheiros e, com seus dedos compridos chegavam
até aos pequenos objetos de valor em nossas modestas residências.
A escuridão era seu cúmplice. Esquivos como o vento, passavam
pelo povoado e de nada nos valeram os guardas que colocamos de
plantão, nem os que mais tarde juntamos aos primeiros para reforçar
a vigilância. Saindo por volta da meia-noite para fechar torneiras de
irrigação numa gleba distante, montado num trator ou guiando um
jipe velho, as luzes dos faróis captavam de repente sombras fugidias
de homem ou de animal. Um guarda encolerizado decidiu certa noite
disparar sua arma e matou apenas um chacal perdido.
É supérfluo dizer que a direção do Kibutz não descansou. Atkin,
o responsável, chamou repetidas vezes a polícia. Os cães treinados ou
traíram ou decepcionaram: conduziram os policiais alguns passos fora
da cerca do Kibutz, levantavam os focinhos negros, soltavam um uivo
selvagem e ficavam a olhar estupidamente no espaço.
As batidas de surpresa às tendas esfarrapadas não revelavam
nada, como se a própria terra resolvesse encobrir o roubo e desafiar as
vítimas. Finalmente, o patriarca da tribo foi conduzido à secretaria do
Kibutz, flanqueádo por mais dois nômades enigmáticos, um à direita
e outro à esquerda, enquanto os policiais os encorajavam com expres­
sões árabes de estímulo: “ Yala! Yala” !
Nós, os membros da secretaria, tratamos o velho e seus homens
com o devido respeito. Convidamo-los a sentarem-se num banco,
recebemo-los cordialmente, servimos café fumegante preparado por
Gueula, conforme pedido especial de Atkin. O velho por seu lado,

54
respondeu-nos com respeito exagerado, cumprimentos formais, bons
votos e também um sorriso que se estendeu do começo ao fina! da
conversação. Formulava suas frases em hebraico solene e ponderado.
É verdade. Alguns rapazes da tribo puseram as mãos em nossas
propriedades, por que negar? Os jovens não têm boas maneiras e o
mundo está se tornando cada vez mais feio. Portanto, ele se sentia
honrado em nos pedir desculpas e devolver os bens roubados. A
propriedade roubada morde a carne do ladrão, assim afirma o ditado,
e não há como impedir a leviandade dos jovens. Ele lamentava muito
o incômodo e o desgosto que nos foram causados. Ao dizê-lo, meteu a
mão nas profundezas de seu albornoz, retirando alguns parafusos,
uns brilhantes, outros enferrujados, duas pqdadeiras, a lâmina de
uma faca sem cabo, uma lanterna dé bolso, um martelo quebrado e
três notas de dinheiro emboloradas — compensação por prejuízos e
desgostos.
Confuso, Atkin estendeu a mão. Por razões só dele conhecidas,
optou por ignorar o hebraico que o hóspede falava e respondeu-lhe
em árabe vacilante, resquício do aprendizado na época dos distúrbios
e do estado de sítio. O começo do discurso de Atkin foi uma decla­
ração lúcida e incontestável sobre a irmandade dos povos que é-a
pedra angular de nossa concepção do mundo e do costume da boa
vizinhança, praticada pelos povos orientais desde tempos remotos e,
com mais razão agora, nesta época de derramamento de sangue e ódio
gratuito.
Diga-se a favor de Atkin que ele não hesitou em apresentar uma
lista detalhada dos atos de furto, danos e sabotagens que o próprio
hóspede, por esquecimento sem dúvida, se abstivera de mencionar e
desculpar. Se todo o material pilhado fosse devolvido e o vandalismo
cessasse para sempre, estaríamos dispostos de todo o coração a iniciar
uma nova página nas relações de boa vizinhança. Nossas crianças
certamente apreciarão e aprenderão muito com uma visita de cortesia
às tendas dos beduínos, sendo que estas visitas contribuiríam para a
ampliação dos horizontes. É desnecessário dizer que em seguida a esta
visita, os filhos da tribo serão bem vindos à nossa casa comunal do
Kibutz para um aprofundamento de compreensão mútua.
O ancião, mantendo sempre o mesmo sorriso, de modo a não
alargar-se nem a minguar, reiterou no meio de um halo de fórmulas de
cortesia, que os senhores do Kibutz não poderíam apresentar ne­
nhuma prova com respeito a outros roubos, além dos confessados e
pelos quais já solicitara o nosso perdão. Finalmente, arrematou suas
palavras com fórmulas de saudação, desejando-nos saúde e vida,
abundância de crias e de frutos da terra. Despediu-se e partiu tragado

55
pelo leito seco do riacho logo abaixo da cerca, ele e seus dois com­
panheiros descalços envoltos em albornozes escuros.
Já que a polícia se mostrara ineficaz e havia desistido de conti­
nuar a investigação, alguns dos nossos jovens propuseram realizar um
ataque noturno aos selvagens e dar-lhes uma boa liçfk) numa lin­
guagem que realmente entendessem e à qual estavam acostumados.
Atkin rechaçou a proposta com indignação e bons argumentos.
Durante a troca de palavras, os jovens lançaram a Atkin algumas ex­
pressões que o decoro manda que eu não repita. É estranho que Atkin
não reagisse às ofensas e ainda concordasse em levar a proposta à dis­
cussão perante a diretoria do Kibutz. Talvez fosse por medo que eles
resolvessem o assunto à sua maneira.
Ao anoitecer, Atkin foi de quarto em quarto convidando os
membros da diretoria para uma reunião urgente às oito e meia.
Chegando ao quarto de Gueula, contou-lhe a respeito das idéias dos
jovens e da pressão pouco democrática que haviam exercido sobre ele.
Pediu-lhe que trouxesse uma jarra de café preto à reunião e-muita boa
vontade. Gueula concordou com um sorriso acre. Seus olhos estavam
turvos de um sono agitado que Atkin interrompera. Enquanto ela se
trocava, caiu a noite úmida, quente e enigmática.

Úmida, quente e enigmática caiu a noite sobre as casas do Kibutz,


enredando-se nos ciprestes empoeirados. Mangueiras frenéticas
começaram a aspergir água nos gramados sedentos. A relva ressecada
sorveu-a sem deixar vestígios. Talvez evaporasse ou desaparecesse an­
tes de ter tocado o solo. Na sala trancada da secretaria um telefone
nervoso tocava em vão. As paredes das casas exalavam um vapor
úmido. Uma coluna de fumaça cilíndrica subia da chaminé da co­
zinha, reta como uma flecha, direto ao céu, pois não havia nenhum
vento a soprar. Das pias engorduradas subiu um grito: um prato
quebrando-se, um ferimento sangrando. Um gato gordo matou uma
cobrinha e arrastava a caça inerte pelo caminho de cimento abrasante,
brincando languidamente com ela. Um velho trator estertorava num
dos galpões: afogou-se, arrotou querosene, urrou, tossiu e afinal con­
seguiu mover-se do lugar para sair e levar o jantar aos do segundo
turno que trabalhavam num dos campos distantes. Gueula avistou
uma garrafa suja com os restos de um líquido oleoso. Chutou-a
furiosamente mas a garrafa*não se arrebentou. Rolou pesadamente
para o meio dos canteiros de rosas. Gueula levantou uma pedra gran-

56
<
de tentando acertá-la na garrafa. Desejava muito quebrá-la. Não
acertando, pôs-se a assobiar uma melodia qualquer.
Gueula é uma moça baixinha e delicada de vinte e nove anos de
idade. Se bem que ainda não tivesse encontrado marido, ninguém no
Kibutz nega suas boas qualidades, como por exemplo, sua dedicação
incansável aos problemas sociais e aos assuntos culturais da comu­
nidade. Seu rosto é pálido é delgado. Ninguém se compara a ela na
preparação do café-forte que entre nós é chamado de “ despertador de
mortos” . Dois sulcos amargos marcam-lhe os cantos da boca.
Nas noites de verão, quando nos estiramos em grupo sobre um
cobertor no gramado úmido e soltamos anedotas e canções junto com
a fumaça dos cigarros, Gueula se tranca em seu quarto e não se junta
a nós antes de fazer uma jarra de café bem quente e forte. Também
nunca deixa faltar um prato de biscoitos.
O que houve entre mim e Gueula não vem ao caso e fica para uma
outra história. Há muito tempo atrás, costumávamos passear juntos
no pomar ao entardecer. Conversávamos, jogando idéias políticas um
ao outro e trocando pontos de vista sobre literatura contemporânea.
Tudo isto foi há muito tempo e já terminou há muito tempo. Os
juízos de Gueula eram incisivos e às vezes até impiedosos. Ela me
deixava confuso. Meus contos não lhe agradavam por causa da ex­
trema polaridade de situações e personagens. Faltavam-lhe os matizes
intermediários entre o preto e o branco. Eu me justificava ou me
opunha, mas Gueula sempre tinha argumentos e estava habituada a
desenvolver um raciocínio articulado até o fim. Às vezes eu ousava
colocar uma mão apaziguadora sobre sua nuca e esperava até que ela
se acalmasse, mas ela era incansável. Se uma vez ou outra ela se
apoiou em mim, sempre culpou a sandália que se rasgou ou a cabeça
que doía. Foi assim que terminamos. Até hoje costuma recortar os
meus contos das revistas e guardá-los em pastas de cartolina numa
gaveta destinada somente a eles.
Para o seu aniversário, ainda costumo comprar-lhe um livro de
poemas de algum dos poetas jovens. Na sua ausência, entro em seu
quarto e deixo o livro sobre a mesa, sem dedicatória, lembrança ou
sinal. Às vezes, acontece compartilharmos a mesma mesa no refei­
tório. Meus olhos evitam seu olhar, para não serem contaminados
pela melancolia dos dela. Nos dias de calor, o suor ressalta as man­
chas vermelhas no seu rosto e ela me parece sem ânimo hem es­
perança. Com a chegada do outono e do frio, ela me parece, de longe,
bela e comovente. Nestas ocasiões, ela costuma sair ao anoitecer para
ir ao pomar. Sai só e volta só. Alguns dos jovens chegam a perguntar-
me o que ela busca por lá e nos seus rostos paira um sorriso malicioso.
Eu lhes retruco que não sei, e realmente, não o sei.

57
4

Rancorosa, Gueula apoderou-se de outra pedra para atirar na


garrafa. Desta vez acertou, mas tampouco conseguiu ouvir o estalido
pelo qual ansiava. A pedra roçou a garrafa, esbarrou nela com um •
som débil e foi parar embaixo de uns arbustos. Uma terceira pedra,
mais pesada que as anteriores, foi lançada de um ponto ridiculamente
próximo. A moça pisou no canteiro tratado e postou-se praticamente
em frente à garrafa. Desta vez houve um estalo seco e estridente que,
todavia, não trouxe nenhum alívio ou paz. Precisava sair.
Úmida, misteriosa e ardente caiu a noite. O calor cortava a carne
viva como estilhaços de vidro. Gueula retornou sobre seus passos,
passou em frente ao terraço de seu quarto e atirou lá as sandálias para
andar descalça no caminho de areia.
Os caroços de terra faziam-lhe cócegas nas solas dos pés. É um
contacto rude, áspero e as extremidades dos seus nervos estremecem,
enviando centelhas de uma vaga excitação. Além da colina rochosa
aguardavam-na as sombras do pomar com a última claridade do dia.
Odor de fruto maduro e folhagem morta.
Com dedos agressivos, a moça alarga a brecha da cerca e passa
por baixo dela. Uma leve brisa noturna começou a soprar debilmente.
Era um vento morno, de verão, sem direção definida. Um sol
cansado arrastava-se para o ocidente como desejando fundir-se ao
horizonte empoeirado. Um último trator (Subiu resfolegando pelo
caminho de terra, voltando do ponto mais distante do campo para o
povoado. Por certo é o trator que levou o jantar para os que tra­
balham no segundo turno. Vem como envolto em fumaça ou neblina
de verão.
Gueula agachou-se e recolheu alguns pedregulhos da areia. Dis­
traída, começou a devolver um por um à areia. Seus lábios murmuram
versos de poemas: alguns dos seus amados poetas jovens, outros dela
própria. Junto a um dos canos de irrigação, ela se debruça para beber
água, como se estivesse beijando a torneira. A torneira é enferrujada,
o cano está quente e a água morna e repugnante. Ainda assim, ela in­
clina a cabeça e deixa a água escorrer pelo rosto, pelo pescoço e dentro
da blusa. Um gosto ácido de ferrugem e pó úmido lhe enche a gargan­
ta. Ela cerra os olhos e os mantém fechados por algum tempo. Ne­
nhuma brisa. Nenhum frescor. Talvez uma xícara de café ajudasse.
Mas somente depois do pomar. Agora vamos.

58
5

Os pomares estão carregados e perfumados. Os ramos pesados


enredam-se uns nos outros, convergindo nas copas em abóbadas de
sombra. Em baixo, a terra conserva ainda certa umidade. Sombras
sobre sombras aos pés dos troncos irregulares. Gueula colhe uma
ameixa, cheira-a e aperta-a. O suco da fruta pinga na terra. A visão e a
fragrância confundem a moça. Ela aperta ou,tra ameixa, e fricciona-a
em seu rosto até que o sumo espirra e escorre sobre ela. Em seguida,
ajoelhada, ela recolhe um graveto seco e desenha figuras na areia.
Linhas curvas e sem sentido, ângulos agudos e arcos. Um balido dis­
tante invade o pomar. Um som de guisos surdo é ouvido e não ouvido.
Gueula está imersa em seus sonhos. O nômade se detém atrás de
Gueula, silencioso como um fantasma. Com o dedão do pé cava na
areia. Sua sombra tomba diante dele.
A emoção cega por instantes os olhos da moça. Não vê e não
ouve. Por longo tempo ainda continua ajoelhada, com o graveto na
mão, traçando formas na areia. O nômade espera paciente e silen­
cioso. Às vezes fecha o olho são e fita o espaço com o outro, o cego.
Por fim, estende a mão e esboça um gesto de carinho no ar. Sua som­
bra o imita e estremece na areia. Gueula se assusta, dá um salto e
apoia-se na árvore mais próxima, soltando um grito abafado. O
nômade encolhe os ombros e ensaia um sorriso débil. Gueula ergue o
braço fustigando o ar com o graveto ainda entre os dedos. O nômade
persiste em seu sorriso: seu olhar desce até os pés descalços da moça.
Sua voz é sussurrante e o hebraico em sua boca soa com rara suavi­
dade.
— Que horas são?
Gueula aspira o ar até o limite da capacidade de seus pulmões.
Seu rosto se endurece e seus olhos se enchem de frieza. Com voz seca e
límpida ela responde:
— São precisamente seis e meia.
O árabe amplia o sorriso e curva o corpo como em reverência,
agradecendo um grande favor.
— Muito obrigado, senhora.
O dedão do seu pé desnudo afunda-se na terra úmida e os caroços
da terra se movem a seus pés como escavados por um réptil ame­
drontado.
Gueula fecha pudicamente o botão superior da blusa. Grandes
manchas de suor marcam-lhe as axilas. Ela sente a transpiração do

59
próprio corpo e suas narinas se alargam. O nômade fecha seu olho
cego e levanta o rosto. O olho aberto pisca. Sua pele é muito escura, e
o rosto todo é marcado de rugas. Ele é diferente de tudo que Gueula
jamais havia visto: seu odor, sua cor e sua respiração eram-lhe es­
tranhos. O nariz fino e alongado, talvez um pouco torto, a sombra de
um bigode aflorando logo abaixo dele. As faces encovadas como que
chupãdas para dentro da boca. Os lábios cinzelados e espantosamente
delicados, muito mais finos que os dela. O queixo projetado para a
frente, expressando desprezo quase revolta. O homem era dotado de
uma beleza repugnante, conclui Gueula em seu íntimo.
Sem dar-se conta, ela responde com um sorriso vacilante e zom­
beteiro ao ,sorriso permanente do nômade. O beduíno retira de um ‘
bolso oculto no cinto dois cigarros amassados. Coloca-os em sua
palma estendida como dando sementes a um pardal e oferece-os à
moça. Gueula apaga o sorriso, sacode a cabeça duas vezes e pega um
cigarro. Alisa-o entre os dedos para endireitá-lo como se estivesse
sonhando e somente então o aproxima dos lábios. Rápido como um
relâmpago, antes que ela pudesse compreender o sentido do movi­
mento repentino do corpo do homem, uma pequena chama já bailava
diante de seus olhos. Gueula protege o isqueiro entre os dedos do
homem com suas mãos, embora não sopre nenhum vento no pomar.
Sorve do fogo e cerra os olhos por um instante. O nômade acende o
outro cigarro e se curva cortesmente.
— Muito obrigado, ele diz em sua voz sedosa.
— Obrigada, responde Gueula. Obrigada a você.
— É do Kibutz, você?
Gueula faz um gesto afirmativo com a cabeça.
— B-om, escapa a sílaba alongada dentre seus dentes alvíssimos.
Muito bom.
A moça examina com os olhos o escuro albornoz do deserto:
— Não sente calor com isto?
Confuso, o homem responde coiri um sorriso culpado como se
houvesse sido surpreendido em flagrante. Chega a retroceder um pas­
so, num movimento quase imperceptível.
— De modo algum, não faz calor. Não faz mesmo. Por que? Há
ar, há água... E calou-se.
As copas das árvores escureciam-se aos poucos. Um primeiro
chacal farejando a proximidade da noite lança um uivo fatigado. O *

60
pomar se enche de passos de pequenas patas. Repentinamente, Gueula
repara na multidão de pequenas cabras pretas que invadem o pomar à
procura do amo. Sem ruído e sem mugido, o rebanho todo esgueira-se
entre as árvores frutíferas. Gueula arredonda os lábios e solta um
rápido assobio de assombro.
— O que você está fazendo aqui? Roubando?
O nômade se encolhe como sob o impacto de uma pedra mal-in­
tencionada. Golpeia o peito com o punho fechado produzindo um
som ôco e abafado.
i
— Não, não roubando, que Deus não o permite, de verdade nâo.
E acrescenta um longo juramento em seu idioma, tornando a sorrir.
Somente a pálpebra do seu olho cego agita-se com freqüência nervosa.
Neste ínterim, uma cabra magra veio enredar-se em suas pernas. Ele a
afasta com um ponta-pé cruel e torna a jurar com exagerado entusias­
mo.
— Não roubar, de verdade, por Deus, não roubar. É proibido, é
proibido roubar!
— Proibido pela Bíblia, responde Gueula com um sorriso
malicioso e seco. É proibido roubar. É proibido matar. É proibido
adulterar. Quem se atreve a suspeitar dos justos?
O árabe se encolhe diante da torrente de palavras rápidas e crava
os olhos no solo. Envergonhado e culpado. Visivelmente embaraçado,
seu pé continua a còtucar os caroços da terra. É óbvio que seu desejo é
agradar. Seu olho cego se estreita em demasia. Gueula se assusta por
um momento, mas é apenas um tique nervoso. O sorriso desaparece
de seus lábios. Sua voz sussurra prolongadamente, como se estivesse
recitando uma oração:
— Bonita moça, de verdade, muito bonita. Eu ainda não tenho
mulher. Sou pequeno ainda. Não tem mulher. Yaaa!. Ele termina
com um grito gutural dirigido para uma cabra ousada que apóia as
patas dianteiras num dos troncos, roendo a folhagem com apetite
voraz. O animal lança um olhar pensativo ao seu amo, meneia a
barbicha e volta a devorar gravemente.
Sem alguma advertência, com espantosa agilidade, o pastor pula
no ar, cinge os flancos da cabra, ergue-a por cima de sua cabeça e,
lançando um grito selvagem e amedrontador, joga a cabra ao chão,
sem piedade. Finalmente, cospe e volta-se para a moça.
— Um animal, se desculpa. Um animal. O que fazer? Não tem
juízo, não tem modos.

61
A moça afasta-se do tronco no qual se apoiava até então e in­
clina-se em direção ao nômade. Um doce arrepio atravessa-lhe a es­
pinha dorsal. A voz ainda é firme e fria:
.— Mais um cigarro? Ela pergunta. Você tem mais um. cigarro? O
beduíno mira-a com um olhar de profundo pesar, quase de desespero.
Desculpa-se a explicar longamente que não há mais cigarros. Ne­
nhum. Nem um pequenino. Não restaram. Que pena! Com gosto,
com muito gosto lhe daria. Acabaram-se todos os cigarros.
A cabra, neste ínterim, levantou-se vacilante. Fazendo um desvio
cauteloso, astuto, ela volta ao tronco. Com o canto dos olhos con­
tinua observando o amo, fingindo-se de inocente. O pastor a contem­
pla imóvel. Ela se ergue, apóia as patas no tronco e volta a roer tran­
quilamente a folhagem. O árabe levanta uma pedra pesada e alça o
braço com selvageria. Gueula agarra o seu braço e freia-lhe o impulso.
— Deixe-a. Para quê? Deixe-a. Ela não entende. É um animal,
não tem juízo, não tem modos.
O nômade obedece. Com submissão absoluta ele deixa cair a
pedra. Gueula solta-lhe o braço. Ele volta a tirar o isqueiro do al-
bornoz. Com dedos delgados e pensativos brinca com o objeto.
Acidentalmente, acende-se uma pequena chama. Ele se apressa em
apagá-la com um sopro. O fogo aumenta de altura e extingue-se. Num
lugar muito próximo um chacal solta um uivo sonoro e agudo. Todas
as cabras juntaram-se à primeira e estão absortas em devorar, rápidas,
quase com rancor.
Algo como um lamento surdo vindo do sul se eleva das tendas
dos nômades. O som grave de um tambor marcando o ritmo da res­
piração. Os homens morenos, no aconchego da fogueira, lançam aos
céus um cântico de uma nota só. A noite acolhe a canção e responde
com o canto triste dos grilos. Os últimos vestígios de luz apagam-se no
oeste distante. O pomar mergulha na escuridão. Sons estranhos vi­
bram de todos os lados: o sussurro do vento, o resfolegar das cabras e
o farfalhar da folhagem destroçada. Gueula afunila os lábios e as­
sobia uma velha melodia. O nômade escuta-a, concentrando-se com
esforço, a cabeça inclinada no empenho da atenção, a boca ligeira­
mente aberta. Ela consulta o relógio. Os ponteiros respondem com
um piscar fosforescente, verde e venenoso e não lhe revelam nada. É
noite.
O árabe dá as costas a Gueula, cai de joelhos e, encostando a tes­
ta no solo, balbucia suas orações.
— Você ainda não tem mulher, Gueula interrompe sua oração.
Você ainda é pequeno.

62
A voz lhe sai aguda e estranha. Suas mãos repousam nos quadris
e sua respiração ainda é ritmada. O homem interrompe sua ladainha.
Agachado, sua posição irradia algo como uma alegria contida.
— Você ainda é pequeno, repete Gueula. Muito pequeno. Vinte
anos, talvez trinta. Pequeno. Não há mulher para você. Pequeno.
O homem responde em seu idioma com uma frase longa e solene.
Ela ri nervosamente, as palmas das mãos acariciando os quadris.
— Que há com você? ela pergunta rindo. Por que você me fala
em árabe? O que você pensa que eu sou. Õ que é que você quer aqui?
Novamente o nômade responde em seu idioma. Percebe-se um
tom amendrontado em sua voz. Com passos leves, hesitantes, ele
retrocede e se afasta como se distanciasse de um moribundo. Gueula
respira pesadamente, sua e treme. Uma única silaba selvagem escapa
da boca do pastor: um código particular entre ele e suas cabras. Elas
lhe obedecem instantâneamente e se aglomeram ao redor dele. O
pisotear das patas sobre o tapete de folhagem morta é como um pano
rasgando-se. Os grilos calam-se todos. Aglomeradas no escuro, em
bloco arrepiado e apavorado, as cabras são engolidas pela escuridão.
O pastor, cercado por elas, desapareceu.
Trêmula, Gueula está só.
No céu claro, acima das copas das árvores, um avião passa
soltando um ronco baixo. Suas luzes se alternam num ritmo preciso
como o ritmo dos tambores: vermelho, verde, vermelho, verde,
vermelho. A noite havia encoberto os rastros. O odor de cinzas le­
vadas pelo vento denunciava as fogueiras ao longe. Somente uma leve
brisa agitava as árvores do pomar. Um medo súbito, gelou-lhe o san­
gue nas veias. Sua boca abriu-se para um grito que ela não chegou a
articular. Pôs-se a correr descalça, com todas as forças para casa.
Caiu, levantou-se e tornou a correr como se fosse caçada, perseguida
pelo canto dos grilos.

Ela voltou ao quarto e, recordando-se da promessa feita a Atkin,


preparou café para todos os membros da diretoria. Lá fora já se sentia
a frescura da noite mas no quarto as paredes ainda ardiam, igual ao
seu corpo. A roupa, devido à corrida, estava colada ao corpo, e os pés
cortados e imundos. Suas axilas exalavam um odor que lhe despertava
ódio e náusea. Manchas vermelhas ardiam em seu rosto. Ela conta as
fervuras do café: sete fervuras, uma após a outra, conforme aprendeu

63
de seu irmão Ehud que havia sucumbido numa ação de represália no
deserto. Ela aperta os lábios e conta as fervuras negras. A crosta se
arqueia e retrocede com um borbulho contido prestes a estourar.
Pronto. Levar uma muda de roupa limpa para a noite. Ir para o
chuveiro.
O que entende este Atkin de selvagens? Um grande socialista. O
que é que ele entende de beduínos? Um nômade fareja a fraqueza à
distância. Dê-lhe uma boa palavra ou um sorriso e ele avança como
um animal feroz e tenta violentar. Ainda bem que fugi dele.
No chuveiro, o ralo estava entupido e o banco engordurado.
Gueula colocou a roupa limpa sobre o banco de pedra. Não tremo por
causa da água fria, não: é de nojo. Que dedos negros, e como agarrou
o meu pescoço... E os dentes dele... E as cabras... Magro e pequeno
como um menino, mas tão forte. Somente a ponta pés e mordidas
salvei-me dele. Ensaboar o ventre e tudo o mais. Ensaboar de novo e
mais outra vez. Sim, que os rapazes ataquem o acampamento, esta
noite ainda, e que lhes arrebentem todos os ossos negros pelo que me
fizeram. Preciso sair.

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Gueula sai.u-do chuveiro e foi ao quarto para pegar o bule de café
e trazê-lo à sala da secretaria. No caminho, porém, ouviu o canto dos
grilos. Lembrou-se do homem agachado, assustou-se e estancou na
escuridão. De repente, vomitou entre os arbustos. Começou a chorar.
Seus joelhos fraquejaram. Sentou-se no chão. Precisava descansar.
Parou de chorar. Só os dentes ainda lhe batiam de frio ou de auto-
compaixão. De repente, não tinha mais pressa. Também o café não
era mais importante. Pensou consigo: há tempo, há tempo ainda.
Estes aviões todos sobrevoando a área, estão provavelmente
executando um exercício de bombardeio noturno. Lá em cima, entre
as estrelas, num piscar constante de luzes; vermelho, verde, vermelho,
verde, vermelho. Em baixo, a canção dos nômades. Os seus tambores
com o latejar do coração. Um, um, dois. Um, um, dois. Silêncio.

Das oito e meia até quase nove horas, esperamos por Gueula. Às
cinco para as nove, Atkin disse que não entendia o que havia sucedido
e que não se recordava de alguma vez em que Gueula se tivessé

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atrasado ou ausentado de uma reunião e que, seja como for, deye-se
iniciar a reunião e tratar da ordem do dia. Ele começou com uma
resenha dos fatos, enumerou os danos alegadamente causados pelos
beduínos, embora não houvesse nenhuma prova concreta, e men­
cionou as medidas adotadas por iniciativa do comitê: um apelo de boa
vontade, a convocação da polícia, o reforço da guarda em torno do
Kibutz, cães de giiar^ia, umaiconversa com o patriarca da tribo. Tinha
de admitir que havíamos chegado a um impasse. Era de opinião con­
tudo, que se deveria manter a calma e não ceder a extremismos, pois o
ódio sempre gera o ódio, e assim por diante. Deve-se cortar de vez o
círculo vicioso da hostilidade. Ele, portanto, rejeita com toda a indig­
nação moral, o uso da violência e, sobretudo as intenções de alguns
dos membros mais jovens. A bom entendedor meia palavra basta.
Que se lhe permitisse mencionar, à guisa de remate, que o conflito en­
tre pastores e agricultores é tão antigo quanto a cultura humana e isto
está provavelmente confirmado na lenda de Caim que se levantou
contra seu irmão Abel. A nós, que somos os portadores de uma nova
mensagem social, cabe terminar esta antiga hostilidade, assim como já
havíamos posto fim a outros incidentes lamentáveis. Isto está em nos­
sas mãos e depende de nossa força moral.
Um clima de tensão e um ambiente desagradável invadiu a sala.
Rami aparteou duas vezes o discurso de Atkin usando inclusive o
termo feio “ tolices” . Atkin ofendeu-se e acusou os jovens de planejar
um ato de violência e arrematou com firmeza: “ Uma coisa destas não
se dará entre nósV”
Gueula não veio à reunião. Portanto, não havia quem acalmasse
os ânimos. O café tampouco foi servido. Em seguida, houve uma
troca de palavras entre mim e Rami. Embora pela idade eu pertença à
geração dos mais jovens, eu não concordava com suas propostas.
Como Atkin, eu era completamente avesso ao uso da violência com os
nômades, por duas razões. Quando me deram oportunidade de falar,
comecei a desenvolver ambos os argumentos. Em primeiro lugar, até
agora não havia sucedido nada de grave. Talvez alguns furtos que
nem chegaram a ser provados. Qualquer torqeira ou alicate que um
tratorista esquece no campo, perde na garagem ou leva para casa,
logo se culpa os beduínos. Em segundo lugar, não houve nenhum as­
sassinato ou estupro. Com isto, Rami me interrompeu excitado para
perguntar o que mais eu esperava: talvez um pequeno estupro para
que Gueula possa explorá-lo em seus poemas e eu nos meus contos.
Fiquei vermelho de raiva procurando uma resposta à altura.
Atkin reagiu à impertinência cortando a palavra a mim e a Rami
e voltou a explicar a sua posição. Perguntou com que cara ficaremos

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se for escrito no jornal que um Kibutz enviou desordeiros para acertar
contas com árabes vizinhos. Quando Atkin pronunciou a palavra
“ desordeiros” , Rami fez um sinal convencional nos jogos de basquete
aos seus jovens camaradas. A este sinal, todos levantaram-se e saíram
juntos da sala com ar desdenhoso, deixando Atkin discursando à
vontade aos ouvidos de três velhas e um veterano ex-membro do
parlamento.
’ Depois de uma ligeira hesitação, levantei-me também e saí atrás
dos jovens. É verdade que não compartilhava de suas idéias, mas a
minha palavra também fora cortada de modo arbitrário e ultrajante.

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Se Gueula tivesse comparecido à reunião, e trazido o seu tão
elogiado café, talvez os ânimos serenassem. É possível que sua in­
terferência conciliasse a divergência de opiniões. O café, porém, já es­
tava esfriando sobre a mesa no seu quarto. Ela ainda estava deitada
entre os arbustos atrás da sala de reuniões contemplando as luzes dos
aviões e escutando os rumores da noite. Como desejava reconciliar-se
e perdoar! Não queria odiá-lo e não desejava sua morte. Talvez levan-
tar-se e ir para junto dele, encontrá-lo no leito seco do riacho, per­
doar-lhe para nunca mais voltar. Até mesmo entoar-lhe uma canção.
Estes estilhaços pontiagudos que lhe ferem a pele até sangrar são os
restos da garrafa que ela quebrou aqui com uma grande pedra no
início da noite. E a coisa viva que se mexe entre os estilhaços de vidro
e a terra encaroçada é uma cobra, talvez uma cobra venenosa — uma
víbora. Ela estende a língua bipartida e sua cabeça triangular é fria
e hirta. Seus olhòs são como um vidro escuro; nunca pode fechá-los
pois não possui pálpebras. Gueula sente um espinho em sua carne,
talvez um estilhaço de vidro. Ela está muito fatigada. A dor é vaga,
quase um prazer. Guisos distantes em seus ouvidos. Dormir agora.
Com o olhar cansado, através da neblina cada vez mais densa, ela ain­
da percebe o grupo de jovens que atravessam o gramado a caminho do
campo e do leito seco do riacho para justiçar os nômades. Em nossas
mãos levávamos varas curtas e grossas. A excitação dilatava nossas
pupilas e o sangue fervia em nossas veias.
Lá longe, nos pomares escuros, os ciprestes empoeirados cur­
vavam-se em movimentos de serena devoção. Gueula está fatigada. É
porisso que não veio desejar-nos boa sorte no empreendimento. Seus
dedos, porém, acariciam a areia e suas feições são muito tranqüilas,
quase belas.

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AHAKON APELFELD

Nasceu em Czernovitz, província de Bucovina, na Romênia em


. 1932. Durante a Grande Guerra, dos oito aos dez anos de idade, es­
teve no campo de trabalho de Transniestria. Chegou a Israel em 1947,
pela “ Aliat Hanoar” — a Imigração Juvenil — e lá ingressou num
instituto educacional agrícola. Mais tarde, após seu serviço militar,
estudou na Universidade Hebraica de Jerusalém formando-se em
Literatura Hebraica e Iídiche.
O Holocausto da Segunda Guerra é o tema central de suas obras.
Publicou vários livros: Fumaça (1962); Na Fértil Planície (1964); No
Andar Térreo, Geada sobre a Terra (1965); A Pele e a Camisa; e
outros.
O conto Berta, aqui traduzido, é da Coletânea Fumaça, Jeru­
salém, Edit. Y. Marcus, 1962. O Conto Badenheim, 1939 apareceu
originalmente na Revista Ariel 35, 1974.

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