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Resenha do texto “O modelo cortês”, de Georges Duby, in:

DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres:


Idade Média. Lisboa: Afrontamento, 1992, p. 331-352.

O texto de G. Duby parte de uma interrogação que tenta, e consegue,


responder em seu desenvolvimento: “poder-se-á falar de uma promoção da
condição feminina na época feudal?” (p. 331). Preocupado com entender a
situação da mulher no período medieval, Duby a analisa a partir de uma das
manifestações sociais da época: a literatura. Em particular, em uma de suas
expressões, o “amor cortês” ou “fino amor”, desenvolvido e divulgado pela
literatura poética e cavalheiresca a partir do séc. XII. Este modelo defendia
uma posição superior para a mulher em sua relação com o homem. Ela era a
domina, a dama, enquanto ele era seu vassalo. Como tal, ela era inacessível a
ele, que a servia incondicionalmente, sempre em busca de suas benesses,
embora com pouca garantia de que as receberia. O modelo, literário,
aproveitou-se das regras e nomenclaturas do ordenamento do mundo feudal,
em que a nobreza, fundamentalmente masculina, subdividia-se em senhores e
vassalos, estes servindo aqueles. Além de se apropriar do modelo, promoveu
uma subversão no campo dos gêneros: a mulher – pouco importante nesse
mundo de homens – tornou-se a senhor, enquanto o homem, o vassalo. Atento
a esta inversão, Duby questiona se ela poderia revelar uma promoção real da
condição feminina nos séculos finas da Idade Média.
Duby descreve alguns detalhes que caracterizavam o “amor cortês”, tais
como: a importância da discrição por parte dos amados, visto que a mulher
“não poderia dispor livremente do seu corpo” e estaria sempre vigiada sob os
olhares atentos e zelosos de pais, irmãos, tios, primos, maridos etc.; a estrutura
de jogo que o caracterizava, em que se buscava ganhar as dádivas da amante;
o perigo que o envolvia, devido aos compromissos que via de regra cercavam a
mulher; o caráter onírico que o marcava, já que muito raramente os desejos
seriam de fatos satisfeitos e o que movia os amantes era o simples desejo, e
não a satisfação deste (p. 232-233).
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Prudentemente, o historiador trata de chamar atenção de seus leitores


para um cuidado fundamental no trato com essa literatura cortês, qual seja: o
simples fato de reconhecê-la como literatura, como imaginação, como desejo,
como criação, e não como realidade, não como descrição do real. Duby
lembra-nos que a real situação da mulher, nobre ou não, esteve sempre muito
distante daquela posição de domina que se vê vazada na literatura cortês, e
que o estudioso não se deve deixar enganar. Diz o historiador: “Estes poemas
não mostram a mulher. Mostram a imagem que os homens faziam dela” (p.
336). Todavia, Duby não despreza a relação que esta literatura poderia ter e
teve com o real. Ou seja, algo havia nela que traduzia uma determinada
realidade, nem que fossem os anseios dessa realidade.
Este fato leva Duby a outra questão: por que razão foi o modelo aceite?
O historiador francês dá várias pistas para se entender a grande aceitação e a
propagação do ideal de amor cortês por quase todas as cortes européias: 1. o
modelo cortês reforçava uma cultura cortesã, que servia à nobreza como
elemento distintivo em relação às classes vilãs, daí o excessivo de seus
códigos; 2. o amor cortês permitia homens e mulheres vivenciarem a
expressão do verdadeiro amor, já que, via de regra, este estava fora do
casamento, quase sempre a serviço de políticas de linhagens, diplomáticas,
anti-bélicas etc; 3. e, fundamentalmente, servia para regrar as relações no
interior da corte, para educar homens e mulheres a conviverem com esta nova
realidade que é o espaço urbano, povoado e relativamente pequeno que era a
corte.
Neste último sentido, Duby lembra-nos de todas as mudanças sofridas
pela sociedade medieval a partir do século XII, com o crescimento das cidades,
da população e das próprias cortes, obrigando homens e mulheres nobres a
um convívio pouco usual na estrutura feudal da sociedade. A figura do Jovem,
com sua força de cavalheiro-guerreiro, ocioso na ausência de guerras, sem
grandes perspectivas para seu futuro, já que dependente da sorte de um bom
casamento, detentor de uma pulsão sexual raramente contida; este jovem,
naquele momento, foi obrigado a aprender a conviver “em sociedade”. Para
tanto, foi necessário educá-lo para este convívio. Duby vê aí, a meu ver,
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acertadamente, o papel central do desenvolvimento deste modelo cortês na


literatura. O que se buscava com todas aquelas regras do código de amor
cortês era moldar o comportamento desse jovem; educá-lo para o trato com a
autoridade, a senhor (simulacro, em último grau, do poder real, eclesiástico e
nobre, com quem ele teria de conviver); ensiná-lo a comportar-se com esse ser
desconhecido e, por isso, ameaçador, que era a mulher; contê-lo em sua
pulsão sexual, pelo menos quando dirigida às mulheres nobres, propriedades
de muitos outros homens nobres. Ora, isto permitiu que uma nova sociedade, a
cortesã, se estabelecesse. Sociedade em que o homem nobre aprendia por
meio, entre outros, do amor cortês, a respeitar as autoridades, a dissimular e
conter desejos, a se comunicar com cordialidade, enfim, uma série de regras
que o distinguia da gente vilã e o igualava a seus pares.
E a mulher, o que ganhou com tudo isso? Voltamos então à pergunta
inicial de Duby, houve promoção social da mulher possibilitada pelo
desenvolvimento do modelo cortês? O historiador francês afirma que sim. Muito
embora, acredite que este modelo serviu primordialmente à educação do
cavaleiro, lateralmente ele possibilitou a promoção social da mulher, pois não
só lhe garantiu maior respeito por parte dos homens nobres, mas também se
estabeleceram modelos positivos femininos, em contraposição ao negativo
encarnado por Eva. Além disso, o modelo cortês ajudou na própria educação
da mulher nobre, que, da mesma forma que o homem, vê seu comportamento
regrado por uma série de códigos que a ensinam a como guardar o recato, a
como resistir às investidas dos homens, a como se comportar frente às
autoridades, e também regras de vestimenta, de comunicação, de
comportamento em grupo etc. O fim disto tudo é que, ainda que não fosse o
alvo principal da criação do modelo cortês, a mulher acabou por receber seus
eflúvios positivos.
Por fim, para Duby, o modelo cortês desenvolvido pela literatura
medieval soma-se à revalorização do direito romano e à renovação e
intensificação do culto mariano num movimento mais amplo de transformação
da visão do homem medieval sobre a mulher. Assim como Maria virá a se
contrapor a Eva, como modelo positivo do feminino, a domina da literatura
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cortês espelhará um ser mais sociável, que ameaçará e amedrontará menos o


“frágil” homem medieval.

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