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Ressignificando territórios através da fotografia documental

Auana Câmara e Sabrina Campos

O presente ensaio foi escrito por Auana Câmara, integrante do Mostra


Monstra e Sabrina Campos, fotógrafa participante do projeto de micro residência
artística M.A.P.A do Margem Foto Hub de Fotografia e voluntária do Projeto Olhos
Negros (UFRN). Tem como objetivo aproximar narrativas globais colonizadas a partir
das potências criativas de trabalhos em fotografia voltados à reapropriação e
decolonização da imagem e dos mundos. Em nossa análise, colocamos em paralelo
os trabalhos de Tambureti (Acari, RN) e Ahmed Mostafa (Quena, Egito), ao mesmo
tempo que buscamos provocar encurtamentos imagéticos da distância e propor
aproximações decolonizantes.

Auana Câmara Sabrina Campos


Fonte: Labrojeira Fonte: Acervo pessoal

Inicialmente produzida pelos europeus invasores, as gravuras e,


posteriormente, a fotografia documental foi utilizada nos territórios colonizados como
propaganda do olhar colonial que buscava, com essas imagens, validar as missões
civilizatórias. Dessa forma, a fotografia colonial assume o papel de apresentar um
recorte ficcional disfarçado de documento incontestável, convencendo,
estereotipando e desindividualizando os sujeitos e territórios representados a partir
da visão colonial. Pereira comenta que a fotografia fornece [...] elementos subtis da
construção mental que nutre o olhar e que, em última análise, transparece nas
modalidades discursivas/visuais materializadas no clichê fotográfico¹. Ou seja, a
fotografia colonial produzida torna-se base para a perpetuação desse olhar
colonizado através do tempo.

Em contrapartida ao clichê fotográfico, existe um movimento de fotógrafes


dissidentes que buscam o deslocamento desse olhar nutrindo a reterritorialização
por meio da fotografia. Neste ensaio iremos analisar paralelamente os trabalhos
fotográficos da brasileira Tambureti e do egípcio ‫ أحمد مصطفى‬Ahmed Mostafa, e como
os mesmos contribuem e dialogam entre si no processo de reterritorialização,
trazendo um recorte sociocultural e político. Us fotógrafes subvertem a lógica do
clichê fotográfico, reapropriando mundos e reterritorializando as expectativas e
disposições sensíveis socialmente constituídas por meio de novas aferições de valor
permitidas pela “conquista” fotográfica².

Para discorrer essa análise, precisamos, primeiramente, apresentar e


compreender o contexto histórico dos locais onde tais fotógrafes se encontram.

‫ أحمد مصطفى‬Ahmed Mostafa foi iniciado em fotografia


pelo amigo e proeminente fotógrafo documental ‫ود‬CC‫محم‬
‫ هواري‬Mahmoud Hawary, fundador do projeto Humans of
Upper Egypt❑3,que, em suas próprias palavras busca

Difundir os valores, cultura, costumes e tradições da


sociedade do Alto Egito através da fotografia e de todos os meios e
capacidades logísticas disponíveis, e aprofundar a comunicação
entre os diferentes grupos da sociedade através da divulgação da
cultura do olhar. Isso por acreditar que a imagem é uma das
principais causas de mudança da sociedade e da defesa dos valores
e princípios da humanidade. (‫ هواري‬Hawary, 2018, tradução nossa)

‫ مصطفى‬Mostafa é um dos colaboradores do projeto, e reside em Quena, uma


província às margens do rio Nilo no Egito, país que foi colonizado no século XIX e
vive hoje os processos sociopolíticos que a colonialidade instaura, entre ditaduras,
revoltas e revoluções, em uma democracia recente e instável. Atualmente, us
egípcies sofrem grande repressão e vigilância do governo, e a crise do Covid-19
intensificou os problemas socioeconômicos suportados por elus.
Já Osani da Silva,
Tambureti, é uma artista
visual seridoense nascida e
criada em Acari, cidade
localizada no interior do
estado do Rio Grande do
Norte. Segundo sua
descrição para o Mídia
Ninja, ela

[...] Vê na fotografia o poder de criar memórias e


laços entre pessoas e lugares e acredita que antes de tudo a
fotografia é também uma ferramenta política usando-a na
luta por seus direitos e lugar de fala. Sua arte expressa o
modo de vida e a cultura de um lugar em descoberta,
sempre com olhar crítico, dando visibilidade a um povo que
assim como a mesma sente na pele as consequências do
sistema capitalista, patriarcal, racista, trazendo em seu
trabalho histórias e vivências, com pautas nas relações
decoloniais, discussões de gênero, raça e classe (Mídia
Ninja❑6, 2021).

Acari, por sua vez, é uma cidadezinha do interior, hoje muito marcada pelo
catolicismo, já foi território da etnia Cariri. A partir disso, podemos inferir sua atual
conjuntura.

[...] Acari tem mais sujeira do que gari. por aqui tudo é nas
caladas. nas escondidas. vocês não sabem da missa a metade.
nunca te contaram que o seridó foi erguido por cima do genocídio
dos povos nativos. guerra dos bárbaros. e ainda depois de séculos
são os filhos os netos dos que tomaram a terra do povo que ainda
controlam o município. (O peso da Fome❑5, Tambureti).

Aproximações possíveis entre narrativas


O território constitui fundação primordial da experiência vital dos seres.
Segundo o geógrafo Milton Santos, o território é a base do trabalho, da residência,
das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influi ❑4. Com base
nesse pensamento, utilizaremos das narrativas visuais criadas através do trabalho
dos sujeitos analisados para explorar o uso da fotografia e suas técnicas para
repensar perspectivas do passado e criar presentes contra-hegemônicos e futuros
possíveis.

Pode-se questionar, no entanto, qual seria a proximidade entre tais


indivíduos, de territórios longínquos, com culturas e vivências totalmente diferentes.
A resposta é simples e já contextualizada durante esse ensaio: a decolonialidade e o
olhar subversivo que a fotografia documental de ambes nos apresenta. Vejamos:

Captura de tela - pupá, 2019 (Tambureti) Captura de tela - Elhussen streets, 2018 ( ‫) مصطفى‬

Suas vivências apresentam divergências materiais, como os níveis de


urbanização dos territórios onde vivem e suas respectivas densidades demográficas
– o Egito é o terceiro país mais populoso de África, enquanto Acari, por sua vez, é
um município do Seridó com população estimada em cerca de 11 mil habitantes. É
possível perceber como esse aspecto influi na produção das imagens: ‫طفى‬CC‫مص‬
Mostafa apresenta em suas fotografias tons terrosos e fechados que relacionam-se
à intensa movimentação cotidiana em meio urbano, enquanto Tambureti nos traz
cores limpas, primárias, ligadas à vida no interior sem grandes intervenções
urbanas. Essas experiências, porém, dialogam entre si ao passo que, tanto
fotógrafes, quanto fotografades, vivenciam existências subalternas.
Captura de tela - acari é racista? (Tambureti) Captura de tela - Sem título, 2010 ( ‫) مصطفى‬

Aqui, podemos aproximar as narrativas para além da composição


estranhamente semelhante e familiar, através da escolha de ângulo frontal. Esse
ângulo é o mais natural a nós, e apresenta-se potencializado na construção dessas
imagens, pois atua integrando todos os participantes de tais processos. A hierarquia
social é suprimida, o nível da linha de visão e postura dus fotografades transmite
familiaridade. Complementando a produção, Tambureti apresenta o indivíduo
Amarildo textualmente em uma abordagem habitual e sensível.

Captura de tela - Natal Invisível - Cavaleiro negro ‫ورد الجمعة‬.


que viveu mistérios, 2018 (Tambureti) 2020 (‫) مصطفى‬
Embora as composições das fotografias acima sejam diferentes, tanto em
relação ao ângulo, enquadramento, iluminação e balanços de branco, todos esses
elementos serviram para dar o mesmo sentido às mesmas. Nessas fotografias pode-
se perceber o uso das técnicas para proporcionar uma leitura: dois homens em seus
hábitos cotidianos e espaços que dão a impressão de acúmulo e, de certa forma,
abandono e comodidade. Além disso, os ângulos – assimétrico, na fotografia Natal
invisível, e central, na fotografia ‫ورد الجمعة‬. – dão uma profundidade intensificada pela
iluminação; ambas utilizam a regra dos terços e possuem harmonia de cores.

Captura de tela - SALTO SOLTO, 2020


(Tambureti) Captura de tela - Behind scene, 2019 (‫) مصطفى‬

Nas imagens acima, ambes fotógrafes fazem uso das diagonais criadas
visualmente pelos corpos, criando, assim, fotos dinâmicas com sensação de
movimento. Os contornos das silhuetas das crianças são colocados em evidência,
sobrepostos a um fundo difuso. A contra-luz torna predominantes os pretos dos
primeiros planos, e enquanto em Behind scene o fundo traz diferentes variações
tonais do cinza ao branco, e o preto-e-branco da fotografia realça seus contrastes, a
luz do sol em SALTO SOLTO torna nítida a silhueta da criança, mas não sua forma.
Também há grande contraste com o céu azul, e por causa da posição em
movimento a criança parece prestes a voar, revelando a criatividade da composição
e do uso dos tons coloridos.
Captura de tela - um sopro de brisa leve Captura de tela - Good morning from
que te governe quem vai sou eu, 2020 (Tambureti) Upper Egypt, 2020 ( ‫) مصطفى‬

Partindo dessa breve análise, percebemos que Tambureti e ‫ مصطفى‬Mostafa


realizam a reterritorialização imagética das cidades² em suas práticas fotográficas,
decolonizando as experiências coletivas e individuais nos territórios em que
cresceram e ocupam. Isso se manifesta, mais uma vez, de forma evidente nas
fotografias um sopro de brisa leve que te governe quem vai sou eu e Good morning
from Upper Egypt. Buscamos, com essa construção, estabelecer paralelos entre
vivências subalternizadas pela colonização através do mundo, extrapolando limites
de fronteiras cartográficas e tornando possível aproximações entre as lutas dos
povos. Torna-se evidente, também, em vários recortes do trabalho fotográfico de
Tambureti e ‫طفى‬CCC‫ مص‬Mostafa, a semelhança no uso das técnicas: ângulos,
profundidade, iluminação, enquadramento e o uso de formas.
Quem reterritorializa o faz questionando territorializações hegemônicas², e
Tambureti e ‫طفى‬CC‫ مص‬Mostafa mostram-nos que por mais distantes que algumas
realidades nos pareçam, ao questionar o que nos é instituído, aproximamos-nos.
REFERÊNCIAS

¹ PEREIRA, Teresa Matos. Fotografia e propaganda colonial. Notas sobre uma


união de interesses na primeira década do Estado Novo, Comunicação Pública
[Online], Vol.12 nº 23 | 2017. Consultado em 14 fevereiro 2021. Disponível em:
<http://journals.openedition.org/cp/1966 >
² DE CASTRO, Fábio Fonseca; ARRAES, Raoni Lourenço; DE CASTRO, Marina
Ramos Neves. Fotografia e reterritorialização urbana. Saídas fotográficas e
sensibilidade social em Belém. Logos, v. 25, n. 1, 2018. Disponível em:
<https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/3617> Acesso em: 13
fevereiro 2021.
³ Humans of Upper Egypt. Disponível em:
<https://www.facebook.com/pg/HumansofUpperEgypt> Acesso em: 15 fevereiro
2021.
❑ SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à
4

consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2003, 174p.


❑5@tambureti. O peso da fome. 2020. Disponível em
<https://www.instagram.com/p/CD6o-AYnB4y/>
❑ @midianinja. Selecionade #ninjafoto: @tambureti. 3 de fevereiro de 2021.
6

Disponível em <https://www.instagram.com/p/CK2YNHrn0zK/?igshid=h1okly8vyqyu>

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