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GUIA DE ESTUDOS

INTRODUÇÃO AO
ANTIGO TESTAMENTO
JÚLIO P. T. M. ZABATIERO

“Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para


os meus caminhos” (Salmo 119.105).

1a Edição
São Paulo – 2019
PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA GERAL DA IPIB:
Áureo Rodrigues de Oliveira

PRESIDENTE DA FECP:
Heitor Pires Barbosa Junior

MINISTRO DE EDUCAÇÃO DA IPIB:


Marcos Nunes da Silva

SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA:


Clayton Leal da Silva

DIRETOR DA FATIPI:
Reginaldo von Zuben

COORDENADOR DO EAD:
César Marques Lopes

AUTOR:
Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero

CAPA E PROJETO GRÁFICO:


Ana Paula Pires

REVISÃO:
Dorothy Maia

EDIÇÃO:
Reginaldo von Zuben e César Marques Lopes

Reservados todos os direitos desta edição. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos e do
projeto gráfico desta obra sem autorização expressa de autores, organizadores e editores.
APRESENTAÇÃO

É muito interessante o texto bíblico em que o apóstolo Paulo, mesmo


preso em Roma, pede para que Timóteo traga a sua capa e os livros, prin-
cipalmente pergaminhos, a fim de estudar (2Timóteo 4.13). Até no final da
sua vida e ministério, o apóstolo dos gentios não deixa de se dedicar aos
estudos e de se preparar para conhecer e ensinar com zelo e presteza a
Palavra do Senhor.
O Curso de Teologia EAD da Faculdade de Teologia de São Paulo
surge para abençoar muitos irmãos e irmãs com interesse em, por meio
do estudo da teologia, servir a Deus com mais zelo, segurança e presteza.
Nosso desejo é que, de fato, este Curso seja meio pelo qual a ação pode-
rosa de Deus se manifeste na vida de todos os estudantes, irmãos e irmãs
em Cristo. Com isto, a FATIPI atende aos anseios da IPI do Brasil em ga-
rantir acesso ao curso de Teologia não só aos candidatos e candidatas ao
sagrado ministério, mas também a oficiais, liderança, membros e outros
interessados, tanto da IPI do Brasil como de outras denominações cristãs.
Como cristãos, cremos que o Espírito Santo desperta, chama e capa-
cita pessoas para atuarem nos diversos ministérios da Igreja. Isto ocorre
por causa da necessidade de edificação e orientação do povo de Deus no
mundo, bem como para o cumprimento da missão de Deus em meio aos
desafios do nosso contexto. Deus faz a parte dele e nós temos a nossa.
Temos responsabilidades no que se refere à busca de excelência na vida
cristã, ao cumprimento da vontade de Deus em nossa vida e à vitalidade
da igreja no testemunho da graça e do amor divinos.

Deus abençõe a todos nós.


SUMÁRIO

Módulo 1
O contexto histórico-cultural do Antigo Testamento

1. O cânon e o estudo introdutório do Antigo Testamento.........................8


2. O contexto histórico-político do Antigo Testamento .............................13
3. O contexto histórico-cultural do Antigo Testamento .............................17

Módulo 2
Estudando a Torá (Pentateuco)

1. Seções Narrativas da Torá ..................................................................33


2. Seções Normativas da Torá ................................................................39
3. A Identidade do Povo de Deus na Torá ...............................................43
4. A redação do Pentateuco ....................................................................48

Módulo 3
Estudando os Profetas

1. Estrutura discursiva dos Profetas Anteriores .......................................58


2. Estrutura discursiva dos Profetas Posteriores .....................................65
3. Estrutura e Redação dos Livros Proféticos ..........................................73
Módulo 4
Estudando os Escritos

Módulo 4 e a poesia hebraica ..........................................................85


1. Os Escritos
2. Os escritos sapienciais ........................................................................89
3. Textos litúrgicos nos Escritos ...............................................................94
4. Textos narrativos nos Escritos ............................................................100
5. O Livro de Rute: um exemplo de leitura ..............................................103

Módulo 5
Estudando os Escritos: Literatura Apocalíptica

1. O Gênero Textual Apocalipse .............................................................114


2. A mentalidade apocalíptica judaica .....................................................115
3. Um exemplo de interpretação de texto apocalíptico (Daniel 7) ...........118
Módulo 1

O contexto histórico-cultural
do Antigo Testamento
BÍBLIA Introdução ao AT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olá! Estamos iniciando o estudo da disciplina Introdução Histórico-Li-


terária ao Antigo Testamento. É um nome pomposo e, de fato, seu con-
teúdo é amplo e complexo. Entretanto, podemos estudar esta disciplina
de um modo menos complicado do que o nome sugere. Qual é o objetivo
desta matéria? Ela foi criada pelos estudiosos do Antigo Testamento para
oferecer uma espécie de mapa para: (a) o leitor e a leitora do Antigo Testa-
mento situarem-se no tempo e no espaço, diante de tantos nomes, locais
e datas presentes no texto; (b) o leitor e a leitora terem uma noção dos
grandes temas e das formas de escrita presentes nos livros da Escritura.
Assim, neste primeiro módulo temos alguns objetivos de aprendiza-
gem. Seguindo a linguagem formal da Pedagogia, ao final do estudo deste
módulo você deverá ser capaz de:

1. Descrever a importância do cânon para o estudo do Antigo Testamento;


2. Reconhecer, na leitura do Antigo Testamento, os grandes blocos
temáticos que compõem esta coleção de livros;
3. Descrever as principais características do Antigo Oriente Próximo
na época de Israel e como elas afetaram a produção dos livros do
Antigo Testamento;
4. Explicar como viviam os israelitas do ponto de vista da organização
social; e
5. Descrever a importância da religião na vida cotidiana e na política da
época do Antigo Testamento.

Veja estes objetivos como um guia para o seu estudo. Há muita infor-
mação no texto. Os objetivos indicam quais são as áreas mais importantes
que você deve estudar e concentrar o seu esforço de aprendizagem.

Bom trabalho, e que Deus lhe abençoe!

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FATIPI EAD Guia de Estudos

1. O CÂNON E O ESTUDO INTRODUTÓRIO DO ANTIGO TESTAMENTO

Nesta disciplina, partimos do pressuposto de que toda a Escritura é


inspirada por Deus (II Tm 3,15) e é Palavra de Deus. Entendemos que
as questões ligadas ao modo de escrita dos livros bíblicos, estruturas
literárias, datação e autoria dos textos não devem ser resolvidas teologica-
mente, mas histórica e culturalmente. Reconhecer mais de um autor para
livros bíblicos não significa afirmar que a Escritura contenha erros, mas,
sim, admitir apenas que a definição de autor de um texto é muito diferente
em nossa cultura e nas antigas culturas dos tempos bíblicos. Entendemos
que admitir que alguns livros bíblicos possam ter sido escritos durante um
longo período de tempo, passando por várias etapas de tradição, oral e
escrita, e de redação, significa apenas reconhecer que os hábitos de pro-
dução de livros das culturas antigas eram diferentes dos nossos.
Mais importante ainda do que o reconhecimento das diferenças é o
reconhecimento de que é nossa tarefa interpretar a Escritura da forma
mais eficiente, inteligente, crítica e fiel possível. O objetivo fundamental do
estudo introdutório do Antigo Testamento é ajudar a cumprir essa tarefa,
por meio da discussão de como os temas dos escritos veterotestamentá-
rios estão organizados e distribuídos no cânon bíblico.

1.1. O cânon do Antigo Testamento

As Igrejas cristãs acostumaram-se a chamar a primeira parte de sua


Bíblia de Antigo Testamento. Esse, porém, não é o nome original dessa
coleção de livros. Os judeus antigos, bem como os atuais, chamavam-no
de Escritura, Torá, Palavra de Deus ou TaNaK (um acrônimo: T equivale
a Torah [Torá, Instrução, Lei]; N equivale a Nebiim [Profetas] e K equiva-
le a Ketubiim [Escritos]). Nas discussões exegéticas contemporâneas, o
Antigo Testamento tem sido chamado de Bíblia Hebraica e de Primeiro
Testamento. Alguns autores evitam o termo “Antigo” Testamento, a fim

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BÍBLIA Introdução ao AT

de reconhecer a validade da forma judaica dessa seção da Bíblia cristã,


sem que ela seja comparada ao “Novo” Testamento. De qualquer forma,
porém, o nome usado nos estudos exegéticos revela a influência cristã.
Usaremos a forma tradicional Antigo Testamento, sem que o termo “Anti-
go” signifique que ele seja inferior ao “Novo”.
Outra diferença importante, além da relativa ao nome, é a da organiza-
ção dos livros do Antigo Testamento. As Bíblias que geralmente utilizamos
seguem a ordem dos livros que encontramos na Septuaginta (LXX), que
é uma tradução do texto hebraico para o grego feita no final do primeiro
milênio a.C. Essa ordem é mais adaptada à mentalidade ocidental, que
organiza os livros de acordo com seus assuntos principais. No texto he-
braico, porém, a ordem é bem diferente:

Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio)

Profetas (Josué, Juízes, Samuel, Reis, Isaías,


Jeremias, Ezequiel, Os Doze)

Escritos (Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico, Eclesiastes,


Lamentações, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crônicas)

Além de a ordem ser diferente, também o número de livros é diferen-


te, pois na forma hebraica os livros de 1 e 2 Samuel; 1 e 2 Reis; 1 e 2
Crônicas, Esdras e Neemias não são divididos em dois volumes, cada um
deles tem um único volume. Semelhantemente, os Doze Profetas Meno-
res formam na Bíblia hebraica um único livro “Os Doze”, de modo que nas
edições cristãs há 39 livros canônicos enquanto na hebraica há 24 livros.

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FATIPI EAD Guia de Estudos

Por fim, também os nomes dos livros são diferentes. No antigo judaísmo
costumava-se dar ao livro, como título, as primeiras palavras do mesmo –
com exceção dos livros proféticos.
A diferença principal, porém, reside na compreensão da estrutura do
cânon. Para os judeus, a Torá é a parte mais importante da Escritura, ela
é o fundamento da Escritura, e as demais seções são subordinadas a ela.
Os Profetas são a segunda parte mais importante; funcionam como uma
espécie de interpretação da Torá, ou de como o povo de Israel, em sua
história antiga, seguiu ou não a vontade de seu Deus. Os Escritos ficam em
terceiro lugar e têm função mais tipicamente litúrgica, sendo uma espécie de
comentário dos Profetas e uma afirmação de esperança. As três partes são
consideradas Palavra de Deus, mas, para a compreensão da vontade de
Deus, deve-se observar a diferenciação canônica no Judaísmo. A mensa-
gem mais importante dessa ordem canônica judaica para nós é que, por um
lado, o Antigo Testamento é uma grande narrativa com unidade de enredo:
a eleição, a libertação, o pecado e a restauração do povo de Deus; por outro
lado, essa unidade é uma parte tensa, plural e complexa, que não pode ser
reduzida a uma única descrição teológica ou doutrinária.

1.2. Os blocos temático-literários do Antigo Testamento

Na tradição acadêmica de pesquisa veterotestamentária nos tempos


modernos, algumas conclusões tornaram-se uma espécie de norma or-
ganizadora dos estudos, sendo que a principal delas é a que vê um certo
arranjo temático e literário dos livros do AT.
Foram, assim, considerados alguns grandes blocos de livros da Bíblia
Hebraica, que possuem grande amplitude histórica e literária. O primeiro
deles, na ordem em que aparece na Bíblia, é a Torá (palavra hebraica
que significa instrução), e que costumamos chamar de Pentateuco. Sua
estrutura é a de uma grande narrativa que conta uma história que vai das
origens do mundo (Gênesis 1), a criação divina, até as origens do povo de

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BÍBLIA Introdução ao AT

Israel, à beira da entrada na terra prometida por Deus (Deuteronômio 34).


Nesse bloco de cinco livros (Pentateuco significa cinco rolos – material de
pergaminho onde eram escritos os livros na Antiguidade), encontramos
narrativas dos mais variados tipos, confissões de fé, poemas, legislação
cúltica, civil, criminal, genealogias etc.
O segundo grande bloco, que na academia se convencionou chamar
de Obra Histórica Deuteronomista, é composto pelos livros de Josué, Juí-
zes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. O nome “deuteronomista” foi dado porque
esses livros contam a história do povo de Israel a partir de uma perspec-
tiva teológica presente no livro do Deuteronômio, que é a da fidelidade
exclusiva a Javé como o único Deus de Israel. Rico em diversidade de
formas literárias, narrativas e não narrativas, estes livros contam a história
das origens de Israel até o fim do Estado de Judá sob o domínio babilôni-
co, concluindo com uma afirmação de esperança (2Rs 25,27-30).
O terceiro grande bloco é chamado de Obra Histórica Cronística, e é
composto dos livros de 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias. Descrevem a
história de Israel desde suas origens até a reconstrução de Jerusalém no
período da dominação persa (séc V a.C.). Para o período anterior ao exílio
babilônico, os livros de Crônicas praticamente recontam a história narrada
em 1 e 2 Reis, mas com diferente ponto de vista teológico: o da teologia
do culto como eixo da vida espiritual. Nos livros de Esdras e Neemias, são
narradas as lutas para a reconstrução de Jerusalém e a restauração de
Israel após o exílio babilônico.
O quarto grande bloco de livros do Antigo Testamento que deve ser lido
em conjunto é o composto pelos livros que nós chamamos de proféticos:
os três “profetas maiores” (Isaías, Jeremias, Ezequiel) e os doze “profetas
menores” (Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Sofo-
nias, Habacuque, Ageu, Zacarias e Malaquias). Embora não possuam
uma ordem cronológica, seu arranjo no cânon hebraico (que é diferente
da ordem em que temos os livros nas traduções modernas) aponta para
a leitura em conjunto, destacando a temática teológica da justiça de Deus

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FATIPI EAD Guia de Estudos

na relação com seu povo e com os demais povos da Terra. O bloco final é
composto pelos livros chamados poéticos (Salmos e Cantares) e sapien-
ciais (Provérbios, Jó e Eclesiastes). Por várias razões, esses livros não
receberam da pesquisa a mesma atenção que os outros blocos, mas têm
se tornado cada vez mais importantes na pesquisa atual.

OBRA
PENTATEUCO
DEUTERONOMISTA

OBRA PROFETAS
CRONÍSTICA

POÉTICOS

Diante do volume de material, a disciplina de introdução ao Antigo Tes-


tamento não pode ser exaustiva, ou seja, não teremos tempo de estudar
detalhadamente cada livro nem poderemos nos dedicar detalhadamente
aos diversos aspectos da pesquisa introdutória --datação, autoria dos
livros, estrutura de cada livro, história da composição dos livros indivi-
dualmente e em blocos, história do povo de Israel, teologia, aspectos da
religião de Israel etc.
Para encerrar esta breve apresentação de nossa disciplina, deixo um
convite especial a você: leia o Antigo Testamento! Nenhuma síntese in-
trodutória é capaz de substituir o próprio texto. Ao contrário, a introdução
ao Antigo Testamento deve nos motivar a ler e estudar cuidadosamente
os livros veterotestamentários. Sei que não é possível ler todo o Antigo
Testamento em um mês, mas se esforce para ler pelo menos dois livros

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BÍBLIA Introdução ao AT

(grandes) de cada seção canônica hebraica (Torá, Profetas e Escritos), a


fim de deleitar-se com as riquezas espirituais da primeira parte da Bíblia
judaico-cristã.

2. O CONTEXTO HISTÓRICO-POLÍTICO DO ANTIGO TESTAMENTO

Israel localiza-se na região que chamamos de Antigo Oriente Próximo


(esta é a nomenclatura preferida dos estudos teológicos, mas também se
usa falar dessa região como o Oriente Médio) -- considerada o berço das
civilizações humanas --, espraia-se por dois continentes, África e Ásia,
e sua história remonta a cerca de 5 mil anos antes da era cristã. A essa
região também costuma-se dar o nome de Crescente Fértil, em função
de sua semelhança com a lua crescente (vide mapa) e sua grande ca-
pacidade produtiva (agrícola e pastoril). É uma região que se estende ao
longo de dois territórios banhados por grandes rios: Nilo, na África, onde
hoje está o Egito; Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia, região da Ásia onde
hoje se encontram o Irã e o Iraque), cujas cheias foram responsáveis pela
extraordinária produtividade agrícola e contribuíram decisivamente para o
desenvolvimento de nações com tendências imperialistas nessas regiões.

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FATIPI EAD Guia de Estudos

Durante o período que mais nos interessa, do ponto de vista da histó-


ria de Israel (séc. XV a.C. até inícios da era cristã), na África, o Egito foi
uma grande potência que chegou a dominar, até o século X a.C., a região
de Canaã e a região mesopotâmica. Na Ásia, as duas grandes potências
concorrentes na Mesopotâmia – Babilônia e Assíria – disputavam o domí-
nio imperial da região em direção à fronteira egípcia, e o domínio imperial
mesopotâmico consolidou-se entre os sécs. VIII e V a.C. Após o V século
a.C., o domínio político-militar sobre o Antigo Oriente Próximo ficou nas
mãos de persas, primeiro, e de greco-macedônios após a conquista da
região por Alexandre Magno no IV século a.C.

2.1. Entre o Egito e a Mesopotâmia

O cenário da história de Israel é a região que se localiza entre o Egito


e a Mesopotâmia, uma espécie de corredor entre o Mar Mediterrâneo e o
deserto, território que fazia a ligação terrestre entre as grandes potências
vétero-orientais, propiciando não só o comércio e o intercâmbio cultural,
mas também as disputas político-militares. Por isso, essa região sempre
esteve sob a cobiça das grandes potências do Antigo Oriente, e sua histó-
ria é determinada pela história dos impérios. Por isso a história do povo de
Israel só pode ser plenamente entendida à luz de sua situação geográfica.
Nos séculos XIV e XIII a.C. o corredor cananeu estava sob o domínio
imperial do Egito, que explorava a região econômica e politicamente. O
território cananeu estava subdividido entre várias cidades-estados, com
diversos tamanhos e áreas de influência, mas todas sob a égide egípcia.
“Por volta de 1200 a.C. o sistema de impérios da segunda metade do
segundo milênio desmoronou de forma relativamente rápida, se bem que
não inesperada. O impulso para isso veio com a chamada migração dos
povos do mar, que desde o séc. 13 aflui para as regiões da periferia oci-
dental do Oriente Médio, por água através do mar mediterrâneo e por terra
através da Ásia Menor” (DONNER, 1997, p. 45). Com isso, a dominação

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BÍBLIA Introdução ao AT

egípcia enfraquece, e mudanças importantes ocorrem na região, incluindo


a emergência de Israel.

2.2. A terra de Israel

“Palco da história de Israel é a parte meridional do corredor si-


ro-palestinense [...] Uma delimitação geográfica precisa dessa
região é difícil: a oeste fica a costa do Mar Mediterrâneo; ao sul
o território cultivado passa sem limites fixos para os desertos do
Neguebe e do Istmo; a leste segue-se, igualmente sem limites
fixos, o deserto siro-arábico. Já que a Palestina, a Síria Oci-
dental e o Líbano formam geograficamente uma unidade, cos-
tuma-se considerar como divisa setentrional da Palestina uma
linha imaginária que tem motivos históricos, e não geográficos:
a leste do vale do Jordão na altura do Jarmuque, e a oeste do
valo do Jordão na altura do Leontes (Nahr Litani). Esse é o
território que, no AT, em geral é chamado ‘(terra de) Canaã’
ou ainda ‘terra de Israel’ (1Sm 13.19)” (DONNER, 1997, p. 51).

2.2.1. Sub-regiões geográficas e condições climáticas

A história do povo de Israel é fortemente determinada pela situação


geográfica da terra israelita. Em uma época em que as distâncias peque-
nas pareciam longínquas, posto que só podiam ser atravessadas a pé ou
em lombo de cavalos, burros e camelos, as divisões geográficas eram
de grande importância na determinação da identidade de um povo, espe-
cialmente um povo que, como Israel, se estabeleceu tardiamente em um
território que já era ocupado há séculos por outros povos.
Apesar de a Escritura nomear poeticamente essa terra como “terra que
mana leite e mel”, as condições climáticas da região eram grandemente
adversas para o desenvolvimento de sociedades. A terra israelita não con-
tava com água abundante, pois a maioria de seus rios dependia da chuva
para existir, enquanto as águas do Jordão, embora abundantes, ficavam

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fora do alcance prático para a agricultura e a vida animal e humana. Como


as chuvas eram em pequena quantidade (a região se caracterizava pelo
clima semiárido), a vida dos israelitas era marcada por muito trabalho,
para garantir a mera sobrevivência. Assim, somente nas regiões com
maior quantidade de chuva e, especialmente, nas planícies, a produção
agropastoril era favorecida, enquanto nas regiões montanhosas e de me-
nor índice pluviométrico, maior trabalho era exigido das populações para o
ganho de seu sustento cotidiano (construção de poços e de cisternas para
armazenamento da água).

2.2.2. Consequências históricas da geografia israelita

Estas características geográficas serão importantes para compreen-


dermos, mais adiante em nosso curso, alguns aspectos da história de Is-
rael, principalmente:
(a) a sua formação como povo se deu primeiramente nas montanhas,
fora do controle das cidades-estados e seus exércitos com carros de com-
bate; um povo composto predominantemente por migrantes e populações
marginais e periféricas das cidades-estados, com consequente baixo grau
de unidade cultural e religiosa, o que se percebe mais facilmente nas dife-
renças político-teológicas entre os territórios do Norte e do Sul (os futuros
reinos de Judá e Israel);
(b) a divisão do reino de Israel, após a morte de Salomão, nos reinos
do Norte (Israel) e do Sul (Judá), favorecida pela distinção geográfica e
populacional entre as duas regiões -- mais planícies e deserto no Sul,
mais montanhas ao Norte –, de modo que os dois reinos tiveram distintos
inimigos e contatos internacionais prioritários;
(c) o constante conflito de lealdades religiosas dos israelitas, ora
aos deuses ‘cananeus’ de fertilidade (especialmente Baal), ora ao deus
‘estrangeiro’ (Javé), em função das grandes dificuldades climáticas e
dos conflitos político-econômicos. Não é à toa que o tema da idolatria

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BÍBLIA Introdução ao AT

perpassa agudamente o Antigo Testamento;


(d) o pequeno interesse econômico dos impérios vétero-orientais na
região, cobiçada como espaço de defesa e de passagem para as conquis-
tas – seja da perspectiva egípcia, seja da mesopotâmica –, que permitiu,
por exemplo, um largo período de desorganização política após o fim do
reino de Judá;
(e) a pluralidade teológica e política do povo de Israel, refletida nos
textos do Antigo Testamento que, apesar de formarem uma unidade ca-
nônica, não ocultam a grande diversidade de interpretações da ação de
Deus e de Sua vontade para o Seu povo.
A história de Israel é a história de um povo cujo território era cobiçado
pelas grandes potências de sua época e, quando essas potências esta-
vam em declínio, pelos vários pequenos países que moldavam a região
cananeu-arameia. Território marcado por grandes dificuldades para a so-
brevivência econômica e para a unidade político-cultural, o que deixou
profundas marcas na construção da identidade israelita – condição que
veremos com mais detalhes ao longo do nosso estudo.

3. O CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL DO ANTIGO TESTAMENTO

No segmento anterior examinamos algumas características geográfi-


cas do Antigo Oriente Próximo e suas implicações políticas para a história
de Israel. Agora nosso foco recairá sobre as implicações sociais e culturais
da configuração geográfica do Crescente Fértil para a vida dos israelitas.
Em certo sentido, o povo de Israel vivia em condição semelhante à nossa
condição latino-americana: um continente colonizado por europeus, su-
balterno à economia norte-atlântica; nossa organização social e nossas
culturas vivem à sombra da economia, da política e da cultura do mundo
acima do equador. Israel, nação tardia no Antigo Oriente, também sofria
sob a dominação cultural e religiosa das grandes potências vétero-orien-
tais. Essa dominação torna ainda mais espantosa a força da identidade e

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FATIPI EAD Guia de Estudos

da religião israelitas – um pequeno povo que marcou a história mundial


com sua fé.

curiosidade

O Egito e a Mesopotâmia já existiam como sociedades


organizadas há mais de dois milênios antes de Israel se
tornar um povo assentado na sua terra. Outros povos, como
moabitas, edomitas, sírios, filisteus e fenícios, também já
existiam organizados há mais tempo do que os israelitas.

3.1. Estruturas socioeconômicas no Antigo Oriente Próximo

Durante quase todo o período da história de Israel no Antigo Testa-


mento, as sociedades e os países do Antigo Oriente eram organizados
economicamente ao redor da relação tensa entre a corte monárquica
e a população rural-urbana. Uma das maneiras de descrever essa or-
ganização socioeconômica vem do ambiente intelectual marxista, utili-
zando-se do conceito de Modo de Produção. As sociedades do Antigo
Oriente Próximo podem ser descritas como organizadas de acordo com
o que se convencionou chamar de Modo de Produção Tributário. Nes-
se tipo de organização social, há distinção entre dois grandes grupos
sociais: a corte (ou o Estado monárquico) e a população trabalhadora
em geral (ou o Povo).
Em tais sociedades, o “rei” cobra tributos de camponeses (agricultores
e pecuaristas) e trabalhadores urbanos, para o sustento da corte (família
real, funcionários, o aparato religioso e militar), e demanda trabalho gra-
tuito da população (corveia) com o apoio da aristocracia agrária e urbana.
É a corte que controla o comércio internacional e estabelece as “regras

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BÍBLIA Introdução ao AT

do jogo” na vida interna do país. Nessas sociedades, o conceito ideoló-


gico que explica as relações entre corte e povo é o de “contrato”1 entre a
população e o “rei”. Não havia distinção, naquela época, entre conceitos
religiosos e conceitos políticos, de modo que a religião exercia a função
de legitimação do Estado e da família real. Como garantia de continuidade
no poder a corte mantinha o exército, que não só servia para a defesa do
território e para a conquista de novos, como também exercia as funções
que atualmente cabem à polícia.
De modo geral, as condições de vida do povo nas sociedades tributa-
ristas eram bastante difíceis, pois a população ficava à mercê do arbítrio
do rei no tocante ao volume dos tributos cobrados e dos trabalhos força-
dos. Quando essa cobrança ficava acima dos limites aceitáveis, o Estado
praticava a opressão e a injustiça (note que a teologia do Antigo Testa-
mento gira, em grande medida, ao redor do tema da libertação, ou seja,
da crítica e da rejeição à injustiça e à opressão, por exemplo, como em
Êxodo capítulos 1-3, Amós caps. 3-5, Mq cap. 3, Isaías caps. 1-5 etc.). As
relações internacionais eram dependentes de circunstâncias econômicas
e do desejo de expansão dos reis dos grandes países. Nesse sentido, Is-
rael teve sua história determinada, em grande medida, pela fúria conquis-
tadora de Egito, Assíria, Babilônia e Pérsia que, na maior parte do período
veterotestamentário, fitavam os olhos cobiçosos sobre a importante faixa
de terra ocupada por israelitas.
Se você tem interesse em ver como textos do Antigo Testamento des-
crevem a relação entre Estado monárquico e povo, pode ler 1 Samuel
8,11-17; 1 Reis cap. 12 (sem contar os profetas Isaías, Miquéias, Amós e
Oséias), que retratam a dura relação entre rei e povo, centrada na tribu-
tação e no trabalho forçado. Um texto muito interessante, voltado para a
1
Em textos bíblicos, textos de outros países da época veterotestamentária e mesmo em textos
acadêmicos atuais, usa-se o termo aliança ao invés de contrato. Prefiro contrato, pois o termo
aliança é mais adequado para a descrição de relações pessoais não mediadas por instituições,
enquanto o termo contrato descreve melhor relações pessoais mediadas por instituições, se-
jam estas jurídicas, políticas, econômicas ou religiosas.

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FATIPI EAD Guia de Estudos

restrição dos poderes dos reis é o de Deuteronômio 17,14-20, que tam-


bém merece ser lido para entender um pouco melhor as lutas políticas
internas de Israel.
No Antigo Testamento, não há uma posição única sobre o valor da mo-
narquia e dos reis. Teologicamente falando, a partir de textos como 1 Sa-
muel 8 e o livro de Oséias, a monarquia era considerada como expressão
da infidelidade do povo a Deus. Assim, os livros de 1 e 2 Reis descrevem a
história de Israel a partir da maior ou menor pecaminosidade de seus reis.
Não é à toa que a figura do rei tornou-se um emblema para a esperança
messiânica. Esperava-se um rei que fosse fiel a Deus.

em síntese

No Antigo Testamento, não há uma posição única sobre


o valor da monarquia e dos reis. Teologicamente falando,
a partir de textos como I Samuel 8 e o livro de Oséias, a
monarquia era considerada como uma expressão da
infidelidade do povo a Deus. Assim, os livros de I e II Reis
descrevem a história de Israel a partir da maior ou menor
pecaminosidade de seus reis. Não é à toa que a figura do
rei se tornou um emblema para a esperança messiânica.
Esperava-se um rei que fosse fiel a Deus.

Dessa forma, os Estados no Antigo Oriente eram de tipo monárquico


(governado por um soberano), dinástico (sucessão por linhagem fami-
liar) e despótico (não admitia desobediência). A legitimidade do Estado
dependia da legitimidade do rei, que era descrito ou como a imagem
dos deuses ou como filho de Deus. De qualquer forma, os reis eram
considerados os representantes dos deuses na terra e seus supremos

20
BÍBLIA Introdução ao AT

sacerdotes e pontífices. Em 2 Samuel capítulo 7, a chamada profecia de


Natã é exemplo de como os reis vétero-orientais apresentavam-se como
representantes da divindade (ver também os Salmos 2 e 72). O capítulo
14 de Oséias é exemplo de crítica radical à monarquia em Israel (Reino do
Norte), enquanto Isaías caps. 6-9 descrevem uma crítica menos radical,
mas não menos severa, à monarquia em Judá (Reino do Sul).
No contexto da monarquia a população vivia predominantemente no
campo, que orbitava ao redor de cidades, que serviam para proteção, co-
mércio, religião e solução de conflitos jurídicos. Essas populações se estru-
turavam de modo familiar patriarcal (no AT a família patriarcal era chamada
de bet ab “casa paterna”) e clânico (o que chamamos de família extensa
por consanguinidade). Como alternativa ao Modo de Produção Tributário,
grupos sociais resistentes organizavam-se em associações de clãs ou de
famílias, a que se chama de tribos, com economia e poder quase igualitários
e que, comumente, viviam às margens do território dominado pelos grandes
países ou pelas cidades-estados fora desses grandes países. Israel, em
suas origens, foi um país tribal, uma associação familiar livre, fundada na
religião e nos interesses comuns, cujo exército era do tipo milícia, ou seja,
associação voluntária de homens para a defesa da família e do território.

3.2. A religião e a cultura

No mundo do Antigo Oriente não havia distinção entre ‘religião’ e ‘cul-


tura’ como existe em nossos dias. Aliás, até nem deveríamos falar em
‘religião’ naquela época, pois toda a interpretação do mundo era marcada
pelas crenças em deuses. Há muita informação sobre este tópico, mas
não é possível entrar em detalhes. Tratarei apenas da relação entre ‘re-
ligião’ e ‘política’, que acontecia de forma bem diferente da forma atual.
Como já mencionado, a religião era a ideologia estatal no Antigo Oriente
Próximo. Como ideologia, cumpria as funções de criar, manter e legitimar
as relações de dominação da corte sobre o povo. Podia, também, servir

21
FATIPI EAD Guia de Estudos

como fonte de utopia antiestatal de grupos alternativos e, assim, cumpria


as funções de resistir, rebelar-se contra o status quo e projetar uma nova
sociedade. Além das funções ideológica e utópica, a religião era compo-
nente fundamental do Mundo-da-Vida vétero-oriental. De modo diferente
de nosso tempo atual, o Mundo-da-Vida não estava dividido em diversas
formas de racionalidade e estrutura, de modo que a religião não era um
elemento à parte da política, do direito etc. Era a religião que, de fato, ocu-
pava o centro do Mundo-da-Vida de povos e nações do Crescente Fértil.
Dessa forma, podemos perceber nos países vétero-orientais em geral
e em Israel, em particular, pelo menos três grandes setores da prática e
das crenças religiosas: a religião oficial do Estado (legitimadora da domi-
nação), a religião dos setores intermediários da população (o que chama-
ríamos hoje de elite econômica ou cultural) e a religião familiar dos cam-
poneses e grupos alternativos (que chamaríamos hoje de religiosidade
popular). No Antigo Testamento, podemos analisar a presença predomi-
nante dos dois primeiros setores, que lutavam intensamente pelo poder de
definir a identidade israelita. A presença das práticas e crenças religiosas
populares no Antigo Testamento demanda um esforço maior de análise
textual, pois essas práticas e crenças estão ‘escondidas’ nos textos. A
pesquisa arqueológica é, neste sentido, de importância fundamental para
compreendermos de forma mais ampla a religião popular em Judá e Israel.

conceito

Mundo-da-Vida é um termo técnico que visa explicar a


dimensão simbólica das sociedades. O Mundo-da-Vida é
composto pelas ideias, valores e crenças de um povo a
respeito de sua cosmovisão, relações sociais, identidade
pessoal e familiar, religião e ética. É sinônimo do termo cultura.

22
BÍBLIA Introdução ao AT

3.2.1. O politeísmo no Antigo Oriente

Os povos do Antigo Oriente Próximo eram “politeístas” e concebiam


suas divindades de várias formas: (a) como intensificações de seres hu-
manos e/ou de outros animais – deuses antropomorfos e teriomorfos (na
forma de animais ou mistura de humanos e animais); (b) por meio da inten-
sificação dos astros celestes, considerados deuses; (c) aspectos da vida
eram divinizados: doenças, morte, justiça etc. Assim, devemos pensar em
categorias híbridas para entender os deuses e as deusas do Antigo Orien-
te, que são “muito mais” do que seres não-divinos – são mais poderosos,
mais impiedosos, mais sábios etc.
O mundo divino não era dualista nem dual, não se pode falar em deu-
ses e demônios, nem pensar em “anjos” ou semideuses. Havia distinção
e hierarquia entre os deuses – sexo, poder, função, moradia –, mas todos
eram igualmente divinos. Embora compartilhassem características com os
seres humanos e os animais não-humanos, deuses e deusas não eram
“criaturas”. Mesmo sem a crença em um dualismo metafísico (a existência
do bem e do mal como princípio eterno), as divindades não eram “huma-
nas” nem “animais”; eram “deuses”, mas possuíam características muito
semelhantes às da vida humana. Por exemplo: (a) os deuses eram corpó-
reos e sexuados, assim, praticavam sexo, se alimentavam, bebiam, via-
javam, moravam; (b) os deuses poderiam morrer, mas nunca ser mortos
por seres humanos, apenas deuses poderiam matar outros deuses; (c) em
várias religiões, os grandes reis do passado distante assumiam caracte-
rísticas próximas às dos deuses: elevada estatura, poder superior, viviam
mesmo após a morte.
Pode-se perceber, ao longo da história antiga, um crescente distan-
ciamento conceitual entre criaturas e deuses, os quais se tornavam mais
inescrutáveis, distantes. Semelhantemente, apesar da não redução do
número de deuses, constata-se a diminuição de divindades que concreta-
mente afetam a vida cotidiana das pessoas. Assim, embora se possa falar

23
FATIPI EAD Guia de Estudos

na crença em mais de dois mil deuses na antiga Babilônia, em termos


práticos, apenas uns poucos de fato eram adorados e importavam para
as pessoas. Devemos levar em consideração também o fato de que havia
forte distinção entre a forma ”oficial” da religião, conforme construída e
praticada pelos reis e pelos sacerdócios, e a forma “popular” de religião,
conforme construída e praticada pelas famílias dos povos.
Deuses e deusas eram, de algum modo, responsáveis pelos eventos
terrenos, de modo que os seres humanos dependiam deles para obter
sucesso no trabalho, na vida, na política etc. Porém, não eram concebi-
dos de modo predominantemente moral – podiam ser arbitrários(as), não
tinham obrigação de responder às orações dos adoradores, mentiam etc.
Em especial, os grandes deuses eram patronos dos reis e de suas con-
quistas militares, de modo que, quando um rei vencia outro, considerava
que o seu deus havia derrotado o deus ou os deuses do rei derrotado.
Uma última característica a ser destacada é a organização do mundo
divino. A pluralidade de deuses vivia sob a forma de uma organização
hierárquica, similar à estruturação hierárquica das cidades-estado, com
um deus-rei supremo e uma variedade de graus hierárquicos, com deu-
ses mais importantes e deuses menos importantes. Essa organização nos
ajuda, por exemplo, a entender os relatos de criação do mundo entre os
povos vizinhos de Israel. Em vários desses relatos cosmogônicos (sobre
a origem do universo), a criação do mundo é creditada a uma revolta de
deuses subalternos, obrigados a servir os deuses superiores, revolta na
qual um ou mais deuses morrem em batalha. Para resolver o problema de
deuses se matando, aqueles mais elevados, usando restos mortais de um
deus morto (depois ressuscitado), criaram o mundo e tudo o que nele há.
Como os deuses não habitam neste mundo, criaram os reis à sua imagem
– assim, os seres humanos foram criados para servir aos deuses, e sua
submissão ao rei humano é a prova da submissão às divindades.
Cada país ou região possuía os seus próprios deuses e, de modo ge-
ral, cada deus estava ligado a uma cidade ou local, a um rei ou a um

24
BÍBLIA Introdução ao AT

templo específico. Assim, por exemplo, nas cidades de Canaã no período


bíblico se acreditava em Baal como deus supremo, mas nos textos antigos
encontramos várias formas de Baal, em diferentes cidades ou templos:
Baal de Temã, Baal-Berit etc. Para os israelitas, esta crença politeísta re-
presentava um constante desafio, e o número muito grande de advertên-
cias contra a idolatria – tanto no Pentateuco, como nos Profetas – mostra
que a crença em YHWH como o Deus único de Israel não era aceita de
modo integral pelo povo judeu.

3.2.2. A mediação da presença divina no Antigo Oriente

• O rei como mediador


No Antigo Oriente Próximo, região onde se situava Israel, era costume
considerar que os reis exerciam função de mediadores entre a divindade
e o povo. Exerciam esse papel porque os reis eram considerados, nas
teologias dos vizinhos de Israel, portadores da imagem dos deuses na
Terra, ou seja, eles eram tidos como representantes dos deuses na Terra.
Por isso, obedecer ao rei equivalia a obedecer aos deuses.
Na Babilônia, por exemplo, uma das formas religiosas principais para
indicar essa função de mediação do rei era a realização do Festival do Ano
Novo, uma celebração da “morte e ressurreição” de um deus, antes da cria-
ção do mundo, que servia para renovar a fertilidade do solo, dos animais e
dos seres humanos. Nesse festival, o rei desempenhava o papel do deus
que morria e ressuscitava. Durante um dia, ele ficava recolhido em seus
aposentos – como se o deus estivesse morto – e dava-se liberdade para as
pessoas festejarem como quisessem (uma espécie de carnaval religioso).
No dia seguinte, o rei voltava ao lugar público e reocupava o seu trono,
simbolizando a ressurreição do deus morto e sua soberania sobre a Terra.
Em Israel não havia uma celebração desse tipo. Os judeus não criam
que Deus devesse morrer e ressuscitar para criar e governar o mundo.
Entretanto, acreditavam que o rei desempenhava o papel de mediador

25
FATIPI EAD Guia de Estudos

entre Deus e o povo. Vejamos dois Salmos que descrevem esse papel
mediador do rei em Israel.

Salmo 2: Por que se enfurecem os gentios e os povos imagi-


nam coisas vãs? Os reis da terra se levantam, e os príncipes
conspiram contra YHWH e contra o seu Ungido, dizendo: Rom-
pamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas. Ri-
-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles. Na sua
ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.
Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião.
Proclamarei o decreto de YHWH: Ele me disse: Tu és meu Fi-
lho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por
herança e as extremidades da terra por tua possessão. Com
vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de
oleiro. Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir,
juízes da terra. Servi a YHWH com temor e alegrai-vos nele
com tremor. Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais
no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.
Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.

No verso 2, o rei é descrito como o ungido de YHWH, aquele que


recebeu diretamente de Deus a missão de governar e, assim, se tornou
“meu rei” (v. 6). Note os versos em itálico: conforme o Salmo, YHWH é que
constitui o rei para governar sobre toda a Terra. Nos versos 9ss há uma
advertência aos demais reis da Terra: se não forem obedientes ao rei de
Israel, receberão a ira de YHWH.
Vejamos agora o Salmo 72:

Salmo de Salomão. Concede ao rei, ó Deus, os teus juízos e a


tua justiça, ao filho do rei. Julgue ele com justiça o teu povo e
os teus aflitos, com equidade. Os montes trarão paz ao povo,
também as colinas a trarão, com justiça. Julgue ele os aflitos do
povo, salve os filhos dos necessitados e esmague ao opressor.
Ele permanecerá enquanto existir o sol e enquanto durar a lua,

26
BÍBLIA Introdução ao AT

através das gerações. Seja ele como chuva que desce sobre a
campina ceifada, como aguaceiros que regam a terra. Floresça
em seus dias o justo, e haja abundância de paz até que cesse
de haver lua. Domine ele de mar a mar e desde o rio até aos
confins da terra. Curvem-se diante dele os habitantes do deser-
to, e os seus inimigos lambam o pó. Paguem-lhe tributos os reis
de Társis e das ilhas; os reis de Sabá e de Sebá lhe ofereçam
presentes. E todos os reis se prostrem perante ele; todas as
nações o sirvam. Porque ele acode ao necessitado que clama
e também ao aflito e ao desvalido. Ele tem piedade do fraco e
do necessitado e salva a alma aos indigentes. Redime a sua
alma da opressão e da violência, e precioso lhe é o sangue
deles. Viverá, e se lhe dará do ouro de Sabá; e continuamente
se fará por ele oração, e o bendirão todos os dias. Haja na terra
abundância de cereais, que ondulem até aos cimos dos mon-
tes; seja a sua messe como o Líbano, e das cidades floresçam
os habitantes como a erva da terra. Subsista para sempre o
seu nome e prospere enquanto resplandecer o sol; nele sejam
abençoados todos os homens, e as nações lhe chamem bem-
-aventurado. Bendito seja o SENHOR Deus, o Deus de Israel,
que só ele opera prodígios. Bendito para sempre o seu glorioso
nome, e da sua glória se encha toda a terra. Amém e amém!
Findam as orações de Davi, filho de Jessé.

Aqui a ênfase inicial recai sobre o papel do rei como aquele que, em
nome de Deus e em seu lugar, faz a justiça acontecer – libertando os opri-
midos – e o povo de Deus ser abençoado. Libertar, fazer justiça e aben-
çoar são ações do próprio Deus, de modo que a atribuição ao rei dessas
funções indica que ele age em nome de Deus na Terra. Na segunda
parte do Salmo, se repete a ideia de que o rei, como mediador de YHWH,
governará todas as nações e crescerá em prosperidade.

• O sacerdote como mediador


Como vimos brevemente, no Pentateuco o rei não é descrito como

27
FATIPI EAD Guia de Estudos

mediador entre Deus e o seu povo. De fato, há duas noções de mediação:


uma é a do rei, outra a do profeta “semelhante a Moisés” (Dt 18.9-22), que
é quem ensinará Israel a ser fiel a YHWH:

O Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de


teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás, segundo tudo o
que pediste ao Senhor, teu Deus, em Horebe, quando reunido
o povo: Não ouvirei mais a voz do Senhor, meu Deus, nem mais
verei este grande fogo, para que não morra. Então, o Senhor
me disse: Falaram bem aquilo que disseram. Suscitar-lhes-ei
um profeta do meio de seus irmãos, semelhante a ti, em cuja
boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu
lhe ordenar. De todo aquele que não ouvir as minhas palavras,
que ele falar em meu nome, disso lhe pedirei contas.

Note que no mesmo capítulo, nos versos 1-8, o texto fala dos sacerdotes
levitas e diz que eles “ministram” em nome de Deus, mas não exercem o
papel de mediadores. De fato, nem mesmo o profeta é um mediador pro-
priamente dito. Profeta e sacerdotes são porta-vozes da Palavra de YHWH.
A presença de YHWH entre seu povo não é mediada por seres humanos,
mas pelo próprio nome de YHWH, que é a presença de Deus no culto: “mas
buscareis o lugar que o Senhor, vosso Deus, escolher de todas as vossas
tribos, para ali pôr o seu nome e sua habitação; e para lá ireis” (Dt 12,5).
No livro de Levítico, o sacerdote é a pessoa consagrada a Deus para
servi-Lo e para representar o povo perante Ele: “o sacerdote é santo a
seu Deus” (Lv 21,7). Não há uma descrição detalhada da natureza do
sacerdócio em Levítico, mas, sim, a descrição das atividades sacerdotais:
apresentar sacrifício, orar, interceder, ensinar e purificar. São funções de
representação: o sacerdote representa o povo diante de Deus. Em certo
aspecto, o sacerdote é um intermediário entre o povo e Deus – mas não no
sentido que se dava à mediação real. A presença de Deus não é mediada
pelo sacerdote: Ele está presente na forma de sua glória e se coloca na

28
BÍBLIA Introdução ao AT

Sua casa sempre que deseja. Não há textos que descrevam o papel do
sacerdote como aquele que “traz” Deus à comunhão com o Seu povo.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA



Ufa! Muita informação resumida, não é? Certamente você está com
muitas perguntas e dúvidas em sua mente. Não se preocupe. Estes co-
nhecimentos gerais são necessários para você situar-se melhor no estudo
da introdução ao Antigo Testamento. É claro que, se você deseja conhe-
cer essa história, é preciso consultar os livros especialmente dedicados a
esse tema. O pouco que vimos até agora, porém, já serve de alerta: se
desejamos conhecer a história de Israel, precisaremos ler o Antigo Tes-
tamento com muito mais atenção do que costumamos fazer, bem como
precisamos prestar atenção a detalhes que normalmente ficam ocultos
em leitura de ênfase mais devocional ou teológica. Semelhantemente,
precisamos prestar atenção aos confrontos teológicos dentro dos próprios
livros do Antigo Testamento, que revelam as posições de diferentes gru-
pos sociais ao longo da história israelita. O hábito de uniformizar os textos
bíblicos para construir doutrinas não nos ajudará a estudar a história de
Israel. Não se trata de mudar doutrinas, mas de mudar hábitos. Não se
trata de depreciar o Antigo Testamento enquanto Palavra de Deus, mas de
enxergar aspectos que não costumávamos enxergar no testemunho bíbli-
co. Se formos insistentes, disciplinados e curiosos, o estudo da introdução
ao Antigo Testamento, com todas as dificuldades que pode criar para nos-
sos conhecimentos, servirá também como fonte de crescimento espiritual.

29
Módulo 2

Estudando a Torá (Pentateuco)


BÍBLIA Introdução ao AT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Que bom que você está de volta! Iniciamos o segundo módulo de nos-
sa disciplina de Introdução Histórico-Literária ao Antigo Testamento. Nes-
te módulo iremos estudar os cinco primeiros livros do Antigo Testamento,
conhecidos como Torá (pelos judeus) e como Pentateuco (pelos cristãos).
Como vimos no estudo do cânon, a Torá é a parte mais importante da
Bíblia para os judeus, até hoje. Assim, é importante que tenhamos pelo
menos uma visão geral dos conteúdos da Torá para que possamos co-
nhecer bem a nossa Bíblia e estabelecer prioridades em nossas crenças.
Como esta é uma disciplina introdutória, não poderemos entrar em
detalhes de todos os livros da Torá, mas estudaremos as principais for-
mas literárias em que o texto foi elaborado e alguns de seus conteúdos
teológicos principais.
Assim, vamos aos objetivos deste Módulo. Ao final do estudo você
deverá ser capaz de:

1. Explicar a diferença entre textos narrativos e textos normativos;


2. Descrever os principais conteúdos das narrativas de origem e das
narrativas de opressão e libertação na Torá;
3. Explicar o modo como devemos entender os textos normativos da
Torá, especialmente no tocante à relação entre Lei e Graça;
4. Explicar a teologia sacerdotal do Pentateuco e sua visão da identi-
dade do povo de Deus, e
5. Explicar a teologia deuteronômica do Pentateuco e sua visão da
identidade do povo de Deus.

INTRODUÇÃO

A Torá é composta de cinco “livros” (daí o nome, derivado do idioma


grego, Pentateuco), cujo conteúdo está dividido basicamente em dois ti-

31
FATIPI EAD Guia de Estudos

pos de textos: narrativos (contam histórias) e normativos (estabelecem


normas, leis e diretrizes), que fazem parte da estruturação narrativa do
conjunto. Do ponto de vista temático, o Pentateuco é essencialmente uma
grande narrativa sobre a identidade de Israel como povo de YHWH (estas
são as consoantes do nome hebraico de Deus. Como não sabemos ao
certo a pronúncia, usarei esta forma nestes textos). Nosso estudo do Pen-
tateuco será baseado em três temas que se complementam. O primeiro
enfoca os principais temas presentes nas narrativas da Torá. No segundo,
abordaremos os principais temas dos textos normativos. No terceiro, en-
fim, voltaremos nosso olhar para o conjunto da Torá e examinaremos seu
papel na constituição da identidade do povo de Deus.

conceito

A forma Jeová, sabe-se hoje em dia, é um equívoco de


leitura. Na língua hebraica as palavras são escritas sem
as vogais; os escribas judeus que indicaram como o texto
bíblico devia ser lido acrescentaram às consoantes YHWH
as vogais da palavra Adonai (meu Senhor) – de modo que
sempre que aparecesse YHWH o leitor falasse Adonai, a fim
de não pronunciar o nome de Deus em vão. A forma Jeová
deriva do não conhecimento dessa regra dos massoretas
(escribas judeus responsáveis pela transmissão do texto
hebraico da Bíblia, cuja forma do século XI d.C. é usada
como base para as traduções bíblicas atuais).

Narrativas de origens (Gênesis)


Narrativos
Narrativas de opressão e libertação (Êxodo e Números)

32
BÍBLIA Introdução ao AT

Lei da Aliança (Êxodo)


Normativos Lei da Santidade (Levítico)
Lei Deuteronômica (Deuteronômio)

1. SEÇÕES NARRATIVAS DA TORÁ


1.1. Narrativas de origens

No livro de Gênesis encontramos dois blocos de textos narrativos


que abordam dois grandes temas: a origem do mundo e da civilização
(caps. 1-11). Eles contam, de forma semelhante ao épico babilônico
Enuma Elish (‘Acima, do alto’), sobre o tempo entre a criação e a história
de uma família e a origem de Israel (Gn 12-50) -- a história de três ge-
rações de pais e mães de Israel (12-25 Abraão e Sara; 26-36 Isaque e
Rebeca; e Jacó e Raquel/Lia 37-50). Quando lemos com atenção esses
textos, percebemos que alguns episódios são narrados mais de uma
vez. Por exemplo: (1) há duas narrativas da criação, uma em Gn 1,1-
2,4a (“Eis as origens dos céus e da terra, quando foram criados” é a
parte a. de 2,4; “No dia em que o Senhor Deus fez a terra e os céus”
é a parte b.) e a outra em 2,4b-3,24; (2) duas vezes Abraão nega que
Sara seja sua esposa (12,10-20 e 20,1-18), assim como uma vez Isaque
nega que Rebeca seja sua esposa (26,1-12). Se prestarmos bastante
atenção à narrativa sobre o Dilúvio (Gn 6-9), veremos que há textos
com repetições internas. Por exemplo: (1) a introdução à narrativa em
6,1-12 oferece duas explicações para o dilúvio: a primeira (5-8) fala da
“maldade” humana e usa o nome YHWH em referência a Deus; a se-
gunda (9-12) é uma introdução à “história de Noé”, fala da “perversão”
e da “violência” da humanidade e usa o termo Elohim para se referir a
Deus; (2) Gênesis 9 pode ser subdividido em 1-17+28-29 e 1,18-27. Nos

33
FATIPI EAD Guia de Estudos

versículos 18-27 encontramos um relato centrado nos filhos de Noé que


veem a embriaguez de seu pai; em 1-17 e 28-29 o relato sobre a família
de Noé é centrado no tema da aliança de Deus com Noé “e seus filhos”,
que não têm sequer o nome mencionado.
Há pelo menos três maneiras de lidar com esse tipo de fenômeno,
que é comum em toda a Torá e não só no livro de Gênesis. A primeira
maneira pode ser chamada de ingênua, pois simplesmente não percebe
a existência desses fenômenos e vê o texto como uma unidade simples,
sem quaisquer tensões temáticas ou teológicas. A segunda é chamada
de histórico-crítica e usa esse tipo de fenômeno para tentar descobrir as
diferentes origens orais, tradições e fontes escritas usadas para a redação
dos livros da Torá e foca a interpretação não na forma final dos livros, mas
primariamente nas reconstruções hipotéticas dessas fontes. A terceira,
que adoto aqui, pode ser chamada de literário-canônica a qual, perceben-
do os fenômenos acima descritos, busca entender os livros em sua forma
final canônica, já demonstrando unidade teológica, mas não uma unidade
simples, e sim uma unidade complexa, plural.
Percebido este fenômeno, importa prestar atenção à mensagem de
Gn 1-11. Este pequeno conjunto de onze capítulos, estrategicamente
colocado no início da Bíblia, dá o tom para toda a teologia do Antigo
Testamento. Os temas que se destacam são: (1) YHWH, o único Deus
de Israel, é o criador de todo o mundo, e não se subordina a nenhum dos
deuses cridos pelas nações antigas vizinhas de Israel. Como criador,
o Deus de Israel é abençoador de toda a Sua criação sobre a qual ele
colocou o ser humano como guardião e Seu representante (o sentido
básico da expressão imagem e semelhança de Deus) (caps. 1-3); (2)
apesar da bondade do Criador, o ser humano abençoado por Ele não foi
fiel à sua vocação e permitiu que o pecado e a violência tomassem conta
da vida humana pessoal, social, cultural e religiosa (caps. 3-5); por isso,
Deus quase destruiu toda a criação no dilúvio, mas, como demonstra-
ção de sua bondade e fidelidade, doou à criação uma segunda chance

34
BÍBLIA Introdução ao AT

(caps. 6-9); (3) o ser humano continuou sua trajetória de infidelidade a


Deus e de prática da violência contra o seu próximo, por isso Deus mais
uma vez interferiu, dispersando a humanidade e confundindo as suas
línguas – mas deixou uma família como responsável pelo anúncio da
bênção divina (caps. 10-11).

A criação revela a beleza de Deus

A criação quase destruída pela violência

A criação ameaçada pela violência

1.2. Narrativas de opressão e libertação


1.2.1. Opressão e libertação do Egito (Êx 1-15)

O segundo tipo de narrativas no Pentateuco são as que tratam da opres-


são e da libertação de Israel. Êxodo 1-15 (a única seção do Pentateuco
que não tem uma narrativa paralela) descreve a opressão dos “filhos de
Israel” no Egito, o seu clamor a YHWH, o chamado de Moisés, a saída
do Egito sob sua liderança e a manifestação do poder de YHWH. Uma
característica importante desse relato é a identificação dos “filhos de
Israel” como hebreus. Esta palavra, que vem do aramaico hapiru, refe-
ria-se a grupos de pessoas que não viviam sob o domínio das cidades-
-estados, fossem seminômades, fossem mercenários, fossem fugitivos.
Quando se refere ao povo de Deus, o termo hebreu é usado quando se
quer destacar a fragilidade, a marginalização ou o sofrimento do povo
(1 Sm 4:6,9; 13:13,19; 14:11,21; 29:3; Gn 14:13; 39:14; 40:15; 43:32;
Dt 15:12; Jr 34:9). Somente no livro do Êxodo, em todo o Antigo Testa-
mento, YHWH é chamado de Deus dos Hebreus (3:18; 5:3; 7:16; 9:1,13;
10:3), ou seja, o Deus que se identifica solidariamente com as vítimas da
opressão. Javé, antes de ser Deus de uma etnia, é o Deus de oprimidos

35
FATIPI EAD Guia de Estudos

e marginalizados, qualquer que seja a etnia (Is 19,24-26; Am 9,7; Rt; Jn;
Gn 12,1-4).

Fome YHWH desceu


Opressão subir

hebreus
EGITO clamor ÊXODO

Porém, muito mais do que contar como foi a vida e a saída do povo he-
breu do Egito, a narrativa de Êxodo 1-15 tem como objetivo estabelecer a
identidade de Israel e a sua relação com YHWH. Nesta bela narrativa, Israel
é descrito como um povo pequeno e frágil, que sofre nas mãos de nações
poderosas, mas é auxiliado por seu Deus, que tem como característica
principal ser um poderoso libertador. YHWH, o Deus de Israel, Deus dos
hebreus, não é como os deuses dos povos vétero-orientais, que moram
nos templos do rei ou do sacerdócio. YHWH mora em montanha, no Si-
nai, que está fora do território dos países poderosos do Antigo Oriente.
Quando olhamos para a história de Israel contada na Bíblia, percebemos
que na maior parte do tempo o povo de Deus foi dominado por impérios
estrangeiros – Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia, Roma. Em
contraposição aos reinos opressores humanos, Êx 1-15 anuncia o reinado
de YHWH, Deus libertador, que não se alia com os poderosos, mas com
os humildes e contritos.

1.2.2. Travessia do deserto (Êx 15-18; Nm 10-36)

Logo após a libertação do Egito, porém, o povo de Israel se vê em

36
BÍBLIA Introdução ao AT

dificuldades e não consegue ser fiel ao seu Deus libertador. Êx 15-18 e


Nm 10-36 são narrativas paralelas que intencionam apresentar os filhos
de Israel como um povo desobediente ao seu Deus, saudoso da vida sob
a opressão egípcia. O Deus de Israel é apresentado, em contrapartida,
como um Deus paciente, misericordioso, que não abandona seu povo
mesmo quando esse povo não lhe é fiel: “Depois disse Moisés a Arão:
Dize a toda a congregação dos filhos de Israel: Chegai-vos à presença do
Senhor, porque ele ouviu as vossas murmurações. E quando Arão falou
a toda a congregação dos filhos de Israel, estes olharam para o deserto,
e eis que a glória do Senhor apareceu na nuvem. Então o Senhor falou
a Moisés, dizendo: Tenho ouvido as murmurações dos filhos de Israel;
dize-lhes: ao crepúsculo da tarde comereis carne, e pela manhã vos farta-
reis de pão; e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus” (Êx 16,9-12). O
tempo da teimosia rebelde dos filhos de Israel no deserto é retratado como
tempo de aprendizado. Note como no verso 12, acima, temos uma frase
típica do livro de Ezequiel: “sabereis que eu sou YHWH, vosso Deus”.
Outro grande tema destas narrativas é a organização do povo de
Deus. Em Êx 18 Moisés aprende com Jetro, seu sogro, como delegar
tarefas e organizar o povo em grupos com líderes locais e regionais.
Este era um elemento típico da mentalidade israelita (e vétero-oriental
em geral): os tempos antigos serviam como modelo para a história e a
vida do povo. Israel projetou para o passado anterior à vida na terra um
modelo justo e equitativo de organização social – sem rei, mas sob lide-
rança de YHWH, que dá instrução (Torá) a seu povo, através de Moisés,
o grande profeta dos israelitas. Esses textos nos ajudam a entender
textos de Samuel e Reis que mostram, de forma ambígua, como a mo-
narquia entrou na vida de Israel de modo contrário à vontade de YHWH
(1 Sm 8; 2 Sm 7; 1 Rs 12). Sendo o povo de um Deus libertador, Israel
não pode se estruturar de modo parecido com o modo de organização
dos povos vizinhos, centrados no rei e na opressão dos camponeses e
suas famílias.

37
FATIPI EAD Guia de Estudos

Enfim, essas narrativas da travessia do deserto também servem para


ensinar ao povo de Israel como YHWH deu a sua Lei e como o povo tei-
mou em não obedecer à lei de seu Deus. O Sinai é o monte da morada
de Deus e da revelação da Lei a Moisés. Fora da terra prometida, fora do
território dos poderosos países do antigo Oriente, o Sinai indica a liberda-
de e a soberania de YHWH em relação a todos os povos e nações antigos.
A história de Israel contada nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis é
estruturada ao redor da soberania misericordiosa de YHWH e da rebelde
teimosia do povo de Israel, que não consegue seguir a vontade do seu
Deus libertador, mas volta sempre “às panelas do Egito”.

1.2.3. Retrospectiva histórica (Dt 1-3)

O último bloco de textos narrativos no Pentateuco encontra-se em


Deuteronômio 1-3. O livro do Deuteronômio é estilizado como um grande
conjunto de pregações de Moisés e de coletânea das instruções (leis) de
YHWH. Essa estrutura é similar a de antigos tratados entre nações orien-
tais, especialmente tratados assírios. Essas convenções, chamadas de
tratados de vassalagem (subordinação), ou de suserania (soberania), ser-
viam para estabelecer o modo de relacionamento entre um país poderoso
e um país inferior, a fim de que o país poderoso não invadisse e conquis-
tasse o inferior. Uma das seções desses documentos era uma espécie
de retrospectiva histórica das relações entre os povos que assinavam o
tratado. Os três primeiros capítulos de Deuteronômio são estilizados como
esse tipo de retrospectiva histórica.
É um relato relativamente breve. Trata apenas da história do povo de
Israel no deserto, entre o êxodo e a entrada na terra prometida por YHWH.
Na forma de um grande discurso de Moisés, esses capítulos não só re-
velam a ambiguidade do povo de Deus em relação à lei de YHWH mas,
principalmente, mostram como a revelação da Torá ao seu povo é feita
fora da terra, às portas da terra prometida. Neste sentido, Dt 1-3 reafirma a

38
BÍBLIA Introdução ao AT

temática da liberdade e da soberania de YHWH presente nas narrativas do


deserto em Êxodo e Números. No capítulo 3, o texto destaca que Moisés
não pode entrar na terra (3,26-28) por causa do pecado do povo. Caberia
a Josué, sucessor de Moisés, liderar o povo na entrada na terra, tema que
é tratado no livro de Josué, o primeiro logo após o Deuteronômio. Antes
de entrar na terra o povo é chamado a fazer uma aliança com seu Deus
YHWH, a fim de submeter-se a Ele. “Chamou, pois, Moisés a todo o Israel,
e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e preceitos que hoje vos falo aos
ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os cumprir. O Senhor nosso
Deus fez um pacto conosco em Horebe. Não com nossos pais fez o Se-
nhor esse pacto, mas conosco, sim, com todos nós que hoje estamos aqui
vivos” (Dt 5,1-3). Este relato mostra que YHWH sempre se coloca diante
de seu povo para ser seu soberano, enquanto o povo sempre tem dificul-
dade em seguir a YHWH. Os livros de Jeremias e Ezequiel, em especial,
destacam esta ambiguidade e, cada um de seu jeito, propõe uma nova
aliança entre YHWH e seu povo. A soberania de YHWH, porém, é radical-
mente distinta da soberania dos reis humanos e dos deuses não-israelitas.
YHWH é libertador e abençoador, não conquistador, nem subordinado aos
reis humanos.

2. SEÇÕES NORMATIVAS DA TORÁ

Na linguagem da igreja ou mesmo da academia teológica, costuma-se


falar das leis do Pentateuco, ou dos seus textos legais, ou até mesmo se
usa o título Código para descrever certos trechos do Pentateuco: Código
da Aliança (Êx19-24), Código da Santidade (Lv 17-26), Código Deutero-
nômico (Dt 12-26). Esse costume, porém, dificulta nossa compreensão
desses textos. Por quê?
Quando chamamos esses textos de leis ou de códigos, pensamos ne-
les como sendo equivalentes às leis e aos códigos de leis de nosso tempo.
Para nós, as leis estabelecem os deveres e os direitos dos cidadãos e

39
FATIPI EAD Guia de Estudos

regem a vida social. Se alguém quebra a lei deve ser punido por isso, e o
Poder Judiciário é o responsável por aplicar a punição. Enquanto leis, pen-
samos nesses textos como se fossem produto ou de uma determinação
direta de Deus que deve ser aplicada em todo e qualquer lugar, em todo e
qualquer tempo; ou, ao contrário, pode-se pensar neles como sendo fruto
da vontade humana, de modo que poderíamos selecionar as leis válidas
e as leis revogadas.
O maior problema, porém, reside na confusão teológica que surge
do choque entre Lei e Graça na teologia cristã. “Lei” passa a ser en-
tendida como as leis do Antigo Testamento, superadas pela Graça de
Deus, de modo que já não têm mais nenhuma validade para os cristãos.
Esses hábitos de compreensão dos textos normativos do Pentateuco são
prejudiciais à interpretação dos mesmos. Precisamos, então, desenvolver
novos conceitos e hábitos hermenêuticos a fim de compreender esses
textos. Este será o tema da nossa sequência.
Os antigos judeus chamavam os seus textos normativos de torá.
Esta palavra hebraica significa, em primeiro lugar, instrução, ensina-
mento. Quando a torá vem de Deus, ela é um ensinamento com autori-
dade, cumpre uma função normativa. Uma norma não é a mesma coisa
que uma lei, embora ambas sejam muito parecidas. Todas as leis são
normas, mas nem todas as normas são leis. Lei é um tipo de norma que,
estabelecida pelo Estado, deve ser obedecida por todos os cidadãos
desse Estado, sob pena de punição. Lei é, em sentido mais amplo, o
conjunto de leis que definem a identidade político-jurídica de um país, e
que encontra na Constituição a sua expressão máxima. As normas são
guias para a conduta e os relacionamentos humanos, e a maioria delas
não está escrita, nem faz parte de um conjunto de leis de uma nação
ou Estado. Normas, nesse sentido mais genérico, são um componente
da cultura de um povo, enquanto leis são um componente da estrutura
política de um país.
A torá (no plural hebraico: torôth) no Pentateuco é da natureza das

40
BÍBLIA Introdução ao AT

normas e não das leis! Ou seja, as torôth que encontramos no Pentateuco


não foram estabelecidas pelo Estado para servir de base para o julgamen-
to de pessoas e instituições sociais. Quando ocorriam crimes, por exem-
plo, não havia um sistema de tribunais, semelhante ao nosso, nos quais
os criminosos eram julgados. Os crimes eram julgados por “leigos”, por
pessoas importantes de uma vila ou cidade, que se reuniam apenas quan-
do necessário e tomavam suas decisões com base nos hábitos culturais
ou nas normas daquela vila ou cidade. Casos que não conseguiam ser
resolvidos no ambiente local eram enviados para o templo ou para o pa-
lácio, a fim de que os sacerdotes ou o rei tomassem a decisão de acordo
com a instrução (torá) de Deus. O relato de 1 Rs 3,16-28 (quando Salomão
ameaça dividir uma criança ao meio) é um exemplo da sabedoria superior
do rei para lidar com situações difíceis – note que o rei não usa nenhum
“código legal” para basear a sua decisão.
As coleções de normas no Pentateuco, embora muito parecidas com
códigos legais, cumpriam, de fato, outras funções:
(a) serviam como coleções de ensinamento para os líderes políticos e
religiosos do povo de Israel;
(b) serviam como textos didáticos para escribas e outros funcionários
do templo e do palácio;
(c) serviam para demonstrar a grandeza do Deus de Israel, que não
era como os outros deuses dos povos antigos;
(d) sua função mais importante, porém, era a de, juntamente com os
textos narrativos do Pentateuco, definir a identidade do povo de Israel a
partir da sua compreensão da ação e da vontade de Deus expressas na
aliança entre Ele e Seu povo.
Precisamos, então, compreender os textos normativos como instrução,
ensino ou teologia, e não mais como leis. São normas teológico-culturais
que visam a instruir o povo de Deus à prática da fidelidade à aliança entre
YHWH e Seu povo. Como os textos normativos fazem parte da narrativa
do Pentateuco sobre a identidade de Israel, eles não são lei no sentido do

41
FATIPI EAD Guia de Estudos

debate teológico-eclesiástico, mas expressão da graça de Deus. Em outras


palavras, Israel não se tornaria povo de Deus, se cumprisse as leis; Israel
tornou-se povo de Deus pela Sua graça libertadora no êxodo e na promessa
da Terra. As normas divinas vieram depois da libertação divina. Repare bem
no seguinte texto bíblico: “Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo:
Eu sou YHWH teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escra-
vidão. Não terás outros deuses diante de mim. (...)” (Êx 20,1-3).
Antes da lista de normas (v. 3-17) para a vida do povo de Deus, vem
a declaração da graça – “que te fez sair”. Note, ainda, como o texto define
no verso 1 o que nós chamamos erradamente de “Dez Mandamentos”:
“todas estas palavras”. Deveríamos, então, chamar este famoso texto de
Decálogo (Dez Palavras) e não de dez mandamentos, posto que, embora
tenham força normativa, não são leis, mas a instrução de Deus para nós
que cremos nEle.
Note bem, agora, outro texto: “Eis que vos ensinei estatutos e nor-
mas, conforme YHWH meu Deus me ordenara, para que os ponhais
em prática na terra em que estais entrando, a fim de tomardes posse
dela. Portanto, cuidai de pô-los em prática, pois isto vos tornará sábios
e inteligentes aos olhos dos povos. Ao ouvir todos esses estatutos, eles
dirão: ‘Só existe um povo sábio e inteligente: é esta grande nação!’. De
fato! Qual a grande nação cujos deuses lhe estejam tão próximos como
YHWH nosso Deus, todas as vezes que o invocamos? E qual a grande
nação que tenha estatutos e normas tão justas como toda esta Torá que
eu vos proponho hoje?” (Dt 4,5-8).
Repare no primeiro verbo do texto: ensinei! Os estatutos e as normas
da Torá são o ensinamento de Moisés ao povo de Israel. A finalidade do
ensino é que o povo de Deus, após entrar na terra prometida, (a) mante-
nha a posse dela, (b) seja reconhecido como um povo sábio e inteligente,
(c) cujo Deus é um Deus próximo, amigo do povo, o Deus da aliança. Mais
uma vez temos a sequência: graça libertadora de Deus – promessa – en-
sino – prática do que foi ensinado.

42
BÍBLIA Introdução ao AT

em síntese

Os textos normativos do Pentateuco devem ser estudados


e compreendidos como ensino de Deus para nós, não
podem ser separados de seu contexto narrativo, não devem
ser lidos como Lei em contraste com a Graça. As normas
veterotestamentárias são normas da graça, são expressão
da fidelidade de Deus em relação ao seu povo e da fidelidade
que Deus deseja que seu povo tenha para com Ele.

3. A IDENTIDADE DO POVO DE DEUS NA TORÁ

Temos no Pentateuco duas grandes formas distintas e complementa-


res de descrever a identidade do povo de Deus. Essas formas não abran-
gem todos os textos do Pentateuco, mas oferecem uma síntese da teolo-
gia dos primeiros livros da Bíblia.

3.1. A teologia sacerdotal na Torá

Por teologia sacerdotal entende-se, na tradição acadêmica de estudos


bíblicos, o conjunto de temas e textos do Pentateuco que giram ao redor
dos conceitos de santidade, sacrifício e sacerdócio como mediação entre
o povo e Deus. O livro de Levítico é a parte do Pentateuco que expressa
com mais profundidade a teologia sacerdotal, embora essa teologia seja
encontrada também em trechos de Gênesis, Êxodo e Números. Dentre
os vários temas importantes da teologia sacerdotal, nosso foco de estudo
recairá sobre o conceito de santidade. Preste bastante atenção ao se-
guinte texto, fundamental para a compreensão da santidade na teologia
sacerdotal: “Pois sou eu, YHWH, o vosso Deus. Fostes santificados e vos

43
FATIPI EAD Guia de Estudos

tornastes santos, pois que eu sou santo; não vos tornei, portanto, impuros
com todos esses répteis que rastejam sobre a terra. Sou eu YHWH que
vos fiz subir da terra do Egito para ser o vosso Deus: sereis santos, porque
eu sou santo” Levítico 11,44-45 (compare com Lv 19,2; 22,31-33).
A santidade do povo de Deus depende da santidade de Deus. YHWH
é um Deus santo e seu povo, necessariamente, precisa ser santo. Em que
consiste a santidade de YHWH? Em primeiro lugar, santidade significa a
peculiaridade de YHWH – Ele é um deus diferente de todos os demais
deuses –, por isso Israel é convocado a não ter nenhum outro deus diante
de YHWH. Como consequência de Sua peculiaridade, YHWH é um deus
exaltado acima dos demais deuses, Ele está acima de todos os poderes,
humanos ou sobre-humanos, que tenham existido ou que possam existir.
Em terceiro lugar, por ser santo, YHWH é um Deus exigente – não aceita
ser profanado por nada nem por ninguém –, a sua santidade é inviolá-
vel. Em quarto lugar, YHWH, o santo, santifica o seu povo – oferece a
seu povo participação na Sua santidade. Enfim, sendo peculiar e exaltado
acima de todos os poderes, YHWH é um deus transcendente – Ele não
sofre as limitações das coisas criadas --, mas na Sua transcendência Ele
se aproxima do Seu povo e vive em seu meio.
O Deus Santo de Israel aproxima-se do seu povo mediante o ato de
libertação. Como vimos no texto anterior, na Torá a graça de Deus é anterior
à exigência divina. Note a sequência do pensamento em Lv 11,44-45: no
verso 44, primeiro vem a afirmação de que YHWH é o Deus de Israel; a
seguir, a afirmação de que Ele santificou Israel e, enfim, a exigência de que
Israel não se torne impuro. A sequência é repetida no verso 45: YHWH liber-
tou Israel do Egito, por isso exige de seu povo que seja santo como Ele mes-
mo é santo. Mediante a ação libertadora, YHWH realiza uma aliança com o
povo liberto, fazendo-se Seu Deus e tornando aquele povo o Seu povo. O
agir de Deus torna mais concreta a nossa compreensão da peculiaridade de
YHWH: Ele é diferente de todos os demais deuses, porque somente Ele é
um Deus libertador, um Deus que socorre o necessitado e o oprimido.

44
BÍBLIA Introdução ao AT

Por fim, podemos descrever a exigência de santidade a partir do


caráter e do agir de YHWH. O povo de YHWH deve manifestar, em sua
vida cotidiana, a santidade de Deus. Sendo o Santo um Deus liberta-
dor, o seu povo precisa ser um povo que vive em liberdade. Povo livre
é aquele que não se deixa escravizar pelas seduções do egoísmo, do
dinheiro e do poder. Povo livre é aquele que pratica a solidariedade,
socorre o necessitado e o oprimido. Povo santo e livre é aquele que,
recusando-se ser igual aos demais povos, não se afasta deles, mas se
aproxima para oferecer a palavra da santidade libertadora do seu Deus.
Quando o povo de Deus se comporta de maneira egoísta, indiferente ao
próximo e idólatra (seguindo deuses feitos por mãos humanas), o nome
de Deus é profanado, a santidade de Deus é turvada e pessoas e povos
que não O conhecem perdem a chance de conhecê-Lo. A exigência de
santidade é, portanto, exigência de testemunho ao mundo. No livro do
Êxodo a presença da teologia sacerdotal da santidade é intensa na se-
guinte descrição da identidade do povo de YHWH: “Vós mesmos vistes
o que fiz aos egípcios, e como vos carreguei sobre asas de águia e vos
trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha
aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos,
porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdo-
tes e uma nação santa” (Êx 19,4-6).

YHWH AGIR Livre


Santo Missionário

Liberta
SER Faz aliança POVO SANTO

45
FATIPI EAD Guia de Estudos

3.2. A teologia deuteronômica na Torá

A teologia sacerdotal na Torá apresenta ênfase principal no conceito


de santidade. Já a teologia deuteronômica tem como conceito central o de
fidelidade a YHWH. Como o próprio nome indica, a teologia deuteronômi-
ca é a que se encontra no livro do Deuteronômio, mas está presente tam-
bém em Gênesis e Êxodo. Duas são as principais diferenças em relação
à teologia sacerdotal: (a) a teologia deuteronômica dá pouca atenção aos
rituais sacrificiais e ao papel do sacerdócio (não há nada em Deuteronômio
parecido com Levítico 1-10, que descreve detalhadamente rituais e normas
para o sacerdócio); e (b) também dá pouca atenção à regulamentação
da pureza e da impureza, enfatizando mais a prática da Torá do que a
manutenção da pureza pessoal e comunitária. Não há diferença, porém,
na compreensão da santidade de Deus e da sequência graça-exigência.
O povo de YHWH deve ser fiel porque YHWH é fiel e manifestou sua
fidelidade ao libertar os filhos de Israel do Egito. A exigência divina visa ao
bem-estar do seu povo. Entretanto, a teologia deuteronômica dá grande
ênfase à exclusividade de YHWH e descreve a relação da aliança entre
YHWH e Israel como uma relação de amor fiel. Vamos dedicar atenção a
um texto que é fundamental até hoje para a identidade israelita, conhecido
como Xemá (Ouve), Dt 6,4-9.
No primeiro verso do texto encontramos a afirmação fundamental da
fé judaica: YHWH, nosso Deus, YHWH um. Propositadamente mantive a
forma gramatical do texto hebraico “YHWH um” (sem verbo entre o sujeito
e o predicativo do sujeito), que tem recebido diversas interpretações e
traduções. A afirmação YHWH um destaca diferentes dimensões da fé
deuteronômica: (a) YHWH é o único Deus de Israel, no sentido da exclusi-
vidade, ou seja, independentemente de quantos deuses tenham existido
ou possam existir, para Israel há somente um Deus – YHWH. Somente a
Ele Israel adora, somente a Ele Israel é fiel, somente YHWH é a fonte de
vida para Israel; (b) YHWH é um Deus pluralmente singular, no sentido

46
BÍBLIA Introdução ao AT

de que Ele não precisa de outros deuses para repartir as tarefas (no pen-
samento vétero-oriental, os deuses tinham funções especializadas, por
isso era necessário crer em vários deuses que cumpriam essas diferentes
tarefas, tais como guerrear, fazer chover, curar doenças etc.). Como Deus
pluralmente singular, YHWH é suficiente, Israel não necessita de nenhum
outro Deus para atender as suas necessidades, ou seja, YHWH não é um
deus especialista, parcial; e (c) YHWH é o único Deus não feito por mãos
humanas, os demais deuses são ídolos, fabricação de mãos humanas e
não são capazes de agir. O aniconismo da fé israelita não se restringia
apenas à ausência do uso de imagens da divindade, mas era expressão
da sua crença na exclusividade e na singularidade de YHWH. Por outro
lado, a expressão “YHWH nosso Deus” destaca a aliança entre o Senhor
e o povo israelita – aliança de amor, amizade, companheirismo, fidelidade
e soberania de YHWH sobre Israel e a favor de Israel.

conceito

Aniconismo: termo técnico que nomeia o fato de os judeus


não fazerem imagens de seu Deus, seguindo a exortação
do Decálogo. Vem da língua grega: ícone=imagem; a=sem.

Consequentemente, o povo que faz aliança com o fiel e único Deus


é convocado a construir sua identidade a partir do amor a Deus. A
escolha do verbo amar no livro do Deuteronômio tem significado muito
especial. O livro do Deuteronômio adota e adapta o estilo dos tratados
internacionais assírios. Nesses tratados, o rei de um país mais fraco
que se associava ao rei de um país mais forte assumia o compromisso
de amar o rei mais poderoso. Semelhantemente, os juramentos assí-
rios feitos por oficiais que iniciavam seu serviço ao rei assírio faziam a

47
FATIPI EAD Guia de Estudos

mesma exigência: o oficial do rei se comprometia a amar o rei. Assim,


ao convocar Israel a amar YHWH, o Deuteronômio não só destaca a
relação de aliança entre Deus e o povo, como afirma que YHWH é o
único rei de Israel, o único rei a quem Israel deveria ser fiel, o único
rei a quem deveria servir. A repetição da palavra todo(a) e a soma dos
termos coração, alma e força indicam que o compromisso de Israel com
YHWH deveria ser integral. Assim como YHWH é um, o povo de Israel
deveria ser unido em um único propósito: ser fiel a YHWH. O coração
do israelita não poderia se dividir entre seu Deus e outros deuses, entre
YHWH e outras lealdades.
Dessa forma, as palavras de YHWH, sua instrução (torá), deveriam
ocupar o pensamento do israelita o tempo todo, e deveriam ser ensinadas
de geração em geração. Eis aqui a peculiaridade deuteronômica em rela-
ção à teologia sacerdotal – ao invés de enfatizar a santidade e a pureza,
mantidas através da participação na vida litúrgica no templo, a teologia
deuteronômica enfatiza o estudo das palavras de YHWH e sua prática na
vida cotidiana, como demonstração da fidelidade de Israel ao seu único
Deus. Todo o tempo, todas as dimensões da vida, todas as gerações do
povo de Deus são convocadas à meditação, ao estudo e à prática da Torá
de YHWH. Se viver dessa maneira, Israel dará testemunho da singularida-
de e da exclusividade de YHWH a todos os povos.

SACERDOTAL SANTIDADE SADUCEUS

DEUTERONÔMICA LEALDADE FARISEUS

4. A REDAÇÃO DO PENTATEUCO

Para finalizar este estudo, veremos um tema que pode parecer compli-
cado e ameaçador, mas que, quando estudado com tranquilidade, é ape-
nas mais um assunto interessante para construirmos nosso conhecimento

48
BÍBLIA Introdução ao AT

da Palavra de Deus: o processo de redação do Pentateuco. A tradição


judaica e a tradição eclesiástica afirmam que o autor do Pentateuco foi
Moisés. Em um sentido, estão corretas. A questão é: como no contexto do
mundo antigo se entendia a autoria de um texto?
Alguns se preocupam com este tema por pensar que ele pode nos
afastar da fidelidade à Palavra de Deus. Deixo, então, bem claro logo de
início: a Bíblia toda é Palavra de Deus. É Palavra de Deus porque foi
inspirada por Deus, e não porque esta ou aquela pessoa foi o autor ou a
autora de um ou mais livros. Não sabemos, por exemplo, quem escreveu
os livros de Crônicas ou a carta aos Hebreus. Nem por isso os livros são
menos inspirados do que os demais. A inspiração da Bíblia deve nos levar
ao serviço a Deus, e não a uma atitude rígida em relação aos autores dos
livros da Bíblia (cf. 2Tm 3.15ss).

4.1. A noção de autoria no mundo antigo

Nós estamos acostumados a ler livros que são escritos por um (ou
mais) autor(es) cujo(s) nome(s) aparece(m) várias vezes na capa, na
folha de rosto, na página de direitos, na orelha ou contracapa da obra.
Estamos acostumados com a noção de que autor é a pessoa que escreve
o livro e, assim, recebe os direitos autorais pelo trabalho que realizou.
Também estamos habituados a pensar que um livro é escrito por seu autor
“do começo ao fim” em um período específico de tempo, que pode ser de
semanas, meses ou anos. Desenvolvemos, consequentemente, a noção
de plágio, ou seja, de cópia não autorizada dos conteúdos produzidos por
um autor. Nos trabalhos acadêmicos, então, o uso de materiais de outros
autores deve ser destacado com aspas, notas de rodapé e outras formas
de mostrar a introdução do texto de outra pessoa no texto do novo autor.
Assim, autor, para nós, é simultaneamente produtor, autoridade e detentor
de direitos autorais.
Porque estamos acostumados com essa noção de autoria, atribuí-

49
FATIPI EAD Guia de Estudos

mos aos livros da Bíblia a autoria da pessoa que é mencionada no livro


como “autor”. Por exemplo, falamos do livro de Isaías como se o profeta
Isaías tivesse escrito o livro todo; ou, no caso do Pentateuco, atribuímos
sua autoria a Moisés. Fazemos isso porque os livros de Isaías e do
Pentateuco se referem a Isaías e Moisés como autores, fazemos isso
porque textos do Novo Testamento mencionam “livro de Isaías” ou “Lei
de Moisés”, e assim entendemos que Isaías e Moisés foram os autores
desses respectivos livros.
Entretanto, no tempo do antigo Israel, as coisas não eram assim. Para
as sociedades orientais antigas, autor é a pessoa que inicia ou inspira uma
dada obra qualquer. Assim, por exemplo, em Provérbios 1.1: “Provérbios
de Salomão, filho de Davi, o rei de Israel”. Isso nos dá a impressão de
que Salomão escreveu o livro. Mas, vejamos Pv 30.1: “Palavras de Agur,
filho de Jaque, de Massá. Disse o homem: Fatiguei-me, ó Deus; fatiguei-
-me, ó Deus, e estou exausto”. Vejamos também Pv 31.1: “Palavras do rei
Lemuel, de Massá, as quais lhe ensinou sua mãe”. Note que estes dois
autores, Agur e Lemuel, são reis estrangeiros, não israelitas. Por fim, Pv
25.1: “Também estes são provérbios de Salomão, os quais transcreveram
os homens de Ezequias, rei de Judá”. Ezequias viveu mais de um século
depois de Salomão. Estes versos mostram que, em um mesmo livro, há
textos “originais” de mais de um escritor e textos de um escritor que foram
“redigidos” por outros escritores. Isto nos faz concluir que autor, no mundo
israelita antigo, é o iniciador ou o patrocinador financeiro ou moral de uma
obra escrita – que pode ter vários autores e ser escrita em épocas diferen-
tes e em lugares diferentes.

4.2. A escrita do Pentateuco: uma hipótese

Na pesquisa exegética contemporânea, a questão de escrita, reda-


ção e editoração do Pentateuco tem passado por ampla revisão me-
todológica e de conteúdos. O consenso de que há diferentes autores

50
BÍBLIA Introdução ao AT

permanece. O consenso de que há pelo menos duas grandes tradições


teológicas que dominam o Pentateuco (a sacerdotal e a deuteronômica)
também permanece. A existência das tradições Javista (J) e Eloísta (E)
é aceita na maior parte dos casos, mas se questiona a existência de
documentos escritos completos ou quase completos dessas tradições
na forma atual do Pentateuco. Enfim, o modo e a história da junção das
tradições e eventuais documentos escritos não encontraram ainda um
novo consenso em relação à antiga concordância formulada através da
hipótese documentária.

4.2.1. Diferentes escritores

Desde o século XVI d.C. vários estudiosos perceberam que há sinais


no Pentateuco de que diferentes autores o escreveram. Que sinais indicam
que ele foi escrito por mais de uma pessoa, em tempos e lugares distintos
na vida e na história de Israel? Já mencionei vários deles em explanação
anterior. Vejamos os principais novamente:

1. A existência de diferentes versões da mesma narrativa. Por exem-


plo: temos duas narrativas da criação (Gn 1,1-24a e Gn 24b-3,24), temos
duas narrativas de Abrão mentindo sobre sua esposa e uma narrativa em
que Isaque faz o mesmo (Gn 12,10-20 e Gn 20,1-18 Abrão no Egito e
em Gerara; 26,1-14 com Isaque em Gerara), e várias outros exemplos ao
longo do Pentateuco.

2. A fusão de narrações diferentes em um mesmo texto, como no caso


da história do dilúvio em Gn caps. 6 a 9, ou em Ex 1-12 etc.

3. A ampliação de um texto pequeno e sua fusão com um maior, como


no caso de Ex 15, em que temos um hino antigo (15,18) que se tornou a
conclusão de um hino bem maior (15,1-18).

51
FATIPI EAD Guia de Estudos

4. Diferentes coleções de normas/leis – Código da Aliança, da Santi-


dade e o Deuteronômico.

5. Um detalhe interessante: no capítulo 34 de Deuteronômio temos


uma narrativa sobre a morte de Moisés que, obviamente, não poderia ter
sido escrita por ele.

Estes são alguns dos sinais que mostram que Moisés não poderia ter
escrito sozinho o Pentateuco. Há vários outros sinais e indícios da pre-
sença da obra de diferentes pessoas no Pentateuco, mas não podemos
entrar em mais detalhes aqui. Passarei, diretamente, à descrição de uma
hipótese sobre a escrita do Pentateuco.

4.2.2. A hipótese documental e seu predomínio até meados do século XX

No século XIX se construiu um grande consenso entre os estudiosos


do Pentateuco, que veio a ser chamado de Hipótese Documental. Para
esta hipótese, o Pentateuco foi concebido por meio da junção de quatro
grandes documentos escritos, cada um deles com sua própria teologia e
distintas proveniências: a) O documento Javista (J), do reino do Sul, talvez
o mais antigo dos documentos, escrito por volta dos séculos X-IX a.C.; b)
O documento Eloísta (E), do reino do Norte, o segundo mais antigo dos
documentos, escrito por volta dos séculos IX-VIII a.C.; c) O documento
Deuteronomista (D), do reino do Sul, o terceiro mais antigo, escrito por
volta dos séculos VIII-VII a.C.; d) O documento Sacerdotal (P), do reino do
Sul, o último dos quatro, escrito por volta do século VI a.C.
Esse consenso foi questionado já na primeira metade do século XX por-
quê: a) vários autores duvidaram da existência de um documento Eloísta e
passaram a falar apenas em fragmentos eloístas no Pentateuco; b) embora
a existência de documento Javista não tenha sido fortemente questionada,
a sua extensão e a sua natureza foram colocadas em dúvida, bem como a

52
BÍBLIA Introdução ao AT

sua datação, já que algumas hipóteses o datavam no sexto século a.C.; c)


a existência de documento Deuteronomista foi aceita, porém falou-se em
duas ou três redações deuteronomistas, uma antes do Exílio e uma ou duas
durante e após o Exílio; d) o documento Sacerdotal passou pelo mesma
avaliação do Deuteronomista e se falou em duas ou mais redações do Es-
crito Sacerdotal, uma com data no Exílio e outra, depois.
Alguns autores, por outro lado, questionaram a própria existência de
documentos longos e coerentes, e postularam apenas a existência de tra-
dições orais e blocos de tradição escrita, que foram juntados e redigidos
durante e após o Exílio por dois grandes grupos de teólogos e escritores:
Deuteronomista e Sacerdotal. Enfim, o consenso perdeu sua força.

4.2.3. Uma hipótese sobre a escrita e a editoração do Pentateuco

Há várias hipóteses e teorias, na atualidade, sobre o processo de es-


crita e editoração do Pentateuco. Não podemos descrever cada uma de-
las, por isso, vou apresentar aquela que, na atualidade, conta com o maior
apoio dos estudiosos.
Os primeiros textos que vieram a fazer parte do Pentateuco surgiram
a partir da história oral, transmitida por várias gerações, em diferentes
tribos de Israel, tendo Moisés iniciado, ou não, algumas dessas histórias.
Os relatos que a família contava na hora da janta, por exemplo, definiam
a identidade de cada tribo.
Na medida em que as tribos de Israel passaram a se organizar
como uma monarquia (tempos de Saul, Davi e Salomão), essas histó-
rias foram pouco a pouco sendo selecionadas, ajuntadas e colocadas
em forma escrita – daí a razão de algumas repetições de narrativas nos
livros. Essa junção visava à construção de uma identidade comum para
as diversas tribos.
Ao longo da história de Israel e Judá, os reis tiveram diferentes grupos
de sacerdotes, escribas e profetas a seu serviço, com ideias teológicas e

53
FATIPI EAD Guia de Estudos

ênfases religiosas diferentes. Assim, começaram a ser escritos blocos de


histórias e textos normativos com distintas visões teológicas, dependendo
do rei e de seus auxiliares religiosos. Um exemplo disto é a descoberta do
livro do Deuteronômio na época do rei Josias (2Rs 22.8ss).
Após a destruição dos reinos de Israel e Judá, o povo de Judá foi cati-
vo na Babilônia e, com a chegada dos persas ao poder, puderam retornar
à sua terra. Em Judá, a partir do século V a.C., sacerdotes (Gn – Nm) e
escribas (Dt) rivalizavam na construção da identidade teológica do povo e
tiveram de firmar um compromisso teológico para não serem castigados
pelo rei persa. Possivelmente, o Pentateuco chegou à sua forma final com
a junção de alguns dos diferentes blocos e livros que existiam antes, o que
fica bem evidente quando lemos de Gênesis a Números e, depois, lemos
Deuteronômio que, em certo sentido, repete parte da narrativa do Êxodo
em diante.

4.2.4. Que importa este tema?

De um ponto de vista teológico – e mesmo de um ponto de vista dou-


trinário –, o fato de um livro bíblico ter sido escrito por diferentes autores
em diferentes lugares e épocas não altera em nada o valor e a autoridade
do texto para as comunidades judaicas e cristãs. Se, como afirmamos
na tradição cristã, a Bíblia foi inspirada por Deus, tanto faz quem foram
os autores humanos dos livros, o que importa é o reconhecimento deles
como Palavra de Deus.
De um ponto de vista pessoal, a existência de diferentes autores tam-
bém é irrelevante, pois o que conta é se aprendemos a vontade de Deus
e a praticamos ao estudar os textos bíblicos. Todavia, para que possamos
compreender bem os textos, é importante que conheçamos essas dife-
renças entre o mundo bíblico e o nosso, e levemos em consideração as
diferentes razões e contextos em que os diversos materiais que formam o
Pentateuco na sua forma atual foram elaborados e transmitidos.

54
BÍBLIA Introdução ao AT

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Finalizamos nosso passeio panorâmico pelo Pentateuco. Pudemos


apenas vislumbrar algumas de suas riquezas e perceber parte da sua im-
portância para o povo de Deus. Fica o convite para você ler e meditar nas
palavras e nas instrução de YHWH, pai de nosso Senhor Jesus Cristo,
a fim de que cresçamos no conhecimento de Deus e sejamos capazes
de enfrentar os ídolos da sociedade contemporânea: o individualismo, o
consumismo, a indiferença para com o próximo etc. Jesus ensinou que o
cumprimento da Torá se resumia a dois mandamentos: amar a Deus de
todo coração, alma, mente e forças (citando Deuteronômio) e amar ao pró-
ximo como a si mesmo (citando Levítico). Essa é a identidade messiânica
do novo Israel: amor integral a Deus para podermos servir amorosa e in-
tegralmente ao próximo, alcançando também a nossa realização pessoal.

55
Módulo 3

Estudando os Profetas
BÍBLIA Introdução ao AT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olá! Bem-vindas e bem-vindos ao terceiro módulo de nossa disciplina.


Agora é hora de estudar a seção Profetas do cânon hebraico do Antigo
Testamento. Esta é a maior seção do cânon do AT. Estudaremos os as-
pectos mais importantes da seção, a fim de que você possa orientar-se
quando for estudar estes livros da sua Bíblia.
De modo diferente dos módulos anteriores, este só tem duas grandes
divisões temáticas: a primeira estudará os “profetas anteriores”, ou seja,
os livros “históricos” de Josué, Juízes, Samuel e Reis. A segunda estuda-
rá os “profetas” propriamente ditos, os três “grandes”: Isaías, Jeremias e
Ezequiel, e os Doze Profetas Menores. Note bem: Daniel não é um livro
profético na Bíblia Hebraica. Ele pertence à seção Escritos. Por isso, não
o estudaremos aqui.
Destaquei algumas questões importantes para nosso estudo. Elas es-
tão na base do conteúdo do módulo e definem, também, os objetivos
de aprendizagem que você deverá alcançar. Ao final deste módulo você
deverá ser capaz de:

1. Explicar a diferença de gênero entre os Profetas Anteriores e os


Profetas Posteriores;
2. Descrever os principais conteúdos dos livros dos Profetas Anteriores;
3. Explicar os principais temas discursivos dos Profetas Anteriores;
4. Descrever os principais tipos de profetas no período do Antigo
Testamento;
5. Explicar os principais conteúdos da denúncia profética pré-exílica;
6. Explicar os principais conteúdos do anúncio profético exílico e
pós-exílico nos livros de Jeremias e Ezequiel.

Bom trabalho!

57
FATIPI EAD Guia de Estudos

1. ESTRUTURA DISCURSIVA DOS PROFETAS ANTERIORES

“Profetas Anteriores” é a designação do cânon hebraico para os


livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Por causa da influên-
cia da Septuaginta, as traduções para línguas ocidentais costumam
agrupar estes livros juntamente com Esdras, Neemias, 1 e 2 Crônicas
(lembre-se de que estes livros, no cânon hebraico, estão na seção
Escritos) e chamá-los de históricos. Nomear estes livros como histó-
ricos cria um problema hermenêutico, na medida em que quando os
lemos já pensamos neles como se fossem livros de história do tipo que
usamos hoje em dia, ou seja, livros que contam fatos, acontecimen-
tos, situações, em ordem cronológica e com alguma exatidão e provas
cientificamente elaboradas.
O nome dado pelos antigos judeus é muito mais apropriado. Os
Profetas Anteriores não são livros de história, mas livros teológicos ou
proféticos. Foram escritos com uma finalidade profética, ou seja, com
vistas a entender por que os reinos de Israel e Judá se dividiram, por
que o reino de Israel chegou ao fim sob os assírios e, em especial, por
que o reino de Judá foi derrotado pelos babilônios, que destruíram o
templo e retiraram a dinastia davídica do trono. Embora eles tenham
a aparência de livros de história, são, de fato, narrativas proféticas.
Em outras palavras, esses livros não estão preocupados em descrever
como as coisas aconteceram, mas em apresentar um ponto de vista
teológico-profético sobre a vida do povo de Israel. Em síntese, os li-
vros mostram que Israel iniciou sua existência como nação graças à
ação de YHWH e teve sua existência nacional rompida graças, nova-
mente, à ação de YHWH. A ação de YHWH, no início, foi libertadora
e abençoadora. No fim, foi judicial e abençoadora, possibilitando um
novo começo.
Vamos, então, à análise da estrutura e do conteúdo desses importan-
tes livros proféticos do Antigo Testamento.

58
BÍBLIA Introdução ao AT

1.1. A estruturação narrativa dos Profetas Anteriores



A sequência narrativa dos Profetas Anteriores é a seguinte: (1) a en-
trada dos israelitas na Terra Prometida, sob a liderança de Josué, rece-
bendo a bênção de YHWH; (2) a vida dos israelitas na Terra Prometida,
sem um governo central, enfrentando a ameaça de cananeus e filisteus,
bem como problemas de unidade interna das tribos (livro de Juízes); (3)
a transição da vida tribal para a monarquia, nos livros de Samuel; e (4) a
vida de Israel sob o governo monárquico, do reino unido à destruição do
reino de Judá, passando pela separação dos Reinos do Norte e do Sul e
pela destruição do Reino do Norte (livros dos Reis). A narrativa inicia com
Israel fora da terra e conclui com Israel expulso da terra, o que sugere aos
leitores desses livros que a temática da Terra Prometida é fundamental
para o entendimento dos mesmos.

(a) Israel, após a peregrinação pelo deserto, tem em Josué um líder


segundo a vontade de Deus, que conduz o povo à entrada na Terra. Deus
abençoa os israelitas, que conseguem ocupar a maior parte da Terra Pro-
metida, embora ainda tenham cidades cananeias e filisteias para enfrentar
(caps. 1-12). Nos capítulos 13-24 a distribuição das terras às tribos de
Israel ocupa o cenário. O último capítulo do livro, antes da notícia da morte
de Josué, tem um discurso colocado na boca desse líder, que conclama
todos os israelitas a serem fiéis a YHWH e a adorá-Lo com exclusividade
– “Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com integridade e fidelidade;
lançai fora os deuses aos quais serviram os vossos pais do outro lado do
Rio e no Egito, e servi ao Senhor. Porém, se não vos parece bem servir
ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses aos quais
serviram vossos pais do outro lado do rio, ou aos deuses dos amorreus
em cuja terra agora habitais. Quanto a mim e à minha casa, serviremos
ao Senhor” (Js 24,14-15). A tentação da idolatria paira sobre Israel e, com
ela, a ameaça de perder a terra

59
FATIPI EAD Guia de Estudos

Relato e resumo
Conquista Discursos de
da conquista
da Terra Deus e de Josué
2.1-11.23
Josué 1 -12 1.1-18
12.1-24

Do lado de lá e das Das tribos do


Distribuição
terras especiais lado de cá
da Terra
13.8-32; 13.1-7;
Josué 13-22
20.1-22.34 14.1-19.51

Preservação Assembleia de Siquém


Discurso de Josué
da Terra 24.1-28
23
Josué 23-24 Apêndices 24.29-33

(b) O livro dos Juízes retoma a narrativa a partir do capítulo 12 de


Josué e alista as cidades não conquistadas pelos israelitas, apontando
para a permanência de conflitos na Terra Prometida. Os três primeiros
capítulos de Juízes introduzem o tema do livro: a tentação da idolatria e o
juízo restaurador de YHWH; seguem narrativas de apostasia de Israel e
restauração com juízes, até o capítulo 16. O livro se encerra com os capí-
tulos 17 a 21 relatando conflitos internos das tribos, mostrando que a ten-
tação da idolatria era muito forte e que o desejo de cumprir a aliança com
o Senhor, embora forte, enfrentava adversários internos. Nestes capítulos
finais ressoa um refrão -- “naqueles dias não havia rei em Israel, cada um
fazia o que lhe convinha” (17,6; 18,1; 19,1; 21,25) –, preparando o terreno
para os livros de Samuel, que narra a transição para a monarquia. O risco
de tomar o juízo do refrão como um juízo universal é grande – a monarquia
poderia ser melhor do que o tribalismo, mas ela também teria seus pro-
blemas sérios. Juízes, em contraste com Josué, destaca a dificuldade em
cumprir as promessas feitas a Deus. A fidelidade à aliança com o Senhor
é permanentemente testada;

60
BÍBLIA Introdução ao AT

1ª Introdução (Josué vivo) 1,1-2,5


1,1-3,6
2ª Introdução (Josué morto) 2,6-36

Não haverá rei 3,7,9-57


3,7-16,31
Não há descanso 10,1-16,31

Santuários 17,1-18,31
17,1-21,25
Conflitos intertribais 19,1-21,25

(c) Os livros de Samuel são estruturados em quatro grandes seções,


emolduradas por dois cânticos de gratidão ao Senhor: o cântico de Ana (1
Sm 2,1-10) e o cântico de Davi (2 Sm 22,1-51, parcialmente repetido como
Salmo 18). Em 1 Sm 1-15, a transição do governo de Samuel como juiz
para o de Saul como rei é apresentada a partir da infidelidade dos filhos
de Samuel e da ameaça dos filisteus; em 1 Sm 16 – 2 Sm 5 é narrada a
ascensão de Davi ao trono de Judá e Israel, em substituição ao infiel Saul;
em 2 Sm 6-20 trata-se da atividade de Davi como rei e sua futura suces-
são. O livro conclui, nos caps. 21-24, com histórias e cânticos sem uma
conexão aparente, mas que fazem a transição para os livros dos Reis.
Mais uma vez, a questão da promessa da terra e da fidelidade do povo é
retomada, desta vez com foco na fidelidade dos líderes do povo de Deus;

Transição para a Samuel Saul


monarquia 1-8 9-15

Ascensão Rei de Israel Rei de Israel e Judá


de Davi 9,1-2Sm 4 2 Sm 5-8

61
FATIPI EAD Guia de Estudos

Sucessão e Sucessão Declínio


Declínio de Davi 6-20 21-24

(d) Por fim, os livros de Reis fazem uma interpretação teológico-profética


da vida de Israel sob o governo de reis. Em 1 Rs 1-11 a sucessão de Davi
por Salomão é retomada, juntamente com a descrição do governo do rei
mais sábio de Israel, que não foi capaz, porém, de permanecer fiel ao Se-
nhor, caindo na idolatria e na injustiça social. Em 1 Rs 12 temos o relato da
divisão dos reinos de Israel (tribos do Norte) e Judá (tribos do Sul), motivada
pela opressão real, mediante o excesso de tributos. De 1 Rs 13 a 2 Rs 17
são relatados os atos de reis de Israel e Judá, sempre julgados pela fidelida-
de ao Senhor, até a tomada do reino de Israel pelos assírios (2 Rs 17), como
juízo divino contra a infidelidade e a idolatria. Em 2 Rs 18-25 temos o relato
dos últimos anos do reino de Judá, cujos reis também foram incapazes de
se manterem fiéis a YHWH. A destruição de Jerusalém, do templo e o fim da
família de Davi no trono são o juízo de Deus, mas o término do livro de Reis
oferece uma esperança, pequena, mas uma esperança na restauração de
Israel como povo santo sob uma liderança fiel à aliança de YHWH.

Salomão e “Glória” Roboão e Cisão


Reino unido
1-11 12-13

Narrativas Discurso
Israel e Judá
14,1-2Rs 17,6 2Rs 17,7-41

Sobrevivência Assimilação
Judá
18,1-23,30 23,31-25,30

1.2. A estruturação discursiva dos Profetas Anteriores

Por estruturação discursiva entendemos o arranjo temático dos livros,

62
BÍBLIA Introdução ao AT

que nem sempre segue a estruturação narrativa. No caso dos Profetas


Anteriores, os temas (discursos) principais atravessam a estruturação nar-
rativa e dão unidade teológica aos livros. Esses temas são: (a) a fidelidade
de YHWH à Sua aliança com os filhos de Israel; (b) a exigência de adora-
ção exclusiva a YHWH e de justiça social como cumprimento da aliança
com o Senhor por parte de Israel; (c) a infidelidade de Israel à YHWH e
sua aliança, resultando no juízo de Deus contra Seu povo. Vejamos dois
desses temas com um pouco de detalhes.

a) YHWH é Deus fiel


Em Josué 23,14-16 encontramos algumas das últimas palavras de
Josué aos filhos de Israel. Neste texto encontramos clara e concreta afir-
mação da fidelidade de YHWH à Sua aliança com Israel: “Eis que vou hoje
pelo caminho de toda a terra; e vós sabeis em vossos corações e em vos-
sas almas que não tem falhado uma só palavra de todas as boas coisas
que a vosso respeito falou o Senhor vosso Deus; nenhuma delas falhou,
mas todas se cumpriram. E assim como vos sobrevieram todas estas boas
coisas de que o Senhor vosso Deus vos falou, assim trará o Senhor sobre
vós todas aquelas más coisas, até vos destruir de sobre esta boa terra que
ele vos deu. Quando transgredirdes o pacto do Senhor vosso Deus, que
ele vos ordenou, e fordes servir a outros deuses, inclinando-vos a eles, a
ira do Senhor se acenderá contra vós, e depressa perecereis de sobre a
boa terra que ele vos deu”. YHWH é fiel porque Ele cumpre o que promete,
Ele não mente, Ele mantém o relacionamento de aliança com Israel desde
a época dos patriarcas. Como Deus fiel, porém, YHWH também exige
fidelidade de seu povo e, assim como abençoa, Ele também julga e pode
retirar dos infiéis a bênção que havia dado.
Em outras palavras, a fidelidade de YHWH, na teologia dos Profetas
Anteriores, é descrita a partir da noção de aliança – o Senhor tem um
acordo com Seu povo. Ele cumpre plenamente a sua parte do acordo que
consiste não só em abençoar, mas também em orientar e julgar a vida do

63
FATIPI EAD Guia de Estudos

povo. Em 2Sm 7.12-15, na profecia de Natã a Davi, a fidelidade pactual


de YHWH é reafirmada: “Quando teus dias forem completos, e vieres a
dormir com teus pais, então farei levantar depois de ti um dentre a tua
descendência, que sairá das tuas entranhas, e estabelecerei o seu reino.
Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o
trono do seu reino. Eu lhe serei pai, e ele me será filho. E, se vier a trans-
gredir, castigá-lo-ei com vara de homens, e com açoites de filhos de ho-
mens; mas não retirarei dele a minha benignidade como a retirei de Saul,
a quem tirei de diante de ti”. Aqui a aliança é feita com a casa de Davi, e
mantém a mesma exigência de fidelidade a YHWH da parte do rei e de
seus descendentes. Por isso, 2Reis termina afirmando o perdão do rei da
Babilônia a Jeconias, descendente de Davi, como sinal de esperança para
a restauração do reino de Judá (2Rs 25.27-29).

b) YHWH é Deus zeloso


Além de fiel, YHWH é Deus zeloso. Os textos que vimos acima mos-
tram que a relação de aliança é bilateral – cada parceiro deve cumprir sua
parte, a fim de que a aliança não seja rompida. YHWH, além de abençoar,
também vigia sobre Seu povo e seus líderes para que a aliança seja cum-
prida. Dois tipos de infidelidade são destacados nos Profetas Anteriores:
a idolatria e a opressão. Em 1Rs 11.30-38 encontramos o relato profético
da separação do reino de Israel do reino de Judá, como expressão do zelo
de Deus. Este texto de 1Reis serve como padrão para entendermos o zelo
de YHWH: o Senhor cumpre fielmente o que promete, mas exige também
fidelidade dos seus seguidores. Quem não é fiel a YHWH é deixado por
Deus à sua própria sorte – quem quer andar sozinho, andará sozinho!
Não se trata de mero “castigo”, mas, sim, do rompimento de uma relação
pessoal. Como disse Jesus, bem mais tarde, “quem crê no Filho tem a vida
eterna, quem se recusa a crer no Filho não verá a vida, pelo contrário, a
ira de Deus permanece sobre ele” (Jo 3.36). A infidelidade a YHWH sepa-
ra-nos dele e, separados dele, trazemos sobre nós mesmos o juízo divino.

64
BÍBLIA Introdução ao AT

Apesar de nossa infidelidade, porém, o Senhor permanece fiel a Si mesmo


e à sua aliança libertadora e abençoadora. O caminho da esperança está
sempre aberto a quem O busca fielmente.

2. ESTRUTURA DISCURSIVA DOS PROFETAS POSTERIORES

No tópico anterior examinamos um conjunto de livros que possui unida-


de narrativa e pluralidade temática. Nesta seção o nosso foco recairá sobre
um conjunto de livros que apresenta grande pluralidade temática, mas não
possui unidade narrativa: os livros proféticos. No cânon hebraico esse con-
junto de livros é conhecido como Profetas Posteriores (porque vêm depois
dos Anteriores) e é composto por quatro livros: Isaías, Jeremias, Ezequiel
(conhecidos por nós como Profetas Maiores, por causa do tamanho dos
livros, e não por causa de sua qualidade) e Os Doze (nas Bíblias impressas
os chamados Profetas Menores são divididos em doze livros, enquanto nos
pergaminhos antigos eles formavam um só livro). Assim, no cânon hebraico,
a seção Profetas é composta por oito livros – os quatro Profetas Anteriores
(Josué, Juízes, Samuel e Reis) e os quatro Profetas Posteriores. Do ponto
de vista do gênero textual, estes livros não são narrativos, mas predominan-
temente poéticos, e são espécies de coleção de pregações dos profetas,
mas com arranjo temático que dá unidade aos livros.

2.1. Os profetas e seus livros

A atuação de profetas é encontrada entre os povos cananeus e me-


sopotâmicos em tempos anteriores a Israel. No início da história israelita,
durante o período tribal, não havia distinção profissional específica entre
sacerdotes, juízes e profetas, mas são mencionados profetas e profetisas
(e.g. Débora), provavelmente de cunho extático, a serviço de pessoas e
famílias. Somente mais para o final do período tribal, profetas aparecem
ligados a santuários (e.g. Aías, em Silo). É apenas durante a monarquia

65
FATIPI EAD Guia de Estudos

que a especialização da atividade profética se concretiza, e passamos a


encontrar quatro tipos de profetas: (a) Profetas extáticos: a forma mais
antiga, adotada dos povos anteriores a Israel. Atuavam individualmente
ou em grupos. Sua origem era a periferia social e no texto bíblico são
denominados “videntes”, “adivinhos”, ou ”homem de Deus”. Podiam estar
ligados, ou não, a santuários locais; (b) Profetas da Corte: a serviço do rei
(e.g. Natã, Gade), visavam à estabilização do poder real e à orientação
do rei para decisões importantes; (c) Profetas do Templo: estavam a ser-
viço do sacerdócio oficial, ao longo da monarquia atuavam nos templos
e cooperavam com os sacerdotes e os profetas da corte no ensino da
teologia oficial; e (d) Profetas críticos/populares: chamados por Weber de
“revolucionários éticos” – especializados na “pregação”, faziam a crítica
do poder político, da religião e da vida social. Possivelmente, originários
do reino do Norte, como Elias e Eliseu. É deste grupo que se originam os
livros proféticos na Escritura.
Como os judeus selecionaram os textos proféticos que foram incluí-
dos no cânon? A pista que encontramos nos próprios livros proféticos é a
seguinte: a seleção foi baseada no grau de enfrentamento entre profetas.
A escolha recaiu sobre os profetas que: (a) defendiam a exclusividade
de Javé como Deus de Israel; (b) faziam crítica aos reis e outros líderes
de Judá e Israel por não praticarem a vontade de Javé; (c) exigiam dos
líderes e do povo a prática da justiça da aliança; e (d) anunciavam o juízo
de Javé contra os reinos de Israel e Judá, mas também anunciavam a
restauração futura do povo de Deus. Em outras palavras, entraram no
cânon as mensagens dos profetas que, durante a monarquia, eram con-
siderados hereges e inimigos do rei. Note, assim, o contraponto teológico
com os Profetas Anteriores: nos primeiros livros da seção Profetas no câ-
non hebraico, a monarquia é apresentada de modo mais positivo do que
negativo; nos livros dos Profetas Posteriores, ela é apresentada de modo
mais negativo do que positivo.
Os livros dos Profetas Posteriores foram escritos durante um período

66
BÍBLIA Introdução ao AT

longo de tempo: desde a segunda metade do século VIII a.C. (Oséias,


Amós, Isaías e Miquéias) até a segunda metade do IV século a.C. (Mala-
quias). Dois desses livros têm como seu contexto o reino do Norte (Oséias
e Amós), enquanto os demais têm como contexto o reino de Judá. Apesar
da pluralidade temática dos livros, dois grandes temas dão aos mesmos
uma unidade discursiva – o juízo divino sobre Judá e Israel (predominante
nos livros escritos dos séculos VIII-VI a.C.) e a restauração divina de Judá
e Israel (predominante nos livros escritos a partir do século VI a.C.). Isto
não significa que nos profetas do VI século em diante o juízo divino de-
sapareça, mas, apenas, que ele se torna um tema secundário em relação
ao da restauração. Semelhantemente, nos profetas do VIII e VII séculos
o tema da esperança está presente, mas é secundário em relação ao do
juízo. Neste sentido, eles correspondem à unidade discursiva dos Profe-
tas Anteriores: o Deus fiel abençoou seu povo e exigiu dele fidelidade; à
infidelidade do povo e de seus líderes Deus respondeu com o juízo; mas
este não foi a última palavra de YHWH: a restauração da relação de alian-
ça com Deus é a última palavra. YHWH está sempre pronto a acolher de
volta seu povo.

VIII Século Oséias e Amós (Israel)


a. C. Isaías 1-39 e Miquéias (Judá)

VII e Início do Habacuque, Sofonias, Naum (Judá)


VI Século Obadias, Jeremias (Judá)
Ezequiel, Isaías 40-55 (Babilônia)

Isaías 56-66, Ageu, Zacarias (Judá)


Final do VI ao
IV Século Joel, Jonas, Malaquias (Judá)

67
FATIPI EAD Guia de Estudos

Como os livros proféticos foram escritos? A pesquisa indica que os


profetas que originaram os livros que levam seus nomes não foram os pró-
prios escritores desses livros. A sua atividade era especialmente a da pre-
gação oral e a do ensino de discípulos (Is 8.18; Jr 36.4-8). Coube a esses
discípulos a tarefa de colocar por escrito a mensagem dos profetas e de
fazer com que essa mensagem atravessasse décadas e gerações, desde
a origem na pregação oral até a redação final dos livros proféticos, quando
se definiu que eles fariam parte do cânon. Durante o período pós-exílico,
provavelmente logo após a redação final do Pentateuco, escribas fizeram
a primeira coleção de livros proféticos, que deve ter sido completada por
volta do III século a.C., antes da tradução da Septuaginta.
Como estamos lidando com um número significativo de livros e pági-
nas, não poderemos fazer mais do que apontar as principais característi-
cas do discurso profético, sem entrar na riqueza de detalhes e da plura-
lidade temática dos livros. Neste texto focaremos o discurso pré-exílico
da denúncia profética e, no próximo, o discurso exílico e pós-exílico de
esperança e restauração do povo de Deus.

2.2. A denúncia profética pré-exílica

Costuma-se chamar de denúncia as acusações que os profetas lan-


çam sobre o povo de Deus. Nos profetas pré-exílicos a denúncia profética
é o tema predominante, apresentando as razões para o juízo de Deus
sobre a infidelidade do seu povo. Devemos destacar, porém, que o alvo
principal da denúncia profética não é o povo como um todo, mas, principal-
mente, os governantes, os profissionais da religião (sacerdotes e profetas
ligados ao templo) e a elite econômica de Judá e Israel. Em Miquéias
capítulos 2-3 encontramos uma espécie de síntese dos denunciados pelos
profetas pré-exílicos e seus crimes:
(a) em 2.1-5 os denunciados são os fazendeiros ricos que acumulam
terras por meio da opressão e da falta de solidariedade para com os em-

68
BÍBLIA Introdução ao AT

pobrecidos – “Ai daqueles que nas suas camas maquinam a iniquidade e


planejam o mal! quando raia o dia, põem-no por obra, pois está no poder
da sua mão. E cobiçam campos, e os arrebatam, e casas, e as tomam;
assim fazem violência a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua
herança” (v. 1-2);
(b) em 2.6-11 os denunciados são os profetas que mentem a fim de
ganhar dinheiro e prestígio, e só são considerados bons profetas porque
havia ouvintes que esperavam as mentiras: “Se algum homem, andando
em espírito de falsidade, mentir, dizendo: Eu te profetizarei acerca do vi-
nho e da bebida forte; será esse tal o profeta deste povo” (v. 11);
(c) em 3.1-4 os denunciados são os governantes que oprimem os po-
bres e corrompem os julgamentos a fim de enriquecerem: “E disse eu:
Ouvi, peço-vos, ó chefes de Jacó, e vós, ó príncipes da casa de Israel: não
é a vós que pertence saber a justiça?” (v. 1);
(d) em 3.5-8 novamente os profetas são denunciados, os que bus-
cam dinheiro pregam mentiras e enganam o povo: “Assim diz o Senhor
a respeito dos profetas que fazem errar o meu povo, que clamam: Paz!
enquanto têm o que comer, mas preparam a guerra contra aquele que
nada lhes mete na boca” (v. 5); e
(e) em 3.9-12 sacerdotes, profetas e governantes são denunciados por
fazerem de Jerusalém e do templo um lugar de injustiça e opressão: “Ouvi
agora isto, vós chefes da casa de Jacó, e vós governantes da casa de
Israel, que abominais a justiça e perverteis tudo o que é direito, edificando
a Sião com sangue, e a Jerusalém com iniquidade. Os seus chefes dão
as sentenças por peitas, e os seus sacerdotes ensinam por interesse, e
os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se encostam ao Senhor,
dizendo: Não está o Senhor no meio de nós? nenhum mal nos sobrevirá.
Portanto, por causa de vós, Sião será lavrada como um campo, e Jerusa-
lém se tornará em montões de pedras, e o monte desta casa em lugares
altos dum bosque”. A sentença contra os criminosos é a destruição do
templo e de Jerusalém!

69
FATIPI EAD Guia de Estudos

Ressalta nestas acusações o fato de que os denunciados não só fo-


ram infiéis a YHWH e oprimiram o Seu povo, mas também afirmavam que
o que faziam era aprovado por Deus! Nesse sentido, mesmo quando não
pregavam a adoração a outros deuses, os denunciados praticavam a idola-
tria, pois apresentavam uma visão distorcida de YHWH, fazendo o Deus de
Israel se parecer com os deuses opressores dos impérios vétero-orientais.
Encerro o texto com a sugestão que você leia os profetas pré-exílicos e
preste atenção à denúncia nos mesmos. Você poderia começar com Isaías
capítulos 1-5; Oséias caps. 4-8; Amós caps. 1-3 e Sofonias (todo o livrinho).

2.3. O Anúncio profético exílico e pós-exílico

Apenas como exemplo do anúncio profético, apresento uma síntese da


mensagem de Jeremias.
Jeremias atuou nos anos finais do Estado de Judá e nos anos iniciais
da dominação babilônica (entre 600 e 570 a.C. aproximadamente), tendo
sido importante personagem no período, conforme se pode depreender de
seu livro. Sua pregação do juízo foi contestada pelo rei e pelo sacerdócio
(e profetas do templo), o que lhe rendeu prisões e controvérsias com Ha-
nanias, um profeta do templo, mas acabou confirmada pelos fatos após a
conquista dos babilônios. Depois da destruição de Jerusalém e do templo
como expressão do juízo de Deus, a ênfase da pregação jeremiânica pas-
sou a recair sobre dois tópicos: (a) a vida no exílio e (b) a restauração de
Israel e Judá após a punição divina sobre Judá.
A polêmica de Jeremias continua mesmo após a primeira deportação
de judeus. Em carta enviada aos exilados, Jeremias recomenda a acei-
tação do juízo divino e a reorganização da vida na Babilônia (29.1-23).
Nos v. 5-7 Jeremias exorta os exilados a refazerem sua vida na Babilônia,
mantendo a fé em YHWH, que lhes poderia dar bem-estar (shalom) no
bem-estar dos babilônios – uma irônica inversão da pregação de shalom
para Jerusalém por Hananias (Jr 28.9; cf. caps. 27-28) que correspondia

70
BÍBLIA Introdução ao AT

à teologia da corte mantida e pregada pelos agora exilados. Nos v. 8-10


nova exortação a não ouvir os falsos profetas é enunciada – claramen-
te os exilados ainda não haviam rejeitado sua teologia –, a esperança é
mantida, mas somente para após setenta (cifra simbólica para um “tem-
po completo”) anos de cativeiro. Nos v.11-14 o anúncio da restauração
é apresentado, com a exigência de fidelidade exclusiva a YHWH (v. 13)
e a utilização de um novo termo técnico da esperança: restaurar a sorte
(shuv) – o mesmo verbo usado na exortação profética pré-exílica com o
significado de “voltar a YHWH”.
Os caps. 30-31 de Jeremias são denominados por vários pesquisado-
res como “livreto da consolação” e, atualizando a linguagem de Jr 3.12ss,
anunciam a restauração do povo de Deus e a renovação da aliança entre
YHWH e o seu povo restaurado. Os versos 1-3 formam a introdução ao
livreto, indicando a procedência jeremiânica e a temática da restauração
da sorte do meu povo – Israel e Judá. Os versículos do cap. 30.5-7 e
23-24 formam o inclusio que estrutura a profecia salvífica, a qual enfoca
a restauração de “Jacó” e a reconstrução de Sião, com novo governo (evi-
tam-se os termos específicos para “rei” e “reinado”), como atos exclusivos
de YHWH. Jeremias 31.1 é a introdução ao capítulo que inclui os seguin-
tes oráculos: 2-9.10-14.15-22.23-25.27-30.31-34.35-37.38-40, os quais
retomam os temas da restauração de Israel e Judá, da mudança da sorte
e da linguagem dos capítulos iniciais do livro de Jeremias. Dois desses
oráculos merecem atenção especial: versos 27-30 e 31-34.

Restauração Nova Mentalidade Nova Aliança

Em Jeremias 31.27-34 encontramos um exemplo de anúncio de res-


tauração. O texto é subdividido em três seções, iniciadas com a expres-
são “dias virão”, ou “naqueles dias”. Na primeira seção, YHWH promete
restaurar a casa de Israel (que havia sido destruída pelos assírios no VIII

71
FATIPI EAD Guia de Estudos

século a.C.) e de Judá após o fim do reino de Judá (tomado pelos babilô-
nios no VI século a.C.) – vigiei (juízo) & vigiarei (restauração). Na segun-
da seção, o Senhor anuncia uma nova mentalidade sobre o pecado e a
culpa – cada um morrerá pela sua própria iniquidade – rompendo com a
forma tradicional de incluir filhos e netos na culpa dos pais/avós (quando
um fazendeiro ficava endividado, por exemplo, suas filhas e filhos pode-
riam ser escravizados para abater a dívida), mentalidade que permitia,
na prática, isentar os pais poderosos de castigo (note, por exemplo, que
é o filho de Davi com Batseba que morre, ao invés do pecador Davi, e
isto é atribuído pelo escritor ao juízo de Deus). Na terceira seção temos
um dos textos mais famosos do Antigo Testamento para os cristãos: o
anúncio da nova aliança!
O profeta anuncia a necessidade de renovação da aliança que fora,
segundo a denúncia profética, desrespeitada pelos líderes políticos e
religiosos de Judá. A nova aliança terá como característica predomi-
nante a internalização do conhecimento de Deus em cada membro do
povo da aliança – eliminando a mediação monárquico-sacerdotal de-
senvolvida pela teologia oficial da corte e do templo de Jerusalém. Note
como Jeremias usa termos semelhantes aos de Oséias capítulo 4, no
qual o profeta pré-exílico denunciava os sacerdotes por não ensinarem
ao povo o verdadeiro conhecimento de YHWH. Esta nova aliança é
descrita como uma nova relação entre YHWH e seu povo, mediante a
internalização da lei de YHWH: a radical afirmação “ninguém ensinará
a ninguém” e a declaração do perdão dos pecados diretamente por
YHWH, sem sacrifícios, devem ser entendidas como a pregação do fim
do monopólio sacerdotal sobre o ensino da lei do Senhor, bem como
a rejeição do sistema sacrificial. A Epístola aos Hebreus, em o Novo
Testamento, interpretou desta maneira a nova aliança de Jeremias,
acrescentando que foi mediante o sacrifício definitivo de Jesus, sumo
sacerdote e cordeiro sacrificial, que se concretizou em plenitude a pre-
gação de Jeremias

72
BÍBLIA Introdução ao AT

3. ESTRUTURA E REDAÇÃO DOS LIVROS PROFÉTICOS


(DOIS EXEMPLOS)

3.1. O Livro de Isaías


3.1.1. A questão da autoria de Isaías

Vamos iniciar com uma questão que já discutimos na análise do


Pentateuco, que é a da autoria dos livros bíblicos, ou seja, um livro
pode ter vários autores e ser escrito em épocas e lugares diferentes.
Isto ocorre com o livro de Isaías. Há fortes indícios de múltipla autoria.
Por exemplo: (a) há mudança radical de contexto dos capítulos 1-39
para os capítulos 40-55, e dos capítulos 40-55 para os capítulos 56-66;
(2) há presença de textos com teor apocalíptico, mais comuns a partir
do IV século a.C. (Is 24-27; Is 65.17-25); (3) existia uma escola isaiâ-
nica de profetas (Is 8.16.18); (4) os capítulos 36-39 são uma inserção
baseada em 2Reis, texto de origem tardia em relação ao VIII século
a.C.; e (5) há diferenças consideráveis de estilo entre as seções 24-26;
36-39; 40-55, e 56-66.
William S. Lasor e outros estudiosos “tradicionais” defendem a uni-
dade de autoria com base em argumentos exclusivamente teológicos:
(a) Deus poderia inspirar o profeta do VIII século a falar sobre tempos
posteriores ao seu; (b) em o Novo Testamento se fala do livro de Isaías,
então, autores do Novo Testamento defenderiam a unidade de autoria.
Esses argumentos, porém, não têm a ver de fato com a questão da au-
toria, mas sim com a visão teológica de seus autores contemporâneos e
são, no meu entender, imposição de conceitos atuais sobre a realidade
antiga. A conclusão de que um livro bíblico tenha sido escrito por vários
autores não é teológica, mas histórica e literária, e não muda o fato de
que esse livro é inspirado por Deus e possui plena autoridade como
Escritura para nós.

73
FATIPI EAD Guia de Estudos

3.1.2. A estrutura do livro de Isaías

Vamos começar com a estrutura de Isaías capítulos 1-39, que contêm


as pregações de Isaías de Jerusalém, que viveu na segunda metade do
século VIII a.C. Este texto recebeu alguns acréscimos dos discípulos do
profeta, destacando especialmente a esperança de salvação para Judá e
Jerusalém. Nesta primeira parte do livro, encontramos os caps. 6-9, que
são uma espécie de “memorial de Isaías”, um texto cheio de esperança e
visão messiânica, que desempenha papel importante na tradição neotes-
tamentária. Esta parte é estruturada em três seções e três adendos (um
na segunda seção e dois na terceira). Graficamente podemos apresentar
a estrutura da seguinte maneira:

1-12 13-27 28-39

Denúncia contra
Denúncia Denúncia contra Jerusalém
contra Judá Nações (13-23) (28-32)
(1-5, 10-12)
Pequeno Esperança de
Esperança (6-9) Apocalipse Salvação (33-35)
(24-27)
Apêndice Histó-
rico (36-39)

A Estrutura de Isaías 40-55. O chamado Dêutero Isaías ou Segundo


Isaías é uma coletânea de profecias liturgicamente formuladas, em que
predomina o estilo da poesia e da canção cúltica. Podemos perceber três
seções nesta parte do livro, cuja unidade teológica é construída a partir de
três elementos: (a) a cidade de Jerusalém, presente nas seções inicial e
final; (2) os poemas do Escravo de YHWH, também presentes nas seções
inicial e final; e (3) a afirmação de exclusividade e incomparabilidade de

74
BÍBLIA Introdução ao AT

YHWH como Senhor da história humana, presente nas três seções de


Isaías 40-55. O tom aqui é claramente esperançoso e se percebe que
Jerusalém ainda não foi reconstruída, de modo que predomina um ponto
de vista geográfico a partir da Babilônia e não da Terra Prometida. Grafi-
camente podemos descrever a estrutura assim:

O fim do O fim da
Juízo e o Babilônia e
Ungido de seus deuses
YHWH 40-45 46-48

Retorno a uma
nova Jerusalém
49-55

A Estrutura de Isaías 56-66 também é tripartite, mas com uma uni-


dade menos acentuada, graças à diversidade de formas de pregação e
conteúdo. Diferentemente de 40-55 esta seção nos situa na cidade de
Jerusalém reabitada e mostra como, apesar do castigo, o povo de Jerusa-
lém ainda não conseguia se manter fiel a YHWH. Um ponto de união com
40-55 é a presença da palavra e da ideia do evangelho, ou boa notícia.
Graficamente podemos descrever a estrutura assim:

O
A denúncia Evangelho
56-59 60-62

A Esperança
63-66

75
FATIPI EAD Guia de Estudos

A Estrutura de Isaías 1-66. Agora, podemos indicar a estrutura do


livro como um todo, destacando a sua unidade temática a partir de dois
fios: (a) a exclusividade de YHWH; e (2) a cidade de Jerusalém.

Jerusalém
Esperançosa
40-55

Jerusalém Jerusalém
Denunciada Renovada
1-39 56-66

3.1.2. Teologia do livro de Isaías

Há muitos temas teológicos importantes em Isaías, porém, não po-


deremos dedicar atenção suficiente a todos. Assim, daremos uma visão
panorâmica do livro. Os temas teológicos que destacaremos são: Deus
Santo e Justo, Pecado, Evangelho, Messias.

1) Deus Santo e Justo. Ao longo do livro de Isaías, Deus é apresenta-


do como santo – distinto de Israel pecador e dos deuses de outras nações.
Como santo é justo, YHWH é incomparável e único, não há nenhum deus
semelhante a Ele. A justiça de Deus consiste em sua disposição perma-
nente de ser fiel à aliança com seu povo e, a partir de seu povo, ser o
libertador de todas as nações.

2) Pecado. O pecado em Isaías é apresentado primariamente como

76
BÍBLIA Introdução ao AT

infidelidade à aliança, que se manifesta na desobediência a YHWH e na


injustiça social dos governantes contra o povo israelita. O pecado deve ser
punido, pois tem embutido em si mesmo o seu castigo. Embora o Senhor
não impeça a punição, não a define como eterna, mas perdoa o seu povo
e restaura a sua vida na Terra.

3) Evangelho. Especialmente nos caps. 40-66, Isaías fala do Evange-


lho, ou seja, da boa notícia de que YHWH reina sobre Israel e sobre todas
as nações. O reino de YHWH é boa notícia, pois é um reino de libertação
e liberdade, de aliança e fidelidade. Esta ideia está na base da noção neo-
testamentária de Evangelho, tanto nos Sinóticos como em Paulo.

4) Messias. Na primeira parte de Isaías a ideia de Messias é, ainda,


tipicamente davídida. O Messias é um descendente de Davi que, pratican-
do a justiça, assentar-se-á no trono de Judá e se tornará o libertador do
povo de Deus. Em Isaías 40-55, porém, a ideia de Messias se desdobra
criticamente de duas maneiras: (a) Ciro, o rei persa, é reconhecido como
Messias (ao invés de um descendente de Davi) que irá, sob a direção de
YHWH, libertar os exilados e restaurar Judá em sua terra; e (b) para que
essa libertação seja mais do que apenas uma volta à terra, Isaías também
fala do “Escravo” ou “Servo” de YHWH, um membro do povo de Deus cuja
vida e pregação atrairão sobre si o julgamento dos babilônios e a execu-
ção em favor dos exilados. Em o Novo Testamento os poemas do “Escra-
vo” ou “Servo” de YHWH serão uma das principais bases da construção
da identidade messiânica de Jesus.

3.2. O Livro de Jeremias


3.2.1. Peculiaridades

Nossa atenção será dedicada, agora, ao livro de Jeremias. Este é o


maior livro dos Profetas Posteriores e possui uma série de peculiaridades

77
FATIPI EAD Guia de Estudos

interessantes que devemos explorar em nosso estudo. Algumas delas são:

a) O próprio Jeremias não escrevia suas pregações. O livro nos informa


que um escriba, cujo nome era Baruque, fazia esse trabalho para ele. Apren-
demos, também, no livro de Jeremias, que a obra de um profeta poderia ser
contestada pelas autoridades (do palácio e do Templo) e que o próprio pro-
feta poderia ser preso e seus escritos queimados ou banidos de circulação.

b) Outro aspecto peculiar deste livro que nos ajuda a aprender sobre
questões de escrita e editoração dos livros bíblicos é a diferença entre o
Texto Massorético (TM) e a Septuaginta (LXX). O texto de Jeremias na
LXX é cerca de um oitavo mais curto do que o texto do TM (e.g.: faltam, na
LXX, 33:14-26; 39:4-13; 51:44b-49a; 52:27b-30, além de frases e epítetos
de YHWH), e a ordem dos capítulos também é diferente – na LXX a ordem
é capítulos 1-25 + 46-51 = 26-45 + 52. Também ressalta à vista que a
composição do livro é bem complexa, aparentemente sendo o resultado
do ajuntamento de pequenas coleções de pregações de Jeremias. Os ca-
pítulos 30-31 do TM são os capítulos 37-38 da LXX.

c) Jeremias é o único livro profético da Bíblia Hebraica que apresenta


uma visão ampla dos sentimentos do profeta.

d) Por fim, o livro de Jeremias nos ajuda a perceber um aspecto impor-


tante da sociedade judaica do período exílico em diante: a nova importân-
cia dada ao texto escrito. Enquanto antes da conquista babilônica a prega-
ção dos profetas era principalmente oral, a partir de Jeremias e Ezequiel
a pregação profética já incorpora a escrita como meio de comunicação:
“Jeremias, que viveu pouco menos de um século depois [de Isaías], não
fala em discípulos, mas em um secretário ou escriba, Baruque (Jr 36.4-
32). Jeremias deixou de ser um personagem importante para dispor de um
secretário. De fato, Jr 36 é um capítulo significativo, porque o elemento

78
BÍBLIA Introdução ao AT

mais importante que aparece nele não é a pessoa do profeta, mas um


‘rolo’” (Ska, 2012, p. 84).

3.2.2. Data e Estrutura

O profeta Jeremias exerceu seu ministério nos últimos anos do Reino


de Judá e nos anos iniciais do Império Babilônico (cerca de 600 - 580
a.C.); foi um destacado agente político, conforme se pode depreender de
seu livro. Sua pregação do juízo foi contestada pelo rei e pelo Templo
(sacerdotes e profetas), o que lhe rendeu prisões e controvérsias com Ha-
nanias em torno de quem era o verdadeiro profeta. O Estado monárquico
não podia aceitar que um profeta denunciasse a injustiça social e a idola-
tria praticada no culto oficial. A pregação de Jeremias acabou confirmada
pelos fatos: como negar a palavra do profeta diante de muros caídos, o
palácio e o Templo em ruínas? Como negar a palavra de Jeremias com o
trono vazio e a família real deportada para a Mesopotâmia?
Após a destruição de Jerusalém e do Templo como expressão do juízo
de Deus, a ênfase da pregação jeremiânica passa a recair sobre dois tópi-
cos: (a) a vida no exílio e (b) a restauração de Israel e Judá após a punição
divina sobre Judá. A despeito desse tom mais esperançoso, a pregação de
Jeremias continua polêmica, mesmo após a primeira deportação de judeus.
A redação e a estrutura do livro oferecem desafios significativos aos
seus leitores. Não há consenso na pesquisa sobre esses dois aspectos.
Em parte, o problema é causado pelo fato de o livro de Jeremias na LXX ser
bem menor do que o livro no Texto Massorético, como já vimos antes. Ou-
tra característica é a composição retórico-estilística, que mescla seções de
prosa com oráculos em forma poética (por exemplo, uma moldura em prosa
em 21.1-10 e 24.1-10 articula um conjunto de oráculos em forma poética
em 21.11-23.40), além das seções conhecidas no mundo acadêmico como
Confissões de Jeremias, trechos em que o profeta disputa com YHWH e
lamenta o sofrimento causado pela sua vocação (caps. 14-17, por exemplo).

79
FATIPI EAD Guia de Estudos

Em relação à redação, boa parte dos pesquisadores do século XX afir-


ma que o livro foi redigido em várias etapas, crescendo a partir de uma
coletânea de oráculos do próprio Jeremias, que foi elaborada por seu es-
criba Baruque e alcançou a forma atual em algum momento do período
exílico ou nas primeiras décadas da dominação persa. Esse consenso tem
sido questionado por um grupo minoritário de estudiosos, mas nada ainda
foi oferecido em seu lugar, de modo que podemos continuar trabalhando
com essa hipótese básica. Do ponto de vista da interpretação do livro,
o problema não é tão grande quanto parece, pois podemos situá-lo no
contexto do imperialismo neobabilônico e persa, o que nos direciona na
leitura exegética.
A estrutura do livro é debatida entre os pesquisadores. O diagrama a
seguir se baseia na estrutura proposta por Leslie Allen:

1:1–2:3 Prólogo: Jeremias e sua Mensagem


2:4–10:25 Destruição e Eventual Reconstrução, Parte I

11:1–33:26 Destruição e Eventual


Reconstrução, Parte II

34:1–51:64 Destruição e Eventual Reconstrução, Parte III


52:1–34 Epílogo: Um Conto sobre Dois Reis

No detalhamento dessa estrutura geral, Allen reconhece o lugar de


destaque do capítulo 25 na organização do livro, bem como distingue a
seção biográfica em 37-45 da seção de oráculos contra as nações nos
caps. 46-51. Não fica claro na proposta de Allen como situar os caps. 30-
31 e 32-33 na estrutura geral, tendo em vista que são os capítulos em que
há maior concentração de mensagem positiva (esperança e alegria). De
qualquer forma, a estrutura do livro aponta para o fato de que na pregação

80
BÍBLIA Introdução ao AT

deste profeta o juízo recebe mais destaque do que a esperança, o que


pode ser compreendido a partir da época geral de sua pregação e redação
(pelo menos a redação inicial no período persa antigo). Entretanto, o juízo
não é a última palavra de YHWH, nem mesmo para nações estrangeiras,
enquanto para Judá e Israel há a promessa de reunificação e, em espe-
cial, de uma nova aliança (cap. 31).

curiosidade

O período persa antigo é marcado pelo apogeu do império


persa devido às conquistas territoriais empreendidas por
Dario I e Xerxes. Este império se tornou o maior do mundo
conhecido no período entre 539 a.C. a 332 a. C.

3.2.3. Teologia de Jeremias

Tendo em vista que já estudamos o texto de Jeremias 31 sobre a Nova


Aliança (em 2.3 deste Módulo), apresentarei apenas a teologia do livro de
Jeremias encontrada em seus oráculos de denúncia contra o pecado, tan-
to de Israel quanto de nações estrangeiras. Neste sentido, alguns temas
relevantes são:

1) A eleição divina não confere privilégios aos seus destinatários. Judá


não escapará da punição divina só porque é o povo de YHWH. Jeremias
deixa claro que o cálice da ira de YHWH se lança contra todas as nações
pecadoras. Judá é povo de Deus, mas enquanto permanece em pecado,
ou seja, é infiel à aliança com YHWH, também é objeto da sentença divina.

2) O poderio militar de governantes não é nada diante do poder e da

81
FATIPI EAD Guia de Estudos

soberania de YHWH. Especialmente as nações imperiais se consideram


acima do bem e do mal, acreditando que seu poder não terá fim, e que os
seus deuses sempre as manterão no poder. No entanto, Jeremias afirma
o contrário: é YHWH quem rege toda a Terra, as nações estão sob o seu
governo e poder e não escaparão das consequências de seus pecados,
particularmente a violência e a opressão imperialistas.

3) Em linguagem “nossa”, podemos acrescentar que o nacionalismo


não se sustenta diante da soberania universal de YHWH. Todo o mundo
tem apenas um criador e são os seus critérios de justiça que regem a
história cósmica. As divisões da humanidade em povos e nações não po-
dem servir como critério para classificar povos e pessoas em superiores e
inferiores, e os desníveis de poder não conferem legitimidade às nações
mais poderosas.

4) O juízo divino não é um ato especial ou direto de YHWH contra as


nações, mas, como dirá mais tarde Paulo aos romanos, é uma “entrega”
das nações ao seu próprio pecado. A sentença de YHWH é a espada, ou
seja, a guerra – guerra que é provocada pelo próprio desejo expansionista
de reis e governantes.

Aos nossos olhos “sensíveis” de ocidentais do século XXI, esta lingua-


gem de ira, guerra e mortandade é chocante, e faz muita gente pensar que
o Deus de Israel não é digno de ser crido em função de sua “violência”.
Antes de nos chocarmos com a pregação de Jeremias, porém, devería-
mos nos chocar com nossa própria insensibilidade diante da violência co-
tidiana de que somos cúmplices. Condenamos a violência que é praticada
distante de nós ou contra nós, mas não nos apercebemos da violência
que nós mesmos praticamos, muita vez apenas com nossas palavras e
sentimentos de ira contra criminosos, pobres etc.
Antes de nos chocarmos com a pregação do juízo, deveríamos nos

82
BÍBLIA Introdução ao AT

colocar na pele de Jeremias e tentar entender o mundo em que ele vivia,


no qual a guerra era constante. Nele, Judá e Jerusalém estavam sofrendo
sob o feroz jugo dos exércitos babilônicos, na sequência do sofrimento
sob os exércitos assírios e egípcios nos séculos VIII e VII a.C. Essa era a
linguagem que Jeremias podia usar, pois essa era a realidade em que ele
vivia. Antes de nos chocarmos com a linguagem de Jeremias, deveríamos
nos certificar de que não devemos entender a palavra profética como uma
justificativa para a violência, mas sim como uma crítica incisiva contra a
violência. Guerra e mortandade são práticas pecaminosas e consequên-
cias do pecado humano – configurado em ganância, ambição, desejo de
poder. Muitos sofrem porque poucos desejam tudo. Muitos sofrem porque
se fecham em seu pequeno mundo e não enfrentam os poderosos a quem
criticam tão veementemente.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Tivemos apenas um pequeno vislumbre da grande riqueza da mensa-


gem profética. Espero que este texto sirva de incentivo para você estudar
a fundo os Profetas Posteriores, em busca de conhecimento para uma
espiritualidade mais sólida e íntegra, bem como prática missionária mais
relevante e integral. Fiquemos com a exortação profética: “Ele (YHWH)
te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor requer de ti,
senão que pratiques a justiça, e ames a benevolência, e andes humilde-
mente com o teu Deus” (Mq 6.8).

83
Módulo 4

Estudando os Escritos
BÍBLIA Introdução ao AT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Você chegou ao quarto módulo. Parabéns! É importante perseverar e


avançar nos estudos. Já passamos pela Torá e pelos Profetas. Agora es-
tudaremos a terceira seção do cânon hebraico, os Escritos. Esta seção é
composta de livros bem diferentes uns dos outros e tem como uma de suas
características mais marcantes os livros cujo gênero discursivo é totalmente
poético. Por isso, antes de estudar os livros propriamente ditos, veremos as
principais características do estilo poético da língua hebraica antiga.
Como de costume, temos alguns objetivos a serem alcançados, para
que o aprendizado aconteça. Assim, ao final deste Módulo você deverá
ser capaz de:

1. Definir paralelismo e descrever seus principais tipos;


2. Explicar a natureza da sabedoria israelita como filosofia prática;
3. Descrever os principais conteúdos dos livros sapienciais da Bíblia;
4. Explicar os três principais tipos de salmos: lamento, ação de graças
e hino de louvor;
5. Descrever os principais conteúdos dos livros narrativos nos Escritos.

Bom trabalho. Paz e bênção!

1. OS ESCRITOS E A POESIA HEBRAICA

Os Escritos formam a terceira seção do cânon hebraico da TaNaK e são


compostos de livros de diferentes gêneros literários e procedências socio-
culturais, tais como: Crônicas, Esdras e Neemias = gênero histórico-biográ-
fico; Ester e Rute = gênero novelístico; Daniel = gênero apocalíptico; Salmos
= gênero litúrgico e Provérbios, Eclesiastes, Jó e Cantares de Salomão =
gênero sapiencial. O fato de fazerem parte dos Escritos já sugere que esses
livros são de redação pós-exílica tardia (ainda que haja materiais bem anti-

85
FATIPI EAD Guia de Estudos

gos em alguns desses livros), tendo sido escritos por volta dos séculos III e
II a.C. Eles refletem as estratégias de implantação da identidade étnico-reli-
giosa monocêntrica e as resistências à mesma, bem como o enfrentamento
com a cultura helênica pós-persa (séc. III a.C. em diante).
O livro dos Salmos e os livros sapienciais também são chamados de
livros poéticos, pois quase todos os seus textos são escritos como poesia
para uso pessoal ou litúrgico, declamada ou cantada. No Antigo Israel,
como hoje em dia, a música e a poesia eram meios privilegiados para
expressão da interioridade pessoal e comunitária, de tal modo que a lin-
guagem da poesia é, predominantemente, metafórica e simbólica, carac-
terísticas que dificultam a datação e o referencial (a que situações histó-
ricas o texto se refere) de poesias em particular (Sl, Ct), bem como sua
interpretação. No livro de Salmos são usados os seguintes termos para
descrever a música e a poesia litúrgicas:
• Mizmor – Poesia cantada, exclusivamente, com o acompanhamento
de instrumentos de corda;
• Shir – canto de qualquer tipo, mesmo sem acompanhamento instru-
mental;
• Mashal - comparação, provérbio, enigma, também usado para cântico
satírico;
• Quiná – lamento em geral, ou cântico fúnebre em especial;
• Tehillá - hino de louvor.
Diferentemente da poesia atual, a hebraica antiga não é caracteriza-
da pela rima, e sim pelo ritmo sonoro e pela métrica textual. A poesia é,
em geral, articulada por meio de versos e estrofes, podendo haver o uso
de estribilhos ou refrões. O paralelismo é a característica dominante da
poesia hebraica (e mesmo de textos não propriamente poéticos), tanto em
relação ao conteúdo, quanto em relação à forma. Por paralelismo se des-
creve o hábito linguístico hebraico antigo de apresentar as ideias através
da repetição temática. Ao invés de escrever em forma linear (introdução,
desenvolvimento, conclusão), como é nosso costume, os antigos judeus

86
BÍBLIA Introdução ao AT

escreviam em forma paralela, numa espécie de ir e vir, fazendo o pensa-


mento crescer mediante a repetição criativa.
Há vários tipos de paralelismo no Antigo Testamento.

Paralelismo Sinonímico: a segunda (ou a segunda e a terceira) linha,


com vocábulos diferentes, reforça/repete a temática da primeira: “Ao SE-
NHOR pertence a terra e tudo o que nela se contém, o mundo e os que
nele habitam” (Salmo 24.1);

Paralelismo Antitético: a segunda linha apresenta contraste em re-


lação à primeira: “Pois o Senhor conhece o caminho dos justos; mas o
caminho dos ímpios perecerá” (Salmo 1.6);

Paralelismo Sintético (muito parecido com o sinonímico): a segunda


linha sintetiza o sentido da primeira: “Cantarei ao.Senhor; porquanto me
tem feito muito bem” (Salmo 13,6);

Paralelismo Emblemático: a primeira linha serve de emblema para


ilustrar a segunda, não há contraste e se confunde com o sinonímico:
«Como água fria para o sedento, tais são as boas-novas vindas de um
país remoto” (Provérbios 25.25).

Estas são classificações baseadas no conteúdo, veremos a seguir ti-
pos baseados na forma:

Paralelismo Quiástico, cuja forma segue o padrão esquematizado


pela letra X (QUI, em grego): AB B’A’ - o elemento A está em paralelo com
o A’ e o elemento B com o B’. Exemplo: Salmo 25.7
A “de meus pecados juvenis, de minhas culpas,
B não te lembres;
B’ lembra-te de mim

87
FATIPI EAD Guia de Estudos

A’ segundo a tua fidelidade”


Paralelismo Semi-Quiástico, padrão AB com A’B’. Exemplo: Zacarias 7.13
A Visto que eu clamei,
B e eles não me ouviram,
A’ eles também clamaram,
B’ e eu não os ouvi, diz o SENHOR dos Exércitos”;

Paralelismo Concêntrico, padrão ABC D C’B’A’, que também pode


ser usado para organizar perícopes extensas e até mesmo seções de li-
vros e livros inteiros. Exemplo: Deuteronômio 10.12-22

Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor teu Deus requer de ti?
Não é que temas Javé, teu Deus, andando em todos os seus
caminhos, e o amando, e servindo a Javé, teu Deus, de todo o
teu coração e de toda a tua alma, e guardando os mandamentos
de Javé e os seus estatutos que te ordeno hoje, para o teu bem?
Eis que os céus e os céus dos céus são de Javé, teu Deus,
a terra e tudo o que nela há. Contudo, Javé se ligou a teus
pais para os amar, a vós, descendentes deles, escolheu
dentre todos os povos, como hoje se vê.
Circuncidai, pois, o vosso coração, e não mais endu-
reçais a vossa cerviz.
Pois Javé, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor
dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não
faz acepção de pessoas, nem aceita suborno; que faz jus-
tiça ao órfão e a viúva e ama o imigrante, dando-lhe pão e
vestes. Amai, pois, o imigrante, porque fostes imigrantes na
terra do Egito.
A Javé, teu Deus, temerás; a ele servirás, a ele te ligarás, e pelo
seu nome, jurarás.
Ele é o teu louvor e o teu Deus, que te fez estas grandes e terrí-
veis coisas que os teus olhos têm visto.
Em setenta pessoas, teus pais desceram ao Egito; mas agora, Javé,
teu Deus, te multiplicou como as estrelas dos céus.

88
BÍBLIA Introdução ao AT

2. OS ESCRITOS SAPIENCIAIS

2.1. A sabedoria israelita – uma filosofia prática

A sabedoria era um fenômeno intercultural no mundo antigo, tanto no


Oriente como no Ocidente, com o nome de filosofia (‘amor à sabedoria’).
Sua função básica era responder a pergunta: “como viver bem?”. No Antigo
Oriente, a teoria comum, subjacente a toda reflexão sapiencial, era a noção
de ordem cósmica, garantida pela(s) divindade(s), ou seja, a pessoa sábia
era aquela que conseguia decifrar e entender o funcionamento do mundo e,
a partir desse entendimento, explicar como o ser humano pode viver bem
nesse mundo. Embora Israel e Judá tenham desenvolvido sua própria sa-
bedoria, a interculturalidade da reflexão sapiencial deixa sua marca no pró-
prio Antigo Testamento, tanto na apropriação crítica de temas sapienciais
egípcios, cananeus, mesopotâmicos e/ou helênicos, quanto na utilização de
elementos e gêneros textuais estrangeiros (e.g. Pv 1-9 segue o estilo egíp-
cio da Instrução; Pv 22.17-23.14 é similar à Sabedoria de Amenêmope, bem
como as coleções de Agur e Lemuel, Pv 30-31).

YHWH cria e ordena o mundo

Sábio teme a YHWH e observa o mundo

Sabedoria ensina a viver bem no mundo

“A arte sapiencial da vida consiste em reconhecer a ordem


abrangente universal no exercício da vida e solidificá-la pela
prática da ‘justiça’ (axioma: justiça produz shalom ‘salvação,

89
FATIPI EAD Guia de Estudos

paz’). O ponto de partida da arte sapiencial da vida não é uma


revelação de Deus, qualquer que seja sua forma, mas a razão
do ser humano que visa dominar a vida. Na teologia sapiencial
tardia de Israel é a própria sabedoria divina que inspira as pes-
soas em sua busca por sabedoria” (ZENGER, 2003: 284).
Não se pode, porém, entender esta descrição como se a sa-
bedoria israelita fosse secular (sem Deus). Como descreve
Zenger: “em Israel isso está fundamentado no que a sabedoria
denomina ‘temor a Deus’ Cf. Pv 1.7; 9.10; 15.32; Jó 28.28”
(ZENGER, 2003:284). O temor a Deus consiste na reverente
confiança em Deus como aquele que, “não obstante todas as
perturbações e perigos, governa o todo e dá sucesso à traje-
tória de vida das pessoas que buscam as ordens da vida, que
agem de acordo com elas e as comunicam adiante” (ZENGER,
2003: 285).

2.2. Os livros da sabedoria israelita

Seguindo o cânon hebraico, os livros de Sabedoria (ou Sapienciais)


são: Provérbios, Jó, Eclesiastes e Cantares de Salomão (Cântico dos
Cânticos). Vejamos as principais características de cada um deles.

a) O livro de Provérbios é uma coletânea (coleção) de ditos sapienciais


(provérbios) e narrativas sapienciais. Os textos que compõem o livro de Pro-
vérbios são de diferentes autores, épocas da história de Israel, e até mesmo
de fora de Israel (em Pv 30 e 31 os ditos são atribuídos a sábios de Massá).
Como indicado acima, os textos sapienciais são fruto da reflexão dos sábios
sobre a vida humana e da natureza e, desse modo, refletem os limites e as
possibilidades da condição social, econômica e pessoal de seus autores.
Por isso, encontramos no livro de Provérbios ditos que descrevem aspectos
da realidade de formas distintas e até mesmo antagônicas.
A estrutura do livro de Provérbios, seguindo os títulos internos do pró-
prio livro, é constituída de sete partes:

90
BÍBLIA Introdução ao AT

1-9 – Provérbios de Salomão – Os conhecimentos dos sábios


10.1 – 22.16 Mais Provérbios de Salomão – Os conhecimentos dos sábios
22.17 – 24.22 Palavras dos Sábios – Os conhecimentos dos sábios
24.23-34 – Mais Palavras dos Sábios – Os conhecimentos dos sábios
25-29 – Mais Provérbios de Salomão – Os conhecimentos dos sábios
30 – Provérbios de Agur - Os conhecimentos dos sábios
31 – Provérbios de Lemuel - Os conhecimentos dos sábios

Não é fácil perceber a estrutura temática no livro, pois os “conhecimen-
tos dos sábios” versam sobre assuntos bastante diversos, embora ligados
pelo tema de viver de acordo com o temor de YHWH. Um dos fios temáti-
cos mais interessantes do livro é o da personificação da Sabedoria como
mulher. Em 1.20-33 a Sabedoria é mulher que discursa perante o público,
enquanto em 31.1-31 é a mulher sábia quem governa bem a casa. Tam-
bém no capítulo 8 é a Sabedoria mulher quem fala e ensina e no capítulo 9
é ela quem constrói a casa. Como o livro, o poema sapiencial de 31.10-31
é estruturado em sete partes. Segundo Schönberger:

A mulher eficiente, sábia e temente a Javé é uma forma da


encarnação da Sabedoria preexistente, por intermédio da qual
Javé criou o mundo e cuja alegria é estar com os seres hu-
manos (8.22-31). Ela é um paradigma da existência humana
bem-sucedida, que concretiza a boa ordem da Criação no lar
vivencial das pessoas (ZENGER, p. 326).

b) Jó
O livro de Jó e um dos mais belos da literatura mundial. Não é à toa
que apresenta, por um lado, grande fascínio para leitores e leitoras e, por
outro lado, grandes dificuldades para sua compreensão. Sua estrutura é
bastante simples: Prólogo (caps. 1-2); Diálogos (caps. 3-42,6) e Epílogo

91
FATIPI EAD Guia de Estudos

(42,7-17). Essa simplicidade, porém, encobre a complexidade dos temas


tratados no livro. Em síntese, os discursos do livro de Jó representam duas
visões contrastantes da sabedoria no Antigo Israel: os discursos dos ami-
gos de Jó e mesmo os discursos de Jó representam a visão conservadora
da sabedoria israelita, semelhante à sabedoria de outros países do Antigo
Oriente, na qual tudo na vida se explica por uma relação causa-efeito: se
você é bem-sucedido, é abençoado por Deus; se é mal-sucedido, é amal-
diçoado por Deus. Se é rico, é abençoado; se tem saúde, é abençoado;
se é justo, é abençoado. Essa teologia simplória está na base de várias
formas de moralidade e teologia ao longo da história e, hoje em dia, é
a base da chamada teologia da prosperidade. Entretanto, o livro de Jó
questiona essa visão conservadora! Nos discursos de YHWH (38.1-40.2 e
40.6-41.26), o Senhor ensina a Jó, e a quem lê o livro, que a vida é muito
complexa e que somente YHWH conhece o princípio e o fim das coisas.
A pessoa sábia não é aquela que explica tudo, mas aquela que teme a
YHWH e, mesmo quando não consegue explicar algo, pratica a vontade
do Senhor. Em particular, o tema do sofrimento é tratado, a partir da situa-
ção de Jó. O sofrimento, as doenças, a falta de dinheiro, os fracassos na
vida não são evidência de que uma pessoa não é abençoada por Deus.
O sofrimento é uma consequência do pecado e da injustiça humana, mas
não pode ser explicado com base no que a pessoa que sofre fez em sua
existência. A vida humana não possui uma ordem de causa-efeito, mas
uma estrutura relativamente misteriosa, que não pode ser explicada por
nós mesmos. Diante do sofrimento, a atitude a se desenvolver é a da
solidariedade para com quem sofre e a da fidelidade a YHWH, que criou o
mundo, o governa e sofre com os que sofrem.

c) Cantares de Salomão
O livro de Cantares é uma coletânea de poesias de amor. Não sabe-
mos com certeza se há uma espécie de enredo, ou se, simplesmente, é
uma coleção sem ordem temática. As muitas tentativas de encontrar a es-

92
BÍBLIA Introdução ao AT

trutura do livro dão testemunho desse nosso desconhecimento. Podemos


perceber pelo menos três partes principais -- 1.1-2.7; 2.8-5.1 e 5.2-8.14 –,
mas a organização de cada parte e as relações entre as partes podem ser
explicadas de formas bem diferentes.
Mais importante, porém, é como interpretar o livro. O modelo herme-
nêutico mais conhecido é o tipológico-alegórico: Cantares representa o
amor de Deus pela humanidade, ou por Israel, ou o amor entre Cristo e a
Igreja. Embora essa interpretação seja possível e tenha valor, ela encobre
o aspecto mais claro e direto do livro: ele trata do amor entre homem e
mulher, ele trata do amor Eros, da paixão que une duas pessoas e as faz
“uma só carne”. Se adotamos o modelo da hermenêutica não alegórica,
enxergamos em Cantares uma sublime explicação do amor e da paixão
entre duas pessoas. Em uma época como a nossa, em que os discursos
sobre sexualidade enfatizam apenas o prazer, Cantares oferece uma teo-
logia do amor e da sexualidade que pode fazer a diferença.

d) Eclesiastes
Por fim, chegamos ao Eclesiastes. É o livro mais recente dos sapienciais
do cânon hebraico, escrito já no período helenístico. É conhecido, também,
como Qohélet (transliteração da palavra hebraica que indica o autor do livro
em Ec 1.1 e significa colecionador, pregador ou membro da assembleia).
De modo semelhante ao livro de Cantares, não há consenso entre os estu-
diosos sobre a estrutura do livro, nem mesmo com relação à interpretação
da estrutura temática e argumentativa do mesmo. O que mais importa para
entender Eclesiastes é perceber que o livro apresenta uma visão conflitiva
da sabedoria. Eclesiastes tenta, ao mesmo tempo, questionar as visões vé-
tero-oriental e helênica da sabedoria, e contrapor essas visões à sabedoria
baseada no temor a YHWH. Suas ideias básicas parecem ser: (a) a vida
humana é marcada pela finitude e pela morte, de modo que pouco importa o
ter, e sim, o ser fiel e temente a YHWH; (b) mesmo sendo finita, a vida huma-
na no presente é valiosa e deve ser vivida com intensidade, sob o temor de

93
FATIPI EAD Guia de Estudos

YHWH; (c) para viver a vida intensamente, é preciso refletir cuidadosamente


sobre os seus limites, a fim de não desperdiçarmos tempo e energia com o
que não nos fará felizes diante de YHWH.

Sabedoria Tudo se explica por Causa-Efeito


Conservadora A ordem do mundo é impessoal

Sabedoria Nem tudo se explica


temente a YHWH Temor de YHWH é a chave da vida feliz

3. TEXTOS LITÚRGICOS NOS ESCRITOS

O livro dos Salmos é, certamente, o livro veterotestamentário mais lido


nas igrejas cristãs. Sua forma hínica e poética, suas temáticas litúrgicas,
devocionais, pessoais atraem leitores que buscam desenvolver a espiri-
tualidade, a capacidade de oração, a percepção da majestade divina e
o crescimento espiritual. Mas, juntamente com esses aspectos pessoais
e devocionais, os Salmos também nos apresentam temas da sabedoria
(como viver bem), da história de Israel, da política (há vários salmos que
tratam da entronização de reis humanos, assim como há salmos que te-
matizam o reinado divino), da controvérsia teológica entre profetas e sa-
cerdotes e da esperança messiânica.

3.1. O livro dos Salmos

O Saltério, como também é chamado o livro dos Salmos, é uma coletâ-


nea de poemas e canções litúrgicas de várias épocas da história israelita
(de c. 1.100 a.C. [Sls 29, 68] até c. 300 a.C. [Sl 119]), cuja forma final foi
elaborada por volta de 300 a.C. Os Salmos, em semelhança à Torá, é

94
BÍBLIA Introdução ao AT

dividido em cinco livros -- 1-41; 42-72; 73-89, 90-106; 107-150 –, de modo


que ele funciona como uma espécie de Torá Litúrgica. Não sabemos como
a redação final foi feita, nem os critérios de seleção entre o material mais
rico da poesia cúltica israelita, mas podemos comparar o livro dos Salmos
com os hinários das Igrejas, que representam a fé vivida liturgicamente
pela comunidade ao longo de sua história.
Há rica variedade de formas textuais e litúrgicas no livro, que expres-
sam a diversidade da vida religiosa e do culto propriamente dito:

Gêneros Textuais nos Salmos


(os Salmos marcados com * aparecem em mais de um gênero)

Salmos de Lamento

12, 44, 58, 60, 74, 79, 80, 83, 85, 89*, 90, 94,
Comunitário
123, 126, 129

3, 4, 5, 7, 9-10, 13, 14, 17, 22, 25, 26, 27*, 28,


31, 36*, 39, 40:12-17, 41, 42-43, 52*, 53, 54,
  Individual
55, 56, 57, 59, 61, 64, 70, 71, 77, 86, 89*, 120,
139, 141, 142

Salmos Específicos de Lamento

  Penitencial 6, 38, 51, 102, 130, 143

  Imprecatório 35, 69, 83, 88, 109, 137, 140

Salmos de Ação de Graças (Todah)

  Comunitário 65*, 67*, 75, 107, 124, 136*

18, 21, 30, 32*, 34, 40:1-11, 66:13-20, 92,


  Individual
108*, 116, 118, 138

95
FATIPI EAD Guia de Estudos

Salmos Específicos de Ação de Graças (Todah)

  História da Salvação 8*, 105-106, 135, 136

  Cânticos de Fé 11, 16, 23, 27*, 62, 63, 91, 121, 125, 131

Salmos Hínicos

8*, 19:1-6, 33, 66:1-12, 67*, 95, 100, 103,


  Hino e Doxologia 104, 111, 113, 114, 117, 145, 146, 147, 148,
149, 150

Salmos Litúrgicos

  Da Aliança 50, 78, 81, 89*, 132

2, 18, 20, 21, 29, 45, 47, 72, 93, 95, 96, 97, 98,
  Reais
99, 101, 110, 144

  De Sião 46, 48, 76, 84, 87, 122

  Liturgias do Templo 15, 24, 68*, 82, 115, 134

Tipos Especializados

  Sabedoria 1*, 36*, 37, 49, 73, 112, 127, 128, 133

  Torá 1*, 19:7-14, 119

3.1.1. O lamento litúrgico

Estrutura dos Salmos de Lamento:

I. Fala a Deus, Invocação


a) fala em primeira pessoa, para Deus em segunda pessoa
b) pleito inicial
II. Queixa a Deus

96
BÍBLIA Introdução ao AT

a) descrição do problema, perguntas a Deus


b) crise de qualquer tipo, nomeada como pecado
c) alegação de inocência
d) (quase sempre) pedido inicial de socorro
e) condenação dos ímpios ou dos inimigos
III. Afirmações de Fé/Confiança
a) “Mas, quanto a mim” ou “Entretanto”
b) “virada”; foco teológico
IV. Petição
a) súplica por intervenção divina
b) uso comum das palavras “libertar” ou “salvar”
V. Reconhecimento da Resposta
a) certeza de ser ouvido
b) voto de louvor; adoração
VI. Doxologia: bênçãos, louvor

A maior parte dos Salmos tem a forma textual e litúrgica do lamento. O


termo lamento, no mundo hebraico antigo, é a forma especializada da palavra
“grito”, “pedido de socorro” que se usou, por exemplo, em Êxodo 2-3 para
falar do grito dos hebreus oprimidos ao seu Deus em busca de libertação.
Ao longo da história de Israel, o lamento se tornou uma prática litúrgica fun-
damental – tanto na devoção pessoal quanto no culto público. Do ponto de
vista devocional-litúrgico, o lamento expressa: (a) súplica, pedido de ajuda ou
oração por socorro; (b) intercessão; e (c) confissão de pecado ou de insufi-
ciência diante de Deus. Neste sentido, o lamento é o contraponto do louvor
ou ação de graças e, juntamente com este, constitui a totalidade da devoção:
louvor e gratidão a Deus, por um lado, confissão e petição, por outro.

3.1.2. A gratidão litúrgica

Ao lado dos Salmos de lamento, os de ação de graças completam

97
FATIPI EAD Guia de Estudos

a maior parte dos salmos da devoção pessoal e da liturgia pública. Eles


expressam a gratidão e o louvor do israelita a YHWH, que age em seu
benefício e em benefício de toda a criação. Em certo sentido, o Salmo de
gratidão é a continuação do lamento, pois representa o reconhecimento,
por parte do adorador, de que Deus atendeu sua oração. A gratidão é
componente fundamental da devoção pessoal e do culto público, pois ela
manifesta o reconhecimento do agir de Deus, da Sua graça e misericór-
dia, de Sua atenção para com Seu povo. Claus Westermann, teólogo do
Antigo Testamento, afirmou que gratidão e lamento compõem a totalidade
da vida cúltica, pessoal e litúrgica, na medida em que, por meio deles, a
relação com Deus abrange todas as dimensões da vida humana.

Estrutura dos Salmos de ação de graças:


I. Sumário do testemunho do salmista
    a) relembra pedido de socorro
    b) narra a intervenção divina
II. Narração da experiência do salmista
    a) o problema original
    b) o clamor por socorro
    c) a libertação divina
III. Ação de graças pela intervenção divina
    a) louvor com a palavra todah: cântico, sacrifício, bênção
    b) grito de louvor

3.1.3. Hinos de louvor

Uma forma textual derivada da ação de graças é o hino ou salmo hí-


nico. Por salmos hínicos a classificação acima entende aqueles Salmos
que expressam gratidão a Deus, não tanto pelo que Ele faz ou fez, mas,
primariamente, pelo que Ele é ou pode fazer. Os hinos são expressões de
gratidão nas quais se destaca o conhecimento de Deus, o aprendizado de

98
BÍBLIA Introdução ao AT

quem Ele é e faz, a fim de que saibamos o que pedir e como agradecer.

Estrutura dos Salmos hínicos:

I. Convocação ao Louvor
a) imperativo
b) dirigido à comunidade (plural)
II. Motivo do Louvor
a) palavra introdutória (porque etc.)
b) Deus descrito com oração subordinada, “Deus, tu que …”
c) a libertação divina
III. Nova convocação ao Louvor
a) imperativo
b) dirigido à comunidade (plural)

3.1.4. Salmos Litúrgicos e Tipos Especializados

Na classificação acima, salmos litúrgicos são aqueles que, acreditam


os pesquisadores, eram usados em festas cúlticas específicas. Os Salmos
da Aliança teriam sido usados nas festas de final de ano, celebrando a
aliança entre YHWH e seu povo. Os Salmos Reais teriam sido usados em
cerimônias de entronização de um novo rei, ou em cerimônias de exalta-
ção de um rei já no exercício de seu poder. Os Salmos de Sião e as Litur-
gias do Templo eram usados nas peregrinações ao templo de Jerusalém,
celebravam a sua grandeza e a alegria de adorar a Deus no seu santuário.
Do ponto de vista da atitude litúrgica, os Salmos de Ação de Graças indi-
cavam gratidão a Deus pela colheita, pela eleição, pela fidelidade divina,
pelo privilégio de adorá-Lo.
Os Salmos de Sabedoria não eram, provavelmente, usados nas litur-
gias públicas, mas na devocional pessoal. Fazem uma espécie de contra-
ponto ao teor quase “secular” da reflexão sapiencial. Os Salmos da Torá,

99
FATIPI EAD Guia de Estudos

por outro lado, deveriam ser usados em cultos públicos nos quais a leitura
da Palavra de Deus era um componente importante. Estes dois tipos es-
pecializados de Salmos são os mais recentes, já da época do Segundo
Templo, e manifestam o crescimento da importância da leitura da Palavra
no culto público e na vida devocional privada, juntamente com a sabedoria
necessária para entendê-la.

4. TEXTOS NARRATIVOS NOS ESCRITOS

Os textos narrativos que pertencem à seção canônica Escritos são:


Rute, Ester, Esdras e Neemias (um só livro na Bíblia Hebraica), e 1 e
2Crônicas (também um só livro na Bíblia Hebraica). Do ponto de vista do
conteúdo teológico e do lugar social, esses livros podem ser divididos em
dois grupos: (1) Esdras, Neemias e 1 e 2Crônicas (que alguns pesquisa-
dores têm chamado de Obra Histórica Cronística - OHCr); e (2) Rute e
Ester. A OHCr e o livro de Rute se contrapõem social e teologicamente,
enquanto o livro de Ester, mais tardio do que os outros, lida com um pro-
blema específico da vida dos judeus sob a dominação helênica.

4.1. A obra cronística e Rute

A OHCr e Rute (em sua forma final) provêm da segunda metade da


dominação persa sobre Judá e representam duas posições antagônicas
relativas à identidade e estruturação social de Judá. A OHCr é uma defesa
da centralidade do templo e do sacerdócio, enquanto Rute é um escrito de
resistência contra essa proposta identitária. Por um lado, a OHCr valoriza
Davi e Salomão como grandes reis e homens de fé mas, por outro, defen-
dem o papel d. sacerdotes e escribas como os novos governantes de Judá
sob os persas. Os sacerdotes e os escribas são os conhecedores da Torá,
por isso acabam ocupando o lugar dos reis no governo do povo, cf. 2Cr
36,22-23 (que liga textualmente Crônicas a Esdras e Neemias).

100
BÍBLIA Introdução ao AT

(a) A estrutura dos livros de Esdras e Neemias é a seguinte:

Ed 1.1-10.44
A 1.1-6.22 - Construção Templo + Oposição
B 7.1-10.44 – A Torá e a Nova Identidade
Ne 1.1-10.40
A’ 1.1-7.4 - Construção do Muro + Oposição
B’ 7.5-10.40 - A Torá e a Nova Identidade
Ne 11.1-13.31
A’’ 11.1-12.47 - Restauração de Jerusalém e do Templo de Javé
B’’ 13.1-31 - ATorá e a Nova Identidade

(b) Já os livros de Crônicas estão assim organizados:

1Cr 1-8 - De Adão a Davi-Jerusalém


1Cr 9-29 - O reinado de Davi, Jerusalém sem Templo
2Cr 1-9 - O reinado de Salomão, Jerusalém com Templo
2Cr 10-36 - Reis de Judá, Jerusalém, fim e recomeço

(c) O livro de Rute, em contraste com a OHCr, resiste contra a centra-


lização do Templo e do sacerdócio, especialmente em oposição à noção
de “pureza genealógica” e à supervalorização do masculino na religião e
no poder. Rute defende: (a) que o povo de YHWH pode ser composto por
pessoas não-judaístas, pois a sua principal personagem é moabita e as-
cendente do rei Davi; (b) o protagonismo das mulheres, tanto na fé (Rute
decide ser javista), quanto na vida social (Noemi e Rute trabalham para
que o costume do levirato seja cumprido e elas tenham o seu sustento ga-
rantido). Em outras palavras, o livro de Rute joga a Torá (o casamento pelo
levirato e a aceitação de estrangeiras) contra a Torá (expulsão das espo-
sas estrangeiras), valorizando a pluralidade e a solidariedade. O judaísmo
do Segundo Templo costumava ler este livro na Festa das Semanas.

101
FATIPI EAD Guia de Estudos

A estrutura do livro de Rute é relativamente simples, demonstrando


uma organização quiástica:
A 1.1-5
B 1.6-22
C 2.1-23
C’ 3.1-18
B’ 4.1-12
A’ 4.13-22

4.2. Ester e a sobrevivência do povo de Deus

O livro de Ester pode ser classificado em separado da polêmica entre


a OHCr e o livro de Rute. Ester, provavelmente, é de um período posterior
ao da redação da OHCr e de Rute, o que sugere que o livro seja datado do
início do período helênico (sua complicada história textual dá testemunho
disso, pois há diferentes versões antigas do livro, em hebraico e grego –
com duas versões, uma delas na Septuaginta (LXX) e outra apenas em
manuscritos isolados. As edições protestantes da Bíblia usam o texto he-
braico, enquanto as católicas e as ortodoxas orientais dão preferência ao
texto grego da Septuaginta. Assim, caso você tenha interessa em verificar
as diferenças entre essas duas versões, já sabe como fazê-lo). A temática
do livro de Rute também é peculiar: a sobrevivência do povo de YHWH em
uma sociedade antagônica a ele. É lido liturgicamente na festa dos Purim.
A narrativa é ambientada no período persa e descreve um rei autoritá-
rio e fraco (não consegue sequer fazer sua esposa principal obedecê-lo),
facilmente manipulável por membros da corte. Esse rei edita um decreto
ordenando o extermínio dos judeus, que encontram o caminho para se
livrar dessa ameaça por meio da atuação sábia e contundente de Ester,
a bela e sagaz rainha. O ponto que mais ressalta no livro é a ausência de
YHWH! Nesse sentido, o livro pode ser entendido como uma teodiceia, a
defesa da fé diante do sofrimento injustificado.

102
BÍBLIA Introdução ao AT

1.1-2.23 3.1-7.10 A 8.1-9.19 9.20-10.3

Estabelecimento ameaça de A salvação dos A exaltação


do Cenário: extinção dos judeus de Ester
Ester rainha judeus e Mordecai

5. O LIVRO DE RUTE: UM EXEMPLO DE LEITURA

Começo de uma forma tradicional na pesquisa exegética, ou seja, para ler


um livro é preciso acompanhar a sua estrutura. A estrutura do livro de Rute é:

A 1.1-5 A estrangeira sem descendência


B 1.6-22 Noemi, go’el de Rute
C 2.1-23 Rute a serviço de Boaz
C’ 3.1-18 Boaz a serviço de Rute
B’ 4.1-12 Boaz, go’el de Rute
A’ 4.13-22 A estrangeira “mãe” de Davi

Atenção!

Se você nunca leu o livro de Rute, ou então já leu e não


se lembra da história contida nele, é importante que você
o leia antes de continuar com o texto a seguir.

5.1. Lendo Rute a partir de questões de gênero, raça e migração

O livro de Rute se inicia com história tradicionalmente patriarcal. O nar-


rador apresenta as personagens principais: Elimeleque, seus dois filhos e

103
FATIPI EAD Guia de Estudos

as personagens coadjuvantes – as esposas Noemi, Orfa e Rute (1.1-5).


Imediatamente o cenário se modifica com a morte dos três homens, de
modo que Noemi passa a ser a personagem principal juntamente com
suas noras. A partir do verso 6 até o verso 22 do primeiro capítulo, a “voz”
é das mulheres que dialogam e decidem o que fazer de suas vidas. No
capítulo 2 é Rute que se torna a personagem principal e entra em cena
Boaz, seu coadjuvante. Note que o verso 1 introduz a cena (Noemi tem um
parente [...]), mas a partir do verso 2 é Rute quem fala e toma a iniciativa
como trabalhadora. O capítulo conclui no verso 23 com uma espécie de
anticlímax: Rute trabalhando com as demais servas de Boaz e morando
com sua sogra.
No capítulo 3, Noemi retoma a iniciativa. Vendo a situação “parada”
de sua vida com Rute, ela propõe à nora um projeto dentro dos limites do
mundo patriarcal em que viviam: “que tal, ao invés de servir a Boaz como
as outras, você seduzi-lo e se tornar a sua esposa? Assim, você terá terra,
descendência e segurança – e eu também terei meu futuro garantido”. E
assim Rute se foi e realizou o projeto feminista-patriarcal de Noemi – che-
gamos ao clímax da narrativa com Rute seduzindo Boaz na eira à noite.
Segue-se o capítulo 4 que, em sua primeira parte (versos 1-12), tem Boaz
como protagonista e o parente-redentor de Noemi mais os homens da
região como coadjuvantes – a voz das mulheres some da narrativa, mas
elas não! Noemi é anunciada por Boaz como “protagonista”: irá vender a
terra de seu marido falecido! Mas, como? A terra era dela? Se era, por que
ela propôs a Rute o casamento com Boaz ao invés de ela e Rute cuida-
rem de sua própria terra? Bem, deixemos este detalhe guardado para uso
posterior. Boaz astutamente consegue convencer o parente-redentor de
Noemi a não usar seu direito (para esse parente, a terra seria algo bom,
mas não Rute, que criaria um problema econômico para ele). Boaz, en-
tão, resgata a terra, assume Rute como esposa, recebendo a bênção dos
anciãos, que se materializa no desejo de que ele se torne pai de multidão
em Israel. Chegamos ao desfecho da narrativa. Mas, algo mais está por

104
BÍBLIA Introdução ao AT

vir. O desejo dos anciãos se realiza. Rute dá à luz, e o garoto se torna


ancestral do futuro rei Davi, o grande modelo de monarca na literatura da
época do livro de Rute. A seção final (4.13-22) do livro mescla mulheres
e homens como protagonistas. Em primeiro lugar, as mulheres: Rute dá à
luz, as mulheres israelitas abençoam Noemi (não nos esqueçamos: Boaz
aparece em primeiro lugar no capítulo, mas apenas como progenitor do
filho de Rute). Em segundo, os homens, meramente nomeados em uma
lista genealógica que termina em Davi.
O que aprendemos no tocante a gênero? Primeiro, a pessoa não preci-
sa ser definida pelo seu entorno (estrutura). Noemi era uma mulher gerada
e vivida em um mundo patriarcal – subalterna em relação aos homens,
objeto de troca econômica de seu pai e, mesmo quando “proprietária de
terras”, impossibilitada de gerenciar a sua terra e sustentar-se de modo
autônomo. Segundo, gênero é uma definição identitária, uma construção
de subjetividade. Para Noemi, ser mulher (gênero) não era assumir re-
signadamente o papel que lhe fora dado pela família e pela sociedade.
Ela foi além, tornou-se protagonista: conhecia as possibilidades materiais
e legais para sua sobrevivência, estava empoderada pela fé (o Deus de
Israel aparece oito vezes na fala de Noemi no primeiro capítulo e só onze
vezes nos demais capítulos do livro) e soube planejar uma estratégia para
se tornar emancipada juntamente com sua nora Rute, a quem jamais dei-
xou de ser fiel (cumprindo, assim, o ethos da berit de YHWH, ou seja, o
modo de viver da Aliança). Terceiro, assumir seu próprio modo de viver o
gênero particular não é uma prática de negação do “outro” gênero, mas de
autoemancipação que possibilita (mas não de modo automático) a eman-
cipação do outro gênero. Boaz aprendeu com Rute e Noemi – sua reação
à sedução de Rute não foi “machista” –, ele não tirou proveito da sensua-
lidade daquela “serva” de sua fazenda. Ele a viu e a tratou como pessoa
(3.10-13) e, em especial, viu nela o pertencimento à aliança de YHWH,
viu nela a sua fidelidade benigna. Ele também não se deixou definir pelo
seu entorno, e olhe que já estava com uma certa idade, aquela em que se

105
FATIPI EAD Guia de Estudos

costuma dizer que “nada mais muda”. Boaz se deixou afetar pela bondade
fiel de Rute, de modo que sua masculinidade (gênero) não funcionou de
modo patriarcal (machista).
Além das questões de gênero, o livro nos permite abordar questões
de raça. O texto se inicia com Elimeleque e seus filhos saindo de Israel
e migrando para Moabe a fim de escapar da fome. Em Moabe, os filhos
se casam com moabitas e, após dez anos, morrem deixando as viúvas
na terra: a mãe Noemi e as duas esposas. Rute, a moabita, declara
sua fé no Deus de Noemi e sua pertença à aliança (1.16 – os termos
da relação de aliança estão presentes na fala de Rute). Aparentemente,
tudo simples – a fome faz você mudar de país, no novo país você se
casa etc. etc. Porém, nada mais anormal e complicado do que este relato
aparentemente ingênuo. Por quê? A resposta é bíblica: (a) “Acabadas,
pois, estas coisas, vieram ter comigo os príncipes, dizendo: O povo de
Israel, e os sacerdotes, e os levitas não se separaram dos povos de outras
terras com as suas abominações, isto é, dos cananeus, dos heteus, dos
ferezeus, dos jebuseus, dos amonitas, dos moabitas, dos egípcios e dos
amorreus [...]” (Ed 9.1); (b) “Naquele dia, se leu para o povo no Livro de
Moisés; achou-se escrito que os amonitas e os moabitas não entrassem
jamais na congregação de Deus, porquanto não tinham saído ao encontro
dos filhos de Israel com pão e água; antes, assalariaram contra eles Ba-
laão para os amaldiçoar; mas o nosso Deus converteu a maldição em
bênção” (Ne 13.1-2).
Raça, assim como gênero, não é uma realidade biológica, mas po-
lítica e cultural. Que havia de errado com os moabitas? Biologicamen-
te, nada. Porém, ressalta o texto citado de Neemias, eles não só não
ajudaram Israel como ainda o amaldiçoou! Classificar uma raça como
inferior é procedimento similar ao de classificar um gênero como inferior.
Atribui-se ao inferior uma culpa, de modo que pode ser demonizado jus-
tificadamente pelo que se considera superior, que pode invocar o próprio
Deus como cúmplice da classificação injusta. A classificação, por sua

106
BÍBLIA Introdução ao AT

vez, fundamenta a exclusão. O livro de Rute, porém, lê a situação de


modo inverso. O casamento de Boaz com a moabita – que era parte,
sim, da “congregação de Israel”, mas não por decisão sacerdotal ou de
escribas, mas por decisão do próprio Deus e reconhecimento pelo povo
da região – não foi maldição, mas bênção, ou seja, o texto habilmente
tira proveito do seu discurso opositor em Neemias 13 e o coloca a seu
serviço. Neemias afirma que “nosso Deus converteu a maldição [dos
moabitas] em bênção” e o livro de Rute anuncia o nascimento do filho
de Rute como bênção (4.11-12) e, mais, para garantir que a crítica a
Neemias 13 ficasse bem clara: o garoto “mestiço” e impuro foi ancestral
do grande rei Davi, aquele que deu a Israel o seu maior território, logo,
sua maior bênção! Assim como Deus não classifica gêneros, também
não classifica raças. Todas as pessoas são suas criaturas, filhas e filhos
de um único Pai (cf. Ef 3.14-4.6).
E os migrantes? No livrinho de Rute, migrantes são famílias que fogem
da fome e, consequentemente, da morte. Migrar não é passeio, turismo
ou entretenimento. É busca de sobrevivência. É busca de realizar o direito
humano mais elementar: continuar vivo. Impedir a imigração é patrocinar
a morte, é desrespeitar o direito básico à sobrevivência com um mínimo de
dignidade. Nos dias atuais, restringir os direitos de imigrantes é sentenciar
à morte aqueles que já são vítimas de uma economia global injusta e as-
sassina. Na Escritura judaica, migrantes são a matriz do povo de YHWH.
Abraão foi o primeiro migrante eleito e de sua semente duas grandes fa-
mílias de povos nasceram. O primeiro migrante da história – forçado é
claro –, Caim, foi protegido por Deus para não ser morto pelos estranhos.
Migrantes convocam: solidariedade ou medo? A escolha é decisiva. Se
optamos pelo medo, nos tornamos patrocinadores da morte. Se optamos
pela solidariedade, nos tornamos abençoadores e promotores da vida.
Em um mundo injustamente globalizado há que se criar e defender com
radicalidade os direitos de imigrantes, jamais demonizá-los, classificá-los
e excluí-los.

107
FATIPI EAD Guia de Estudos

5.2. Questões de justiça social e política

Você já percebeu que as questões de gênero, raça e migração são,


simultaneamente, específicas e genéricas, tratam de formas de subjetivi-
dade e têm a ver com justiça social e política. Assim, dividir tematicamente
tem força didática apenas na medida em que o tratamento separado não
se tornar classificação isoladora. Como podemos ler as questões da jus-
tiça em Rute? Por um lado, a narrativa aponta para a busca e a concreti-
zação de formas de justiça social e política – emprego para quem precisa,
partilha de bens como expressão de solidariedade aos mais fracos, terra
para quem tem o direito a ela, participação das pessoas em processos de-
cisórios (3.9-10), governo nas mãos da própria população, “representada”
pelos anciãos (chefes de clãs ou de famílias – 3.11-12). Por outro, porém,
as marcas da injustiça estão presentes. No começo, a fome e a migração.
Ora, se Elimeleque migrou, faltou solidariedade de seus vizinhos ou fal-
tou organização para lidar coletivamente com a situação de escassez. Na
volta de Noemi e Rute à região de Belém, há mulheres trabalhando para
Boaz, o que sugere a existência de “pais” sem-terra ou endividados. Rute
foi aos campos de Boaz aproveitando o direito consuetudinário da época:
não-proprietários de terras poderiam colher nos cantos e divisas da plan-
tação, mas não poderiam adentrar-lhe.
O que se destaca no texto, porém, é a ausência de reflexão sobre
o patriarcalismo. Que podemos aprender sobre justiça ao constatarmos
estas questões no livro de Rute? Primeiro, que a justiça plena não é parte
da realidade do mundo pré-monárquico israelita, nem do tempo da escrita
do texto (sob a dominação imperial). Segundo, que a justiça precisa ser
vista em sua pluralidade dimensional. Em uma sociedade, a justiça pode
ocorrer em algumas dimensões, mas não em outras. Terceiro, que onde
há emancipação, empoderamento e autonomia para sustentar a vida, aí
há justiça. Não se trata, portanto, apenas de distribuir adequadamente
o dinheiro e o poder decisório. É preciso haver justiça de gênero, raça,

108
BÍBLIA Introdução ao AT

cultura etc. Hoje em dia, as melhores teorias de justiça caminham nessa


direção: a teoria das esferas da justiça de Michael Walzer, ou a teoria da
justiça de John Rawls, ou a teoria da justiça como plural a partir do direito
de justificação criada por Rainer Forst, ou a teoria da justiça como fruto
do reconhecimento e da liberdade de Axel Honneth. Lendo Rute e estas
novas teorias da justiça, podemos fazer a crítica retrospectiva das teolo-
gias latino-americanas do final do século passado, Teologia da Libertação
e Teologia da Missão Integral. Ambas operaram com teoria meramente
distributiva da justiça e focaram em demasia nas estruturas político-eco-
nômicas. Justiça é mais e também menos.
Em termos de fundamentação, o livrinho de Rute situa toda a narrativa
no âmbito de teologia da berit (aliança ou parceria), ou seja, a questão fun-
damental da vida coletiva é a da pertença mútua. Rute já havia percebido:
“teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus” (1.16b). Boaz
reafirma e é apoiado pelos anciãos e pelo povo:

Então, Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: Sois, hoje, tes-
temunhas de que comprei da mão de Noemi tudo o que per-
tencia a Elimeleque, a Quiliom e a Malom; e também tomo por
mulher Rute, a moabita, que foi esposa de Malom, para suscitar
o nome deste sobre a sua herança, para que este nome não
seja exterminado dentre seus irmãos e da porta da sua cidade;
disto sois, hoje, testemunhas. Todo o povo que estava na porta
e os anciãos disseram: Somos testemunhas; o YHWH faça a
esta mulher, que entra na tua casa, como a Raquel e como a
Lia, que ambas edificaram a casa de Israel; e tu, Boaz, há-te
valorosamente em Efrata e faze-te nome afamado em Belém.
Seja a tua casa como a casa de Perez, que Tamar teve de
Judá, pela prole que o YHWH te der desta jovem (Rt 4.9-12).

Através de Rute o nome de Malom continuará vivo em Israel e a casa de


Boaz será como a casa de Perez. Por isso, prefiro as teorias da justiça de
Forst e Honneth, pois ambas transcendem os limites da justiça distributiva e

109
FATIPI EAD Guia de Estudos

retributiva, e situam a justiça no campo das relações mútuas entre pessoas.


Enfim, se o texto é do período pós-exílico, oferece importante exemplo
da luta popular contra a identidade étnico-religiosa monocêntrica legitima-
dora que se estava construindo no período persa. Parte da construção
da justiça é a resistência contra a dominação injusta e sua fundamenta-
ção teológica e ideológica. Para buscar e construir justiça também há que
se pensar, há que se fazer teologia, há que se fazer teoria. Resistência,
pensamento, planejamento, ação, persistência, discernimento: atitudes
humanas indispensáveis para a realização da justiça. Ética, espiritualida-
de e missão se reintegram na busca por justiça, em qualquer de suas
dimensões, em qualquer de suas situações.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA



Chegamos ao fim de nosso estudo dos Escritos do Antigo Testamento.
Pudemos apenas vislumbrar pequenos relances do conteúdo e da riqueza
teológica e espiritual da Bíblia Hebraica. Minha expectativa é que os textos
que aqui estudamos juntos tenham ajudado você a enxergar melhor o ar-
ranjo teológico do Antigo Testamento e, acima de tudo, tenham estimulado
você a ler e estudar mais detalhadamente a primeira parte da Bíblia cristã.
Há muito ainda que estudar e aprender, estes foram apenas os primeiros
passos de uma longa jornada. A jornada da pessoa sábia e fiel, descrita
no Salmo 1.2: “o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita
de dia e de noite”.

110
BÍBLIA Introdução ao AT

111
Módulo 5

Estudando os Escritos:
Literatura Apocalíptica
BÍBLIA Introdução ao AT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Muito bem! Você chegou ao módulo final de nossa disciplina. Tem sido
um prazer e uma bênção acompanhar você em seu estudo do Antigo Tes-
tamento. Espero que o que estudamos aqui seja útil para sua mente e para
sua vida por muito tempo. Chegamos ao fim da disciplina e, não por coinci-
dência, estudaremos um livro dos Escritos que trata do fim. Vamos lá!
A ideia do ‘fim do mundo’ acompanha a humanidade há muito tempo.
Na virada do ano 999 para o ano 1.000 d.C. os povos ocidentais espera-
ram pela volta de Cristo. Na virada do milênio para 2.000, muitas mani-
festações apocalíticas foram feitas. O ano de 2012, considerado fim do
mundo em religiões da América Central, foi tema de filmes e revistas. Mas,
será mesmo que o mundo irá acabar? Quando? Como? Um livro que per-
tence à seção Escritos da Bíblia Hebraica tratou do tema do fim. É o livro
de Daniel. Este livro inaugurou a escrita de livros que vieram a se chamar
apocalipse. Muitos apocalipses foram escritos por judeus e não entraram
no cânon bíblico, mas alimentaram as esperanças judaicas de libertação
na época do domínio romano (c. 70 a.C. – 134 d.C.). Dada a complexidade
e a importância da literatura apocalíptica, vamos dedicar um módulo intei-
ramente a este tema. Você provavelmente irá se espantar com a noção de
fim do mundo apocalíptica.
Bem, você já sabe, temos objetivos para guiar o seu estudo. Ao final
deste Módulo você deverá ser capaz de:

1. Definir apocalipse e apocalíptica;


2. Descrever as principais características do gênero textual apocalíptico;
3. Explicar os principais aspectos da apocalíptica enquanto mentalidade; e
4. Explicar o significado de Daniel 7 e, quem sabe, se você quiser,
preparar um estudo bíblico ou sermão baseado neste capítulo.

Mãos à obra!

113
FATIPI EAD Guia de Estudos

INTRODUÇÃO

O termo apocalipse, importado do grego apokalypsis, significa basica-


mente ‘revelação’, ‘descoberta’, e nos estudos bíblicos aplica-se a obras
religiosas que se ocupam da análise da história e da projeção do fim dos
tempos. Apocalítica é o nome dado ao conjunto de obras do estilo apo-
calipse e ao modo de pensar que gerou os apocalipses. Então, o termo
‘apocalíptica’ refere-se a duas realidades distintas, mas complementares:
(a) um gênero textual, representado na Bíblia pelos livros de Daniel e Apo-
calipse; e (b) uma forma de pensar sobre a vida, que marcou o pensamen-
to judaico no período helenista e no período da dominação romana. Nós
iremos nos ocupar dos dois sentidos do termo neste Módulo.

1. O GÊNERO TEXTUAL APOCALIPSE

Vejamos uma definição do gênero textual apocalíptico:

Genericamente, os apocalipses desempenham uma função co-


mum: um apocalipse visa interpretar circunstâncias terrenas do
presente à luz do mundo sobrenatural e do futuro, influenciando
tanto a compreensão quanto o comportamento da audiência em
função da autoridade divina” [COLLINS, 1992, 283]. Note que a
predição do futuro não está presente!

Nos apocalipses judaicos, quem recebe a revelação é uma figura vene-


rável da antiguidade -- Daniel, Enoque, Moisés, Esdras, Baruque, Abraão
(note que somente o livro de Daniel entrou no cânon hebraico enquanto
obra apocalíptica) -- e a moldura narrativa comumente relata as circuns-
tâncias e o modo mediante o qual a revelação foi recebida por essa figura
venerável. Formas literárias características do gênero apocalíptico são: re-
latos de visão, relatos de sonhos, relatos de batalhas entre seres celestiais,
além de formas narrativas típicas que compõem a moldura narrativa dos

114
BÍBLIA Introdução ao AT

livros apocalípticos. O uso extenso de linguagem simbólica e codificada


também marca o gênero apocalíptico que é, então, uma revelação miste-
riosa, fechada aos “de fora”, aberta apenas aos “iniciados” ou à comunida-
de destinatária dos textos.
O que tornou a escatologia apocalíptica peculiar na teologia do Antigo
Israel foi a noção do juízo dos mortos e a crença na ressurreição dos
mortos para uma vida plena diante de Deus, não mais na escuridão semi-
mortal do Sheol (o mundo dos mortos na tradição israelita antiga). Outra
peculiaridade da teologia apocalíptica era sua angelologia – ainda inci-
piente, mas que serviu de fundamento para a densa angelologia judaica
no primeiro século da era comum, tanto na mentalidade popular, como em
Qumram e no cristianismo nascente. Essas características sugerem que
os principais responsáveis pelos textos apocalípticos tenham sido sábios
israelitas que refletiam sobre a nova situação do povo de Deus em diálogo
com a profecia crítica.

2. A MENTALIDADE APOCALÍPTICA JUDAICA

A característica mais evidente da mentalidade apocalíptica é o dualis-


mo anômalo (palavra que significa ‘fora do padrão’), comparado com os
dualismos persa e grego, que afirmavam a existência de dois princípios
eternos – a matéria e o espírito – que lutam entre si na vida humana. Ou
seja, na apocalíptica judaica não se fala em dois princípios (material e
espiritual), mas em um só mundo, criado por Deus, marcado pelo pecado
ou pela justiça:
(a) o mundo ‘sobrenatural’ não é visto como substituto do mundo na-
tural ou superior a ele, mas como uma esfera de poderes em conflito que
reproduz simbolicamente os conflitos históricos;
(b) o tempo histórico é dividido em duas eras antagônicas e sucessivas:
a primeira, marcada pelo pecado e opressão do povo de Deus, está chegan-
do ao fim; a segunda é objeto da esperança escatológica, um tempo sem

115
FATIPI EAD Guia de Estudos

dores nem males para o povo de Deus, que reinará sobre toda a criação.

Gênero Textual Mentalidade

Em segundo lugar, a teologia apocalíptica caracteriza-se pela expecta-


tiva da chegada iminente do Reino de Deus, que se concretizará no reino
do povo de Deus purificado e reconstituído (e.g., Dn 7). Chegada esta que
consumará o plano de Deus para a história, plano (a) que pode ser discer-
nido pelos que compreendem os mistérios do texto apocalíptico, e (b) que
é expresso através de vaticinia ex evento (pregações proféticas posteriores
ao acontecimento narrado), que descrevem a história desta Era como a su-
cessão de impérios mundanos que serão, por fim, substituídos pelo império
divino eterno. Antes do início da Nova Era, um período de intenso sofrimento
e perseguição afetará o povo de Deus e, eventualmente, toda a criação,
uma espécie de “dores de parto” da chegada do Reino messiânico de Deus.
A presença e o papel do Messias é outro elemento da apocalíptica
judaica que revela seu débito para com a profecia. O agir transformador de
Deus, que dará fim à era presente e iniciará a futura, encenado no mundo
sobrenatural na luta entre anjos, é concretizado na esfera terrestre me-
diante a participação do Messias. A figura messiânica na apocalíptica as-
sume proporções cósmicas, pois se trata de um agente divino não só para
a salvação de Israel, mas também para a transformação de todo o mundo.
O Messias é representante de Javé, conjugando em si os papéis de legis-
lador (Moisés), intérprete da lei (Esdras) e salvador (Servo de Javé).
O cenário sociocultural típico da apocalíptica é o do recrudescimento da
dominação imperial sobre o povo de Israel, especialmente como fruto da
intensa transformação sociocultural imposta pelo helenismo pós-Alexandre.
Duas respostas gerais foram dadas pelo povo de Israel a essa nova forma
de dominação: (a) uma espécie de acomodação ao novo modelo, com a
garantia de que a religião judaica seria respeitada em suas peculiaridades:
padrão mais comum entre as lideranças hierocráticas; (b) uma resistência

116
BÍBLIA Introdução ao AT

crescente ao novo estatuto sociocultural da parte das lideranças proféticas


e deuteronomísticas, que culminou na revolta dos macabeus e cimentou a
imaginação revolucionária contra o domínio romano posterior.

DUALIDADE

EXPECTATIVA MESSIAS

Como a mentalidade apocalíptica expandiu-se e tornou-se hegemônica


no judaísmo entre 150 a.C. e 100 d.C., ficou muito difícil para a pesquisa
acadêmica definir os grupos específicos por trás dos textos apocalípticos
judaicos, os quais devem ter sido em número significativo, a julgar pe-
los textos apocalípticos não-canônicos. Não se sabe, por exemplo, quem
escreveu o livro de Daniel, mas supõe-se que tenha sido gente ligada à
revolta dos macabeus – profetas e levitas, possivelmente –, que compôs o
livro para animar o povo judeu e convocá-lo ao apoio e à participação na
revolta religiosamente motivada contra o governante blasfemo que profa-
nara o templo de Javé com o ídolo helênico.
Finalmente, é importante destacar que o modo de pensar dos escri-
tores do Novo Testamento era, predominantemente, apocalíptico. Paulo
e os demais autores reinterpretaram a apocalíptica à luz da pessoa e da
obra do Messias Jesus, e usaram especialmente a ideia da vitória do reino
de Deus contra os reinos deste mundo para enfrentar o Império Romano e
sua noção de que o César (Imperador) é o Senhor e Salvador do mundo.

117
FATIPI EAD Guia de Estudos

3. UM EXEMPLO DE INTERPRETAÇÃO DE TEXTO


APOCALÍPTICO (DANIEL 7)

3.1. Interpretando a apocalíptica judaico-cristã canônica

No passado distante, como agora, a apocalíptica judaico-cristã da


Escritura é a expressão da resistência dos enfraquecidos e dominados
contra a arrogância ideológica imperial. Naquele tempo, como agora, a
interpretação da apocalíptica é parte da luta pela liberdade e pelo futuro.
Uma veneranda tradição cristã interpreta os textos apocalípticos de forma
a-histórica. É uma interpretação que assume como literal a lógica apoca-
líptica que divide o tempo em duas metades -- o velho e o novo -- e anun-
cia a consumação do velho e a chegada do novo, enviada unicamente por
Deus à terra. Uma leitura que podemos chamar de espiritualizante, pois
retira o ser humano do palco das ações e o coloca na plateia – transforma
o ser humano em espectador passivo de um drama celestial conduzido e
orquestrado por Deus e seus anjos, na luta contra o Diabo e seus demô-
nios. Como nada podemos fazer, a não ser esperar e orar, essa interpre-
tação dos textos apocalípticos resulta em fuga da história, em visão da
missão cristã apenas em termos “espirituais” e individuais.
Outra tendência de interpretação dos textos apocalípticos enfa-
tiza a secularização dos símbolos da apocalíptica. Entende que a lógica
temporal da apocalíptica é apenas simbólica e não pode ser usada como
chave para a interpretação da história. Vê a apocalíptica como um grito
desesperado, como a expressão quase irracional de pessoas que não sa-
bem como enfrentar a perseguição e a opressão. Por isso, refugiam-se
no sonho, nas visões e nas especulações dos textos apocalípticos. Esta
interpretação não é espiritualizante, mas em sua versão secularizada, não
deixa de ser uma interpretação puramente existencial e individualista. Vê
os textos apocalípticos como expressão da incapacidade religiosa de in-
terpretar a história a não ser em termos religiosos e pessoais.

118
BÍBLIA Introdução ao AT

Uma terceira forma de interpretação, que seguimos neste Guia, tam-


bém tem longa história, mas uma história abafada, silenciada ao longo dos
tempos. Uma história retomada nas últimas décadas do século passado
pela leitura popular latino-americana. Nesta visão interpretativa, a apo-
calíptica é uma literatura de resistência, expressão do grito utópico (não
desesperado) de um povo, ou de comunidades cristãs, subjugado por im-
périos militarmente poderosos e religiosamente autoritários. A linguagem
simbólica dos textos apocalípticos é vista como uma espécie de código
secreto para proteger pessoas e comunidades dominadas da persegui-
ção e da prisão. É uma linguagem subversiva, por isso deve ser ocultada
dos dominadores, e aberta apenas para pessoas e grupos que sofrem a
dominação. Como todo código, é preciso ter a chave certa para descobrir
seu significado. É a chave da resistência contra o império, da resistência
contra o desânimo, da esperança utópica na construção de um novo e
melhor futuro.

3.2. Daniel 7 como expressão de resistência e esperança

Vira e mexe lembro-me das broncas da minha avó. “Larga de besteira


menino” era uma das preferidas dela, que me vem à memória várias vezes
em que leio textos apocalípticos, com suas bestas, e com as besteiras
interpretativas que marcam a história da interpretação desses textos. Para
entender um texto como Daniel 7, é preciso “largar de besteira” e colo-
car as bestas em seu devido lugar – no texto e no contexto. Daniel está
sonhando, diz o texto, e em seu sonho teve visões que o transtornaram:
visões de bestas-feras monstruosas, que culmina na visão de um pequeno
chifre com olhos e boca de gente (Dn 7.1-8). A estas visões “abestadas”,
segue-se uma visão palaciana: tronos são arrumados e um ancião senta-
-se em um deles, feito de fogo, servido por incontável multidão. No fogo,
a besta chifruda é queimada, mas as outras bestas são poupadas por um
tempo determinado (7.9-12). O sonho visionário termina com a imagem de

119
FATIPI EAD Guia de Estudos

alguém parecido com um ser humano (“um como filho de homem”) que se
aproxima do ancião e recebe o poder e o reino para sempre (7.13-14). Se
você não entendeu nada, não se preocupe, pois Daniel também não sabia
o que fazer com essas visões noturnas e, no próprio sonho, pede ajuda
exegética a um dos servos do ancião (7.15-16), e ouve a interpretação do
sonho (7.17-27). Acordado, Daniel permanece pensativo, inquieto, ansio-
so. Guarda o sonho e sua interpretação na memória (7.28).
O sonho de Daniel é semelhante aos sonhos de Nabucodonosor (capí-
tulos 2 e 4 de Daniel), não na sua simbologia, mas na visão da história. Da-
niel 7 é uma interpretação da história do povo de Israel. As bestas (como
a estátua e a árvore de Dn 2 e 4) são símbolos de reis poderosos (cf.
7.17). Em Daniel 7, quatro reis são descritos, não em sucessão histórica,
mas como se fossem contemporâneos. O mais terrível desses é o quarto
(interpretado como “reino” em 7.23s), do qual surgirão dez reis, seguidos
por um que “será diferente dos primeiros e abaterá três reis” (7.24). Este
não só dominará política e economicamente, mas também tentará acabar
com a própria Torá e a fé em Javé (7.25). O que se destaca na visão e sua
interpretação é que cada rei e reino tinham suas próprias características,
e que, apesar de sua força, cada um deles chegou ao fim – o reino e o
poder foram entregues ao povo de Javé. Sendo assim, por que Daniel teria
ficado inquieto a ponto de perder a cor do rosto (7.28)? Aparentemente
porque, antes do fim da última besta, o povo judeu ainda iria sofrer e muito!

Espiritualizante Resistência

Secularizada

120
BÍBLIA Introdução ao AT

Segundo a interpretação atualmente predominante na exegese acadê-


mica, o texto de Daniel foi escrito durante o reinado de Antíoco IV Epífa-
nes (c. 175-163a.C.), como expressão da resistência dos judeus contra a
helenização forçada por esse rei, que culminou na profanação do templo
de Jerusalém. As três primeiras bestas seriam, em sequência, os impé-
rios babilônico, meda e persa. A última besta seria descrição da conquista
do Oriente por Alexandre, o Grande, e a posterior divisão de seu império
entre os seus generais. Antíoco IV, um dos sucessores desses generais,
teria sido o responsável pela blasfêmia contra o Altíssimo (ao profanar o
templo) e pela provação do povo de Deus, ao impor a religião helênica
como religião “oficial” na Judá por ele dominada. Esta é uma interpretação
plausível e provavelmente a melhor possível em uma perspectiva históri-
ca. Certamente é melhor do que a alternativa tradicional (fundamentalista)
de situar o livro no período babilônico e lê-lo como profecia futura, e me-
lhor do que a alternativa histórico-crítica de interpretar o quarto reino como
o Império Romano.
Dada, porém, a natureza do texto, não acredito que devamos fechar a
questão quanto à identificação dos reis e reinos como a sequência Babi-
lônia-Média-Pérsia-Macedônios. A razão para manter a mente aberta está
na própria força dessa identificação: como ela faz muito sentido para nós,
ocidentais e acadêmicos, e só se sustenta graças ao nosso conhecimento
da história do Antigo Oriente, pode não corresponder à lógica de símbolos
e metáforas do texto bíblico. É possível que o texto de Daniel 7 não tenha
intencionado apresentar os reis em uma sequência; de fato, nada há no
texto propriamente dito que exija essa interpretação sequencial. Para a
compreensão da visão de história do texto, contudo, a identificação exata
dos reis e dos reinos não faz nenhuma diferença. Outra, porém, é a situa-
ção da atribuição da época da escrita do livro para o período helênico. Não
há nenhuma razão plausível para situar o livro em outra época, anterior ou
posterior. Embora não possamos ter certeza absoluta de que o texto seja
da época exata de Antíoco IV Epífanes, outras hipóteses têm menor força

121
FATIPI EAD Guia de Estudos

e, ao que tudo indica, o livro não poderia ter sido escrito fora do ambiente
de pensamento judaico ameaçado pelo helenismo.
O capítulo 7 de Daniel ocupa um lugar central no livro. É o último ca-
pítulo em aramaico e o primeiro em forma tipicamente apocalíptica. Como
texto aramaico, une-se aos capítulos 1-6; como texto de gênero tipicamen-
te apocalíptico, liga-se aos capítulos 8-12. Além desses fatores, o capítulo
7 também está associado aos capítulos anteriores por retomar os sonhos
de Nabucodonosor e aos posteriores por ditar o tom da interpretação dos
capítulos seguintes.
A estrutura do capítulo é relativamente clara:

v. 1-2a Introdução (em terceira pessoa)


v. 2b-14 Relato do sonho visionário (em primeira pessoa)
2b-7 Visão das quatro bestas
8 Visão complementar do pequeno chifre
9-10 Visão do trono
11-12 Visão da morte da quarta besta
13-14 Visão de “um como filho de homem”
v. 15-27 Interpretação do sonho visionário (“um dos ali
presentes”)
15-18 Primeiro pedido e primeira interpretação
19-17 Segundo pedido e segunda interpretação
(a quarta besta)
v. 28 Conclusão (em primeira pessoa)

O capítulo é a narrativa de um sonho e sua interpretação. Na inter-


pretação que apresento, sigo a lógica literária do texto, e não a recons-
trução histórico-crítica, de modo que usarei os nomes Daniel e Baltazar,
por exemplo, sem pretensão de que os acontecimentos narrados no texto
sejam do período babilônico. A peculiaridade deste sonho é que ele con-
sistiu de visões e da interpretação das visões. Sonhos e visões, na litera-

122
BÍBLIA Introdução ao AT

tura apocalíptica, desempenham importante papel revelador. É através de


sonhos e visões que os textos apocalípticos destacam que um determina-
do conteúdo tem valor de verdade e está revestido da aprovação divina.
Tais sonhos e visões podem, simplesmente, ser expressão de uma forma
literária. Mas podem, também, de fato, ter ocorrido e ter servido de base
para quem escreve o texto. O sonho, está escrito, ocorreu no primeiro ano
de Baltazar, rei da Babilônia, alterando a ordem cronológica dos capítulos
anteriores (no capítulo 5 é narrada a morte de Baltazar), de modo que o
capítulo 7 fica mais ligado aos capítulos seguintes do que aos anteriores.
Esta pode ser também a razão da perturbação de Daniel (7.28), uma vez
que o sofrimento do povo judeu sob a dominação de um novo rei poderia
ser intensificado.
O relato do sonho inicia com duas afirmações espaciais importantes:
Daniel viu “os quatro ventos do céu” que “agitavam o grande mar” (7.2b).
Os quatro ventos indicam principalmente a universalidade, marcam os
quatro limites da terra – Norte e Sul, Leste e Oeste; enquanto o mar indica
principalmente o lugar da revolta contra Deus, o lugar da desordem e do
caos. Estas figuras espaciais lembram o texto do épico babilônico sobre a
criação, cujo título é Enuma Elish (literalmente: acima, no alto), especial-
mente pela figura do mar que, no texto babilônico, é a deusa Tiamate que
se revolta contra os deuses maiores e é derrotada pelo deus Marduque,
com o auxílio dos quatro ventos celestes. É do mar que surgem as bestas
(3), indicando que os reis e seus impérios são, acima de tudo, expressão
da desobediência e da deslealdade a Javé, e representam um projeto po-
lítico contrário ao projeto libertador do Deus dos hebreus. Especialmente
em Isaías 40-55 e nos Salmos do Reinado de Javé (93-97, 99) que a
simbologia do mar é usada para expressar o poder e a unicidade de Javé
em detrimento dos deuses das outras nações que passam a ser vistos
apenas como ídolos.
A descrição das bestas utiliza elementos provenientes de tradições
cananitas e mesopotâmicas nas descrições de seus deuses, não só nos

123
FATIPI EAD Guia de Estudos

textos teológicos, mas também nos estandartes e monumentos públicos.


Vem também de tradições bíblicas, particularmente de Os 13.4-8, embora
em Oséias Javé seja descrito como leão, leopardo, ursa e leoa e como
quem vem julgar o seu povo pecador. Aqui, as bestas são inimigas de
Javé e do povo de Deus (cf. Is 27.1; 51.9-11; Ez 34). Mais importante do
que entender os detalhes da descrição de cada besta é captar o senso de
poder e brutalidade dos reis que se insurgem contra Javé e seu povo. A
visão é perturbadora porque os inimigos do povo de Deus são terríveis,
poderosos e destruidores. As bestas não agem sozinhas, mas represen-
tam as divindades destruidoras. Diz-se no texto da primeira besta que “ele
foi erguido ... um coração humano lhe foi dado” (4), da segunda besta,
que “a este diziam” (5) e da terceira besta, que “foi-lhe dado o poder” (6).
Somente da quarta besta não se diz que a ela foi dada alguma coisa,
também por isso o texto afirma que ela era “muito diferente das feras que
a haviam precedido” (7).
Esta última besta, além do enorme poder destruidor, também é carac-
terizada como tendo o poder da propaganda – com seus olhos podia en-
xergar bem a realidade e com sua boca podia proferir “palavras arrogan-
tes” (8), ou seja, falar de projetos grandiosos de dominação e conquista
(cf. Dn 11.36; Is 37.23; Sl 12.3; Ob 12):

“As ‘coisas grandes’ que Antíoco fala (7.8b), autodivinizando-


-se, correspondem a práticas políticas apoiadas na forma; ‘coi-
sas maravilhosas’ (nipla’ot) talvez (fortalezas, conquistas imen-
sas, riqueza proveniente do despojo de países inteiros: 11.38s),
da perspectiva do opressor. Realizações que pretendem impor
‘paz e segurança’ para o projeto imperial, mas que significam
medo e insegurança para os vassalos que necessariamente
têm que optar entre o servilismo ou a perseguição” (CROATTO,
José S., “O discurso dos tiranos em textos proféticos e apoca-
lípticos”. In: Revista de Intepretação Bíblica Latino-americana.
Número 8. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 41).

124
BÍBLIA Introdução ao AT

Em contraste com esta terrível e assustadora descrição de bestas des-


truidoras, o sonhador tem uma nova visão (9-10), que o move do espaço
turbulento do mar agitado pelos ventos do céu e o coloca em um espaço
calmo e seguro da sala do trono; calmo, mas poderoso, pois caracterizado
pelo fogo, que destaca o poder destruidor e purificador do Deus de Israel.
Este é descrito como um ancião, de cabelos e barba brancos, de vestes
brancas, que é servido por incontável multidão e assume o trono para
julgar. A descrição em termos humanos contrasta com a bestialidade dos
inimigos de Israel e ressalta a bondade, a sabedoria e a paz que emanam
de um ancião.
O julgamento proferido pelo ancião derrota as bestas (11-12), sendo
que a quarta besta é morta por causa de sua arrogância, e consumida
pelo fogo que saía do trono divino (este verso é uma das fontes usadas
pelo Apocalipse para descrever o inferno de fogo e enxofre como o lugar
da condenação eterna). A descrição da sala, com vários tronos, remete a
antigos textos cananitas que descrevem a corte celestial, com El ou Baal
ocupando o trono principal, julgando acima dos demais deuses. As outras
três bestas recebem alguma clemência no juízo, pois não foram execu-
tadas imediatamente, mas tiveram uma sobrevida – que essa sobrevida
tenha sido por “uma data e um tempo determinados” indica a soberania de
Deus sobre a história das nações, bem como Seu poder sobre o mundo
divino e angelical. Por mais destrutivas e aterrorizantes que fossem as
bestas, seu poder sequer se poderia comparar ao poder e à autoridade de
Javé, o Deus de Israel.
Os versos 13-14 estão entre os mais comentados e discutidos de toda
a Bíblia, não só no ambiente judaico, mas principalmente na tradição cris-
tã, dada a utilização da expressão “filho do homem”, no Novo Testamento,
para se referir a Jesus. Não podemos entrar em detalhes aqui. Devemos
destacar alguns pontos: (1) o texto não diz que a figura era um “homem”,
mas um “como filho de homem”, ou seja, alguém com aparência humana.
Esta figura, uma das incontáveis que serviam ao ancião, é descrita como

125
FATIPI EAD Guia de Estudos

“vindo sobre as nuvens do céu”, que se adiantou e se aproximou do an-


cião e recebeu dele o domínio, o poder e a honra. Em contraste com o
domínio das bestas, transitório e válido apenas por tempo determinado,
esta figura quase humana recebe o poder para todo o sempre (14). Os
termos aqui usados se assemelham aos usados para descrever a glória
de Nabucodonosor (Dn 2.37; 5.18), e a extensão universal do seu domínio
(Dn 3.4). Estes textos destacam que o poder de Nabucodonosor fora uma
concessão de Javé por tempo determinado, em contraste com o reino sem
fim que pertence somente a Javé (3.33; 6.27), mas que Ele iria outorgar a
um seguidor seu (2.44).
Inquieto, Daniel busca ajuda por duas vezes para interpretar suas vi-
sões (15.19-22), e uma das figuras que servia ao ancião lhe passou a
interpretação das visões em duas fases (16-18; 23-27). Na interpretação,
fica claro que as bestas são reis que se insurgem contra Javé, guerreiam
contra o seu povo e lhe causam grande transtorno e sofrimento. A quarta
besta é descrita como um reino que não só dominará política e economi-
camente sobre o povo de Javé, mas que também se esforçará para mudar
a fé e a identidade do povo de Deus (23-26). O domínio das bestas sobre
Israel, inclusive o da quarta besta, é concedido apenas “por um tempo,
tempos e metade de um tempo” (25), expressão que indica o caráter tem-
porário, transitório e outorgado desse domínio. Não é necessário tentar
traduzir a expressão em anos e décadas. Basta notar que é Javé quem
domina sobre os dominadores de seu povo, e não permite que tal domina-
ção dure mais do que o devido.
O aspecto polêmico na interpretação desta seção do capítulo refe-
re-se à identidade dos “santos do Altíssimo” (18,22,25,27). Há indícios
importantes de que tais “santos” sejam reconhecidos como seres ange-
licais – uso bastante comum na literatura apocalíptica e no próprio livro
de Daniel (4.10,14,20; 8.13). Se a melhor interpretação for essa, a seção
deve ser interpretada como Javé dando o poder aos anjos que represen-
tam seu povo nos lugares celestiais, talvez o próprio Miguel (12.1ss), que

126
BÍBLIA Introdução ao AT

representa Israel na batalha celestial e derrota os anjos inimigos. A maior


dificuldade desta interpretação são os versos 24 e 27 que apontam, mais
provavelmente, para o povo de Israel (cf. Sl 34.10; 1Enoque 100.5), pois
este é o povo que é tentado a abandonar a fé em Javé (24) e é este o povo
que receberá os reinos “sob todos os céus” (v.27). A polêmica, porém,
pode ser dissolvida sem maiores problemas, se reconhecermos o caráter
simbólico dos textos apocalípticos. Se os santos do Altíssimo são seres
angelicais, eles representam o povo terreno de Israel, de modo que, no
final das contas, não há diferença significativa na compreensão do texto.

Os poderes O Reino de
deste mundo Deus

O tema da seção é que Javé, Rei dos reis e Deus dos deuses, irá
exercer sua soberania e, mais uma vez, libertar seu povo da dominação
estrangeira. Como um Deus fiel à sua aliança e promessas, Javé outor-
gará a Israel mais uma vez a liberdade e estabelecerá seu povo como o
povo mais importante da Terra (cf., especialmente, Isaías 40-55). Esta
mensagem de resistência e esperança é que ressoa no capítulo 7. Por
mais terrível e tremenda que seja a situação, Javé é soberano e justo, e
levará a história em sua correta direção. Devemos cuidar, porém, para não
anularmos o caráter simbólico do texto, nem a perspectiva pactual da ação
de Javé, que nunca age sozinho, transformando a história como que por
um passe de mágica. O poder de Javé é exercido em parceria com seu
povo. A fidelidade de Javé demanda a fidelidade de seu povo, de modo
que a história não é o efeito da ação solitária de Deus ou de seus anjos no
céu, mas da ação conjunta de Deus e seu povo na face da Terra.
Compreender a história e a soberania de Deus sobre a história são,
por um lado, motivo de alento e força para agir. Mas, por outro lado, são
também motivo de inquietação e reflexão (verso 28). O desafio é imenso,
e mesmo com Deus ao nosso lado somos pequenos demais para enfren-

127
FATIPI EAD Guia de Estudos

tá-lo. Se empalidecemos, como Daniel, diante do drama da história, com


Daniel também recuperamos a cor e caminhamos de cabeça erguida, jun-
tos com Javé e Jesus Cristo, na construção de um mundo novo.

3.3. A esperança messiânica no judaísmo antigo

3.3.1. Messias na Escritura judaica

Na Escritura judaica, a palavra traduzida por “messias” praticamente


não é usada como substantivo, mas como adjetivo – a pessoa ungida, de
modo que o verbo e a forma nominal apontam primariamente para uma
função específica para a qual a pessoa é ungida, e não para a pessoa
enquanto tal ou para uma função propriamente messiânica. O verbo mshh,
usado 70 vezes, significa ungir, normalmente com óleo, ou seja, molhar
uma parte do objeto com o líquido apropriado. Embora haja número signi-
ficativo de usos litúrgicos para o termo, a utilização mais comum do verbo
tem a ver com a unção para reinar (e.g. 2Sm 2.4.7; 3.39; 5.3.17; 1Rs
1.34,39,45; 5.15; 19.15 etc.). Com menor frequência o verbo é usado para
a unção do sumo sacerdote e de sacerdotes em geral (cf. Lv 4.3,5,16;
6.15; Dn 9.25s; Êx 2.41; 30.30; Lv 7.36; etc.), uma vez apenas com rela-
ção a profetas (1Rs 19.16; cp. Is 61.1); bem como objetos sagrados (e.g.
Gn 31.13; Êx 29.36; Lv 8.11; Nm 7.1,10,84,88).
O termo “ungido” propriamente dito é usado 38 vezes na Bíblia Hebrai-
ca (Lev 4.3,5,16; 6.15; 1Sm 2.10,35; 12.3,5; 16.6; 24.7,11; 26.9,11,16,23;
2Sm 1.14,16; 19.22; 22.51; 23.1; Is 45.1; Hc 3.13; Sl 2.2; 18.51; 20.7; 28.8;
84.10; 89.39,52; 105.15; 132.10,17; Lm 4.20; Dn 9.25,26; 1Cr 16.22; 2Cr
6.42), sendo 31 referências ao rei, seis ao sumo sacerdote (Lv 4.3,5,16;
4.15; Dn 9.25s) e uma aos “pais” (Sl 105.15). Quando se refere a reis,
predominantemente o termo é usado com referência a Davi e sua dinastia,
especialmente na literatura deuteronomista. Em Is 45.1 ressalta a atribui-
ção do termo ao persa Ciro, rei que conquista a Babilônia e mantém Israel

128
BÍBLIA Introdução ao AT

subjugado ao seu império, mas permite o retorno dos exilados à terra san-
ta. Durante a monarquia, o uso mais comum do termo em relação aos reis
da dinastia davídica tem a ver com a legitimidade dos mesmos ao trono
(iniciando em Samuel, com a discussão sobre a legitimidade de Davi no
lugar de Saul). Em períodos de ameaça estrangeira o título comumente
alude ao papel do rei como libertador da nação e é este uso que servirá
de fundamento para a ideia messiânica nos textos pós-canônicos. Desde
os textos de Jeremias se espera um rei davidida que irá reunificar Israel e
Judá e reinará em um período de paz e prosperidade para o povo de Deus
(mesmo sem o uso do verbo ou do adjetivo). Somente em Is 61.1 o termo
“ungido” não se aplica especificamente a um rei, talvez como alusão aos
cânticos do Escravo de YHWH (nos quais o termo não é usado).

Conceito

Na literatura especializada que discute aspectos da teologia


bíblica do Antigo Testamento, o termo davidida diz respeito
às ideias, valores e conceitos teológicos que defendem a
legitimidade da dinastia de Davi sobre o trono do reino de Judá.

No caso dos reis, já desde o período anterior à dominação babilônica


podemos ver nos textos bíblicos a noção de que um rei davidida irá liber-
tar Israel da dominação estrangeira e iniciar um período de prosperidade
e paz. A ideia está presente principalmente nos chamados Salmos reais
(2.21, 89, 110, 132), e no livro de Isaías, no qual 9.5 parece ser o mais
antigo texto real-messiânico do AT, porém o termo messias não é usado.
A ideia de um rei davidida que libertará o povo de Deus é mais rara em Je-
remias e Ezequiel, e reaparece em Ageu e Zacarias, já após a dominação
babilônica. Ou seja, no período do Segundo Templo, com o fim da dinastia

129
FATIPI EAD Guia de Estudos

davídica sobre o trono em Judá, a função messiânica se descola do rei e


passa a assumir contornos próprios, mesmo quando o substantivo não
é usado, como, em geral, nos poemas do escravo oprimido no Segundo
Isaías (embora haja uso do verbo).
No caso da tradição e dos escritos judaicos canônicos e não-canôni-
cos do período do Segundo Templo, a ideia do Messias como o libertador
de Israel, em cumprimento à fidelidade de Deus, se torna proeminente.
Embora o termo se aplique também a sacerdotes e profetas no período,
ainda é ao rei que o termo se aplica primariamente, de modo que a expec-
tativa messiânica fundamental tem a ver com a libertação político-social de
Israel mediante a força militar de um monarca. Neste sentido, a noção de
Messias (e o consequente messianismo) possui conotação predominante-
mente política e nacionalista.

Conceito

Na disciplina “Introdução ao Novo Testamento”, o prof.


Ricardo Oliveira fala sobre o período do Segundo Templo:
“Esse período histórico se refere aos anos 539 a.C. a 70
d.C., ou seja, começa com a volta dos exilados da Babilônia
para a Judeia, quando houve a reconstrução do templo de
Jerusalém no período do domínio persa, e termina com a
destruição do mesmo templo no período do domínio romano.
Dividimos esses mais de 600 anos a partir dos períodos de
domínio estrangeiro na região da Palestina judaica”.

Entretanto, na Escritura, a ideia de um Messias não-político não é de


todo ausente. Mesmo na tradição rabínica posterior ao segundo século
d.C., pelo menos um rabi, Hillel (não o famoso rabi com o mesmo nome do

130
BÍBLIA Introdução ao AT

primeiro século), afirma que “não haverá Messias para Israel, porque eles
já o desfrutaram nos dias de Ezequias” (Hillel apud Levinas, 1997,p. 83).
Levinas explica essa afirmação do seguinte modo:

Sua tese se conforma a uma antiga tradição. Não estou dizendo


que essa é a única tradição do Judaísmo. Quer o Messias seja um
homem, quer um rei, salvação pelo Messias é salvação por pro-
curação. Na medida em que o Messias é um rei, a salvação pelo
Messias não é uma em que cada pessoa é salva individualmente,
pois ela supõe que entremos no jogo político. Salvação pelo rei,
mesmo se ele for o Messias, não é ainda a salvação suprema
aberta ao ser humano. O messianismo é político, e sua plenitude
pertence ao passado – esta é a força da posição do R. Hillel.

Assim, vemos que a noção básica presente no verbo “ungir” e no


adjetivo “ungido” está ligada ao exercício de uma função divinamente
apontada, e que essa função é, primariamente, a do rei – guerrear as
guerras de libertação de seu povo, em nome de Deus. Em especial de-
vemos reconhecer o foco principal da noção messiânica davídica, que é
o da universalização do domínio monárquico israelita sobre as nações. O
messianismo não era basicamente uma resposta do fraco ao sofrimento,
mas, principalmente, uma afirmação imperialista do pequeno estado ju-
daíta, com claros contornos nacionalistas, e essa visão imperialista será
dominante no período do Novo Testamento.

3.3.2. Messianismo no judaísmo do Segundo Templo

a) A linguagem messiânica
A ideia messiânica no judaísmo pós-bíblico (até o período do Novo
Testamento) se construiu a partir da noção do rei ungido para guerrear em
nome de YHWH, mas assumiu contornos mais amplos do que os estabele-
cidos na Escritura. O primeiro aspecto constitutivo dessa ideia messiânica

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FATIPI EAD Guia de Estudos

é o vínculo entre Messias e escatologia apocalíptica, na qual também se


constitui a noção das “dores de parto da era messiânica”, ou seja, a distin-
ção entre a era do Messias e a era messiânica. O segundo é o papel liber-
tador do Messias, predominantemente vinculado a Israel, mas também já
com contornos universalizantes. O terceiro aspecto geral é o da variedade
de noções da libertação: a) retorno aos tempos antigos, aos tempos do
Israel ideal de Davi e Salomão; b) restauração da obediência de Israel à
Torá divina; e c) criação de uma nova realidade, utópica, com maiores ou
menores laços de conteúdo com os dois elementos anteriores.
Após esta breve visão geral da noção messiânica no judaísmo do pe-
ríodo do Segundo Templo, cabe trabalharmos as principais figuras mes-
siânicas na teologia e na religião judaicas do período, a fim de que, em
estudos posteriores, possamos entender melhor a noção paulina de Mes-
sias. Tendo em vista que nossa abordagem não é histórica, mas teológi-
ca, apresentarei os conceitos sem me ocupar de sua origem e percurso
histórico. É evidente, também, que ao apresentar essas figuras na forma
conceitual não é possível mostrar as diversas formas mediante as quais
cada uma dessas figuras assumia nas diferentes épocas e tendências do
judaísmo do Segundo Templo. O foco adotado, porém, é adequado para
nossos propósitos teológicos.

b) Figuras Messiânicas
Apresentarei brevemente as principais figuras messiânicas no judaís-
mo do Segundo Templo, incluindo aqui textos cristãos não-paulinos. Faço
isto apenas para mapear o terreno da construção da noção paulina de
Messias, sem a preocupação de completude na apresentação. São elas:

1) Rei. Como vimos, a expectativa messiânica mais comum no judaís-


mo da época de Paulo estava ligada à figura do rei davídico:

Por um lado, John J. Collins define “Messias” como uma “figu-

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BÍBLIA Introdução ao AT

ra futura que desempenhará papel de autoridade no fim dos


tempos, usualmente o rei escatológico”, enquanto James H.
Charlesworth (em função deste colóquio), por outro, conclui que
este termo se refere “a um líder político e religioso do presen-
te, apontado por Deus, aplicado predominantemente a um rei,
mas também a um sacerdote e, ocasionalmente, a um profeta”.
Flutuando em algum lugar entre estes dois se encontra Wal-
ter H. Rose, que o define como “uma figura real futura enviada
por Deus que trará salvação ao povo de Deus e ao mundo, e
estabelecerá um reino caracterizado por aspectos como paz e
justiça” (Boda, 2007, p. 36).

2) Servo sofredor. Nas interpretações tipicamente judaicas, a figura do


servo (derivada dos cantos de Isaías) adequava-se basicamente para: a)
fundamentar a noção das dores de parto da era messiânica, mostrando
que o Messias, antes de sua vitória, seria confrontado, perseguido, oprimi-
do e maltratado pelos governantes gentios; e b) fundamentar a noção de
que o não cumprimento da libertação de Israel seria sinal de que o povo de
Deus ainda estava infiel ao seu Senhor, demandando, antes da chegada
do Messias, a sua purificação. Já na interpretação judaico-cristã primitiva,
os seguintes pontos receberam destaque, sintetizando os diversos escri-
tos do Novo Testamento, na forma canônica, sem qualificar cada ponto a
partir de seu autor:

• o Messias, exatamente por ser justo e fiel a YHWH, assu-


mindo a condição de escravo e não de rei, foi perseguido e
rejeitado pela liderança de seu próprio povo, que não com-
preendeu a sua pregação nem o seu ensino; em função
dessa rejeição por Israel, o Messias teria de morrer, mas
ressuscitaria e seria vindicado por Deus, como evidência
de sua justiça e fidelidade ao Senhor;
• a morte de Jesus possui efeito expiatório, perdoando a in-

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FATIPI EAD Guia de Estudos

fidelidade, não só de Israel, mas de todos os povos e, em


última instância, derrotando o próprio poder da morte como
consequência do pecado;
• destarte, ele inaugura uma nova era para o povo de Deus,
uma era missionária universal, em que gentios serão acei-
tos como membros do povo de Deus, e judeus que não
forem fiéis ao Messias ficarão de fora; e
• graças a seu sofrimento e morte, como provas de sua fi-
delidade ao Pai, o Messias traz o reino de Deus à terra e
governará sobre a criação até que chegue o fim, quando
ele mesmo entregará o reino ao Criador, para sua glória e
domínio cósmico.

3) Figuras paradigmáticas nos documentos de Qumran. Nesta seção


trabalharei de modo um pouco diferente das anteriores, na medida em que
não focarei em uma figura específica, mas em um corpus textual, conhecido
como Documentos de Qumran. Ainda predomina na pesquisa a ideia de que
esses documentos representam o pensamento de um grupo sectário judai-
co, que conhecemos como essênios, cuja história remonta até o segundo
século a.C. Mas isso não quer dizer que não existam propostas importantes
para revisar tal noção. Em relação aos documentos, a interpretação deles
oferece ainda bastante controvérsia; o tema do Messias nesses textos não
é dos mais fáceis e, como outros, oferece complicações interessantes para
os interessados. Aqui, como não posso entrar em discussões detalhadas,
vou seguir basicamente a interpretação de John J. Collins.
Collins define seu foco de estudo como sendo qualquer figura de au-
toridade que seja objeto de esperança escatológica, mesmo que não no-
meada com o termo messias. Nesse sentido, ele considera haver quatro
paradigmas messiânicos em Qumran. O primeiro deles é o paradigma
real. Após analisar uma série de textos em que a ideia do messias rei
aparece, Collins (2010, p. 77ss) conclui:

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BÍBLIA Introdução ao AT

O retrato do rei ideal que emerge deste corpus é esquemáti-


co mas consistente. Ele é o cetro que esmagará as nações,
destruirá o ímpio com o sopro de seus lábios e restaurará a
dinastia davídica. Daí vem o seu papel na guerra escatológica.
Ele é também o messias da justiça, que inaugurará uma era
de justiça e paz. Ele é, presumivelmente, uma figura humana,
embora dotado do espírito do Senhor. Espera-se dele que res-
taure uma dinastia, e não que reine ele mesmo para sempre. A
maioria das passagens que consideramos, porém, são breves
e elípticas, e o quadro deve ser completado de várias maneiras.
[...] Este conceito do messias davídico como o rei guerreiro que
destruirá os inimigos de Israel e instaurará uma era de paz sem
fim constitui o núcleo comum do messianismo judaico por volta
da virada do século [I].

O segundo paradigma é sacerdotal. Durante um bom tempo era noção


padrão na pesquisa que Qumran apresentava uma noção dual de mes-
sianismo: uma real e outra sacerdotal. Esse padrão tem sido contestado,
mas ainda se pode defender a tese de que há, com certeza, um messias
sacerdotal nos documentos. Após a análise da evidência, Collins (2001,
p. 107) conclui:

Há, então, evidência suficiente de que a seita do Mar Morto


esperava dois messias, um real e outro sacerdotal. Este mes-
sianismo binário tinha, é claro, seu precedente bíblico nos ‘dois
filhos do óleo’ em Zacarias e, de fato, no modelo de liderança
dual que pode ser traçado ao passado, aos papéis do rei e do
sumo-sacerdote na comunidade pré-exílica, e mesmo a Moisés
e Arão no Pentateuco.

O terceiro paradigma é profético-didático. Sobre ele, Collins (2010, p.


141) afirma:

A identidade e o papel daquele que iria ensinar a justiça no fim

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FATIPI EAD Guia de Estudos

dos dias não são tão claramente definidos nos Rolos, como o
do messias guerreiro davídico. O papel não era, necessaria-
mente, menos importante, porém tanto o messias sacerdotal
como o “profeta semelhante a Moisés” são mestres. Ensino e
Lei tinham enorme importância para a seita do Mar Morto. Ocu-
pava mais a atenção dos sectários do que a preparação para a
guerra escatológica. O ensino autêntico seria um componente
essencial do fim dos dias messiânicos. Quer o Mestre escato-
lógico fosse um profeta, sacerdote ou ambos, o importante era
que ele seria um Mestre da Justiça na era messiânica.

O quarto, e último, é o paradigma do messias celestial. Este último


paradigma é menos evidente do que os anteriores e o próprio Collins ad-
mite que a evidência é escassa. Mesmo assim, sugere que é possível ver
uma figura celestial, similar à do Filho do Homem em Daniel, em um dos
hinos de Qumran, embora não seja claro qual é o papel dessa figura e sua
relação com os demais paradigmas messiânicos. Um último comentário
sobre os textos de Qumran: em vários trechos o Messias é identificado
como Filho de Deus, seguindo o padrão dos Salmos reais do Antigo Tes-
tamento. Um filho especial, peculiar, mas longe de ser o filho divino do
Novo Testamento.

4) O Filho do Homem. A última grande figura messiânica na Escritura


e nos textos não-canônicos de Israel é o “Filho do Homem”, figura que foi
incorporada pelos Sinóticos em o Novo Testamento. Como já estudamos
Daniel 7, o texto fundante da figura do Filho do Homem, fica aqui apenas
a menção ao mesmo.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Daniel 7, como a literatura apocalíptica canônica, é um convite à


reflexão sobre o poder opressor e seus limites. É um convite à resistência

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BÍBLIA Introdução ao AT

contra toda dominação e à esperança da transformação das realidades


opressoras, injustas e excludentes -- resistência e esperança baseadas na
fé em Javé, e concretizadas na fidelidade ao Senhor, mediante ações de
justiça na Terra. Daniel 7 não oferece um programa político, mas a motiva-
ção para cada geração do povo de Deus construir seus projetos políticos
em fidelidade à política libertadora e justa de Javé. Neste nosso tempo de
globalização e dominação ideológica que se autoidentificam como defini-
tivas, Daniel 7 é lembrança de que todo poder terreno terá fim – e mais
cedo do que os poderosos imaginam. E, se o poder terá fim, Daniel 7 nos
convida a seguir a Javé na ação política e solidária que faz o fim aconte-
cer. O fim da história é o fim dos impérios, o fim das opressões, o fim das
exclusões. É o início, o nascimento de uma sociedade justa e libertadora.
É o desafio de manter a justiça nas sociedades.

CONCLUSÃO DA DISCIPLINA

Prezado Estudante

Quando iniciamos o estudo desta disciplina nos perguntávamos: qual


é o objetivo de se estuda-la em um curso de Teologia? Qual é a tarefa
pedagógica que esta disciplina realiza?
Ao longo destes cinco módulos vimos que a Introdução histórico-li-
terária ao Antigo Testamento é uma síntese dos resultados da pesquisa
acadêmica sobre o Antigo Testamento. Focamos a nossa atenção em sua
tarefa fundamental que é, combinando abordagem literária com histórica,
apresentar, mapear e descrever a elaboração, estrutura e conteúdos bá-
sicos dos livros do Antigo Testamento, desde suas origens até sua forma
canônica.
Assim, nosso percurso nos levou a estudar a Torá como a instrução
normativa de Deus para o seu povo, a fonte de todo conhecimento váli-
do sobre Deus e a ‘regra’ para interpretar as demais partes da Escritura.

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FATIPI EAD Guia de Estudos

Passamos pelo que a Bíblia Hebraica entende por livros proféticos, com
seu desafio a uma espiritualidade mais sólida e íntegra, e chegamos aos
Escritos, analisando os seus livros poéticos, narrativos e a literatura apo-
calíptica.
Nesta jornada, mais importante do que os conhecimentos aqui cons-
truídos é a nossa atitude ao ler a Bíblia. Assim, renovo aqui o convite que
já fiz no primeiro módulo: a introdução ao Antigo Testamento deve nos
motivar a ler e estudar cuidadosamente os livros veterotestamentários. Es-
pero que você possa, com esta leitura, entender o que a Palavra de Deus
diz, para que possamos viver de modo fiel ao Deus de toda a criação. Que
Deus nos abençoe!

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BÍBLIA Introdução ao AT

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FATIPI EAD Guia de Estudos

BIBLIOGRAFIA

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TER, Stanley E. (ed.). The Messiah in the Old and New Testaments. Grand
Rapids: Eerdmans, 2007.

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CROATTO, José S. “O discurso dos tiranos em textos proféticos e apoca-


lípticos” In: Revista de Intepretação Bíblica Latino-americana. Número 8.
Petrópolis: Vozes, 1991.

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Sinodal-IEPG & Petrópolis: Vozes, 1997.

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ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,


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