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DAS PAISAGENS COMO

TECNOLOGIAS DE
REPRESENTAÇÃO ATÉ À
GÉNESE DO CINEMA
FROM LANDSCAPES AS
REPRESENTATION TECHNOLOGIES
TO THE ORIGINS OF CINEMA
ANDREA DE ALMEIDA REGO1

Resumo
A paisagem desenvolveu-se como uma ideia cuja evolução tem inscrita em si a hege-
monia do olhar, moldando as experiências da modernidade pelas suas representações.
Surgida simultaneamente à consolidação do capitalismo e à expansão das potências
europeias ocidentais, a invenção da ideia evoluiu na prática pela emergência de movi-
mentos nas artes, impulsionando novas tecnologias e técnicas de representação. O
objetivo do texto é observar esses processos em suas relações com a gênese do cinema.
Esse trabalho está no âmbito da Geografia Cultural e é parte integrante da tese de dou-
toramento que cartografa a paisagem urbana de Copacabana, Rio de Janeiro, através
do cinema.
Palavras-chave: Paisagem; tecnologias de representação; gênese do cinema.

Abstract
Landscape developed as an idea which evolution has inscribed the hegemony of the
gaze, stressing the experiences of modernity by its representations. Arising simultane-
ously with capitalism consolidation and the expansion of European powers, the inven-
tion of the idea of landscape evolved in practice by the emergence of movements in
arts, boosting new technologies and techniques of representation. The aim of this text
is to observe these processes in their relations with the genesis of cinema. This work
falls within the scope of Cultural Geography, and it is an integral part of the doctoral
thesis that maps the urban landscape of Copacabana, Rio de Janeiro, through cinema.
Keywords: Landscape; representation technologies; cinema origins.

1 Departamento de Geografia, Doutoramento em Geografia, Instituto de Ciências Sociais, Universidade


do Minho. E-mail: andreadealmeidarego@hotmail.com; ORCID: 0000-0003-17685854.
102 VIAGEM E COSMOPOLITISMO: DA ILHA AO MUNDO

A paisagem não é a verdade das coisas.


Augustin Berque (1995)

(...) um fenômeno que parece produzir-se sempre que se plasmam nos ecrãs, pinturas e desenhos
mais ou menos realistas, ou melhor certos detalhes seus. Se realmente a câmara em movimento, e
não a câmara fixa é a que regista estas paisagens ou retratos, suas reproduções na tela evocam a vida
tridimensional muito mais vividamente que os próprios originais.
Siegfried Kracauer (1989)

1. Introdução
As paisagens configuram, ao lado de espaço e lugar, temas tradicionais em Geografia.
Investigá-las no âmbito da Geografia Cultural, significa explorar infinitas e complexas
constelações simbólico-materiais, espaços onde formas e significados são inseparáveis.
Isso é especialmente relevante quando o seu estudo se refere às paisagens operaciona-
lizadas pela cultura através de uma diversidade de novas tecnologias de representação,
como a perspetiva linear, o pitoresco e o panorama, entre outros novos aparatos e
próteses de visualização. A evolução dessas tecnologias em associação à paisagem, ela
própria uma tecnologia de representação, pavimentou um caminho de, no mínimo,
três séculos, no qual visões e visualidades tomaram diferentes significados, escalas e
direções, possibilitando trajetórias mutáveis e múltiplas do olhar, até as origens das
primeiras imagens em movimento que culminaram no nascimento das imagens em
movimento. Nesse sentido, o cinema surge como um novo sistema simbólico que her-
dou e absorveu as várias convenções dessas tecnologias de representação, retrabalhan-
do-as dentro de sistemas sensoriais, percetivos e emocionais emergentes.
A captura e operacionalização das paisagens deu-se por longos e complexos pro-
cessos de interrelacionamento cultural que vão desde as figurações nas artes e na car-
tografia, até sua incorporação nas artes da arquitetura e urbanismo, artes da memória e
na cultura de viagens, tornando-as cada vez mais integradas nas estruturas de mediação
das experiências dos territórios (Bruno, 2002; Azevedo, 2007, 2008a, 2008b). Desta
forma, o estudo das paisagens a partir da exploração das tecnologias e sistemas visuais
pelos geógrafos, permite esclarecer variadas estruturas relacionais da modernidade,
como os binários eu e o outro, e aquelas relacionadas à memória espacial, social e cul-
tural; as ideologias, mitos e desejos de uma sociedade; e a produção e representação
dos espaços e os espaços de representação, todos imbricados nas suas texturas visuais.
Esse trabalho observa a construção das paisagens por movimentos artísticos e
estéticos desde o alvorecer da modernidade. Para observar esses processos, o traba-
lho foi dividido em quatro temas principais e uma conclusão: o primeiro procura um
brevíssimo entendimento sobre a invenção da moderna ideia de paisagem; o segundo
trata do surgimento dos principais movimentos nas artes, como a perspetiva linear e
o pitoresco, presentes nas pinturas das paisagens e nas artes dos jardins, ambas com
técnicas específicas de figuração da natureza; a terceira parte destaca os discursos
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 103

implícitos no pitoresco como os colonialistas, estéticos, de gênero e a contribuição do


pitoresco para a multiplicação dos ângulos visuais predecessores do cinema. Na quarta
parte, a visão peatonal multifacetada pelos passeios nos jardins, a expansão das pintu-
ras de paisagem transmutadas em vedutas urbanas, os panoramas e a aceleração pelos
novos meios de transportes ilustram o nascimento de novos sistemas de visualização
da modernidade.

2. Paisagens, uma invenção


Quem lida com as paisagens reconhece que elas não possuem uma definição clara,
possuindo no máximo um horizonte conceitual de referência. Oferecendo a noção de
que nenhum de nós percebe ou lida com as paisagens da mesma maneira, o geógrafo
norte-americano D. W. Meinig (1979) na obra canônica The Interpretation of Ordinary
Landscapes, emprestou da teoria musical termos como polissemia e dissonância,
criando um ponto de partida para exploração de tema tão complexo. Difratadas con-
ceitualmente, as paisagens costumam assumir uma miríade de aspetos eventualmente
contrapostos, variando de acordo com os interesses dos vários grupos sociais e dis-
ciplinares que a abordam. Assim, assumem a retórica relacionada a natureza versus
cultura; constroem-se como artefactos ou como sistema ecológico; apresentam-se
como paisagens comodificadas, mas também como instrumentos ideológicos; funda-
mentam-se em valores históricos ou a partir dos sentidos de lugar (1979).
Capazes de carregar várias camadas de significados entre as ciências e as artes,
elas resultam de diálogos entre sistemas emocionais, percetivos, semióticos e mate-
riais (Azevedo, 2008a). Impregnadas de subjetividades individuais, as paisagens são
ao mesmo tempo objeto e sujeito do agenciamento humano, e entendê-las ou inter-
pretá-las é indiscutivelmente uma ação parcial e circunstancial. Nesse sentido, Ann
Spirn (1998) nos lembra que a paisagem tem uma linguagem própria e poderosa – e a
retórica construída sobre ou a partir desta tem muitas consequências.
Paisagem é uma invenção, uma ideia configurada no estabelecimento da chamada
modernidade, tendo sido construída como uma complexa teia cultural, cujas relações
íntimas e intricadas desenvolveram-se rizomaticamente em uma infinidade de dife-
rentes universos. Nas paisagens estão integrados seres e mundos humanos e não-hu-
manos, objetos e tecnologias, redes e fluxos, espaços reais e virtuais. A investigação
de quaisquer ideias de paisagem deve levar em conta todas as relações possíveis a elas
associadas e que se manifestam com o tempo em suas vinculações aos espaços. Sua
complexidade analítica vai contra qualquer reconhecimento simplista, obrigatório ou
binário que relacione exclusivamente seres humanos e ambiente natural, natureza e
cultura, masculino e feminino, raças, identidades ou etnias diversas.
Para Augustin Berque (1995) a descoberta das paisagens, ou a instauração dessa
ideia, radicou nas evoluções matemáticas, científicas e dos novos paradigmas ociden-
tais que deslocaram a terra do centro do universo, estabelecendo os fundamentos da
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modernidade. Fundamentando uma nova ontologia do cosmos, o mundo foi redes-


coberto como entidade físico-material, passando a ser dissociado da subjetividade
humana, durante um processo no qual artes e descobertas científicas sobre a natu-
reza deixaram de ser complementares. Como resultado final desse processo, a ideia de
paisagem impôs-se dilacerada: entre a imagem apresentada por um pintor (o mundo
fenomenológico) e a representação das paisagens voltadas para as ciências (o mundo
físico), a primeira foi atraída para o mundo dos sujeitos e a outra para o dos objetos
(Berque, 1995).
As paisagens sob o olhar objetificado ocidental, acompanharam a longa implan-
tação de um capitalismo mais complexo e agressivo, com a emergência de uma nova
esfera pública e a transformação dos territórios na criação de uma cultura paisagística.
Transmutadas tanto em mercadorias como em espetáculos a serem contemplados, as
paisagens instrumentalizaram a naturalização de certos tipos de relações sociais confli-
tuantes e desiguais, não só entre indivíduos como em relação à natureza em oposição
à cultura, justamente no período de reconstrução histórica e expansão das potências
imperiais europeias. Foi um processo de conversão mental dos territórios apreendi-
dos pela visão que receberam uma atribuição de valor estético e cultural (Azevedo,
2007, 2008a). Esses valores dependiam primeiramente do seu criador (de quem os
representava) e depois dos seus intérpretes (dos leitores das imagens). Caracterizada
por ser branca, europeia, ocidental e essencialmente masculinista, a ideia de paisa-
gem difundida pelo poder hegemônico do olhar como dispositivo fixado no centro do
processo de perceção humana, foi corroborada por diversas manifestações artísticas e
tecnologias de representação.
Mas, foi o cinema como o ápice tecnológico do visual, o veículo crucial de afirma-
ção e recodificação de um sistema de significados que se articulou em torno da ideia de
paisagem. Igualmente trabalhou como dispositivo integrador de contextos liminares
da experiência de paisagem moderna e da espacialização do conhecimento geográfico
(Azevedo, 2007). Nesse sentido, o cinema como promotor de novas espacialidades
veio renovar as relações entre os seres humanos e o ambiente físico, criando ou inte-
grando outros sentidos de lugar nos modos de ver o espaço por ele oferecidos. Assim, a
ideia de paisagem incrustada nos filmes foi capaz de proporcionar às audiências novas
experiências de lugar e novas metáforas das paisagens. Metáforas que tiveram igual-
mente um impacte relevante como incentivadoras do desejo de viajar através da ima-
gem de cidades elaboradas explícita ou implicitamente para o consumo.
Não são poucos os teóricos em Geografia que têm como base a definição enfá-
tica de Denis Cosgrove (1984-1998) sobre a configuração da paisagem como ideia na
modernidade. Para os geógrafos, a ideia de paisagem representa uma maneira de ver e
interpretar o mundo, mas é igualmente um conceito ideológico, em grande parte deri-
vado do ideário daqueles que a representaram. Em sentido geral, seria uma maneira
pela qual o eurocentrismo - a matriz referencial do universo ocidental -, se auto figurou
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 105

para si mesma e para o restante do mundo. Sob um olhar cultural, as representações


de paisagens durante os séculos XVI e XVII teriam contribuído para a conceção de
novas espacialidades conectadas às emergentes tecnologias de visão e representação,
nomeadamente a inovação das técnicas de perspetiva linear – a construção legítima,
segundo os florentinos que a adotaram - e a gradual laicização dos elementos da pai-
sagem (Berque, 1995).
A semiótica da ideia de paisagem e a etimologia do termo no ocidente revelam
uma curiosidade: imposta aos sentidos, as representações pictóricas das paisagens
precederam sua representação em palavras (Berque, 1995). O termo integrou-se às lin-
guagens simbólicas e sociais do cotidiano em denotações e conotações verbais variadas
e, à medida que foi sendo incorporado nas diversas línguas, adquiriu novas sutilezas de
significação. O termo landskap holandês teria aparecido apenas em finais do século XV
e nas décadas seguintes espalharam-se pelo continente europeu termos formados no
mesmo modelo, mas em outras línguas de origem anglo-saxônica (landschap, lands-
chaft, landscape...). Nesse caso, a palavra-chave é land, a terra, ou em todas as lingua-
gens onde o termo é comum para descrever uma região ou território. Lorzing (2000,
pp.28-32) nos diz que a palavra paisagem nunca fez parte das línguas greco-romanas,
sendo as palavras com maior semelhança o topio em grego e o loc em latim. Aqueles
termos cuja origem é o latim, como o francês (paysage), o italiano (paesaggio), o espa-
nhol (paisaje) e o português (paisagem), tomaram emprestado o termo dos países do
norte, usado para expressar uma nova ideia, a raiz de um novo mundo (Lorzing, 2000).

3. Das perspetivas ao pitoresco


Uma exploração genealógica das experiências de paisagem oferecidas pelo cinema
revela que o modo cinematográfico de mobilização espacial tem predecessores nas
artes. Pode-se dizer que eles nasceram da pintura e da construção dos espaços retrata-
dos em termos arquitetónicos e cênicos. Em particular, a maioria dos estudos teóricos
existentes concordam que o cinema deve seus códigos de representação às técnicas
de perspetiva, ao espaço pitoresco trazido à tona pela estética topográfica do século
XVIII nas pinturas e na cartografia, e à composição espacial formulada pelas artes dos
jardins (Bruno, 2002).
A perspetiva artificialis, a mais afeita à realidade das coisas pelas suas características,
foi considerada aquando de sua invenção como um sistema fortemente simbólico, como
se fora o próprio raio divino cristão (Aumont & Marie, 2001: p.228). Posteriormente,
funcionando como um dispositivo para controlar o mundo das coisas, relacionou-se a
uma cosmologia renascentista onde toda a criação ordenava-se por regras geométricas.
Assim, a inovação da perspetiva e suas propriedades ilusórias, sob o jugo da centrali-
dade do olhar de um sujeito exterior à tela, o sujeito do humanismo, foi plenamente
incorporada nas representações, expondo a instauração de uma nova ordem simbólica;
a da equivalência entre natureza artificializada e o mundo natural (Azevedo, 2008). A
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natureza assim, foi colocada à distância e de duas formas: opticamente pelo olho do
observador, sendo este o abstrato da representação; e, simbolicamente, pela posição
do sujeito, que a partir de agora, transcendia o objeto (Berque, 1995).
Segundo Aumont et al (2001), essa ideia de centralização do sujeito do huma-
nismo seria apenas uma especulação histórica pois, na verdade, essa concepção ter-se-
-ia instituído progressivamente, à medida que se incorporaram as teses de Descartes, o
Iluminismo e o Romantismo à ideia de sujeito humanista. Posteriormente, essa cons-
trução foi retomada a propósito da utilização de técnicas fotográficas e cinematográfi-
cas, como meio de reativá-las como uma tecnologia burguesa, traduzindo dessa forma
uma relação proprietária com a realidade.
A invenção histórica das pinturas de paisagens costuma ser relacionada com a
invenção do enquadramento. A paisagem seria uma vista emoldurada de forma apro-
ximada ao que seria sua captura desde uma janela, fosse ela parte do quadro, ou con-
fundida com o próprio quadro, ativando assim, uma dialética interior-exterior (Besse,
2014). Inicialmente como apenas um ornamento de fundo da pintura, a natureza pic-
tórica perspetivada passou a adquirir a consistência de uma realidade além do qua-
dro, tanto quanto o território quando se naturalizava em paisagem (Cauquelin, 2007).
No período do Renascimento “descritivo” das novas geografias de continentes recém
desbravados por navegadores e comerciantes, a pintura comprometeu-se a revelar a
variada cena terrestre e a relação entre os povos e as terras por eles ocupadas, enfa-
tizando relações visuais e o controle espacial onde uma ilusão de ordem humanista
poderia ser sustentada (Cosgrove, 1998). Precedido pelas vedutas e pelos panoramas
entre outras tecnologias de representação, o enquadramento das paisagens na pin-
tura prenunciou a dialética do campo/fora de campo nos ecrãs do cinema, ao mesmo
tempo que provocava o imaginário e a curiosidade do observador por novos mundos.
Desenvolvida como um gênero reconhecido em regiões economicamente avan-
çadas, densamente povoadas e altamente urbanizadas da Europa do século XV em
Flandres e na Itália, a pintura de paisagem alcançou sua plenitude expressiva nas esco-
las holandesas e italianas do século XVI e XVII, e, nos séculos seguintes, nas escolas
artísticas francesas e inglesas. A escola holandesa dava ênfase a uma narrativa docu-
mental sobre o meio rural e urbano mais próxima do conceito de landschaft, ou seja,
uma pintura de usos e costumes que regiam a vida local, considerada mais como uma
pintura “política” do que pitoresca (Besse, 2014). A pintura italiana desenvolveu
paisagens pastorais idealizadas, e retratou a cultura das villas romanas, enfatizando
simetrias em um todo harmônico e universal, em suas representações de paisagens
intramurais e vistas inspiradas nos mitos gregos e pastorais da Arcádia virgiliana. Essas
representações míticas do poeta romano Virgílio, submetidas ao olhar contemporâ-
neo, exaltavam a ordem social, o recanto pastoral perfeito, o lugar onde todas as criatu-
ras (até mesmo os animais) se comportavam como cidadãos de uma economia política
perfeita, o locus amoenus (Cauquelin, 2007).
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 107

Os elementos compositivos das paisagens pictóricas – como árvores, cursos


d’água, pedras - eram francamente manipulados em forma, escala ou localização, a
fim de estruturar ou compor uma cena com uma aparência mais realista ou precisa.
Mas não só: especificamente sobre as paisagens perspetivadas e manipuladas, essas
simulações tinham o poder de congelar momentos específicos como se fossem uma
realidade universal, removendo-os das mudanças e dos fluxos temporais, enquanto
aprisionavam o instante histórico naquela narrativa visual. Se a perspetiva enfatizava a
objetividade imutável do objeto observado, a experiência coletiva humana reduzia-se
em significância, comparativamente à individualidade do espectador. Para Cosgrove
(1998) é significativo que a ideia da paisagem e as técnicas de perspetiva linear tenham
emergido em um determinado período histórico, com convenções que reforçavam
ideias de individualismo, o controle subjetivo de ambientes e a separação das expe-
riências pessoais, a partir do fluxo da experiência histórica coletiva (Cosgrove, 1998).
Nesse ponto é interessante destacar o apontado por Jacques Aumont et al (1994),
ao assinalar as similitudes e o relacionamento entre o cinema, as artes pictóricas e, em
especial, a perspetiva linear, que seria menos importante do que avaliar as consequên-
cias dessa relação. Sob a ótica do cinema, os filmes seriam mais um dos dispositivos
tecnológicos a se utilizar da perspetiva artificialis para representar as paisagens, não
surpreendendo, portanto, sua associação à emergência do humanismo, como se está
fazendo aqui. E se a perspetiva está enraizada como um hábito por séculos nas artes
pictóricas, transferindo-se para o bom funcionamento da ilusão de tridimensionali-
dade produzida pela imagem do filme, “não é menos importante constatar que essa
perspetiva fílmica inclui na imagem o ponto de vista, o sinal cinematográfico que revela
uma organização da imagem por e para um olho colocado diante dela, tal como na
pintura de paisagem. Simbolicamente, isso é equivalente a dizer que a representação
fílmica supõe um sujeito que a contempla, um olho ao qual é destinado um lugar privi-
legiado” (1994, p. 31). Nesse lugar aparentemente individualizado, o sujeito contempla
uma realidade cristalizada no tempo que carrega em si experiências padronizadas e
controles subjetivos dos lugares, tudo pronto para o consumo do espectador.
Paralelamente à invenção das paisagens como gênero pictórico independente, e
da descoberta das perspetivas, desenvolveram-se modelos de configuração do terri-
tório tais como o jardim paisagístico. Os jardins paisagísticos como geradores de uma
narrativa própria tiveram um papel importante na organização da moderna ideia de
paisagem, desde que fomentaram a construção de um sujeito ativo do lazer, envolvido
no ato de vivenciar e consumir paisagens (Azevedo, 2008). O consumo animava-se
pela composição e a distribuição dos mais diversos artefactos dispostos como num
cenário, ativado por uma cenografia repleta de elementos fantásticos que procuravam
surpreender e atrair o visitante para percursos específicos, fomentando um sentido de
descobertas no interior de um local inteiramente controlado. Isso espelhava a forma
pictórica de composição das paisagens, onde uma série de imagens eram associadas
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cenograficamente, enquanto truques de perspetiva eram usados para aperfeiçoar a


composição e o modo de receção. Espalhados nesses parques, distribuíam-se artefac-
tos trazidos de além-mar como testemunhos de viagens exploratórias a outros conti-
nentes, proporcionado uma experiência física e sensorial diferenciada, a do transporte
do corpo a outros territórios, proporcionando viagens imaginárias - como as futuras
imagens do cinema o fizeram.
Os espetacularizados jardins paisagísticos inauguraram assim um modo de pro-
dução da própria paisagem pelo estabelecimento de uma figuração estilística, o pito-
resco. A tecnologia pitoresca refletiu nos jardins a estética pictórica – o modelo para o
design da arquitetura paisagística - concretizando assim uma intersecção entre pintura
e espaço material (Bruno, 2002; Azevedo, 2008) através de narrativas do espaço e da
fragmentação dos ângulos de visão do caminhante, na criação de variadas cenografias.
À medida que esses espaços eram absorvidos e consumidos em movimento por um
espectador, uma nova arquitetura era acionada: uma “revolução pitoresca” que nasceu
do reposicionamento dos lugares a partir de perspetivas em movimento, expandin-
do-se para incorporar partes cada vez maiores do espaço (Bruno, 2002). Não se pode
esquecer que a deslocação sucessiva de ângulos visuais acrescentou uma outra dimen-
são aos espaços além das três dimensões da perspetiva, interligando ao movimento
do espectador uma quarta dimensão – a do tempo. Tal como percebido pelo cineasta
Sergei Eisenstein, o espaço tridimensional perspetivado é plenamente vivenciado ape-
nas com o acréscimo da dimensão temporal (Brito, 2014).

4. Os discursos do pitoresco
A linguagem estilística pitoresca envolvia uma diversidade de discursos em sua retó-
rica, como a estética visual, dos sentidos, perceptiva e a sócio-ideológica. Outros dis-
cursos existiam, porém, camuflando enunciados geográficos e de gênero. Códigos
culturais foram transferidos para as iconografias dos parques e jardins voltados ao usu-
fruto dos centros de poder e das elites, por sua vez transmutados em cenários para os
sentidos. Se a materialização dessas representações informava as experiências de pai-
sagem, estas, por sua vez, condicionavam formas simbolizadas por arranjos espaciais
específicos (Azevedo, 2008). Esses arranjos distribuíam-se nos espaços cujo percorrer
dava-se por ângulos de visualização entre o descobrir e o ocultar, na alternância de
locais abrigados e grandes áreas abertas, em visadas manipuladas para proporcionar
perspectivas infinitas e uma profundidade espacial ilusória. Essa distribuição espe-
lhava a ativação de ressonâncias culturais negociadas nos espaços e nas experiências
das paisagens (Azevedo, 2008) onde o observador ativo e responsável pelo controle
visual do território se compatibilizava com as áreas mais elevadas, cujas vistas dire-
tas, dominantes e abrangentes eram percebidas como ideais do gênero masculino. O
gênero feminino corporificava-se no observador passivo para quem seriam ofereci-
das as vistas para contemplação (Azevedo, 2007). A visão masculina corresponderia a
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 109

expansão colonialista, enquanto a feminina aos elementos bucólicos, a criação de refú-


gios espaciais e a uma identificação com o ambiente natural – uma natureza femini-
zada. Identificadas com a cultura, as identidades masculinas compatibilizaram-se com
a visão prospetiva da paisagem, já que teriam a capacidade de ativar no observador o
“jogo geopolítico da construção ficcional do mundo” (Azevedo, 2008). Como estímulo
a uma interação dialética entre natureza e cultura, subjazia a submissão do feminino ao
masculino, estruturando um enquadramento cultural binário no qual a experiência da
paisagem procurava ativar reações padronizadas do observador, enquanto integrava as
representações de sujeito, natureza e espaço que acompanharam os desenvolvimentos
da ideia de paisagem no mundo ocidental (Azevedo, 2007).
A geração gradual de representações terra-natureza compatibilizadas com as
expressões do feminino transmutaram as mulheres em objetos geográficos, histórica
e imageticamente estabelecidos no imaginário geográfico ocidental (Azevedo, 2008).
Essas políticas de reprodução sexualizada incidiram sobre territórios descobertos e
mapeados, topografando diferenças de género enquanto definiam um modo parti-
cular de representação relacionando corpo, espaço e tempo. E se é através do corpo
e dos sentidos que se faz o acesso dos corpos à terra (Merleau-Ponty, 1965) é nesse
ponto que a terra transmutada pelas artes jardinistas associou-se ao desejo corpóreo
de dominação ativa do espaço como prerrogativa do universo masculino, enquanto a
experiência sensível do usufruto do meio natural foi tornada passiva e dócil – feminina
e penetrável.
Observar, no entanto, o jardim pitoresco apenas sob esse prisma seria reducio-
nista. Para Bruno (2002), ele foi um espaço possível para articulação da subjetividade
feminina. Ao jardim pode ser imputada a pavimentação do caminho para uma nova
forma de espacialidade, na qual o corpo feminino não seria apenas um objeto pene-
trável, mas o sujeito de uma mobilização espacial intersubjetiva. Pois muito antes da
era do cinema, que permitiu às mulheres estabelecerem-se definitivamente dentro da
arena cultural, ao gênero feminino foi permitido ingressar em novas práticas públicas
como participar de eventos em jardins, passear em promenades e visualizar vitrines,
em um novo jogo de consumo inclusivo. Essa participação foi fartamente documen-
tada em ilustrações, pinturas, na literatura e nos escritos de viagens, produzidos por
aquelas mulheres às quais era possível extrapolar a sua posição social, conseguindo
viajar. Assim, os terrenos mobilizados e espetaculares pitorescos abriram a emo-
ção das viagens e do trânsito transcultural para a construção de um outro feminino
(Bruno, 2002).
Os jardins foram implantados como aparatos espácio visuais e eram materializa-
dos pela prática, fazendo parte de uma narrativa visual em que o espetáculo era exibido
em movimento. Isso permitia a criação de um novo tipo de espacialidade, fruto da
deambulação do observador ao criar suas próprias tomadas visuais. Montadas sequen-
cialmente, as imagens resultantes funcionavam como um sistema de vistas, dispostas
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como uma série de quadros criados para o prazer estético, um prazer culturalmente
cultivado pelas elites. O transcorrer dos seus espaços pelos movimentos dos sujeitos
criava um sentido de lugar, como uma série de relacionamentos em desenvolvimento,
provocando identificações individuais que cresciam progressivamente junto a expres-
são de um genius loci que também crescia à medida que os locais eram revisitados
(Bruno, 2002).
O pitoresco difundiu-se avidamente em meados do séc. XVIII e XIX, acompa-
nhando o fulgor relativamente à ideia de viagem e de conhecimento do mundo. As
filosofias geográficas desenvolvidas incrementaram as modernas espacialidades pro-
porcionadas por um olho viajante mecanizado e especializado na tarefa de captar vis-
tas. A própria tarefa de captar vistas era popularizada pela divulgação de narrativas de
viagens (como as muitas narrativas resultantes de viagens científicas de Humboldt e
Darwin) e de livros, pinturas e ruínas arquitetónicas. Com o avanço das viagens cien-
tíficas e descobertas de outros mundos e o processo de inventariação desse universo
desconhecido, surgiram outros movimentos que desenvolveram uma abordagem mais
factual ao espaço, culminando com a tradição realista do séc. XIX (Azevedo, 2007).
Como um passo importante na construção moderna do espaço e portador de
uma homogeneidade dentre vários posicionamentos tanto artísticos como filosóficos,
o pitoresco foi muitas vezes redefinido em teorias e práticas. Ao longo do tempo ocor-
reu uma espécie de marginalização do impacto do pitoresco nas artes e no surgimento
das imagens, em especial no que concerne às possibilidades de representar multipli-
cidades espaciais (Bruno, 2002). Isso nos remete a Eisenstein (1938), cuja análise das
sequências visuais em Montage and Architecture nos apresenta um sistema de toma-
das visuais construído através de um passeio pela Acrópole de Atenas. A composição
resultante, é por ele considerada cinematográfica em sua interligação entre montagem
arquitetônica e cênica, pois ambas compartilham a tecnologia da mise-en-cadre e mise-
-en-scène, ou do enquadramento e da cenografia. Para Eisenstein, o antepassado indu-
bitável da capacidade de “fazer montagem” como no cinema é a arquitetura. A rota
pitoresca teria permanecido incapaz de fixar a representação de um fenômeno na sua
multidimensionalidade visual completa.
Contrariando essa colocação e distorcendo a abordagem “precisa” de Eisenstein
dirigida exclusivamente à montagem, e sem rejeitar a importância da arquitetura no
fenômeno cinematográfico, pelo contrário, Bruno (2002) defendeu que a prática pito-
resca de maneira moderna teria sido reinventada pelos filmes, permitindo ao corpo
do espectador tomar caminhos inesperados de exploração. Considerado por ela uma
revolução, o movimento pitoresco participou da construção do espaço dos sentidos,
preparando o terreno para a evolução das imagens em movimento. Nesse sentido, o
pitoresco pode ser reconsiderado como uma prática protofílmica, na medida em que
sua construção espacial foi usada, como seria o filme, para envolver a imaginação do
passageiro e incitar seu movimento e suas emoções (Bruno, 2002).
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 111

5. Vedutas, panoramas e a expansão das visualidades


Ao lado das representações do mundo idílico rural, das paisagens heroicas dos via-
jantes e dos jardins com suas perspetivas infinitas, floresceu em meados do século
XVIII um outro gênero de pintura topográfica e de vistas, o vedutismo (Bruno, 2002).
Como um ápice da representação pictórica da paisagem, em um mundo que se tornava
cada vez mais urbanizado, o vedutismo incorporou a cidade transportando emocio-
nalmente o espectador para uma paisagem urbana sedutora, retratada à distância e
em grande escala. O termo veduta, de origem italiana, informa uma categoria estética
autônoma no final do século XVII, cuja evolução se deu a partir de uma verdadeira
pandemia de imagens urbanas e furor geographicus, que desde o século XV assumiu
a forma de ilustrações, desenhos, gravuras, pinturas de livros, relatórios de viagens
(Bruno, 2002: 3838).
Durante o século XVIII, ao viajarem para os atlas, os mapas e os globos terrestres,
as vedutas passaram a fazer parte igualmente da vida privada e dos interiores domésti-
cos, revestindo paredes e estampando objetos do cotidiano. Esses dispositivos culturais
foram fundamentais no estabelecimento de um gosto pela visualização de sítios urbanos,
mas igualmente influenciaram a própria maneira pela qual foram elaborados. O vedu-
tismo era caracterizado pelo culto imagético à cidade, e por uma atenuação simbólica dos
conflitos entre natureza e cidade, através da dramatização e embelezamento das vistas,
tanto das cidades europeias, como de outros territórios urbanizados pelos estados impe-
riais. Denotando o crescente interesse nas formas arquitetónicas e urbanas, o vedutismo
surgiu como categoria estética calcada sobre a elaboração de todo um imaginário das
cidades - a nova “espacialidade epifânica do homem civilizado” (Azevedo, 2007, p. 232).
Para Bruno (2002 a veduta em si é inseparável da história dos Grand Tour - aque-
las viagens empreendidas por jovens abastados europeus (eventualmente mulheres
foram aceitas nessas jornadas) que aconteceram do século XVII em diante. Nas vedu-
tas, retratos de cidades eram reproduzidos em desenhos ou pinturas, e moldados com
os mesmos parâmetros de codificação das pinturas de paisagens e da cartografia, em
um tipo de representação cenográfica repleta de tomadas distribuídas por diferentes
pontos de vista. À medida que os códigos mesclavam a topografia urbana com a pin-
tura de paisagem, as vistas urbanas também incorporavam o impulso cartográfico,
criando mapas representativos e imaginativos. Sob esse prisma, pinturas e mapas
confundiram-se na forma de representação. Em geral, cartografia e pintura de paisa-
gem interagiam no desenvolvimento de noções de espaço, mas também interagiam
nas atitudes em relação ao espaço (Bruno, 2002). As composições das vedutas podiam
abrigar diferentes pontos de vista em um mesmo enquadramento, em perfil, em pers-
petiva, ou em planos e vistas panorâmicas, geralmente combinadas em visualizações
topográficas, cujo foco podia ser um detalhe da cidade ou uma visão mais alargada do
conjunto urbanístico, abarcando os limites da cidade ou até os campos do entorno.
112 VIAGEM E COSMOPOLITISMO: DA ILHA AO MUNDO

A precisão factual nunca foi o objetivo dessas figurações, nem na cartografia tra-
dicional, nem nas visões urbanas, nem nas composições combinadas, e elas continham
eventualmente muitas distorções. Na verdade, intencionava-se a formulação de uma
imagem mental compreensível e palatável das cidades - não como “mapeamentos cog-
nitivos”, mas como diversas e indicativas rotas sobrepostas de observação (Bruno,
2002). Assim, a veduta urbana teria inscrito na pintura as diversas vistas do espaço em
um movimento dentro de seu mapeamento da cidade. Em suma, essas representações
eram mapas de paisagens urbanas ensaiando movimentos cinemáticos futuros. A lin-
guagem cinematográfica teria vindo condensar essa prática de visualização, tornando
viáveis até mesmo as projeções aéreas impossíveis e as paisagens “móveis” das pinturas
de vistas (Bruno, 2002).
Ao longo de sua história e em suas muitas formas, manifestações e nomencla-
turas, as vedutas urbanas estabeleceram uma forma específica de observar e afigurar
os lugares. Eram dispositivos movidos pela ansiedade aristocrática por uma imagem
total, em um processo de estender a visualização para além das perspetivas e das fron-
teiras do enquadramento, “em um ato de mapeamento” que acompanhava a sede por
novos mundos nos fluxos de viagens. Essa busca incansável impressa nas imagens das
vedutas urbanas era já prenúncio de expansões que desembocaram nas visões pano-
râmicas. O impulso cartográfico das vistas aéreas e das visões panorâmicas, como
frutos de uma representação geográfica imaginária, funcionavam como mapas tanto
para quem conhecia, como para quem nunca tinha visto uma cidade (Bruno, 2002).
Algumas vedutas passavam por processos de fragmentação e multiplicação e eram tão
amplas, que necessitavam de mais de um quadro, transbordando para além das suas
bordas, dos seus limites, serializando as narrativas das paisagens urbanas. Era uma arte
de fazer acreditar que a paisagem era o território original, em uma estratégia que ter-
minou de uma certa forma por definir o mundo moderno ocidental, tal como se fez
posteriormente nas representações fílmicas. Afinal, se a viagem não foi empreendida
pelo pintor, a seleção reproduzia na tela o que lhe contavam os viajantes e não o que
ele próprio poderia ter visto (Besse, 2014).
Transmutadas no final do séc. XVIII em panoramas, as vedutas retrataram o
espaço como uma montagem interligada para um observador imaginariamente móvel,
antecedendo as imersões em mundos cinemáticos e virtuais dos séculos XX e XXI.
O panorama era um espaço protofilmico onde instalava-se uma arte cartográfica em
movimento, envolvendo a inauguração de uma modalidade visual pela construção
de um novo tipo de observador. Pode-se afirmar que a simulação do campo de visão
panorâmica ingressou a humanidade na esfera do sublime romântico, tal como defi-
nido pelo filósofo Immanuel Kant (Otto, 2007). Pelo seu desempenho fundamental
no desenvolvimento da valorização romântica, ele funcionou não apenas como inde-
xador da realidade, mas como aparato dentro de determinados sistemas culturais e
percetivos. Em termos de evolução tecnológica, a “visão panorâmica” foi a que mais
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 113

se aproximou do espaço cênico móvel dos filmes conjuntamente àqueles produzidos


pelos novos artefactos visuais que povoaram o século XIX, bem como as visadas cria-
das pelos meios de transporte, como os trens e os automóveis.
Desde seu surgimento, os panoramas operacionalizaram sobre três grandes
temas, estendidos posteriormente aos filmes: as cidades, o nacionalismo e as viagens.
Por muitos anos, os registos e as imagens das viagens panorâmicas a cidades ocidentais
consideradas históricas e patrimoniais, e paisagens naturais ou exóticas, foram conver-
tidas em objetos de contemplação e curiosidade por olhares dominadores ou colonia-
listas, desejosos de realizar sonhos científicos ou turísticos (Amancio, 2000). Como
mais uma base para uma extensão notável do reino da mimese, procurou-se incansa-
velmente, por meio de artifícios técnicos, fazer dos panoramas as cenas de uma per-
feita imitação da natureza. Posteriormente foi o cinema que centralizou esses desejos,
pela duplicação de imagens de paisagens-cidades, funcionando como uma máquina
de curiosidades e de re-apresentação da história em imagens ficcionais para o coletivo
(Amancio, 2000). Em sua tentativa de produzir mudanças aparentemente realistas na
natureza representada, os panoramas prepararam o caminho não apenas para a foto-
grafia, mas também para os filmes.
As representações panorâmicas eram como arte documental, pois capturavam
um momento vivido de forma estática, como em uma fotografia, apesar dos efeitos
imersivos provocados por jogos de luzes e sons, ou aparatos que simulavam movimen-
tos e deslocações. Arte patenteada pelo seu inventor inglês, Joseph Barker (1785), ela
reunia arquitetura e pintura. Os panoramas eram exibidos em construções provisórias
ou permanentes como as rotundas, espaços circulares sem janelas, e nos quais o espec-
tador confinado sentia-se envolvido hapticamente. Pintado sobre telas curvas, o voya-
ger ilusório ficava imerso no lugar representado e espetacularizado, tal como poste-
riormente se fez nas salas de cinema. A partir de um prazer enraizado nos sentidos e na
sensação de movimento, pode-se dizer que eles avançaram pelo universo das imagens
benjaminiamente definidas como pertencentes a era da reprodução mecânica, através
do uso de técnicas industriais. Ao quebrar as fronteiras das representações ilusionistas,
pela primeira vez o real e o imaginário, de facto, confundiram-se.
Como entretenimento popular, os panoramas não exigiam nenhum conheci-
mento particular específico ou erudição estética do seu espectador, libertando os
indivíduos comuns do conhecimento de uma realidade angustiosamente enciclopé-
dica (Miller, 1996) e propiciando assim a criação de um mercado alargado e demo-
crático para o consumo de imagens. Mas os panoramas eram mais que entreteni-
mento. Capturados como instrumentos ideológicos e sociais, reafirmavam interesses
nacionalistas através de imagens, pois dependiam de investimentos de empresários
e governos para sua produção (Bruno, 2002; Coelho, 2007; Miller, 1996). Em res-
posta, os panoramas eram feitos sob medida por aqueles que buscavam clientes ou
seguidores. Incentivando a construção de um imaginário coletivo, eles oscilavam
114 VIAGEM E COSMOPOLITISMO: DA ILHA AO MUNDO

entre a distração a qualquer preço e uma “melancólica pedagogia, sob a égide da


rentabilidade”. Os panoramas transformaram-se em uma verdadeira geoestratégia
do olhar (Amancio, 2000, p. 15).
Em um mundo em efervescente mutação, os panoramas integraram o conjunto
dos diversos maquinários oníricos que emergiram desde o século XVIII, testemu-
nhando o nascimento de instrumentos científico-tecnológicos que acompanharam
a criação dos mecanismos visuais fundadores de novas e diversificadas categorias do
olhar. A maioria de caráter híbrido, esses instrumentos oscilavam entre o enfoque
científico ou artístico, ou entre o puramente visual e a representação. Esses novos ins-
trumentos permitiram capturas exploratórias tanto do interior dos corpos como dos
lugares, através de tecnologias que simularam movimentos, fantasmagorias e trans-
parências, distâncias e proximidades, em diferentes escalas e grandezas, tais como a
câmera obscura, os estereoscópios, microscópios, telescópios, o raio-x, os panora-
mas, os daguerreótipos e as câmeras fotográficas. Os dispositivos potencializaram o
domínio do ocularcentrismo, tornado culturalmente hegemônico pelas tecnologias de
poder comprometidas com os novos parâmetros do capital, e pelas experiências de
consumo entranhadas em uma elite burguesa. A erótica do desnecessário aliado ao
lazer, como o desejo de viajar e adquirir bens, foi exponenciada pela importância dos
valores de troca, mais que os de uso. Esses novos dispositivos nada mais faziam do que
dinamizar essas relações (Azevedo, 2007).
As representações panorâmicas, tais como mapas e pinturas, eram estáticas e pro-
curavam proporcionar, em sua materialidade e imersividade, uma sensação corpórea
através de uma atividade cinética. Frequentemente emprestaram da cartografia náu-
tica a experiência da linha do horizonte, enquanto imitavam ou registavam as novas
experiências de vistas aéreas (como nas excursões de balão frequentes no século XIX).
As representações urbanas pictóricas frequentemente incorporavam elementos sim-
bólicos e representacionais dessas tipologias cartográficas, no afã de localizá-las rela-
cionalmente a movimentos estelares, fluxos de marés e de ventos.
O mesmo desejo por movimentos e fluxos engendrados inscreveu-se nas repre-
sentações fílmicas primitivas das cidades, em finais do século XIX e início do XX.
Inúmeros foram os filmes realizados dentro de fluxos fluviais, de forma a associá-los à
sensação de progresso metropolitano, como eventos portuários de carga e descarga.
O desenvolvimento da verticalização urbana através do mapeamento de novas cons-
truções e a cinética dos meios de transportes como trens e automóveis, igualmente
evidenciaram padrões de “modernidade”. As cidades tornaram-se o telos do cinema e
vice-versa, em associações que colocavam em correspondência os espaços dos filmes
e os movimentos metropolitanos nas ruas. O amálgama do cinema com a estrutura
urbana foi reproduzido nos filmes de todo o mundo, tendência dominante nos seus
primórdios. Cinema, cidade e arquitetura se fizeram simultaneamente como modo de
produção, indústria cultural e testemunho da expansão urbana.
das paisagens como tecnologias de representação até à génese do cinema 115

Ao longo do século XIX, os pintores de paisagens tentaram capturar noções espi-


ritualizadas do sublime e do belo kantiano na Europa, ocorrendo o mesmo na América
do Norte. As pinturas de paisagens europeias da primeira metade do período, tendiam
a incluir os seres humanos, enquanto as norte-americanas rejeitavam a sua presença,
revelando abordagens culturais divergentes com relação à representação da natureza
artificializada em paisagens. No contexto europeu, a presença humana em uma paisa-
gem inspiradora denotava a sua habilidade em confrontar o divino nas manifestações
mais inspiradoras da natureza (Melbye, 2010). O contexto norte-americano incluía
noções de expansionismo e idealização de paisagens inexploradas, no qual o manifest
destiny era considerado uma questão divina. Nesse contexto, os novos meios de trans-
porte propiciavam a exploração das novas terras, tal como ordenado por Deus.
Tom Gunning (2010) ressalta que os novos meios de transporte ‎transformaram o
modelo pitoresco sublime das pinturas de paisagens, radicalizando suas implicações
relativas ao movimento, pela sua acelerada tecnologia de penetração nos vastos terre-
nos virginais naturais norte-americanos. Como uma longa história das transformações
subjacentes à implantação dos transportes ferroviários e sua relevância na construção
da ideia de paisagem norte-‎americana - no que concerne a velocidade dos quadros,
enquadramentos visuais e ao papel desempenhado pelos espectadores - novos pontos
de vista sofreram uma espécie de “industrialização” do olhar, originadas sobretudo
das transformações operadas no espectador tornado consumidor de paisagens - e de
viagens. Nesse sentido, não só a ideia de paisagem (norte-americana) como o pró-
prio cinema devem ser vistos não apenas como refúgio das tecnologias, mas, de forma
muito mais complexa, como seu produto (Gunning, 2010).
Enaltecendo o modo privilegiado de visualizar mediado por uma máquina
móvel da modernidade, esta nova forma de interação com a paisagem passou a ser
panorâmica, compatibilizando assim “a máquina de ver com a máquina de se mover”
(Gunning, 2010, p. 64). A ampliação da velocidade das viagens afetou a visão das pai-
sagens, oferecendo a transcendência de pontos de vistas peatonais tradicionais, que, a
partir das novas impressões, captadas e transferidas para a representação pictórica das
paisagens, instituiu novas visualizações. O distanciamento entre os sistemas de visuali-
zação acelerada e uma quantidade enorme de paisagens ainda inexploradas, provocou
uma espécie de conflito entre o sublime e o moderno tecnológico. Nesse jogo dialético
entre imersão e isolamento, futuros espectadores viram-se confrontados simultanea-
mente com uma sensação de perda e de dissolução das paisagens.

6. Conclusão
Movendo-se ao longo do caminho da modernidade, a invenção da ideia de paisagem
evoluiu em movimentos artísticos, cujos códigos e tecnologias específicas de represen-
tação ainda refletem discursos hegemônicos de séculos passados. Movimentos como
a perspetiva linear criaram uma ilusão da realidade, transferida para as representações
116 VIAGEM E COSMOPOLITISMO: DA ILHA AO MUNDO

da natureza nas pinturas de paisagens, mas também para as representações de paisa-


gens urbanas. Cidades e ambientes naturais, capturados pela descrição dos viajantes e
transferidos para as telas e para os jardins pitorescos, em uma campanha sedenta pelo
alargamento de vistas e pela expansão em direção ao domínio de mundos desconheci-
dos, prepararam o nascimento das imagens em movimento. Reflexões diversas sobre
as visualidades fragmentadas e sequenciais, elaboradas a partir do pitoresco, tornaram
possível o desencadear de uma série de questões teóricas, permitindo que se enxergas-
sem relações com o aparato cinematográfico, na construção dos fundamentos da mais
importante prática cultural de vivenciar espaços do último século - o cinema.
O desejo por domínio visual prevalece na contemporaneidade e faz relembrar a
interpretação sobre a Paris do Século XIX de Walter Benjamin. Ele destacou como “a
cidade se abriu, tornando-se paisagem” para incorporação das franjas urbanas e rurais
nos panoramas, e também as atitudes dos flâneurs em passeio pela cidade, indicativas
de uma condescendente abertura de horizontes prospetivos, reafirmando igualmente
a superioridade e o controlo do cidadão metropolitano sobre todo o restante do ter-
ritório. A “torção” representativa direcionou-se à espacialidade do homem moderno,
à cidade, à paisagem urbana. Para Benjamin (Benjamin, 2006, p. 35) o panorama fez
com os parâmetros artísticos da pintura no século XIX, o mesmo que as estruturas
em ferro fizeram ao serem utilizadas nas novas construções, suplantando certos para-
digmas arquitetônicos aquando da sua utilização nas arcadas francesas. Mas não é
só isso: da mesma forma que as paisagens se abriram para o rural nos panoramas, as
arcadas continuaram a se abrir para os passeios dos flâneurs em um movimento dinâ-
mico de fragmentação de vistas, já presentes nos jardins paisagísticos, um movimento
pitoresco. A linguagem do cinema é herdeira de todas essas tecnologias e técnicas de
representação, mas tal qual esses sistemas visuais, também carrega em si valores cul-
turais, ideológicos e sociais implícitos, transferidos fantasmaticamente de uma lingua-
gem para outra através dos tempos.

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