Você está na página 1de 3

BOURRIAUD: Pós-produção

O caos cultural e os novos modos de produção - internet/cinema/CGI


Conjunto de atividades ligadas ao mundo dos serviços e da reciclagem (aquilo que
não é matéria-prima a priori), a quebra do binarismo produção/consumo, a quebra
da função tradicional da “originalidade”.
O trabalho interdisciplinar que se pretende interdisciplinarizar as coisas precisa
compreender a função da Pós-Produção.
Função: não-funcionalismo. Agência, o fazer, caminho (não o fim).
Elaborar sentido através do caos é tarefa da pós-produção, definir um léxico e um
objetivo ao mesmo tempo que mantém a baixa entropia, ou seja, mantém a
diversidade como figura e fundo da discussão. Programar formas que possam depois
serem reprogramadas. “Pós-” enquanto uma zona de atividades, uma atitude (p.14).
Saber habitar as imagens, como um bom DJ ou Editor audiovisual. Inventar
percursos e válvulas de escape, criar e promover a troca sem cair na semelhança
troca-dívida, pois não há atividade e passividade, mas agência e contra-agência,
agente e paciente: o paciente age, não é pura ferramenta. A Produção torna-se,
assim, “léxico de uma prática” (p.21) e nós nos tornamos locatários de uma cultura,
produzindo-a, reproduzindo-a, mas nunca donos dela. Vivemos em constante regime
de aluguel.
Operar o pensamento enquanto uma constante feira de usados, isto é, dar novos usos
(nova utilidade) ao produto descartado/descartável do/no capitalismo. À serviço
contra-intuitivo da lógica do capital, a constante transformação (do “cru” ao
“cozido”). Os objetos “naturais” resistem, são ficções bem engendradas, mas só são o
que são quando são nomeados. Nunca foram “crus”, não é questão de originalidade
per se, é categoria dada mediante assinatura, é contexto (e contexto é tudo, menos
“cru”).
As culturas de apropriação são o novo normal, o remix de um funk é mais importante
que a obra de Bach e o remix do remix, e o featuring… “as obras pertencem a todos”
(p.35). É a obsolescência programada da ratificação divisória que compunha o
conceito clássico de obra de arte. Não é mais arte em contexto, mas o contexto em
arte (é utilitarismo prévio ao valor), não é questão de ser ou não “descartável”, mas a
função do “descarte”. É arte que queima, derrete, quebra, se come, some. Tudo é
transformação. É o crossfader de uma controladora Pioneer.
E o consumo subverte a função - pode ou não ser e, se for, vai ser diferente. É uma
relação de paralelismo “até a página dois”, isto é, consumo é tão amplo quanto a
produção: assim como não há começo, não há fim, há uma informalidade
convencional que atribui sentido e que depois muda, é linguagem, e “contexto” em
linguagem é apenas uma ficção útil “até a página dois”, “todo significado é uma
espacialidade vaga, confusa, mas enquadrada…’ (p.43). O condicionamento original
de uma obra de arte é manchado pela subversão, que por sua vez é o descarte do
próprio condicionamento, isto é, a subversão não é o “fora”, mas o “à parte”, o
marginal que retorna para atacar conceitualmente o centro.
As fontes não mais são puras, mas ao mesmo tempo nunca foram, são axiomas da
própria construção do conceito de pureza. Sua fragmentação ou sua configuração são
artifícios artísticos remodeláveis e os bons remodeladores são aqueles que entendem
o axioma e asseguram um background dos clássicos (Quentin Tarantino, por
exemplo), tornando-os conversíveis e reversíveis.
A ficção é realidade, é transformação mitológica, entretenimento como sempre,
entretenimento como nunca (ver Danowski & Viveiros de Castro, 2017, por exemplo).
“Vivemos numa época em que o ato comunicativo é majoritariamente
intermediado pelo uso de imagens e nessa paisagem cultura vai surgir, então, a
possibilidade do artista-curador-consumidor. A busca pelo ato apropriativo,
subversivo – talvez não completamente anárquico – e reinterpretativo seria uma
espécie de consumo consciente, na medida em que o artista usa um vocabulário
imagético já disponível e, dessa forma, encarna o papel de autor de uma nova
proposição ou ideologia” (Barata Leonardo, 2016 p.49)
Em suma, aproveitando que a semiótica e a semiologia afirmam que o sentido é
constitutivo da/na vida social, a proposta da Pós-Produção é de constituí-lo no seu
sentido encarnado, readequando e revisando, propondo que outro antes e outros
depois dessa performance tiveram e terão o direito de fazer o mesmo, seja em uma
arte abstrata, composta por um “jogo de pistas” (p.74), seja por uma série de códigos
desenvolvidos por programadores para criar hiperlinks em uma página da Wikipédia
ou em um fórum do Discord. O universo palpável, audível, programável, visível e
invisível é palco para o imaginário, que relaciona-se com o socius
(deleuzo-guattariano): o imaginário é uma possível das possíveis montagens que
determinam a realidade. O artista (agente) e o espectador (paciente) podem (ou não)
reconhecer esses processos de fabricação [Não ficou claro se Bourriaud defende ou
não a tese de Philippe Parreno, que aponta a incerteza do inconsciente, via
psicanálise, no momento do processo comunicacional]. Podem reconhecer quando
reconhecem a organização social dada pela troca e pela dívida, podem não
reconhecer quando o verbo dar não encontra seu antônimo, receber, pois não há
dívida, apenas dádivas. As obras (de arte) são intermináveis telas de diferentes
enquadramentos, “estocagem de informações” num jogo iconográfico infindo,
sempre suspenso e refigurado pela Pós-Produção: seja ela revisita, boicote, cópia ou
pirataria, faz parte de um jogo de reinscrição em que todos os elementos podem ser
utilizados, até mesmo os descartados e marginalizados.

Você também pode gostar