Você está na página 1de 10

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA

II ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA DA ANDA


2011
DANÇA: CONTRAÇÕES EPISTÊMICAS

Corpo, dança e ambiente: configurações recíprocas

Fabiana Dultra Britto1

Universidade Federal da Bahia

resumo:
Esse artigo propõe argumentar que entre o corpo e seu ambiente de existência vigora
um relacionamento de co-implicação que imprime um sentido de reciprocidade nos
seus respectivos processos de configuração. Parte da compreensão de que o ambiente
não é para o corpo meramente um espaço físico disponível para ser ocupado, mas um
campo de processos que, instaurado pela própria ação interativa dos seus integrantes,
tanto justifica as configurações resultantes quanto garante suas continuidades
evolutivas. E sua construção demonstrativa se fará pela articulação dessas idéias na
obra coreográfica SIM – ações integradas de consentimento para ocupação e
resistência, do Grupo Cena 11 dirigido por Alejandro Ahmed, cuja premissa co-
adaptativa propõe um ambiente tanto mobilizador de tensões comportamentais entre
bailarinos e platéia, quanto, simultaneamente, vulnerável aos seus efeitos.

1
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, Graduação em
Dança pela Universidade Federal da Bahia, Mestrado em Artes pela ECA-USP,
Doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Pós-Doutorado pela Bauhaus
Universität Weimar. Coordenadora do evento Corpocidade: debates em estética
urbana (2008, 2010) http://www.corpocidade.dan.ufba.br , Líder do Grupo de
Pesquisa Laboratório Coadaptativo PPGDANÇA/UFBA
http://www.labzat.dan.ufba.br , integrante do Grupo de pesquisa Laboratório Urbano
PPGAU/UFBA http://www.laboratoriourbano.ufba.br e participante das pesquisas
PIRVE (2008-10) e MUSE (2011-14), ambas no Laboratoire CRESSON/CNRS
http://www.marcheenville.ufba.br .
palavras-chave: corpo; ambiente; processo; co-implicação

abstract:
This article proposes to argue that between the body and its environment there exists a
relationship of co-implication that prints a sense of reciprocity in their configuration
processes. Starts from the understanding that the environment is not merely a physical
space available for occupancy to the body, but a field of processes, generated by the
interactive action of its own members, both justify the resulting configurations as
ensures your evolutionary continuities. And its demonstrative construction will be
donne by the articulation of these ideas on the choreographic piece YES - integrated
actions of consent to the occupation and resistance, of the Cena 11 Group directed by
Alejandro Ahmed, which the co-adaptive premisse proposes an environment that is
mobilizer of behavioral tensions between dancers and audience, as, simultaneously,
vulnerable to its effects.
keywords: body; environment; process; co-implication

SIM no encontro CORPOCIDADE (Teatro do Movimento, UFBA, 11/2010)

Foto: Renata Rocha (Ritos Produções)


Qualquer estudo acerca das transformações históricas ocorridas nas formulações
estéticas da dança e seus respectivos sistemas técnicos corporais costuma ser
empreendido a partir de considerações quanto às circunstâncias de que fazem parte,
tomando os dados contextuais como fatores de caracterização tanto das ocorrências
quanto de suas configurações resultantes.

Diferentemente dessa lógica, que toma as ocorrências por fatos – que são suas
instâncias configurativas – e os associa aos contextos em que ocorrem forjando
esquemas de causalidade linear, propomos uma lógica processual para compreender o
engendramento histórico como uma dinâmica coadaptativa que articula as coisas e
suas circunstâncias de modo contínuo e simultâneo. Esta perspectiva permite
compreender que entre o corpo e seu ambiente de existência vigora um
relacionamento de co-implicação que imprime um sentido de reciprocidade aos seus
respectivos processos de configuração. Uma idéia de dança é formulada
corporalmente, a partir das sínteses resultantes desses relacionamentos coadaptativos
que o corpo estabelece em seu contexto de existência2.

A variedade de gêneros e formatos de dança que, mesmo elaborados em diferentes


períodos históricos e condições culturais, coexistem no contexto atual brasileiro, cá
estão, ainda integrando o nosso repertório porque mantém seus nexos de sentido com
seus ambientes de interação. Fato, aliás, que já parece suficiente para colocar sob
suspeita a simplista definição de dança contemporânea como sendo aquela que é “do
nosso tempo” ou deduziríamos, sem tropeço (nem rigor), que todas as danças
existentes hoje, são contemporâneas – o que é, no mínimo, uma grande impropriedade
histórica3.

2
Esta proposta encontra-se mais desenvolvida em minha tese de doutorado defendida
em 2002 e publicada em 2008, pelo FID Editorial, com o título “Temporalidade em
Dança: parâmetros para uma história contemporânea”.
3
Engrossando o caldo da inespecificidade cultuada pelo senso comum, a prima-irmã
dessa noção é aquela outra que apregoa ser a dança contemporânea um estilo “vale
tudo” - um saco de gatos em que tudo cabe e que tudo pode.
Focalizar a dança por este seu aspecto processual permite percebê-la na complexidade
que lhe é própria, ou seja, a partir dos agenciamentos que ela tanto promove quanto é
resultante. Uma abordagem, portanto, bem diferente daquela que busca compreendê-
la pela descrição linear da sua configuração: do que se compõe e como seus
componentes se ordenam no espaço e no tempo. Uma abordagem que permite
associar os modos de ocorrência das modificações contextuais aos procedimentos
compositivos em dança, diferenciando suas resultantes (obras) pela distinção de suas
premissas – ou, princípios lógicos de composição – sem determinismos causais.

Sendo o processo um fenômeno que descreve a ocorrência simultânea e contínua de


muitas relações de diferentes naturezas e escalas de tempo, salvo em condições
modelares, não há como identificar seu começo ou seu fim – visto que não descrevem
trajetórias de um ponto a outro. Também não é possível distinguir precisamente quais
os termos envolvidos num processo, pois sua natureza relacional e contínua implica
em modificações mútuas, irreversíveis e ininterruptas entre os termos relacionados.
Essa lógica processual de compreensão das dinâmicas relacionais contradiz as idéias
lineares de origem, matriz, influência, identidade e genealogia, tão em voga nos atuais
discursos de interpretação historiográfica e crítica da cultura e da arte4, e tão
impróprias à compreensão de sistemas complexos não-lineares, como o são a vida, a
construção da história e a produção de conhecimento. Nessas condições, torna-se mais
apropriado referir-se a instâncias ao invés de termos ou elementos da relação e tratar
suas potências participativas como uma questão de ênfase – um adensamento
circunstancial.

Importa, pois, destacar o sentido de continuidade expresso no modo relacional de


existência das coisas nesse mundo submetido à ação da termodinâmica, para
diferenciá-lo do sentido apriorístico ou essencialista que costuma embasar os
argumentos e procedimentos meramente acasaladores entre idéias, pessoas e

4
Para uma introdução didática aos principais argumentos atualmente em voga nos
discursos interpretativos da cultura – acadêmicos ou não –, frente ao processo de
globalização, remeto ao estudo de Moacir dos Anjos, “Local/Global: arte em
trânsito”, integrante da excelente coleção Arte +, dirigida por Glória Ferreira e
publicada pela Jorge Zahar Editor (RJ) em 2005.
situações. Importa diferenciar o pressuposto que define as coisas como derivadas de
unidades mínimas e isoladas, daquele que as considera na sua co-implicação
contextual e contínua reconfiguração.

Ao reconhecer o caráter genuinamente criativo dos processos – porque configurador


de estruturas – chega-se a um sentido de permanência totalmente avesso à noção
conservacionista de preservação da dita “identidade” das “coisas em si” – pois que a
matéria não se conserva – e afeito à noção dinâmica de reorganização contínua das
configurações existentes, pela ação dos seus relacionamentos 5.

O ambiente ganha, assim, um caráter bem mais complexo do que costuma ter quando
está associado à noção topográfica de lugar e adquire um sentido de circunstância ao
ser entendido como um conjunto de condições para as interações acontecerem.

Nessas interações, as coisas afetam-se reciprocamente e produzem sínteses que


traduzem-se em comportamentos adotados, conforme a eficiência adaptativa que
demonstrem nas situações em que operam.

A perspectiva de compreensão das co-implicações entre corpo e ambiente aqui


proposta, baseia-se no sentido de continuidade entre essas duas instâncias do processo
configurativo das estruturas e dos modos de existência tanto do corpo quanto dos
contextos, contrapondo-se ao sentido matricial (de unidades mínimas) atribuído a
cada um desses termos6.

5
Permanência é aqui entendida na acepção dada pela Teoria Geral dos Sistemas, não
como o que se mantém e preserva imutável, mas como aquilo que não cessa sua
continuidade de ação. Remeto ao capítulo II do livro “Temporalidades em Dança:
parâmetros para uma história contemporânea”, de minha autoria, cujas referencias
completas encontram-se na bibliografia.
6
Esse princípio de reciprocidade que estabelece um continuum entre os sistemas e
seus ambientes de existência (sub-sistemas) é que permite compreender que as
formulações produzidas em certo contexto não se impõem por substituição àquelas
pré-existentes anteriormente, mas emergem delas e geram novas, por contaminação –
ainda que remota.
As corporalidades, ou melhor, as corpografias (como já sugerimos denominar em
outros trabalhos7) expressam o modo particular de cada corpo conduzir a tessitura de
sua rede de referências informativas, a partir das quais, o seu relacionamento com o
ambiente pode instaurar novas sínteses de sentido ou, coerências8. Desse modo, é
possivel tanto compreender as configurações de comportamento como memórias
corporais resultantes da experiência de espacialidade, quanto compreender as
configurações dos ambientes como memórias espacializadas dos corpos que os
experimentaram.

Podemos distinguir dois tipos de dança que derivam dessas diferentes perspectivas:
aquele cuja prática e dinâmica operativa fundamenta-se numa lógica processual e
ligada à noção de ambiência como qualidade resultante dos processos interativos entre
corpo, as condições da espacialidade que lhe concerne; e outro fundamentado numa
lógica configurativa, ligada à idéia de dança como ocupação territorial e ao
entendimento de espacialidade como dado pré-existente e independente das relações
que venham a se instaurar por interações provocadas pela situação contextual. Modos
distintos de lidar com os mesmos objetos e que organizam tanto quanto derivam
estruturas de pensamento igualmente distintas, resultando também em diferentes
condutas compositivas.

Por muito tempo, entendeu-se que uma dança seria um conjunto de passos ordenados
sob certa lógica narrativa por um autor (coreógrafo) que o ensinava a executores

7
Um breve histórico da formulação do conceito de corpografia pode ser encontrado
no livro “Corpocidade: debates, ações e articulações” (EDUFBA, 2010), organizado
por Fabiana Dultra Britto e Paola Berenstein Jacques.
8
Tomo aqui, a definição de coerência sugerida pelo filósofo Paul Thagard, em seu
livro “Coherence in Thought and Action” (referência completa na bibliografia): a
máxima satisfação de múltiplas restrições. Esta idéia permite pensar a instauração de
coerências como uma resultante da reorganização dos sistemas que, envolvidos em
processo co-evolutivo, precisam satisfazer as múltiplas restrições impostas pelas
configurações dos sistemas e sub-sistemas (ambientes) com que interagem, conforme
proposto em BRITTO, Fabiana Dultra: “Temporalidades em Dança: parâmetros para
uma história contemporânea”, FID Editorial, BH, 2008.
devidamente treinados (bailarinos) aos quais caberia, então, realizá-lo em público.
Aos poucos, essa equação não apenas foi-se redesenhando como também aos seus
termos, redefinindo-se, assim, o próprio entendimento de dança correspondente, não
como meras substituições conceituais ou procedimentais, brotadas por geração
espontânea, como sugerem as narrativas historiográficas forjadas como
encadeamentos lineares dos fatos, mas como sínteses transitórias de processos
interativos irreversíveis entre todos os temas da cultura humana (não apenas da dança)
e cuja complexidade não permite identificar início, trajetória ou os sujeitos
envolvidos.

Dentre as muitas implicações na dança desta abordagem processual, interessa ressaltar


aqui o redimensionamento das noções de espacialidade e de espectador. O ambiente
(cênico, inclusive) não é para o corpo meramente um espaço físico disponível para ser
ocupado, mas um campo de processos que, instaurado pela própria ação interativa
dos seus integrantes (de qualquer natureza), produz configurações de corporalidades,
objetualidades e ambiências. E o espectador deixa de ser tomado por um assistente
(como propõe o espetáculo) ou testemunha (como propõem a performance ou a
instalação) e passa a ser um tipo de participante que compartilha uma experiência, no
sentido de ter a vivência de uma ocorrência ou, como sugere Deleuze (1988), no
sentido de movimento e sucessão que a distingue e a faz diferente, e cujo caráter
intransferível foi ainda fortemente ressaltado por Agamben em seu livro “Infância e
História” (2005, p. 21).

Há pelo menos 10 anos, o Grupo Cena 11 passou a produzir trabalhos coreográficos


como desenvolvimento de projetos investigativos acerca de questões de
corporalidade, ambiências e seus rebatimentos em comportamento, estabelecendo
parâmetros de experimentação em etapas que constituíam-se em formulações
chamadas procedimentos. Foi assim que o Projeto skr constituiu-se de 5
procedimentos em que foram testados diferentes parâmetros investigativos acerca da
idéia de liberdade baseada em disciplina e regras, que resultaram, após 3 anos, no
espetáculo Skinerbox.

Em 2008, o foco nas relações entre corporalidade e ambiência mediada por recursos
tecnológicos desembocaram no projeto SIM – ações integradas de consentimento
para ocupação e resistência, cujo enfoque é a experiência de autonomia testada pela
manipulação de sonoridades, visualidades, contatos e deslocamentos corporais como
fatores restritivos, coercivos e sugestivos de ações cujo caráter não planejado provoca
desestabilização ou consolidação de padrões de resposta. Não por acaso, as primeiras
apresentações do trabalho denominaram-se platéia-teste.

SIM, não é uma coreografia mas uma situação coreográfica elaborada como um
ambiente que se oferece aos participantes como um conjunto de condições interativas
cujas resultantes correspondem a sínteses de corporalidade e ambiências.

Os relacionamentos interativos propostos em cena, ao longo do experimento


coreográfico em que se constituiu o SIM, conduzem os participantes a deslocar-se
continuamente impedindo-os de ser platéia e provocando-os a adotar comportamentos
que lhes pareçam pertinentes e eficientes para lidar com o desafio de manipulação,
segundo seu próprios juízos (éticos, estéticos, políticos), desejos e necessidades que,
embora se justifiquem por ativações locais, estão engendrados em redes bem mais
remotas.

Diferentemente de uma coreografia, o que chamaremos situação coreográfica


formula-se como resultante da dinâmica relacional instaurada entre o elenco e os
demais participantes (espectadores?) pela co-adaptação entre as ações coreográficas
previamente estabelecidas e as ações reativas ou impulsivas concebidas no momento
de sua realização, como sínteses comportamentais resultantes da experiência sensório-
motora que o corpo processa relacionando-se com tudo o que faz parte do contexto
formulado – é, portanto, um conjunto de condições para os processos instaurarem-se.

A situação coreográfica, assim concebida como um ambiente que tanto promove


quanto está implicado nos processos interativos geradores de sentido, é um ambiente
que atua não apenas como co-fator de configuração do padrão de comportamento
circunstancial de seus participantes, mas inclusive como condição de continuidade do
próprio regime de funcionamento que contribui para formular9.

9
O sentido de continuidade aqui atribuído à co-implicação entre corpo e ambiente já
foi apresentado nos artigos “Corpo e ambiente: co-determinações em processo” in
“Paisagens do corpo”, Cadernos do PPGAU-UFBA, número especial, Edufba, 2008.
A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de
espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o
princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrario, percebe-se
como as melhores pesquisas revolucionarias na cultura tentaram romper a
identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse
espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A
situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se
não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o
numero dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo,
vivenciadores. (DEBORD in JACQUES: 2003, p. 43)

SIM no encontro CORPOCIDADE (Teatro do Movimento, UFBA, 11/2010)

Foto: Renata Rocha (Ritos Produções)


REFERÊNCIAS

ARANTES, A. A. 2000. O espaço da diferença. Campinas, Papirus.

AGAMBEN, G. 2005. Infância e história, a destruição da experiência e origem da


história. Belo Horizonte, UFMG.

BRITTO, F. D. 2008. Temporalidades em Dança: parâmetros para uma história


contemporânea. Belo Horizonte, FID Editorial.

_____________ e JACQUES, P. B. 2010. Corpocidade: debates, ações e


articulações. Salvador, EDUFBA

DELEUZE, G. 1988. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Graal.

DEWEY, J. 2010. Arte como experiência. São Paulo, Martins Fontes.

_________. 2010. Le public et sés problèmes. Paris, Gallimard.

JACQUES, P. B. (organização e apresentação) 2003, Apologia da deriva: escritos


situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra.

MASSEY, D. 2000 “Um sentido global do lugar”, in ARANTES. A. (org.), Espaço


da diferença, Campinas, Papirus, pp. 177-185.

THAGARD, P. 2000. Coherence in Thought and Action, Massachussets, MIT Press.

Você também pode gostar