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Cap. 4 – O Trauma psíquico e a teoria da libido. (Claudia Maria Sodré Vieira e Dra. Eva
Maria Migliavacca)
Cap. 6 – A instituição bancária como observatório humano do TEPT. (Othon Vieira Neto)
Cap. 8 – Outras alterações apresentadas após uma situação traumática. (Othon Vieira Neto)
Cap. 11 – Contribuições da Psicologia da Saúde na atenção às pessoas com TEPT. (Dr. José
Tolentino Rosa e Othon Vieira Neto)
Prólogo
Porque escrever um livro sobre neurose traumática e trauma psíquico? Por que
retomar o interesse por um tema que, embora importante do ponto de vista histórico para a
Psicanálise, foi abandonado? Talvez por isso mesmo: repensar o abandono do interesse por
esses conceitos, no momento histórico atual em que o indivíduo se relaciona com um mundo
cada vez mais perigoso e agressivo, a partir das alterações e sofrimentos que a violência pode
produzir.
Nosso interesse pelo tema surgiu a partir da experiência com o atendimento
psicoterápico de pacientes que haviam passado por situações de violência, tais como assaltos
e sequestros-relâmpagos, e especialmente de trabalhadores bancários vítimas de assaltos
sofridos em seus locais de trabalho.
Muitos pacientes atendidos apresentavam diversos sintomas relacionados à situação
violenta que sofreram, e vinham com uma demanda específica de “querer ser como eram”,
antes do assalto. Essa demanda, assim como o motivo que a gerou, tornou necessária uma
compreensão maior da relação existente entre a vivência de uma situação traumática e o
sofrimento psíquico posterior a ela. A utilização do referencial teórico psicanalítico adotado
por nós impulsionava-nos a tentar entender os sintomas desses pacientes como uma
expressão simbólica de um conflito inconsciente. Esse pressuposto, correto em relação a
outros pacientes, era de pouca utilidade com àqueles que padeciam de uma “Neurose
Traumática”, tal como era tratada essa doença pela literatura psicanalítica.
Além disso, como supervisores do Estágio de Aconselhamento Psicológico na Uni-
FMU, em função de uma parceria iniciada em 1999 entre a Universidade e a Secretaria da
Justiça do Estado de São Paulo, fazíamos parte de uma equipe responsável pelo
acompanhamento e supervisão dos atendimentos psicológicos dos usuários do Centro de
Referência e Apoio à Vítima (CRAVI). O Cravi foi um projeto-piloto daquela secretaria
criado para prestação de assistência social, jurídica e psicológica, baseado em um modelo
utilizado nos EUA, na cidade de Boston.
Nos atendimentos supervisionados frequentemente os pacientes apresentavam
transtornos psicológicos após terem sofrido assaltos, sequestros ou a perda de alguém
próximo, por assassinato. O atendimento nesse Centro de Referência também instigou
estagiários e supervisores a conhecer melhor esses transtornos.
Essa procura pela compreensão do trauma e de suas consequências levou-nos a
pesquisas sistematizadas em programas de pós-graduação. Como fruto dessas pesquisas,
foram elaboradas as dissertações de Mestrado “As relações Traumatizantes e seus Efeitos no
Aparelho Psíquico”, defendida no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de
São Paulo, orientada pela Prof. Dra. Eva Maria Migliavacca, e “Transtorno de Estresse pós-
Traumático em Bancários, Vítimas de Assalto e Sequestro” defendida no programa de
Psicologia da Saúde da UMESP-SP, orientada pelo Prof. Dr. José Tolentino Rosa, e que se
tornaram as bases deste livro.
Confirmando em investigação de campo as pesquisas bibliográficas realizadas, foi
verificado que a violência pode trazer consequências psicológicas para suas vítimas e, uma
das consequências comuns é o desenvolvimento do quadro chamado de Transtorno de
Estresse pós-Traumático (TEPT), uma designação recentemente adotada pela Classificação
Internacional das Doenças- CID-10 para o quadro conhecido anteriormente como Neurose
Traumática, mais familiar aos leitores que adotam orientação psicanalítica.
O subtítulo do livro, Neurose de Guerra em tempo de Paz, é uma referência a uma
das formas como Freud se referia à Neurose Traumática, e é mais atual do que nunca no
Brasil de hoje, quando anualmente morrem mais pessoas vítimas de atos de violência do que
em qualquer das guerras oficiais das últimas décadas. A denominação de Transtorno de
Estresse pós-Traumático foi criada para uma compreensão das alterações psicológicas dos
soldados que serviram no Vietnã, mas sua grande utilidade para nós é a possibilidade de
compreensão do que acontece com nossos “veteranos” domésticos: os familiares de jovens
assassinados, as vítimas se assaltos, sequestros, estupros, acidentes automobilísticos.
Esse livro descreve esse quadro patológico, buscando uma compreensão dos sintomas
e de sua dinâmica a partir de diferentes enfoques.
No primeiro capítulo, é fornecida uma visão geral desta patologia que, apesar de
alcançar proporções epidêmicas no mundo todo e especialmente no Brasil, é pouco conhecida
e identificada pelos próprios profissionais de saúde. Em seguida, há uma visão da biologia e
da metapsicologia do trauma psíquico, assim como sua relação com a teoria psicanalítica da
libido. A relação com a visão freudiana de neuroses é dada por um rastreamento das
concepções de Freud sobre a Neurose Traumática e sua tentativa de articulação desta doença
com as demais psiconeuroses.
Os capítulos seguintes descrevem como o Transtorno de Estresse pós-Traumático
aparece em pessoas que foram vítimas de assalto ou sequestro, e apresentam uma proposta
de intervenção multidisciplinar para reduzir as consequências da violência em trabalhadores
desenvolvida por um banco brasileiro.
Após uma análise dos sintomas a partir de conceitos psicanalíticos, é oferecida uma
visão da contribuição que a Psicologia da Saúde pode oferecer para as pessoas vitimizadas.
Esperamos que este livro possa favorecer uma interlocução com grupos e pessoas que
trabalham com esse quadro, e que possa contribuir de alguma forma para que profissionais
de saúde possam ajudar a população a reduzir as nefastas consequências psicológicas da
violência que todos sofremos.
Julho de 2004.
Introdução
Essa definição foi adotada porque ela requer que haja um dano causado por uma ação
para que esta seja considerada como violenta. Nesse sentido, uma série de atos praticados por
indivíduos ou grupos que, infelizmente, vem crescendo em nosso país, adequa-se a essa
definição.
Não é o objetivo deste trabalho estudar as raízes do comportamento violento, que
pode ter diversas motivações: econômica, política, social, religiosa ou psicológica. O foco
dele limita-se ao estudo das consequências psicológicas que os atos dos indivíduos ou grupos,
que empregam meios violentos para atingir seus objetivos, provocam nas vítimas, de forma
direta ou indireta.
Um rápido olhar nos noticiários da imprensa local, nacional ou internacional, pode
dar uma dimensão da importância do tema: atentados suicidas provocados por homens-
bombas, grupos do narcotráfico que controlam bairros inteiros, sequestros, assaltos e até
maridos ciumentos que matam as suas esposas supostamente infiéis, cada vez mais estão
presentes no cotidiano da população.
Programas televisivos exploram bastante este tema. Cada vez mais ouvimos em
programas de televisão e rádio expressões como “o trauma da vítima” ou o “medo da
população”, sem que isto seja devidamente entendido ou explicado. O sensacionalismo
destes programas, que alcançam grande audiência e popularidade, explora a ineficácia das
autoridades e a desproteção da população, e produzem o efeito de aumentar a sensação de
medo e desamparo nos indivíduos.
Este é apenas um elemento a mais em nossa cultura de medo. A crescente violência
que ocorre em nosso país produz uma sensação de insegurança e instabilidade, que
poderíamos classificar, a partir das ideias de Benyakar (2003), como um ambiente disruptivo
(disfuncional). Para esse autor, ambiente disruptivo é um ambiente no qual as regras de
relacionamento interpessoal, social e com o meio físico ficam distorcidas, obrigando o
indivíduo a adaptar-se a um ambiente incompreensível e imprevisível, ficando assim repleto
de elementos ameaçadores. Essa definição, originalmente destinada a compreender um
fenômeno social presente nos países ou regiões onde atentados terroristas são frequentes,
como o Oriente Médio, Israel ou a Irlanda, posteriormente foi aplicada também a países
sujeitos a desastres geográficos e àqueles onde há grande incidência de violência, seja por
parte de grupos organizados, com conotação política, seja por ações criminosas comuns.
Gampel (2000), referindo-se a este tipo de ambiente, prefere utilizar o conceito de
identificação radioativa, como uma representação metafórica do processo de penetração de
aspectos violentos e destrutivos da realidade social nos indivíduos. Esse processo, segundo a
autora, ocorre através da internalização de resíduos “radioativos” que não são conscientes, e
a pessoa se identifica com os aspectos desumanizantes da realidade, atuando a partir dessas
identificações ou repassando para seus filhos através do processo de transmissão
transgeracional.
Estes dois conceitos descrevem bem um fenômeno presente no Brasil, onde a
presença constante da violência força os indivíduos a, ao mesmo tempo em que buscam
defesas contra a sensação de medo e impotência, esperar por ela e, em alguns casos,
reproduzi-la.
Enquanto em outros países os fatores geradores de um ambiente disruptivo podem ser
localizados em guerras declaradas, oficiais, ou em instabilidades geográficas capazes de
provocar desastres e ceifar vidas, no Brasil o crime contra a pessoa é o elemento mais
preocupante para dois terços da população, que acredita que será vítima de algum tipo de ato
violento, conforme pesquisa do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a
Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (ILANUD, 2002). Outro dado a ser
destacado é o de que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mais
de 70% das mortes ocorridas com pessoas com idade entre 15 e 24 anos foram provocados
por fatores externos, ou seja, pela violência e por acidentes. Esse tipo de mortalidade teve
um aumento de 20,85% no período entre os anos de 1990 e 2002 (ESCÓSSIA, 2003).
Embora o aumento da criminalidade seja um fenômeno presente em muitos países,
inclusive nos EUA (ALARCON; TRUJILLO, 1997), algumas nações estão conseguindo dar
uma resposta social a este problema, invertendo essa tendência. Na Colômbia, país mais
violento da América do Sul, a taxa de homicídios diminuiu 21% em relação ao ano passado
(MAISONNAVE, 2003). É importante citar que, nesse país, essa taxa é dez vezes superior à
dos EUA (BROOK et al., 2003).
Embora pareça ser desnecessário comentar sobre os alarmantes índices da violência
no Brasil, a estatística fornece uma dimensão relativa do problema. Os dados do Seade -
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (1999), registraram em 1999 mais de um
milhão e duzentas mil ocorrências policiais no Estado de São Paulo, referentes a crimes
envolvendo pessoas, para uma população de 36.276.632 habitantes (SEADE, 1999). Foram
excluídos desse levantamento os crimes que não provocaram dano físico ou ameaça física às
vítimas, como furtos, estelionato, contrabando ou tráfico de entorpecentes, entre outros. O
número total de ocorrências naquele ano foi de 2.430.506, o que representa 6,7% em relação
à população do estado.
O número de ocorrências policiais potencialmente traumatizantes representa 3,5% em
relação à população, mas devemos considerar que uma ocorrência policial pode envolver
muitas vítimas. Um roubo a uma residência, por exemplo, gera um único boletim de
ocorrência, mas uma família inteira pode ter sido vitimizada. O mesmo ocorre em assaltos a
estabelecimentos comerciais e bancos, em que muitos funcionários e clientes sofrem ou
testemunham situações de violência. Após o ano de 1999, houve uma modificação na forma
de classificação dos crimes, por parte da Secretaria de Segurança Pública, distribuindo-os em
grandes categorias, como Crimes contra o Patrimônio ou Crimes contra a Pessoa, o que
inviabilizou um levantamento mais atualizado, uma vez que um crime cujo objetivo é o
patrimônio muitas vezes também atinge pessoas.
Muitas das pessoas que viveram as situações de violência em São Paulo podem ter
apresentado sequelas psicológicas, e entre elas, o desenvolvimento do quadro de Transtorno
de Estresse pós-Traumático como decorrência do trauma sofrido por um ato violento. A
principal consequência psicológica da experiência traumática é o desenvolvimento do quadro
psicopatológico do Transtorno de Estresse pós-Traumático (TEPT) ou, como utilizaremos
neste trabalho, PTSD, abreviação da denominação inglesa Post Traumatic Stress Disorder1
(CIA, 2001).
Uma pesquisa realizada nos EUA constatou que 20% das pessoas que foram vítimas
de algum tipo de violência desenvolveram sintomas do PTSD (BREWIN; ANDREWS;
ROSE, 2003). Aplicando essa proporção aos dados do SEADE, chegamos à impressionante
conclusão de que, só no Estado de São Paulo, mais de 250 mil pessoas teriam desenvolvido
1 Apesar da existência da abreviação em português TEPT, será utilizada neste trabalho a abreviação em inglês PTSD por ser a adotada pelos autores, inclusive os
brasileiros, como Roso (1998).
esta patologia no ano de mil novecentos e noventa e nove. Ainda há de se ressaltar que este
número é projetado a partir de dados oficiais. Pela experiência, sabemos que o número real
pode ser muito maior, pelo fato de que muitas vítimas não fazem boletim de ocorrência
policial, por diversos motivos, dos quais pode-se destacar o constrangimento muitas vezes
causado pela polícia, o pequeno prejuízo material envolvido, ou a própria desconfiança na
eficácia das autoridades.
Como vários dos fatores ambientais potencialmente traumáticos estão associados a
condições sociais, econômicas e políticas do país (SCHESTATSKY et al., 2003), pode-se ter
uma ideia do potencial traumatogênico de um país com as desigualdades econômicas, sociais
e culturais como o Brasil que produzem e, de certa forma, reproduzem a violência, como
afirmam Migliavacca e Vieira (2002, p. 237):
3 Alusão ao atentado terrorista que ocorreu em 11 de setembro de 2001, quando aviões de passageiros foram seqüestrados e lançados contra os edifícios conhecidos pelo
nome “Torres Gêmeas”, em Nova York, EUA, causando a morte de mais de cinco mil pessoas.
mais patogênica de uma situação traumática – a de provocar uma irrupção brusca do mundo
externo no mundo interno (BENYAKAR, 2003, p. 42).
Uma experiência traumática afeta não só o indivíduo, mas também aqueles que o
rodeiam e a própria sociedade.
frequentemente confrontados com incidentes críticos, como atos de violência, assaltos, desastres e confrontação com pessoas feridas ou
mortas (VAN DER PLOEG; DORRESTEIJN; KLEBER, 2003). O perigo não está presente apenas no local de
trabalho. “Passa a ser comum que os bancários sejam abordados e se tornem reféns no
caminho para o trabalho ou, até, em suas próprias casas, de forma que a insegurança é levada
a todos os lugares, família, pessoas do convívio cotidiano”, afirma Campos (1998).
Sato (1988, p. 121) menciona que o trabalho bancário está “extremamente
relacionado com o desgaste da saúde, quer por existir riscos de acidentes de trabalho, quer
por existir risco de assalto a bancos”. A partir de seu trabalho no DIENSAT (Departamento
Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde nos Ambientes de Trabalho), ela informa que
“vários trabalhadores (de bancos) procuravam o atendimento médico por crises após assalto”
(p. 121).
REFERÊNCIAS
1- SOBRE A ETIOLOGIA
Esta descrição sugere que qualquer pessoa está sujeita ao desenvolvimento deste
quadro. Uma vez que fatores predisponentes da personalidade não são necessários, a ênfase
para a compreensão da etiologia do transtorno recai sobre o evento estressante. Neste aspecto,
encontramos uma circularidade conceitual: desenvolvem os sintomas aqueles indivíduos que
passam por uma situação que “provavelmente causa angústia invasiva em quase todas as
pessoas” (COOPER, 1997, p.160).
Quais seriam as situações são essas que causam angustia invasiva e poderiam ser
consideradas como traumáticas? Pela experiência, é reconhecido que algumas pessoas
passam por situações terríveis e sobrevivem sem grandes conseqüências psicológicas, ao
passo que, para outras pessoas, um pequeno susto pode tornar-se traumático. Como localizar
o ponto de corte entre um fato, um evento desagradável da realidade externa e uma situação
traumática? Quais seriam os elementos da realidade que poderiam estar potencialmente
desenvolvendo o TEPT?
Vieira (2001, p.4) ajuda a responder essas questões ao focalizar a relação do
acontecimento do mundo externo com os aspectos econômicos do aparelho psíquico:
a) Ser inesperado.
b) Causar a interrupção de um processo normal.
c) Prejudicar o sentimento de confiança no outros.
d) Conter traços estranhos, não codificáveis ou interpretáveis.
e) Ameaçar a integridade física própria ou de pessoas significativas.
f) Distorcer ou destruir o lar.
Apesar destes elementos favorecem uma situação traumática, eles em si mesmos, não são suficientes. Lafont (1998, p.18)
confirma essa concepção defendendo a idéia de que, embora seja evidente que a carga traumática tende a aumentar com a magnitude
da situação, isto é, com a intensidade da ameaça, sua proximidade e o fator surpresa presentes, “não existe acontecimento traumático
absoluto”, e o desenvolvimento do TEPT não ocorreria, portanto, como se fosse um arco reflexo (UCHITEL, 2001), pois não se trata
de uma reação automática e inevitável a uma situação na qual está presente alguma ameaça à vida.
Por outro lado, a especificidade dos sintomas, a ansiedade e a excitação presentes neste quadro psicopatológico não
permitem a aceitação de que a vivência de uma situação traumática simplesmente trouxe à tona uma neurose pré-existente, como
alguns autores defendem (PORTIELES, 2002).
A necessidade da reação motora aparece também em outras obras de Freud. Em uma nota de rodapé das traduções de
Charcot, ele associa ao trauma à incapacidade de reação motora, ao mesmo tempo em que aponta a situação traumática como algo
não terminado, para o psiquismo, que encontraria no sintoma sua continuidade:
Teríamos assim, para que haja uma experiência traumática de um evento factual, as duas condições: Que o evento
represente um perigo acima da força do indivíduo, inundando seu aparelho psíquico de excitação. Que essa excitação não possa ser
manejada por uma atividade associativa ou pela descarga motora. O trauma seria, então, resultado de um desequilíbrio da economia
psíquica.
Vieira (2001, p. 237), complementa essa idéia a partir de uma visão da economia psíquica. Para essa autora, a partir de
uma fonte ambiental de estimulação para o aparelho psíquico, há uma frágil fronteira entre uma situação ter conseqüência
traumática ou possibilitar o crescimento do indivíduo. Essa fronteira, que a autora chama de ponto de mutação, ocorre pela relação
econômica entre a estimulação e o trabalho do aparelho psíquico frente a ela:
Talvez a melhor forma de pensarmos a relação entre a situação potencialmente traumática e o indivíduo que a vive seja o
modelo proposto por Freud (1917b/1995, Edição Eletrônica), de séries complementares. Em sua conferência XXIII da obra
“Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (1917b/1995, Edição Eletrônica), ele mostra, na forma de um diagrama, como a
psiconeurose depende de uma complementaridade dos fatores constitucionais com uma experiência circunstancial. A disposição da
libido, fixada a partir das experiências infantis proporcionaria o elemento constitucional, enquanto que a frustração da satisfação
libidinal, elemento circunstancial proporcionado pela realidade. Apenas um dos fatores não seria suficiente para o desenvolvimento
da neurose, e, na medida em que um dos fatores torna-se mais forte, é necessária uma quantidade menor do outro fator para atingir o
mesmo resultado.
Como seria a série complementar na neurose traumática? A situação traumática fornece o elemento circunstancial,
advindo da realidade na forma de uma ameaça à vida. Quais seriam os elementos constitucionais?
Abordando essa questão pelo aspecto filogenético, Freud levanta uma hipótese em seu trabalho “Neuroses de
Transferência - Uma síntese”, (1915/1987, p. 75) que, após os perigos da era glacial, a humanidade tornou-se angustiada, e o mundo,
anteriormente fonte de prazer, passou a ser um mundo ameaçador. A angústia real causada pelas ameaças do mundo fica acrescida
da libido insatisfeita, amplificando a situação ameaçadora.. No mesmo trabalho, Freud explica como esse processo ocorre nas
crianças: “o excesso relativo de libido”, insatisfeita, “transformar-se-ia em angústia real, diante de algo estranho, (assim) como
também tende em geral (a criança) a angustiar-se diante de qualquer coisa nova” (p. 75). Essa hipótese explicaria os dois elementos
da série complementar do TEPT, e teríamos então, o seguinte diagrama:
Libido Insatisfeita (Fator endógeno) + Situação de ameaça à vida ou, perigo maior que a capacidade do indivíduo (Fator
exógeno) = Transtorno de Estresse pós-Traumático.
Ferenczi (1919, p. 26) também pensa de mesma forma, mas localizando o excesso da libido no ego, criando uma estase da
libido narcísica. Assim, para ele:
A esse elemento narcísico, Mingote et al., (2001) acrescentam a ausência de recursos de suporte social, como família,
amigos e intervenção profissional profilática. Para esses autores, a série complementar teria esse aspecto:
Apesar dessas contribuições, os fatores constitucionais necessários para que um acontecimento factual seja potencialmente
traumático e patogênico para um indivíduo ainda não estão devidamente elucidados e essa questão segue sendo discutida
(SCHESTATSKY et al. 2003, MCKEEVER; HUFF, 2003), embora alguns outros elementos já tenham sido identificados.
2- SINTOMAS E PREVALÊNCIA
• OS SINTOMAS
Segundo a Classificação Internacional das Doenças (CID), os principais sintomas do Transtorno de Estresse pós-
Traumático (COOPER,1997) são:
Estes sintomas nos fazem pensar sobre o sofrimento, a restrição da liberdade pessoal,
amorosa e social, que esta doença produz. No caso de pessoas traumatizadas em seu ambiente de
trabalho, possivelmente a evitação dos estímulos que estejam associados ao trauma sejam
inviabilizadas, o que pode produzir aumento na ansiedade.
Para melhor visualização, os sintomas característicos do TEPT serão apresentados na forma
de um quadro, (Quadro 1):
4 Reproduzido do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais-DSM_IV (APA, 1995, Edição Eletrônica)
(4) sofrimento psicológico intenso quando da exposição a indícios
internos ou externos que simbolizam ou lembram algum aspecto do
evento traumático;
(5) reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos
que simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático.
alterações que está apresentando são “normais”, e que passarão com o tempo. Aqui vemos
segundo a norma, habitual, natural”. Em saúde este conceito é utilizado com o sentido de
desenvolvimento de sintomas após uma situação traumática pode ser considerado como
significa sua normalidade, mas apenas sua previsibilidade (VIEIRA e VIEIRA NETO,
1998). Pelo contrário, o trauma pode ser considerado um “corpo estranho” ao psiquismo, da
mesma forma que a violência é um corpo estranho à sociedade, algo que impede o curso
TRAUMAS TIPO I
Acontecimentos repentinos, perigosos e angustiantes, pouco freqüentes e de
duração limitada, como desastres de origem natural, acidentes automobilísticos,
assaltos, sequestros-relâmpago, estupros.
Os eventos são recordados em detalhe e criam lembranças bem vivas e completas.
Geralmente oferecem uma rápida recuperação, mas podem conduzir ao
desenvolvimento de TEPT, com idéias intrusivas, evitação e hiperexcitação.
TRAUMAS TIPO II
Acontecimentos variados, múltiplos, crônicos, de longa duração, são repetitivos
e previsíveis. Geralmente são causados intencionalmente por outras pessoas,
como abuso físico ou sexual contínuo, maus-tratos, tortura, seqüestro prolongado,
assédio moral.
A vítima se sente incapaz de defender-se.
5 Adaptado do livro Trastorno de estrés Postraumático. CIA, A. H. Buenos Aires: Imaginador, 2001. p. 57-58).
As lembranças são geralmente imprecisas, confusas, isoladas e fragmentadas,
devido à dissociação. Com a repetição da situação traumática, a dissociação pode
se tornar uma forma de tornar a experiência menos dolorosa e angustiante.
Traz alterações na forma da pessoa ver a si mesma e ao mundo, devido aos
sentimentos de vergonha, desvalorização e culpa.
As tentativas de defesa podem envolver, respostas dissociativas, negação e
insensibilidade ou anestesia afetiva, isolamento e consumo de drogas.
Uma diferença importante entre os dois tipos, é que o trauma do Tipo II, embora
extremamente violento e angustiante, geralmente não é acompanhado do medo da morte.
Uma pessoa maltratada ou sexualmente violentada por um conhecido ou familiar, apesar do
horror que está vivenciando, sabe que não será morta pelo agressor.
Nesse sentido, O DSM-IV (APA, 1995, Edição Eletrônica) ainda descreve como
respostas aos eventos traumáticos necessários para o diagnóstico de TEPT, o surgimento de
“intenso medo, impotência ou horror”, além de uma rememoração persistente da situação
traumática e tentativa de esquiva de estímulos que possam se associar com o trauma.
Essas lembranças são sentidas como “espontâneas, involuntárias, ao surgirem não são
facilmente interrompidas, parecendo ter ‘vida própria’” (CÂMARA FILHO; SOUGEY,
2001). Na opinião destes autores, as sensações de reviver o acontecimento ou flashbacks
seriam os sintomas mais característicos do TEPT.
Sobre a possibilidade de desenvolvimento de TEPT apenas por testemunhar um fato
violento, em pesquisa realizada em Nova York após os atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001, foram encontrados 44% de pessoas com sintomas de TEPT na população,
que assistiu os eventos pela televisão (SCHUSTER et al., 2001).
Ainda no DSM-IV (APA, 1995, Edição Eletrônica), encontramos o seguinte critério
diagnóstico:
Outro fator importante que deve ser levado em consideração na relação do indivíduo
traumatizado com seu meio é de que as pessoas reagem defensivamente ao relato de uma
experiência traumática, tendendo a, de alguma forma, culpar a vítima. Para manter uma falsa
sensação de segurança, as pessoas reagem de forma a pensar que “Isso não vai acontecer
comigo, pois sou mais cuidadoso que ele” (BENIAKAR, 2003). Esta postura, além de culpar
uma pessoa que já se sente culpada, é puramente defensiva, e irracional. Em uma sociedade
violenta, todos estão sujeitos a sofrer ações criminosas, por mais que tente negar isto. Afinal,
como dizia Freud (1925/1995, Edição Eletrônica) “O viajante surpreendido pela noite pode
cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não
enxergará mais que um palmo adiante do nariz”.
Indivíduos traumatizados apresentam também uma tendência a apresentar falsas
memórias em quantidade maior que entre indivíduos não traumatizados (ZOELLNER et al.,
2000), respondem de forma mais intensa a estímulos visuais e sonoros (ORR et al., 2000), e
alguns pacientes buscam uma re-exposição compulsiva a novos eventos potencialmente
traumáticos (CÂMARA FILHO; SOUGEY, 2001).
Outras alterações, além das mencionadas, também podem estar presentes. Glina et al.
(2001) mencionam o caso de um motorista de ônibus que, após ter sofrido o último de cinco
assaltos à mão armada, ficou “duas ou três noites sem dormir, com suores intensos e as pernas
tremendo”. No mesmo trabalho é citado o caso de um gerente de banco que, após sofrer um
assalto, passou a apresentar cansaço, “moleza”, mal-estar e palidez. O medo intenso da
repetição da situação fez inclusive com que esta pessoa deixasse crescer a barba e o bigode,
como um “disfarce” para que não fosse reconhecido pelos assaltantes.
Abuso de substância, comportamento violento e prejuízos no relacionamento
interpessoal também são comuns no TEPT, embora não sejam considerados sintomas formais
(CARLIER; VOERMAN; GERSONS, 2000).
Embora seja impossível prever as reações humanas diante de qualquer situação, a partir
de estudos estatísticos, Horowitz, Wilner e Alvarez (1979) descrevem cinco fases
características de respostas aos traumas, com um possível estado final de resolução mais ou
menos completo, que pode incluir várias alterações permanentes na estrutura de
personalidade. Tal curso é ainda influenciado pelo tipo de estressor:
psíquico a ponto do indivíduo não alcançar a fase de aceitação, dá-se uma situação de
Conforme Kessler et al. (1995), entre os americanos, 60,7% dos homens e 51,2% das
mulheres viveram algum tipo de situação traumática em suas vidas, tais como sofrer
ferimentos físicos ou testemunhar alguém sendo ferido ou morto; envolvimento em incêndio,
inundação ou desastre natural; envolvimento em algum acidente com ameaça à vida; ou
exposição a combate. A prevalência de Transtorno de Estresse pós-Traumático nessas
pessoas foi de 10,4 % nas mulheres, e 5% nos homens.
Nesta pesquisa, realizada por Kessler et al. (1995), com uma população de mais de
cinco mil pessoas, com idades entre 15 e 54 anos, foram encontrados dados surpreendentes
da incidência de situações possivelmente traumáticas, e desenvolvimento do quadro de
Transtorno de Estresse pós-Traumático (Ver Quadro 4).
Quadro 4: Índice de experiências possivelmente traumáticas e desenvolvimento de TEPT.7
Mulheres (%) Homens (%)
Trauma Experiência Desenvolvimento Experiência Desenvolvimento
Abuso físico 5 49 3 22
Estupro 9 46 1 65
Ameaça com 7 33 19 2
arma
Combate 0 0 6 39
Molestação 12 27 3 12
Ataque físico 7 21 11 2
Choque 12 10 11 4
Acidente 14 9 25 6
Testemunhar 15 7 36 6
acontecimento
violento
Conforme os dados mostram, e outros autores confirmam (MAES et al.1998,
YEHUDA,1998), os índices encontrados de TEPT variam de acordo com o gênero e com o
fator estressor. Mingote et al. (2001), advertem que o tipo do estressor pode condicionar
variações no curso da enfermidade, devendo receber atenção especial. Os estressores
causados pelos homens parecem apresentar uma prevalência maior que os de origem natural.
Essa discrepância pode ser verificada através de uma comparação: enquanto 57% das
mulheres vítimas de violência sexual desenvolvem TEPT, em erupções vulcânicas, nas quais
a ameaça à vida também é muito intensa, e as perdas materiais são devastadoras, estudos
mostram que apenas 3.6% da população exposta desenvolveram TEPT (MINGOTE et al.,
2001).
Mesmo entre os estressores causados pela violência de origem humana, ocorrem
diferenças. Mueser et al. (1998) encontraram maior taxa de TEPT em crianças quando o
estressor foi o abuso sexual, tanto para meninas como para meninos. Em mulheres adultas,
os maiores estressores encontrados foram o ataque sexual ou físico sem armas e testemunho
de morte ou grave ferimento; entre os homens, o assassinato de amigos ou parentes ou sofrer
7 Extraído de KESSLER, R.C. et al. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey.
Archives of General Psychiatry. v.52, n.12. 1995
um ataque com armas.
Yehuda, McFarlane e Shalev (1998) citam estudos nos quais foram encontrados
índices menores que os de Kessler et al. (1995), tanto para a vivência de situações
traumáticas, quanto para o desenvolvimento de TEPT. Este estudo, realizado com uma
população fortuita de 1007 jovens, revelou que apenas 39% foram expostos a algum estressor
e destes, 23.6% desenvolveram TEPT.
Em outra pesquisa, com prisioneiros de guerra, o índice de prevalência foi de 47-
50%. Em civis expostos a ataques na Irlanda do Norte, foram encontradas taxas de 94%
(CURRAN; MILLER, 2001).
Maes et al. (1998) citam pesquisa onde foi encontrada taxa de 16% de TEPT em
sobreviventes de infarto do miocárdio. Em vítimas de acidentes de trânsito, a taxa varia entre
10 a 39%. Em vítimas de violência não sexual, 70% apresentam sintomas do TEPT nos
primeiros três meses após a situação violenta e 20% mantiveram os sintomas após este
período (FOA; ZOELLNER; ALVAREZ, 2003) . O DSM-IV (APA, 1995, Edição
Eletrônica) indica uma variação enorme e pouco precisa, “entre 3% e 58%”.
Macready (1998), em pesquisa com prostitutas na África do Sul, Tailândia, Turquia,
Estados Unidos e Zâmbia, encontrou taxa de TEPT de 67%. Este dado sugere a
impossibilidade de uma adaptação a um ambiente disruptivo. A taxa encontrada surpreende,
pois, embora possamos imaginar que pela própria atividade que as prostitutas exercem, na
qual ficam expostas a ataques de ordem física e sexual, elas estariam mais acostumadas com
este tipo de situação. Para esta população, o índice de TEPT encontrado é bem maior que na
população em geral, e superior aos de prisioneiros de guerra.
Além destes números, Benyakar, (2003) comenta que no início dos estudos sobre o
Transtorno de Estresse pós-Traumático, na década de oitenta, era feito um cálculo de que,
para cada indivíduo afetado fisicamente, havia, no mínimo, quatro pessoas afetadas
psicologicamente: ele próprio e seus familiares, ou pessoas próximas. Com os atentados
terroristas, este número aumentou para vinte traumatizados para cada ferido físico e, “desde
o ataque às Torres Gêmeas, sabe-se que, para cada danificado físico há pelo menos duzentas
pessoas que requerem alguma assistência psicológica” (p. 93).
Diversos fatores contribuem para a divergência dos índices de TEPT encontrados nas
diferentes pesquisas:
Em primeiro lugar, diferentes populações estão sujeitas a diferentes estressores.
Mueser et al. (1998) constataram essa diferença pesquisando pacientes de dois hospitais
norte-americanos de cidades diferentes. Além disso, Maes et al. (1998), apontam que um
fato que pode alterar as taxas encontradas nos diversos estudos pode ser o intervalo de tempo
entre a situação ameaçadora e a avaliação diagnóstica. Pesquisa efetuada por Yehuda,
McFarlane e Shalev (1998) na Austrália, encontraram em 19% das vítimas de acidentes
automobilísticos o diagnóstico de TEPT. Este estudo mostra que o índice de pessoas com
TEPT aumentou no período de 6 meses após o acidente. Em pesquisa semelhante
desenvolvida por Resnik, Kilpatrick e Lipovsky (1996), as mulheres adultas da amostra,
vítimas de ataque sexual apresentavam índice de 94% de TEPT uma semana após o assalto,
65% persistiam por um mês após o ataque, e 47% após um ano. Assim, dependendo do
estressor e da população atingida, os índices de desenvolvimento do TEPT podem aumentar
ou reduzir com o passar do tempo e, dependendo do intervalo de tempo decorrido entre a
experiência traumática e a investigação, taxas diferentes de prevalência serão encontradas.
Outro fator mencionado por Maes et al. (1998) pode ser a diferença do referencial
diagnóstico utilizado. Ele comenta um estudo realizado por Creamer (1989) onde em um
grupo exposto a múltiplos homicídios, usando-se o DSM-3, a taxa era de 74% de incidência
de TEPT. Já com a utilização do DSM-III-R, a taxa caía para 33%. Em vítimas de acidentes
de trânsito, usando o DSM-IV,a taxa de incidência era de 34.8%. Para a mesma amostra, com
os critérios do DSM-III-R, a taxa de incidência aumentava para 39.2%.
Um quarto aspecto a ser abordado, é o da existência e utilização de diferentes
instrumentos de avaliação diagnóstica para o TEPT. Roso (1998) lista as tabelas mais
utilizadas, que medem a presença de sintomas, e de outras variáveis associadas ao seu
desenvolvimento. Entre as mais utilizadas, estão a CAPS- Clinician Administered PTSD
Scale, a IES- Impact of Events Scale, a MISS- Mississipi Rating Scal for Combat Related
PTSD e sua versão Civil, e a SOS- Significant Other Scale. O uso de escalas diferentes aponta
índices diversos da presença do quadro patológico. Embora as escalas citadas tenham sido
aprovadas e utilizadas por pesquisadores de diversos países, é inevitável que se encontre
pequenas variações, dependendo do instrumento utilizado.
Um quarto fator importante a ser destacado, é o da diferença da cultura entre as
diversas populações pesquisadas, e as conseqüentes variações nas formas de relacionamento
da população com situações possivelmente traumáticas, como crimes e experiências de
violência. Kerr-Correa (2000), em estudo sobre o abuso sexual, cita pesquisas nos EUA onde
a incidência do abuso sexual contra a mulher varia entre 12,9% e 28%, ao passo que no Brasil,
segundo esta autora, a estimativa é de 7%. Estes dados, lidos ingenuamente, indicariam que
nos EUA, onde a polícia age com maior eficácia e a punição para os criminosos é mais
rigorosa que no Brasil, haveria um número maior de casos de abuso sexual. A autora conclui
que essa diferença não reflete a realidade, podendo ser atribuída a pouca pesquisa sobre o
tema no Brasil e, principalmente, à descrença da população no sistema judiciário brasileiro,
deixando de denunciar muitos crimes. Essa descrença fica evidente ao comparar-se a
estimativa de casos com os números oficiais. O número de ocorrências policiais de casos de
estupros consumados e tentativas de estupro, no ano de 1999, indica um índice de apenas
0,01% deste tipo de ocorrência na população total do Estado de São Paulo (SEADE, 1999),
contra uma estimativa real de 7% (KERR-CORREA, 2000). Um exemplo dessa postura da
população pode ser visto no caso de uma paciente atendida em psicoterapia, vítima de
seqüestro-relâmpago, que comentou não ter feito ocorrência policial do crime do qual foi
vítima. Ao ser questionada sobre o motivo disso, argumentou: “Para quê? A polícia não vai
fazer nada. Não quero virar estatística”. Embora esse seja um dado isolado, pela experiência
sabe-se que esta postura retrata a falta de confiança que parte da população tem nas
autoridades policiais.
Além disso, há o fator de que os sintomas do TEPT são considerados “normais” pela
população, como já foi comentado, e, por isso, não há procura de tratamento, mascarando a
incidência real que este quadro pode ter na população. Objetivando realizar uma pesquisa
sobre a eficácia de diferentes tratamentos para o TEPT, Taylor et al. (2003), recrutaram os
participantes a partir da indicação de médicos e de anúncios através da mídia. Entre os 299
indivíduos que contataram os pesquisadores, 60 cumpriam os critérios diagnósticos de TEPT.
Nessa amostra, o tempo médio que apresentavam os sintomas foi de 8,7 anos. Durante este
período, essas pessoas não procuraram tratamento, deixando de aparecer em levantamentos
epidemiológicos.
Por último, outro aspecto que deve ser levantado, é em relação ao pouco
conhecimento, ou ao pouco valor dado a este diagnóstico, inclusive por profissionais de
saúde. Mueser et al.(1998), pesquisando 275 pacientes do serviço público de saúde mental
norte-americano, encontraram taxa de 43% que apresentavam diagnóstico de TEPT, embora
apenas 2% tivessem recebido este diagnóstico em seus prontuários. Andrade et al. (1999) em
pesquisa epidemiológica realizada entre os pacientes do serviço de triagem do Hospital das
Clínicas de São Paulo, não incluíram o TEPT entre as categorias avaliadas, apesar da alta
prevalência indicada pelo DSM-IV, entre 3% e 58%. Este autor encontrou índice de 12,9%
na categoria Qualquer Transtorno Ansioso, que possivelmente engloba os sintomas do TEPT.
mês com sintomas, este diagnóstico não pode ser feito durante o período
considerado.
Essa descrição sugere que a diferença entre os dois diagnósticos seria apenas no
tempo de duração dos sintomas. Teríamos então a seguinte divisão nas alterações provocadas
pela vivência de uma situação traumática:
Se o diferencial diagnóstico ficar limitado à duração dos sintomas, fica uma questão
sobre a necessidade da existência dessa categoria diagnóstica. Porque não uma única
30 dias para o TEA já dificulta sua utilização diagnóstica, uma vez que só pode ser dado
com segurança retrospectivamente. Uma pessoa avaliada após três semanas da situação
traumática, por exemplo, receberá o diagnóstico de TEA que será válido apenas por uma
semana. Caso não haja alteração nos sintomas nessa semana, deverá ser reavaliada para
duradouro.
TEA, veremos que, embora quase todos os critérios do TEA sejam iguais aos do TEPT,
Dessa forma, além dos sintomas comuns ao TEPT, o diagnóstico de TEA exige a
diagnósticas:
Em primeiro lugar, uma pessoa que, no período de um mês após uma situação
TEPT. Embora essa pessoa possa apresentar “sofrimento clinicamente significativo e/ou
previsto, e isso pode ter relevantes implicações sob o aspecto jurídico-trabalhista, como
Em segundo lugar, uma pessoa que apresenta os sintomas do TEPT após um mês da
A diferença diagnóstica entre as duas categorias diagnósticas recai sobre dois pontos:
O tempo de duração dos sintomas e a presença de sintomas dissociativos. (HARVEY;
BRYANT, 2001).
Sobre a presença de sintomas dissociativos, McCarthy (2001) explica que o “TEPT
crônico em jovens é apresentado com sintomas como dissociação, comportamento
autodestrutivo, abuso de substâncias, e/ou problemas de conduta que podem obscurecer a
origem pós-traumática do transtorno”. Para esse autor, a presença de sintomas dissociativos
não exclui que o diagnóstico mais apropriado seja de Transtorno de Estresse pós-Traumático.
Harvey e Bryant (2001) relacionam as críticas que diversos outros autores fazem
sobre a existência do diagnóstico de TEA:
Além das críticas levantadas, pode-se constatar também a sobreposição dos dois
diagnósticos. Entre 72% e 83% das pessoas que desenvolveram TEA, apresentam sintomas
de TEPT 6 meses após a situação traumática. Essas taxas caem para entre 63% e 80% após
2 anos (HARVEY, 2002). Brewin et al., (2003), encontraram uma sobreposição diagnóstica
de 95,5% entre as duas categorias. Este alto índice, segundo esses autores, questiona o quanto
se trata realmente de diagnósticos distintos.
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CAPITULO 2
A metapsicologia do trauma
Discutir metapsicologia implica considerar aspectos topográficos, dinâmicos e econômicos de um conceito psicanalítico. Este capítulo
tem por objetivo propor uma teorização do trauma, descrevendo sua ação no aparelho psíquico. Não se debruça sobre os traumas
cumulativos, àquelas repetidas e constantes lesões ao narcisismo que acabam por corroer a coesão do ego, mas à situações dramáticas
que rompem as barreiras de defesa do aparelho psíquico. Descreve mais propriamente as experiências infantis, mas fornece elementos
para a compreensão de alguns processos presentes no Transtorno de Estresse pós-traumático, objeto deste livro.
A nossa primeira aproximação ao tema será feita a partir do aspecto econômico em S. Freud, em seguida, exploraremos a dinâmica
do trauma, tendo por base as idéias de S. Ferenczi.
Enfatizar o aspecto econômico é amplamente justificado pela concepção de traumatismo expressa em 1916, na Conferência XVIII, e
que se mantém no decorrer de sua obra. Seriam traumáticos os acontecimentos que provocariam um grande aumento de energia em
um curto espaço de tempo “[...] tornando impossível a supressão ou assimilação da mesma por meios normais e provocam deste modo
duradouras perturbações do aproveitamento da energia.” (1973, p.2294). A impressão subjetiva, ou a sensação de desprazer, independe
da fonte, ou de sua representação: “Temos resolvido relacionar o prazer e o desprazer com a quantidade de excitação existente na vida
anímica, excitação não ligada a fator algum determinado” (FREUD, 1917/1973, p. 2507). Assim, sua origem sendo endógena ou
exógena, não seria a impressão de desprazer que permitiria distinguir uma da outra.
Nosso problema é descobrir como o aparelho psíquico lida com quantidades excessivas. Para tanto, faremos um recuo no tempo para
encontrar no “Projeto para uma Psicologia Científica”9 (Freud, 1950[1895]/1975) as pistas para as respostas.
Apesar do objetivo dessa obra ser positivista e retratar uma concepção de ciência própria de sua época , seu espírito parece superar as
amarras a que o próprio Freud a submeteu. Podemos identificar na construção de seu modelo pré-psicanalítico de aparelho psíquico,
os germes da complexidade dos modelos posteriores, e uma forma de descrição de funcionamento que se coaduna com o que hoje
chamaríamos de uma concepção sistêmica. Obviamente, os avanços do conhecimento das neurociências não nos permitem considerar
com ingenuidade aquilo quer se refere ao funcionamento do sistema nervoso tal como Freud nos apresenta. Não se trata também de
nos posicionarmos a partir de um vértice arqueológico, mas de fazer um uso inovador do texto. Primeiramente vamos evocá-lo para
que nos fale sobre algo no qual ele não se detém: o trauma. Assim, travaremos um diálogo com essa obra, respeitando o contexto em
que foi construída e, posteriormente reintroduzindo as respostas a que chegamos em um novo contexto para transforma-lo em algo
diferente do original, mas não dele divorciado.
O princípio que rege o sistema nervoso é o princípio da inércia, que leva os neurônios a desfazerem-se de quantidades (Q). Freud não
especifica o que seriam essas quantidades. Em termos gerais é, excitação nervosa e quantidade em fluxo , e o que diferencia a atividade
de repouso.
São duas as funções básicas do sistema nervoso: a recepção de estímulos externos e a descarga das excitações.
O sistema nervoso é composto por três sub-sistemas funcionalmente distintos: , e W.
O sistema é encarregado da recepção dos estímulos que provém das terminações nervosas dos órgãos dos sentidos. Os neurônios do
sistema têm como característica a permeabilidade. Os estímulos atravessam esse sistema sem deixar nenhuma alteração. Isto significa
que a excitação caminha livremente por , passando de um neurônio a outro sem nenhum tipo de obstáculo. Como conseqüência dessa
permeabilidade dos neurônios , a excitação não deixa nenhum tipo de registro com a sua passagem, os neurônios retornam ao seu
estado anterior imediatamente após a passagem de excitação. Seu trabalho implica em transferir a excitação provocada pelos estímulos
externos nas terminações nervosas dos órgãos dos sentidos para o sistema seguinte, . Dito de outra forma, o que é possível
compreender do sistema é que ele não realiza trabalho psíquico, propriamente. Sua função é meramente de transporte. Os neurônios
terminam em estruturas celulares que recebem os estímulos exógenos, atenuando-os, deixando passar apenas frações de Q’s, como
um dispositivo protetor, uma barreira de estímulos, uma tela, como Freud a denomina no Projeto.
O segundo sistema, sistema , é composto por neurônios impermeáveis, ou seja, que opõem resistências à condução de Q. Esse sistema
mantém uma fração de Q no interior de seus neurônios- Q’. A soma de q no sistema é constante, mas a sua distribuição nos neurônios
pode variar. Em termos simplificados, a barreira de contato é o que opõe resistência ao fluxo de Q.
Com a passagem de Q, o estado da barreira fica alterado. Freud denominou de facilitação essa alteração.
O sistema é composto por dois tipos de neurônios: os neurônios nucleares e os neurônios pallium. No sistema , os estímulos
provenientes do interior do organismo são recepcionados pelos neurônios nucleares, enquanto que os advindos de , portanto das
percepções, são acolhidos pelos neurônios pallium.10
A memória, dentre outras, é uma função de , é o registro da experiência, o traço mnêmico. Memória e facilitação estão intimamente
relacionadas: “[...] a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ψ.”(FREUD, 1950[1895]/1975, p. 31,
grifos do autor)
O significado das facilitações vai além da memória, elas dirigem o curso da excitação dentro do sistema , influenciam o trajeto que
será seguido, como uma via aberta, uma trilha em meio à densa floresta. A função primária das facilitações é evitar que os neurônios
fiquem cheios de Q’. Em função das facilitações, no sistema , Q’ ficaria constante, mas distribuída de forma diferenciada. Essa
10Apesar de Freud referir-se ao sistema como receptor dos estímulos externos, é preciso um certo cuidado
em não acoplar sistema e estímulo externo, é mais seguro relacioná-lo `a percepção, isto porque uma
alucinação pode ser conduzida regressivamente por . Se pudéssemos nos apoiar no binômio sistema -
estímulo externo, teríamos uma dupla especialização e diferenciação: o sistema conduziria estímulos de
origem externa e o sistema , através dos neurônios pallium os recepcionaria. Restaria saber se há como fazer
uma distinção entre o que é recepcionado e registrado nos neurônios nucleares e nos neurônio pallium.
diferenciação da distribuição garantiria os diferentes registros de passagem de Q’, as diferentes lembranças e, posteriormente, as
diferentes catexias. Uma conseqüência da maior importância associadas às facilitações é a criação de uma diferenciação dentro de :
o Ego.
Freud descreve o Ego como uma organização no interior de que influiria na passagem de quantidade, na distribuição de Q’ em seus
domínios. Seguir a via facilitada, sem nenhuma inibição, é característica do processo primário, que é compulsivo e automático.
Lembremos que uma das funções do ego é, justamente, inibir o processo primário. Consideramos trabalho psíquico aquele promovido
pelo ego e que interfere na escolha das vias de condução facilitadas. O ego como organização é, ao mesmo tempo, causa e efeito das
interferências nas vias facilitadas.
O sistema recebe os estímulos externos duplamente intermediados, pela barreira de estímulos dos órgãos sensoriais e pelo
sistema . As estimulações advindas do interior do organismo são menos intensas que as Q’s, por sua própria origem. Partindo do
interior das células, essas quantidades estão adaptadas à tolerância do organismo, são da mesma ordem que a resistência das barreiras
de contato. Contra essas estimulações não existe um dispositivo protetor como há para os estímulos exógenos, não há uma tela. Essa
função de tela é exercida pelas barreiras de contato entre os neurônios. Somos levados a crer que o problema do excesso de Q não terá
sua origem nos estímulos endógenos, mas nos exógenos, já que estes são mais intensos do que os internos. A experiência demonstra
que não é assim, de fato. Os estímulos endógenos atuam por somação, são constantes e contra eles não há nenhuma barreira. Os
estímulos endógenos são gerados continuamente, mas só quando atingem uma certa intensidade é que passam a ter efeito psicológico.
O transporte das fontes de estimulação endógena até o sistema é feito pelas vias de condução que são dispostas em série, intercaladas
por barreiras de estímulos. Freud considerava que a quantidade de cada estímulo individual seria pequena, e por isso permitia a
somação. As vias de condução se enchem de Q’ até se tornarem permeáveis, transportando o estímulo até o núcleo . A
permeabilidade depende da intensidade de Q’ e havendo a descarga em , as vias de condução recuperam a sua resistência. Por outro
lado, não havendo descarga, os estímulos endógenos atuam como forças constantes. Assim, um excesso de estimulação em pode ter
o mesmo efeito de uma falha na função de defesa da barreira de estímulos exógenos.
Freud considera uma situação não patológica que provoca um excesso de excitação: a dor.A dor representaria o fracasso de todos os
dispositivos de proteção contra o excesso de estimulação exógeno.Na dor, a estimulação atravessaria os sistemas, sem que nada
detivesse sua passagem, definindo facilitações permanentes, ultrapassando as barreiras de contato. Freud usa imagem de um raio que
atravessa o aparelho mental de parte a parte. Se a condução em se der da mesma forma que em , pode-se supor que não há registro
da experiência, pois os neurônios se comportariam como , ou seja, sem resistência. Teríamos, uma Q livre nos sistemas, atravessando
os neurônios. Como descarregar? A idéia que se forma é de colapso. Para isso todo o sistema deve trabalhar de forma a reduzir Q.
Conhecemos os sistemas e , há que apresentarmos um terceiro, composto pelos neurônios , o sistema W, onde se processa o
fenômeno da consciência.
Os sistemas e funcionariam como vasos comunicantes, um aumento de Q’ em corresponderia a sensações de desprazer em ,
enquanto que uma diminuição de Q’ em , uma descarga, corresponderia a sensações de prazer em .
Outro padrão de experiência, além da dor, que é fundamental no desenvolvimento mental, é o da satisfação de uma necessidade. Ela é
responsável pela configuração do desejo e do pensamento.
Seguindo a metapsicologia de Freud, e em especial seu aspecto econômico, podemos formular uma pergunta orientadora: quais os
efeitos no aparelho psíquico dos excessos de estimulação? Que tipo de excesso seria o trauma? Tomemos como ponto de partida a
comparação entre dor e trauma que nos pareceu promissora.
“A dor é o mais imperativo de todos os processos[...]”, afirma Freud (1950[1895]/1975, p.39). A dor nos remete ao corpo,
a uma qualidade sensorial imediata, intensa e urgente. Por outro lado, o desejo conduz `a idéia de mente, e de um objeto. Para parar de
doer é preciso eliminar a causa da dor. Para saciar o desejo, é preciso encontrar o objeto, pelo menos uma primeira vez, para o corpo
passar a ser habitado por uma mente. A mente deseja e tem medo, o corpo tem necessidades e sente dor. Dor e desprazer não são
sinônimos, apesar de estarem relacionados. Desprazer pressupõe uma mente, a dor, um sistema nervoso. Evitar a dor e evitar o
desprazer são momentos distintos na evolução.
Vejamos o que o Projeto nos diz sobre a dor. Freud qualifica a dor como um “protótipo normal do patológico”
(FREUD,1950[1895]/1975, p. 38), pois exige do organismo uma eficiência que está além do seu limite. A dor equivale ao fracasso dos
dispositivos defensivos contra o excesso de Q’s externas e a propensão do organismo é fugir da dor, o que é demonstrável pelos reflexos
de defesa, que não exigem do organismo a presença de uma mente, mas de um sistema nervoso.
A dor:
Se na dor a descarga de excitação referente à dor não exige uma mente, o trauma não pode ser compreendido sem sua ação na mente.
Encontramos em “Além do princípio do prazer” (FREUD,1920/1973) uma definição do que é uma excitação traumática. São aquelas
excitações que pelo seu montante de energia são capazes de romper as proteções. Encontramos também a dor como um desprazer
específico resultante da ruptura da proteção em uma área determinada do corpo. Ou seja, trauma e dor correspondem a excessos de
estímulos e a rupturas de proteção. Provisoriamente vamos manter a correspondência entre trauma e dor.
Baseados no que destacamos mais acima, se há uma imagem mnêmica do objeto relacionado à dor, isto significa que há um registro
da experiência de dor, que não se iguala à . Se o aumento de nível é sentido como desprazer em , a dor está atrelada à consciência?
Não haveria uma dor inconsciente?
Examinemos este problema, o da dor/consciência. Antonio Damásio (2000), em seu livro “Os mistérios da consciência” define a dor
como “[...] conseqüência de um estado de disfunção local em um tecido vivo, como conseqüência de um estímulo – dano tecidual
iminente ou de fato – que causa a sensação de dor, assim como reações reguladoras como os reflexos [...]” ( p. 100). As fibras nervosas
amielínicas (as fibras C, como são chamadas), e outras pouco mielinizadas (as fibras A-), apresentam-se distribuídas por todo o corpo
e são responsáveis pela condução dos sinais sobre alterações dos estados internos do corpo. São denominadas de nociceptivas porque
são especializadas na reação a estímulos que são, de fato ou potencialmente, lesivos ao corpo. A lesão põe em ação uma série de
substâncias que têm a função de acionar os agentes reparadores, por exemplo, no caso de uma queimadura nos dedos, peptídeo e íons
de potássio que acionam as células brancas para atuar na área atingida. Essas substâncias, por sua atuação, acionam outras fibras
nervosas que, juntamente com as outras, produz uma orquestração de sinais que viajam percorrendo a medula espinhal e, através de
sinapses e das vias que lhes são próprias, ativam o sistema nervoso central, tálamo, o tronco cerebral e córtex cerebral. Obviamente
que a descrição de Damásio, mesmo sendo simplificada como ele mesmo alerta, é bem mais complexa que a de Freud em função de
todos os avanços da neurologia, mas é possível estabelecer uma certa relação de semelhança entre as fibras nervosas mencionadas e o
sistema e as fibras amielínicas e pouco mielinizadas com o sistema , bem como a complexa comunicação que se estabelece por
todos os conjuntos de sinais, que também foi intuída por Freud, como ficará cada vez mais evidente, na medida em que a descrição do
funcionamento mental for progredindo. A intuição de Freud descreveu, em seu esquema funcional da mente, o que hoje se averigua
com tomografias e ressonâncias magnéticas e pelo conhecimento especializado das diversas substâncias que atuam no sistema
nervosos. Esse conjunto complexo de reações químicas para Freud ficou representado como Q, quando tinham origem externa, e como
Q’ quando eram manifestações endógenas, de qualquer forma como quantidades, como excitação, como quantum de energia; essa
era, pois, a moeda corrente, possível de ser equacionada, na medida em que eram desconhecidos os neurotransmissores, por exemplo.
Mas a relação entre consciência e dor ainda não foi esclarecida. Consideremos as explicações de Damásio:
Tendo sido cumpridas essas condições, a sensação de dor pode ser gerada, mas esses padrões não produzem a consciência de dor, é
necessário, segundo Damásio, um passo a mais:
Tomar consciência de que você está sentindo dor requer algo a mais,
grifos do autor).
Imagem de dor e sentimento de dor já sugerem o trabalho de uma mente, mas não
sabemos se pode ser evocado posteriormente e utilizado, ou seja, compor uma forma de
aprendizado.
Há uma série de reações automáticas à dor como mudanças na expressão facial, no ritmo dos batimentos cardíacos, na
circulação sanguínea, que independem da consciência. Como lembra Damásio, muitas dessas reações estão presentes em pacientes em
coma. Assim, dor e consciência não são interdependentes. É possível, então todos os pré-requisitos da dor estarem cumpridos, menos
a consciência, se assim for, há dor inconsciente.
Existiria um trauma inconsciente? Freud considerava que a experiência traumática poderia ser esquecida, tornada
inconsciente. Poderia, todavia, não ter nunca se tornado consciente, não ter sido formada uma imagem do trauma, uma imagem
sensorial da angústia a ele associada.
Freud introduz a consciência como um contraponto `as suas explorações sobre quantidades. A consciência refere-se ao problema das
qualidades “sensações diferentes numa ampla gama de variedades e cuja diferença se discerne em função de suas relações com o
mundo externo”. (FREUD, 1950[1895]/1975, p. 40, grifos do autor).
Para Freud as diferenças discernidas pela consciência são função de suas relações com o mundo externo porque são as percepções que
possuem ritmos. Eventualmente, a passagem da corrente por um neurônio motor implica descarga motora e produz em ω indicações
de qualidade. As indicações de qualidade são, em última instância, indicações de descarga. As indicações de qualidade são da maior
importância do ponto de vista da adaptação do indivíduo, já que elas fornecerão um sinal de realidade, um sinal de que aquela imagem
catexizada corresponde à percepção de um objeto externo e não a uma lembrança. Por esse motivo, urge que o ego seja capaz de inibir
a corrente em direção aos neurônios motores (ou se preferirmos, as imagos motoras), até receber a indicação de qualidade da percepção
para que possa haver descarga, caso contrário, o que ocorrerá é uma solene frustração e desprazer. Da mesma forma, deve inibir a
catexia da imago do objeto para não ocorrer a alucinação e conseqüente frustração e desprazer. Posteriormente, uma descarga motora
indicativa de qualidade será utilizada de forma a possibilitar o registro dos próprios processos egóicos, dos pensamentos, ao ficar
associado às palavras. Inicialmente, o pensamento associado às palavras funcionava como uma forma de descarga, como uma válvula
de segurança como expressou Freud, semelhante ao sonho, adquirindo uma função secundária de influenciar os processos de descarga.
As qualidades não adviriam do mundo externo, já que ele é composto de “massas em movimento” (FREUD, 1950[1895]/1975,
p. 40) , nem de , porque a consciência estaria ligada aos níveis superiores do sistema nervoso, e não corresponderia ao córtex
cerebral, sequer viriam de porque as recordações seriam desprovidas de qualidades. A consciência seria o efeito da ação de um
conjunto de neurônios especializados (). O neurônio “[...] é excitado com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados
de excitação produziriam as diversas qualidades, ou seja, que seriam as sensações conscientes” (Idem, op. cit., p. 41, grifos do autor).
O sistema ω não estaria habilitado a lidar com quantidades e só se manifestaria na medida em que estas fossem excluídas, apesar de
que não completamente, pois também seria catexizado (Q’ fixa), buscando formas de descarga. A característica especial dos neurônios
seria de uma completa facilitação, já que funcionam como um órgão de percepção, mas como lidam com baixíssimas Q’, a
facilitação não viria da quantidade, mas de algo de índole temporal, do período, que não seria impedido e se propagaria pelas barreiras
de contato:
autor).
O que ocorreria, no caso de uma dor intensa, um afluxo de Q que elevasse o nível geral de Q’? O aumento de Q’ em é traduzido
como desprazer em . e funcionam como vasos comunicantes, quando aumenta o nível em , aumenta a catexia em , que é
sentida como desprazer, como vimos anteriormente. Mas, haveria um limite para essa tradução? Se não é capaz de lidar com Q’ a
não ser muitíssimo reduzidas, se houver um acréscimo que atravesse os sistemas todos, haveria consciência? Deduzimos que não, não
haveria consciência, e que também para os neurônios , de forma semelhante aos órgãos sensoriais, haveria um umbral abaixo do qual
as qualidades não seriam percebidas, e acima de um teto, também não. Supomos, também, que não se trata apenas de quantidades, mas
de qualidades das excitações. A consciência está especializada em qualidades, em períodos, sugerindo algo como a passagem de tempo.
No trauma, o período é importante. Iniciamos a discussão sobre Freud com uma citação de 1916 e nesta o trauma está associado a um
grande aumento de energia em um curto espaço de tempo. Como parece existir uma tendência a uma espécie de aprendizado que utiliza
reações inicialmente automáticas, posteriormente com finalidades defensivas 11, como ações do ego, podemos supor, também, que a
perda da consciência passe a funcionar como um processo defensivo. Neste último caso, não se trataria de repressão, uma vez que esta
reporta às conexões com os estímulos internos, com os impulsos. Sugere algo como uma alucinação negativa, e mais drasticamente,
uma ausência, um desmaio.
Uma faixa ótima de trabalho é indicada por Freud:
força de catexia; quando a catexia for mais intensa, eles causam a
Em “Além do princípio do prazer” (1920/1973) Freud traz à tona o problema da dor como o resultado de uma ruptura de proteção em
um uma área delimitada. O curso seria:
As contracargas seriam equivalentes `as catexias colaterais Têm uma função de interferir nas vias de condução das excitações e de
vinculá-las, transformando energia livre em carga em repouso ou ligada (catexia quiescente).. No Projeto a energia quiescente
corresponde à Q’η que toma posse do neurônio, que nele se fixa, correspondendo também a idéia de catexia. A energia livre é a corrente
de Q que atravessa as vias de condução, seguindo as vias de facilitação ou criando novas, dependendo de sua magnitude. A corrente,
11A angústia como sinal é um bom exemplo dessa tendência, já que ela põe em ação o automatismo do
princípio do prazer, possibilitando a repressão. (Freud, 1933[1932], Conferência XXXII)
encontrando a via facilitada, é compulsiva, não importando se a trilha conduzirá à repetição da dor ou à realização alucinatória de
desejo. O problema da dor intensa é melhor representado pelo excesso de energia livre e não por excesso de catexia. Uma hipercatexia
já pressupõe um trabalho egóico, é uma catexia sobre uma catexia e que corresponde, em sua primeira versão, ao narcisismo primário.
Continuemos o estudo da dor, pois há mais considerações a serem feitas que nos serão úteis na compreensão do trauma.
Freud menciona a existência de uma imagem mnêmica de um objeto hostil, aquele que acentua a dor, um objeto algoz. Mas, há dores
que não são provocadas por nenhum objeto distinguível, como uma cólica, por exemplo. Parece ser mais fácil conceber a construção
de um objeto de desejo, porque existe um objeto externo, real, que é a fonte dos prazeres. Mas isso nós, adultos, sabemos. Mas e o
bebê? Quando ele passa a saber? Em uma cólica, qual é o objeto que acentua a dor? Não faz sentido. Não faz sentido porque nós
adultos cultos, aprendemos que ninguém entra em nossa barriga e maldosamente produz dor. É uma reação do organismo a
determinadas substâncias, as toxinas, por exemplo. A toxina seria um objeto algoz de um adulto?
Atendi a um paciente que tinha úlcera gástrica. Em uma sessão ele comentou sobre uma macarronada que havia comido e que
o fez sentir dor. Ao descrever o molho na sessão, recomeçaram as suas dores. Perguntei-lhe se o molho parecia com algo. “Com
sangue”, respondeu. “Que tipo de sangue, de onde?”, eu quis saber. Ficou em silêncio por um tempo. Em seguida começou a contar
que tinha gente que comia carne de cavalo, demonstrando nojo. Lembrou-se que tinha visto um absorvente higiênico da irmã no
banheiro e que quase vomitou. “Era como o molho?”, perguntei-lhe. Disse que quando foi comer o macarrão lembrou do absorvente
com sangue, mas estava com muita fome e comeu. O motivo que fez esse paciente procurar psicoterapia foi de impotência sexual..
Para esse paciente eram sucos gástricos que lhe devoravam o estômago? Na adolescência, teve relações sexuais com éguas.
Na sua fantasia ele comia seus objetos de amor e depois era perseguido por eles, que o devoravam, castravam, comiam-lhe o estômago
e o pênis. O que importa neste relato é que há uma teoria inconsciente do paciente sobre as causas de suas dores e não é a que os
médicos aprendem nas faculdades de Medicina. Essa teoria não respeita as leis físicas, químicas, biológicas, mas as leis dos deuses e
dos homens, leis como: se há crime há castigo. A recíproca passa também por verdadeira: se doer, é castigo; se há castigo, há crime.
O terror é não conseguir supor qual é o crime, ou quando o protetor revela-se, inesperadamente como o algoz. Mas, esta vertente do
sofrimento, esta vertente do trauma terá Ferenczi como guia.
O que podemos extrair dessa ilustração é que, da mesma forma que há um objeto de desejo, também é construído um objeto
hostil, responsável pela dor e pelo sofrimento. Investigar como se dá a construção desses objetos nos afastaria demasiadamente do
caminho, além do que Melanie Klein o fez com todo brilhantismo. À experiência de dor é associado um objeto hostil do qual se constrói
um traço mnêmico. O protótipo que Freud pode ter considerado foi o de estímulos externos que podem ser afastados por meio de
defesas reflexas, como contração das pupilas, ou afastamento brusco de fontes de calor. Para argumentar sobre o conceito de instinto
como um dos estímulos internos, Freud se baseia na Fisiologia, que o habilita a apropriar-se do conceito de estímulo, e assim revela a
fonte de suas idéias sobre a forma de se trabalhar com os estímulos externos, que é o arco-reflexo, como podemos observar em “Os
instintos e suas vicissitudes” (FREUD, 1915/1973):
grifos do autor).
Mas, o ser humano se depara com a tarefa de ter de se defender não só do excesso de estimulação externa como também interna, cuja
fonte prioritária são as necessidades, os instintos, o que lhe complica consideravelmente o trabalho, uma vez que dos estímulos internos
é impossível empreender fuga: “Os estímulos externos não promovem mais problemas do que se afastar deles, o que acontece por meio
de movimentos musculares, um dos quais acaba por alcançar tal fim e se converte então, como o mais adequado, em uma disposição
hereditária.” (Idem, op.cit, p. 2041)
Com um movimento de braços afastamos terremotos, enchentes, incêndios e as catástrofes?. Não, Freud não era ingênuo, ele só se
apropriou de um modelo que repetirá muitas vezes no decorrer de sua obra, o de que contra os estímulos internos não há fuga, não
podemos fugir de nosso corpo, como também não podemos fugir da realidade externa, do mundo real, das forças da natureza e das
pessoas violentas e mais fortes do que nós, mas nesse mundo de fora podemos encontrar a assistência que nos auxilia na proteção
contra o perigo de definhar, nos alimentando; de morrer pela ação de forças naturais, através da cultura, da ciência ..
É de fundamental importância enquanto processos de defesa, que o objeto hostil seja concebido como externo. Do ponto de vista
econômico, o excesso de estimulação pode ser amortecido pelas barreiras de estímulos se tiverem origem externa. Aos estímulos
internos, nada se lhes opõe. Tratá-los como vindos de fora talvez seja um rodeio necessário para acionar as defesas adequadas aos
estímulos externos. Obviamente, trata-se de um engodo, de uma ilusão, cuja eficácia é limitada. Essa idéia do objeto hostil, seja ele
uma dor de ouvido, ou uma mãe desatenta ou cruel, concebidos como vindos de fora reaparecerá, também em “Além do princípio do
prazer” (FREUD, 1920/1973):
autor).
No “Esboço da Psicanálise” (1940[1938]/1973), Freud traz um novo aporte ao problema da dor demonstrando que o corpo - e suas
manifestações – pode ser vivido como pertencentes ao mundo externo:
A dor pode ser associada a um objeto hostil que a provoca, bem como uma parte do corpo ou todo ele pode ser representado como um
não-eu mau, um objeto hostil. No Projeto, Freud aponta que há uma facilitação entre as vias de descarga e uma imagem mnêmica do
objeto hostil. A propensão à descarga se dá porque a primeira função do aparelho mental é a descarga do excesso de estimulação. A
descarga motora é a forma primária de rebaixamento do nível de estimulação, através de inervações para o interior do corpo que
12O inicio do parágrafo referia-se a que o processo de tornar algo consciente está ligado à percepções que os
órgãos sensoriais recebem do mundo externo. (p. 211)
responde com movimentos expressivos, mímica facial e manifestações de afetos, conforme o artigo de 1911 de Freud, “Formulações
sobre os dois princípios do funcionamento mental”.
Os afetos e a manifestação motora ficam indissoluvelmente ligados, mas não são iguais. O afeto surge em trabalhos posteriores de
Freud como um correspondente do instinto. Em “O Inconsciente” (1915/1973), Freud afirma que um instinto nunca pode se tornar
objeto da consciência, mas apenas a idéia que o representa e que mesmo no inconsciente deve associar-se a uma idéia, ou se preferirmos,
a uma fantasia. Porém, há uma outra forma de sinalização da ação de um instinto: “Se o instinto não se enlaçou a uma idéia ou não se
manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele”. (Idem, op.cit., p. 2067).
Um estado afetivo é uma indicação da manifestação de um instinto, a idéia está necessariamente relacionada com objetos, enquanto os
afetos são processos de descarga, formas de reações `as experiências de satisfação e de dor, são como Freud os denominou no Projeto,
resíduos dessas experiências13. A diferença entre afeto e idéia, no que se refere a essas experiências está claramente expressa em “O
Inconsciente” (FREUD,1915/1973):
A dor não é uma emoção, ou um afeto, mas existe uma associação entre sensação de dor e afeto de dor e que podem ser dissociadas
como demonstram o uso de medicamentos como betabloqueadores, bem como a hipnose, que atuam embotando a emoção , mas que
não alteram os padrões neuronais relacionados `as sensações de dor, e mesmo assim eliminam o sofrimento que seria acompanhado
pela percepção. (Idem, op.cit., loc.cit)
No Projeto, Freud menciona que o estado de desejo e os afetos têm em comum o fato de que provocam um aumento de Q´ em . O
afeto, pela liberação súbita, o estado de desejo por somação, já que é preciso atingir um determinado umbral para que os estímulos
13 Em nome da precisão, a primeira relação que Freud estabelece no Projeto entre experiência e afeto refere-se
a dor e não ao prazer, entretanto o afeto, passa a ocupar um lugar mais amplo, envolvendo também a experiência
de satisfação, mesmo no Projeto.
internos tenham efeito psíquico. Mas, isso implica que um afeto, uma descarga, pode aumentar o nível de Q´ em . Não é
contraditório? Um afeto, então, poderia ter um efeito traumático? Isto só se torna compreensível se considerarmos não a experiência
primária de dor, mas uma repetição desta, uma segunda versão.
A catexia de uma imagem mnêmica de um objeto hostil que pode se dar por uma nova percepção do objeto provoca um estado
semelhante a dor. Não pode ser dor porque não há uma nova lesão de tecido Mas, aqui há um senão. Não é necessária a lesão para que
ocorra a dor, os casos de histeria de conversão nos dão exemplos múltiplos de alucinações de dor.
O que compõe esse estado onde há uma reativação da imagem mnêmica? Desprazer e tendência `a descarga. Se há desprazer, há
aumento de Q’, e estamos diante da contradição exposta acima. Freud é absolutamente ciente dessa contradição e a enuncia claramente
no Projeto: “Na reprodução da experiência – no afeto – a única Q adicional é a que catexiza a lembrança, sendo evidente que essa é da
mesma natureza que qualquer outra percepção e que não pode resultar, portanto, num aumento geral de Q’”. ( FREUD,
1950[1895]/1975, p. 95)
Para solucionar essa contradição Freud cria a hipótese da existência de um outro conjunto de neurônios, os “neurônios-chave”,
secretores, que quando excitados se conduziriam de forma semelhante aos motores, que provocam a resposta muscular de descarga. A
semelhança diz respeito à influência nos processos do organismo que, ao contrário dos motores, provocariam “[...] a manifestação de
algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de condução até - neurônios que dessa forma influenciam a produção de Q’
endógena e, conseqüentemente , não descarregam Q’, mas fornecem-na por vias indiretas.”(Idem, Op.cit., loc. Cit)
Com a introdução dos neurônios-chave, temos uma descrição do funcionamento mental muito mais complexo, uma vez que processos
mentais, como uma lembrança, afetam processos corporais e aumentam o nível de Q’ nos sistemas, algo como uma retroalimentação.
Poderíamos ter aqui uma ponte para a compreensão das fantasias traumáticas. Seria possível defender sua ação? Por ora, o que podemos
considerar, com maior grau de coerência, é o possível efeito traumático das facilitações, uma vez que não é a catexia a responsável
pelo aumento de nível em : “Como a liberação do desprazer pode ser extremamente grande quando existe uma catexia bastante
insignificante de lembrança hostil, pode-se concluir que a dor deixa atrás de si facilitações especialmente abundantes.” (FREUD,
1950[1895]/1975, p. 56).
Se a experiência de dor foi intensa o suficiente para romper as barreiras defensivas, criam facilitações de caráter compulsivo. Ao menor
estímulo, uma lembrança provoca uma reação em cadeia que desembocará em desprazer. Não estamos descrevendo algo que se
aproxima dos sintomas do transtorno de estresse pós-traumático? Ao menor sinal de semelhança com a situação traumática a resposta
é de intenso sofrimento e tentativas de evitação. Essa facilitação que quase aproxima de , é o que consideramos como o efeito
primeiro do excesso de estimulação, portanto do trauma, seja ele provocado por causas externas, como uma queda, um corte; ou
situações de ameaça à vida como assaltos e seqüestros, ou internas, como a ação dos instintos, desejos incestuosos ou fantasias de
estar sendo devorado. Trata-se de excessos.
A relação entre lesão corporal e trauma já fora discutida por Freud em “Estudos sobre histeria” (1895/1973), atentando para o fato de
que o que é a causa da enfermidade na neurose traumática não é a lesão corporal, mas o sobressalto, o trauma psíquico e acrescenta:
“Qualquer experiência que provoque os afetos penosos de medo, angústia, vergonha e a dor psíquica pode atuar como tal trauma”. (
p.43)
Por outro lado, não só a dor provoca afetos penosos que podem ter efeito traumático, as feridas narcísicas também, como a vergonha.
Sintetizemos as idéias as idéias centrais defendidas aqui:
• Os processos de dor e trauma podem ser equiparados na medida em que o trauma é definido como um excesso de
estimulação, que afeta a forma como a energia opera no aparelho psíquico.
• A dor independe da consciência.
• Um excesso de energia livre em pode afetar a função da consciência em , tanto na dor como no trauma.
• A dor provoca facilitações do tipo compulsivo em , o mesmo com referência ao trauma.
• Sensação de dor e afeto da dor não são o mesmo, apesar de estarem associados.
• A descarga de excitação no caso da dor é expressão de afeto. Deve haver uma equivalência no trauma.
• Uma pequena catexia associada a uma lembrança de um objeto hostil pode provocar um aumento de Q´ se as facilitações
forem intensas.
• Não é a lesão corporal que é traumática, mas o afeto a ela associada. Transportando para o tema da dor, não é a dor que
pode ter um efeito traumático, mas o afeto a ela associado.
• Os estímulos de origem interna, quando excedem o nível ótimo de operacionalidade do aparelho psíquico, passam a ser
tratados como se fossem de origem externa, como forma de por em ação as barreiras de estímulos. Esta é a origem da
projeção.
• Uma forma de trabalhar com o excesso de estimulação no trauma é tratá-lo, independente de sua origem, como estímulo
externo.
• Da mesma forma que a dor possibilita a construção de um objeto hostil, o trauma conduzirá `a construção de um objeto
traumatizante, que é vivido como objeto externo.
• Tanto os traumas, como a dor, convocam um sobre-investimento narcísico.
• O trauma teria como efeito deletério a distribuição uniforme de Q livre em ψ, que impediria o registro da experiência,
igualando ψ e φ.
• O trauma afetaria a estrutura egóica, provocando uma elevação geral do nível de Q, e eliminando as diferenciações internas.
• Para afetar a organização egóica deve haver participação dos instintos com Q livre.
• O seqüestro do ego
14 A primeira vez que Ferenczi menciona o seqüestro do ego foi em um artigo de 1922 cujo tema não era o
trauma,mas uma patoneurose cerebral, uma reação emocional às perdas causadas pela paralisia geral. É
interessante notar que nesse trabalho Ferenczi relaciona as patoneuroses com as neuroses de guerra, ambas
como uma disfunção da libido narcísica.
possível através do seqüestro, que fica evidenciado como um completo desinteresse sobre o
que acontece com o próprio corpo e com o mundo externo.
Ferenczi mencionou uma ilusão de retorno ao útero(1921?/1993). Uma ilusão
pressupõe a ação do princípio do prazer. Devemos lembrar que é característica do trauma
apresentar um montante de excitação indômita, ou seja, que não pode ser tratado de acordo
com o princípio do prazer. O que está encontrando representação não é a experiência
aterradora, mas uma forma de encontrar um escoadouro para a Q livre, o excesso
característico do trauma, a reconstrução de uma realidade segundo os moldes do princípio do
prazer. Ora, mas se isso está ocorrendo, não podemos dizer que há falha do princípio do
prazer porque foi encontrada uma via de representação que tem como função escoar a energia
de uma forma tal que favorece a descarga.
ameaça nem internos, nem externos, como um retorno a uma fase de onipotência
esse estado pode conduzir à morte. Esse mergulho no vácuo tem como conseqüência a
modelo do Projeto, a equivalência entre ψ e φ em vários pontos afetados. O ego ferido atrai
para si toda a libido, como uma forma de cuidar da própria ferida, mas isto implica um
abandono dos objetos, sendo que a pulsão de morte também refluiria para o ego. O excedente
poderia se dar entre ψ e φ . A recepção dos estímulos externos seria afetada, bem como, entre
proprioceptivos, também seria prejudicada. Equivaleria a “não vejo, não sinto” e no lugar
desses vácuos teríamos as alucinações, ou, em última instância, descargas motoras sem
imagens. É como um corpo que convulsiona e uma mente em agonia, que sonha não ter
nascido, ainda.
• Fragmentação do ego
Algo semelhante no caso seguinte: uma criança é atingida por uma agressão
inevitável, conseqüência: ela ‘entrega a sua alma’ com a convicção de que
esse abandono total de si mesma (desmaio) significa a morte. Mas
justamente a descontração total que se estabelece pelo abandono de si pode
criar circunstâncias mais favoráveis para poder suportar a violência. ( p.73)
15Orpha para Ferenczi são instintos vitais organizadores que suscitam, entre outras coisas, fantasias de
consolação, alucinações, anestesia a consciência e a sensibilidade contra sensações que se tornam intoleráveis.
As referências mais explícitas encontram-se no Diário Clínico, p. 40 e 130.
Quanto mais forte é o sofrimento, quanto mais destrutivo, e talvez quanto
mais precocemente ele teve que ser experimentado, determinando assim
uma orientação, tanto mais terá que ser o círculo de interesses a traçar em
torno do centro do sofrimento para que este seja vivenciado como rico de
sentido, inclusive naturalmente necessário. (FERENCZI, 1932d/1990, p.
65)
REFERÊNCIAS
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Georgina Figurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 109-141.
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Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 53-143.
FERENCZI, S. (1919/1993) Psicanálise das neuroses de guerra.. In: Obras Completas,
Psicanálise III. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, p.13-29.
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Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 137-144.
_____ (1922/1993) A psicanálise dos distúrbios mentais da paralisis geral (Teoria). In:
Obras Completas, Psicanálise IV. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes. p.
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Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 53-68.
_____ (1930) Análise de criança com adultos. In: Obras Completas, Psicanálise IV. Trad.:
Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 69-84.
_____ (1932) O que é “trauma” ? In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo:
Martins Fontes, 1990, p. 227-230.
_____ (1932 a) Fragmentação. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins
Fontes, 1990, p. 72-4.
_____(1932b) Dificuldades que surgem do fato de não se considerar real a clivagem da
personalidade. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990,
p. 98-9.
_____(1932c) Retorno do trauma nos sintomas, os sonhos e a catarse, recalcamento e
clivagem da personalidade, desmontagem do recalcamento na catarse e depois dela.. In:
Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 102-4.
_____ (1932d) A propósito da “afirmação do desprazer”. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro
Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 64-7.
_____ (1932e/1990) Bandagem psíquica. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, p. 104-6.
_____ (1932f/1990) Sugestão, intimidação, imposição de uma vontade estranha. In: Diário
Clínico. Trad.: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes. p. 48-51.
_____ (1932g/1990) O relaxamento do analista. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral.
São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 120-3.
_____ (1932h/1990) Identification versus hatred. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro Cabral.
São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.217-9.
_____ (1932i/1990) Destino dos filhos de doentes mentais. In: Diário Clínico. Trad.:
Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, p. 118-120.
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A fixação no trauma e a teoria da libido16
Cláudia Maria Sodré VIEIRA
Eva Maria MIGLIAVACCA
Freud, em diversos momentos de sua obra (1893, 1916, 1926, 1939), defrontou-nos
com o enigma da fixação no trauma. Encontramos evidências dessa fixação nos sonhos
traumáticos, nas “neuroses de destino”17, nos sintomas neuróticos e psicóticos e na
transferência. Todos esses fenômenos revelam uma repetição compulsiva de experiências de
intenso sofrimento, que conduziram Freud a cogitar a hipótese de um masoquismo do ego,
sinal da ação da pulsão de morte voltada para o próprio ego, cujo efeito seria o sofrimento e
a autodestruição.
Podemos defender uma origem traumática dos fenômenos citados exatamente pela
manifestação da compulsão à repetição de uma experiência de desprazer. O aspecto
compulsivo indica que um montante de excitação busca derivação, a repetição do sofrimento
indica a ineficácia do modo de conduzir a energia e, mais ainda, a impossibilidade de
aprender com a experiência: repete, repete e repete o horror, sem alteração. A única alteração
é aquela que permite que o outro se conduza como o mesmo, como alguém dominado por
uma maldição, um Édipo que fugindo ao seu destino, o realiza. Tal é a eficácia da compulsão
à repetição: ela obedece a um mecanismo que poderia ser equiparado `a retroalimentração
16 Artigo originalmente publicado com o título de O trauma como a fixação da libido ao instinto de morte, na
revista Mudanças- Psicologia da Saúde. V.10 (1), jan-jun 2002, p. 31-40.
17 Freud, em 1932, na Conferência XXXII, Ansiedade e vida instintual, refere-se a uma espécie de destino
demoníaco que persegue algumas pessoas, mas que se trata de uma faceta da compulsão à repetição e que,
portanto, incide no campo de determinações da própria pessoa. A pessoa, sem se dar conta, favorece a
repetição de relações ou mesmo fatos desagradáveis, perigosos ou assustadores.
negativa, buscando um equilíbrio homeostático que seria caracterizado pela ausência de
estímulos que obviamente não é alcançado enquanto o organismo estiver vivo.
A compulsão à repetição é para Freud uma característica pulsional e não monopólio
da pulsão de morte, ela sinaliza o caráter conservador dos impulsos que visa conduzir a um
estado anterior. Pensamos que a pulsão de morte, mais primitiva que a de vida, obedece ao
princípio do nirvana, à ausência absoluta de excitação. A pulsão de vida, por seu turno,
apresenta também a tendência à repetição, mas da experiência de prazer, da descarga de
excitação e não do estado de ausência de estímulos. A pulsão de vida parece ser regulada por
freqüências, modulações, ritmos que experienciamos como prazer ou desprazer:
18Por energia livre entende-se, sucintamente, a forma de condução dos processos energéticos pr´prios do Id.
A condução dos processos referentes à energia vinculada incluem a catexia e a construção de fantasias, de
estruturas de relações de objeto, e dos processos de pensamento.
possível, só um efeito: trauma.
Para Freud, o aspecto econômico do trauma é determinante, pois trauma é descrito
como: “[...] um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso e que resulta em
perturbações permanentes da forma em que essa energia opera" (FREUD, 1916/1973, p.
2.294). O trauma é trauma por estar associado à impossibilidade do sistema mental absorver
o excesso de estimulação, transformando-o em trabalho psíquico ou em descarga eficaz, ou
seja, aquela que é capaz de alterar a própria fonte de estimulação. O problema energético que
o trauma traz repete a situação do início da vida: há um excesso de estimulação que se
configura como energia livre e que se manifesta, fenomenologicamente, como angústia
traumática. Trata-se da tarefa de criar condições para que o princípio do prazer possa se
estabelecer, ou, nos traumas posteriores, se restabelecer. Um sistema altamente catexizado
funciona como uma proteção contra o trauma19 como uma barreira interna de proteção. Nesse
sentido, o investimento narcísico, a catexia do ego é medida de autoproteção e o que garante
o desenvolvimento inicial do próprio ego. Parece, entretanto, que a capacidade do ego em
funcionar como objeto do Id tem limitações, e o caminho para os objetos deve ser trilhado
sob o risco de sucumbir ao excesso de estímulos e à incapacidade de transformação das fontes
de estimulação: não é suficiente alucinar um seio, é necessário alimento. Ao mesmo tempo,
a pulsão de morte deve ser desviada do próprio ego.
Os fenômenos relativos à compulsão à repetição, tão funestos nas pessoas
traumatizadas, revelam que a tarefa primária de dominar a excitação, de vinculá-la, ainda não
obteve sucesso. A repetição da experiência traumática, seja em sonhos, sintomas,
transferência ou no cotidiano, representam diversas tentativas de domínio da excitação
fracassadas. A repetição do trauma é como um desejo às avessas, é o seu negativo. A fixação
no trauma revela o lado obscuro do funcionamento pulsional, como um curto-circuito onde
Eros e Thanatos estão separados, a fixação da libido emerge como uma forma de organização
que permite manter um montante de energia vinculada, mesmo que com uma fusão
imperfeita, carregada de ambivalência: “[...] a essência de uma regressão da libido (por
exemplo, desde a fase genital à sádico-anal) está integrada por uma dissociação dos
instintos.” (FREUD, 1923/1973, p. 2717).
19A importância da catexia como medida protetora é apresentada por Freud de maneira muito explícita em
Além do Princípio do Prazer (1920) e é discutida no cap. 3 deste livro.
A regressão20 é menos danosa do que a angústia traumática em seu estado original,
ela já comporta um trabalho mental mais evoluído e, ao mesmo parcialmente, o princípio do
prazer está em atuação. A fixação no trauma revela a necessidade de encontrar a experiência
que forneceria a possibilidade de registro de uma descarga adequada. Em outras palavras, a
repetição do trauma é como uma fome não saciada, e que não se reconhece como fome: Eros
está mudo. Poderíamos considerar a hipótese de que a fixação de uma cota da pulsão de morte
no trauma é a contra-parte da fixação da libido .
A fixação da libido funcionaria como uma barreira defensiva contra a repetição do
trauma, como uma forma do aparelho psíquico seduzir-se a si mesmo, desviando a condução
da libido para uma organização de desejos, fantasias e angústias em que prevalece o princípio
do prazer, daí a possibilidade de formar sintomas, por exemplo. Sob esse escudo se esconde
o núcleo traumático como um vórtice que sorve o que lhe está próximo em uma tentativa de
reproduzir a experiência traumática, e descarregar o montante de energia livre que o consome
e que julgamos ser a relativa à pulsão de morte. Ambas as fixações têm a mesma origem
traumática. O efeito tenaz e devastador do trauma é o de um ódio que não encontrou a
representação de objeto que lhe dê sustentação, ou de um objeto impossível de ser pensado
porque as experiências sensoriais ligadas ao trauma foram objeto de alucinação negativa, ou
não encontraram forma de representação, exceto pelos registros proprioceptivos. A
alternativa possível em um estado tal poderia ser o refluxo da pulsão de morte de volta para
o interior da mente ou o que é mais drástico, para o interior do organismo.
O conjunto de idéias exposto acima faz-nos resgatar a hipótese apresentada em “As
relações traumatizantes e seus efeitos no aparelho psíquico” (VIEIRA, 2001), a de que o
trauma impede os processos de vinculação por efeito direto da pulsão de morte. O trauma
provocaria a separação entre pulsões de vida e de morte. Tendo o princípio do prazer sido
colocado a nocaute, o que resta é a tentativa de voltar a um estado anterior: a regressão da
libido, o retorno a um estado de menor organização do aparelho psíquico, à desintegração do
ego, a cisão entre corpo e mente, a morte psíquica, a morte física....
Assim, o trauma seria responsável pela defusão dos instintos, pela fixação da pulsão de
morte no momento traumático pela fixação da libido em determinados pontos do
20As regressões do Ego e da libido podem ser compreendidas como efeito do caráter conservador das pulsões
e a tendência a retornar a um estado anterior de menor complexidade.
desenvolvimento libidinal, formas que não dão conta do montante de energia livre que
permanece no aparelho psíquico. O trabalho terapêutico com pacientes traumatizados
deveria favorecer um novo acordo entre Eros e Thanatos, encontrar formas de
representação da experiência de devastação traumática, resgatar o desejo. Um sinal de
que o trauma começa a ser superado é a possibilidade de sonhar: uma realização
alucinatória de desejo inconsciente, reprimido e infantil, sinal este de que o princípio do
prazer retoma sua posição de vanguarda e cria as condições necessárias para que o
princípio da realidade, o último em nossa evolução, se faça atuante.
Talvez nós, como seres nascidos tão incompletos e dependentes, tão passíveis de
sermos traumatizados, tenhamos que odiar o mundo externo, odiar a nós mesmos, sonhar
com um mundo criado para realizar nossos desejos, para que possamos conhecer algo como
real, sem amor e sem ódio. E aceitar que o real, seja ele o mundo dos objetos concretos, dos
seres humanos ou aquilo que chamamos de mente é, em última instância, incogniscível. E
assim, diante de algo que mais uma vez nos é desconhecido, inesperado e que nos assusta, e
que é intensamente atuante como um trauma, recomeçamos odiando, amando e conhecendo
para poder amar e odiar e conhecer de uma forma mais evoluída.
REFERÊNCIAS
A partir da leitura de alguns trabalhos da obra de Freud, podemos perceber, como será
demonstrado a seguir, que o trauma, juntamente com suas conseqüências, está diretamente
relacionado à história da psicanálise, e põe em evidência algumas dificuldades teóricas em
relação à sua especificidade etiológica, a metapsicologia do trauma e a necessidade, ou não,
de uma terapêutica própria (VIEIRA E VIEIRA NETO, 1998).
Em suas primeiras descobertas, Freud considerava que toda neurose era de origem
traumática. Em seu trabalho “Novas Observações sobre as Neuropsicoses de Defesa”
(1896/1995, Edição Eletrônica), ele afirma:
Para causar uma histeria, é preciso que a experiência que vai se tornar
traumática, através da liberação e da repressão do afeto doloroso, pertença
aos traumas sexuais da infância e seu conteúdo deve consistir numa
irritação real dos órgãos genitais
O trauma, nesse momento da obra freudiana, teria duas características: envolver dor e estar relacionado aos órgãos
sexuais. Apesar de já ter abandonado a teoria da sedução, a idéia de um acontecimento sexual não prazeroso permanece.
Quanto ao período da vida em que este trauma ocorreria, nesse momento da teoria freudiana, Mezan (1982, p.38) comenta que:
Penso, contudo, que o caso [de Anna O.] lança alguma luz também sobre
o desenvolvimento das neuroses traumáticas. Durante os primeiros dias
após o fato traumático, o estado de pavor hipnóide repete-se a cada vez
que o fato é relembrado. Enquanto esse estado se repete com freqüência
cada vez maior, sua intensidade vai diminuindo tanto que ele não mais se
alterna com o pensamento de vigília, mas apenas coexiste com ele. Torna-
se então contínuo, e os sintomas somáticos, que antes só se faziam
presentes durante o ataque de pavor, adquirem existência permanente.
Todavia, posso apenas suspeitar de que seja isso o que acontece, já que
nunca analisei um caso dessa natureza .
Nesse momento de sua obra, Freud ainda tem a concepção do trauma psíquico como
fator etiológico presente em toda neurose. Ele introduz a concepção de trauma em dois
tempos, o do acontecimento em si, e o da compreensão do significado do acontecimento.
Ocorre, assim, uma grande mudança no conceito de trauma, porque há o
reconhecimento da necessidade de um processo associativo que dá um significado a ele,
deixando de ser compreendido como um corpo estranho. O segundo momento do trauma,
propõe que a vivência psíquica passa a ser o fundamental na etiologia das neuroses. A partir
desse momento, começa haver uma separação entre o trauma associado, integrado numa
série psíquica, que gera a psiconeurose, e outro trauma, o não representável, que originaria a
Neurose Traumática.
A histeria era compreendida como conseqüente do primeiro tipo, como o resultado
de um grande trauma, ou da acumulação de traumas parciais, mas com um significado.
È dessa forma que ele explica o caso Katharina , em seu trabalho Estudos sobre a
Histeria (1895b). Katharina vê seu tio tendo relações sexuais com uma moça, e Freud fala
dessa cena como um momento traumático. No entanto, ela só se torna patogênica porque faz
com que Katharina lembre de duas investidas desse mesmo tio contra ela, às quais ela não
deu conotação sexual por não ter conhecimentos sobre sexo. Na discussão deste caso, ele
afirma:
Em outro momento do mesmo trabalho, mais uma vez a neurose traumática (ou de
guerra) é vista como uma exceção à etiologia sexual das neuroses:
Essa outra parte da teoria psicanalítica, com a qual o estudo das neuroses
de guerra não entrou em contato, é no sentido de que as forças
motivadoras que se expressam na formação dos sintomas são sexuais e
que as neuroses nascem de um conflito entre o ego e os instintos sexuais
que este repudia. (‘Sexualidade’, neste contexto, deve ser entendida no
sentido amplo em que é usada na psicanálise e não se deve confundir com
o conceito mais limitado de ‘genitalidade’.) Não deixa de ser verdade,
como observa Ernest Jones na sua contribuição a este volume, que essa
parte da teoria não se mostrou ainda aplicável às neuroses de guerra. O
trabalho que poderia provar o contrário não foi realizado ainda. Pode ser
que as neuroses de guerra sejam absolutamente material adequado para
este propósito.
Este caráter de exceção que adquire a Neurose Traumática é constatado até mesmo
pelos adversários da psicanálise, para quem Freud, neste momento, não podia apresentar
respostas. Explicita isto no “Estudo autobiográfico” de 1919 (1919a/1995, Edição
Eletrônica):
Nesse mesmo trabalho Freud defende a utilização das técnicas desenvolvidas a partir
de seu método para tratamento dessas enfermidades, embora não explicite como essas
técnicas podem adequar-se ao tratamento de uma neurose diferente das neuroses que surgem
a partir de conflitos psíquicos.
Em 1920, é escrito o trabalho “Além do Principio de Prazer” (FREUD, 1920/1995,
Edição Eletrônica), onde Freud redefine a teoria pulsional, e isto altera toda a psicanálise,
lançando novos fundamentos que vão alterar a concepção de aparelho psíquico, transferência
e a própria técnica psicanalítica. Nesse trabalho, ele inclui o conceito da compulsão à
repetição. Aqui, novamente, pode-se perceber a preocupação com a Neurose Traumática,
descrevendo-a como uma neurose que traz mais sofrimento e incapacitação do que a própria
histeria:
.
No mesmo trabalho, volta a falar da excepcionalidade desta neurose em relação à
teoria dos sonhos, desenvolvida vinte anos antes:
A tarefa do aparelho psíquico seria, nesse caso, tentar ligar a energia livre presente no
trauma em uma série psíquica, associativamente. Mas isso não é possível devido à própria
intensidade da estimulação, e ele continua se reinvestindo, criando um círculo vicioso.
Esses conceitos corroboram a concepção de Ferenczi (1919), de que o trauma produz
uma retirada da libido dos objetos, que é investida narcisicamente. Esse sobreinvestimento
libidinal provoca um excesso de estimulação sem representação.
Essa seria a diferença entre o trauma e o estresse para Benyakar (2003). No trauma, a
irrupção brusca do mundo externo no mundo interno interrompe a articulação entre o afeto e
a representação, enquanto o estresse implica numa distorção dessa articulação, pois está
sujeita a uma tensão e pressão máximas.
Quando ocorre a quebra dessa função articuladora , o que ocorre é que uma vivência
traumática, que é vivência de vazio, fica ligada ao evento factual que provocou a essa
experiência. Essa associação de evento factual com vivencia traumática leva a perceber a
experiência como se fosse traumática.
Assim, a essência do traumático seria a irrupção no psiquismo de algo heterogêneo,
do não próprio, quando o psiquismo não tem possibilidades de transformar em próprio, ou
seja, de buscar associações. Então o afeto desligado buscará incessantemente a representação
do experimentado, produzindo a sintomatologia do traumático, sonhos, hipervigilância,
flashbacks, pensamentos repetitivos (CROCQ, 2002).
O trauma não representa, ele apresenta (UCHITEL, 2001) e, ao re-apresentar, ele
precisa ser descarregado, uma vez que não pode ser associado. Uma das formas de
21Montaño (2003) relata como jovens adolescentes colombianos tinham o traficante Pablo Escobar como
ídolo. Muitos destes jovens tiveram familiares assassinados pelos traficantes, a mando do próprio Pablo
Escobar.
provoca a dissociação e cisão. Isso poderia explicar a atemporalidade dos sintomas e a
fixação no passado (LIFTON, 1979 apud CIA, 2001).
Finalizando, para Chertoff (1998), uma situação traumática teria também a capacidade
de tornar manifestos conflitos latentes anteriores. Um dos casos clínicos apresentados por
essa autora descreve uma mulher para a qual o parto difícil de seu primeiro filho foi
traumático, gerando sintomas de TEPT. A situação do parto, para a paciente, ativou as
lembranças de um estupro provocado por uma gangue de jovens, quando esta mulher era
adolescente. Essa forma de compreensão aproxima-se da dinâmica de uma psiconeurose, na
discussão de que o TEPT seria uma neurose atual versus a compreensão de uma psiconeurose.
Desta forma, o trauma seria apenas um estímulo que ativa um conflito anterior,
dinamicamente controlado. Ele teria, nesse enfoque, um papel semelhante ao do resto diurno
na teoria da formação dos sonhos, de ser um estímulo externo, circunstancial e sem
importância em si mesmo, mas que desorganiza o equilíbrio econômico entre impulsos e
defesas que, durante o sono, procura descarga de forma alucinatória, produzindo um sonho.
REFERÊNCIAS
afeta as funções do cérebro, dando fraqueza, dificuldade de concentrar atenção, dor de cabeça e irritabilidade. Surgem insônias e as
fobias de várias espécies, ou seja, o medo de comer alimentos comuns e a aversão a muita coisa mais, que até aí a vítima do mal
costumava fazer sem nada sentir. O sintoma que domina é a angústia ou o excesso de escrúpulo (CANEDO, 1978, p.43).
freqüentemente confrontados com incidentes críticos, como atos de violência, assaltos, desastres e confrontação com pessoas feridas ou
mortas (VAN DER PLOEG; DORRESTEIJN; KLEBER, 2003). Esses trabalhadores estão expostos a situações
violentas não apenas como cidadãos que vivem em um ambiente disruptivo, mas também no
exercício de suas atividades profissionais. No caso dos trabalhadores bancários, estes se
tornam alvo dos assaltantes, uma vez que eles podem se tornar um obstáculo ou um meio de
acesso ao cofre do banco e seu conteúdo. O perigo não está presente apenas no local de
trabalho. “Passa a ser comum que os bancários sejam abordados e se tornem reféns no
caminho para o trabalho ou, até, em suas próprias casas, de forma que a insegurança é levada
a todos os lugares , família, pessoas do convívio cotidiano”, afirma Campos (1998).
Essa sensação de poder tornar-se um refém para um assalto ao banco provoca no
bancário uma necessidade de vigilância e controle de seus familiares que provoca uma tensão
muito grande, que comumente tem como resultado alterações na saúde e desgaste nas
relações familiares, o que provoca mais tensão, numa espiral ascendente.
Sato (1988, p. 121) menciona que o trabalho bancário está “extremamente
relacionado com o desgaste da saúde, quer por existir riscos de acidentes de trabalho, quer
por existir risco de assalto a bancos”. A partir de seu trabalho no DIENSAT (Departamento
Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde nos Ambientes de Trabalho), essa autora
acrescenta que “vários trabalhadores (de bancos) procuravam o atendimento médico por
crises após assalto” (p. 121).
Por esse motivos, como exemplos do desenvolvimento do Transtorno de Estresse pós-
Traumático em pessoas que passaram por situações de violência, serão apresentados três
casos de trabalhadores bancários que foram vitimados em função de sua atividade
profissional. A seleção desses casos levou em apresentação dos casos teve como critérios a
descrição do local da entrevista, a identificação do indivíduo, a descrição da situação
traumática, e as alterações sentidas após essa situação. Por motivos éticos, o nome dos
entrevistados foi alterado. As entrevistas foram abertas, mas tendo como roteiro norteador as
alterações indicadas na Uma experiência potencialmente traumática comum no Brasil é a
situação de assalto, e entre os assaltos, o assalto que é cometido contra as instituições
bancárias. Dado o grande número de assaltos a bancos que ocorrem no Brasil, em que
funcionários e clientes são agredidos, e gerentes de agências são constantemente
seqüestrados, inclusive com suas famílias, para facilitar o ingresso nas agências, o trabalho
bancário pode ser considerado um fator de risco de desenvolvimento do TEPT para aqueles
trabalhadores que vivem situações de assalto ou seqüestro.
Estes dados trazem os seguintes questionamentos: O bancário, ao viver a situação de
assalto ou seqüestro desenvolve os sintomas do Transtorno de Estresse pós-Traumático?
Quais sintomas são mais comuns? Estes sintomas persistem por muito tempo? Quando os
funcionários assaltados continuam a trabalhar na mesma instituição, na mesma agência, este
fator interfere na cronificação ou na superação dos sintomas? Estes funcionários alteram sua
produção funcional, sua perspectiva profissional e o relacionamento com colegas e com a
própria instituição?
Estes casos serão usados com ilustração para a discussão da dinâmica dos sintomas,
apresentada nos capítulos seguintes.
O funcionário que chamarei de Jorge, tem 33 anos, atualmente faz curso superior, é
casado, tem dois filhos, um menino de 11 anos e uma menina de três anos. Trabalha no banco
há três anos, sua função é de Auxiliar Administrativo. Trabalhava em uma cidade pequena,
no interior, distante vinte e seis quilômetros de sua residência. Antes de entrar no banco, foi
proprietário de um pequeno comércio, e sofreu alguns furtos, mas nunca um assalto à mão
armada.
Na manhã do dia do assalto, há pouco mais de um ano atrás, sua esposa havia pedido
para usar o carro, único do casal. Jorge, “por comodismo”, não concordou e argumentou com
ela que seu colega, com quem pegava carona ocasionalmente, não iria trabalhar nesse dia, e
que tinha de ficar como carro, para deslocar-se até sua faculdade após o trabalho.
Durante o percurso até a agência onde trabalhava, foi cercado por três carros: “um
Vectra prata, um Uno cor de vinho e o Astra verde” sendo obrigado a parar. Quando
percebeu que era um assalto, imaginou que já tivessem pegado sua família, como em outros
assaltos que ouvira falar.
Os assaltantes eram “mais ou menos quinze pessoas, todas bem armadas”.
Anunciaram que iriam assaltar o banco e começaram a contar detalhes de sua família e de
sua casa, ameaçando que se não colaborasse, matariam sua filha (seu filho tinha viajado para
casa de parentes, fato conhecido pelos assaltantes). Relatou que ficou preocupado com sua
família e teve que obedecer aos assaltantes, pois, “se a pessoa não tivesse uma família, nada,
acho que a pessoa tomava uma atitude”.
Dirigiu então seu carro para a agência, acompanhado de dois dos assaltantes, sendo
seguido pelos outros veículos. No trajeto, ficou muito preocupado com o momento da entrada
na agência, pois temia que seus colegas não permitissem o ingresso dos assaltantes, ainda
mais por ter um cargo baixo no banco.
Soube também, pelos assaltantes, que ele foi escolhido por ter sido confundido como
sendo o gerente da agência. Jorge atribuiu esse erro pelo fato de trabalhar com o atendimento
ao público e abertura de contas, na frente da agencia, e também pelo fato de ter um carro
melhor que o do gerente. Não quis corrigir essa informação, temendo que os assaltantes,
pudessem fazer algo a ele por pensarem que o assalto não daria certo.
Ao chegarem à porta da agência, Jorge percebeu que um dos carros dos assaltantes
estacionou em frente à delegacia de polícia, que ficava na mesma praça. Desceu do carro,
acompanhado do líder da quadrilha. Quando se aproximaram da porta da agência, chamou o
gerente e o assaltante disse ao gerente: “Olha, você manda abrir isso aí porque a gente tem
como entrar aí de qualquer jeito, e a gente sabe que seu filho está sozinho em casa, sua
mulher saiu com um filho seu para o médico, certo? Seu filho está sozinho dentro de sua
casa, você mora na rua tal”. Jorge sentiu-se muito aliviado neste momento, o que gerou um
sentimento de culpa posterior. O alívio ocorreu, segundo ele, porque, por um lado, o gerente
não se oporia à entrada deles, e por outro, porque não haveria suspeita de que ele estivesse,
de alguma forma, associado aos assaltantes, que era outra preocupação que teve durante o
trajeto até a agência.
O gerente abriu a porta e entraram na agência. Os vigilantes foram rendidos e suas
armas retiradas pelos assaltantes. Após pegarem o dinheiro que estava no cofre, os ladrões
consideraram pequeno o valor recolhido e quiseram levar também o dinheiro dos terminais
eletrônicos. Isso aumentou sua tensão, pois havia clientes usando os terminais e Jorge teve
medo de que houvesse tiroteio. Nesse momento, dois colegas, “mais experientes de banco”
argumentaram com o assaltante no sentido de que algum cliente poderia chamar a polícia e
deixaram-nos mais calmos. Depois de terem recolhido esse dinheiro os assaltantes saíram da
agência, deixando a instrução de que esperassem algum tempo antes de acionarem o alarme.
Jorge sentiu-se muito abalado com o assalto e revoltado por ter sido tomado como
refém, por ser confundido com o gerente. “a gente está preparado para alguém pegar o seu
celular e sair correndo, principalmente porque eu não tinha cargo nenhum no banco, não
tinha preocupação, tinha medo mas eu nunca achava que ia ser alvo... eu estava recebendo
uma carga muito grande ali, porque o gerente normalmente tem a chave, tem o segredo, ele
tem como resolver o problema, quando o cara é gerente do banco ele tem como resolver e a
gente, como tinha pouco tempo de banco...eu não sabia como ia resolver aquela situação...”
Após o assalto, Jorge quis pedir demissão do banco para não se expor a novos assaltos,
mas acabou aceitando uma transferência. para outra cidade. Essa nova agencia fica distante
110 Km de sua residência, mas ele diz que vale a pena, pois não queria mais trabalhar naquela
agência, temendo por sua família, uma vez que os assaltantes sabiam seu endereço.
Sentiu-se culpado pelo sofrimento causado ao filho, pois seu filho assistiu pela
televisão a notícia do assalto e, ao não conseguir telefonar para casa, imaginou que seu pai
havia morrido. Culpa-se também pelas limitações que tem colocado a sua família,
especialmente em relação a passeios e lazer, devido aos sintomas que vem apresentando, e
pela preocupação constante que passou a existir em sua esposa, temendo novos assaltos.
Relatou as seguintes alterações após esse seqüestro e assalto:
Por medo de ser assaltado novamente, altera constantemente sua rotina e percurso
para ir ao trabalho e à faculdade.
Não deixa mais seu filho andar sozinho de bicicleta ou ir desacompanhado à casa de
amigos, como fazia antes. Seu lazer tem se limitado a sair com a família apenas para ir ao
Shopping Center da cidade, único local em que se sente seguro e mesmo assim, evita voltar
para casa tarde da noite.
Quanto ao relacionamento com sua esposa, Jorge comenta que percebeu alterações
no relacionamento sexual, tanto na diminuição da freqüência, como na qualidade, pois já não
sente tanto prazer como antes. Atribui isso ao cansaço que sente pelo deslocamento diário
até o banco.
Tem ido mais a médicos por sentir um aumento em sua gastrite.
Durante toda a entrevista, ele sublinhava o armamento e o numero de integrantes da
quadrilha, assim como o fato de saberem seu endereço e detalhes de sua família Isso causou-
me a impressão de que Jorge pedia, implicitamente, um reasseguramento de que sua conduta,
durante o seqüestro e assalto, foi correta, por não reagir.
sociais com os neurobiológicos. (MINGOTE ET AL., 2001). Não se pode falar deste
importantes da vida do indivíduo. Não apenas sua produtividade laboral ficou afetada,
mas seus relacionamentos afetivos e, inclusive, sexuais sofreram alterações. Para dois
pessoas próximas para evitar supostos perigos, acabam fazendo com que os sintomas se
entrevistados, o relacionamento deles com o Banco ficou prejudicado. A revolta por ter
seus saíram do banco devido a uma experiência traumática do tipo da que eles passaram.
empregos.
REFERÊNCIAS
Outro elemento que chama a atenção nos relatos dos entrevistados descrito no
capítulo anterior é a forma viva e rica em detalhes da descrição dos assaltos, apesar do
intervalo de tempo decorrido (seis meses para Sueli, um ano para Jorge e cinco meses para
Teresa) desde o assalto. Esse elemento é comum em muitas pessoas que passaram por
experiências traumáticas.
A imagem do momento traumático fica viva na memória, mesmo dezenas de anos
após o incidente traumático (LÓPEZ-IBOR, 1998). Nas entrevistas realizadas, pode-se ver
este elemento. Sueli ainda lembra constantemente do assaltante “balançando a arma, como
aconteceu no dia”. Jorge ainda sonha com o dia do assalto, e também tem constantes
lembranças intrusivas, mesmo em momentos de descontração.Teresa também recorda do
assalto constantemente, especialmente a cena da entrada da quadrilha na agência, dos
“vidros caindo, do cara gritando, pisoteando o vigilante”. Todos eles lembram-se com
exatidão de algumas palavras ameaçadoras dos assaltantes.
Sobre a força do registro de uma situação traumática, Freud, no “Projeto para uma
Psicologia Científica” (1895/1995, Edição Eletrônica), explica que a memória está
representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios, e que “esta facilitação
ocorre em virtude da magnitude da impressão ou da freqüência em que a impressão se repete”
(grifo nosso). Assim, em uma situação onde a vida está ameaçada, o excesso de estimulação
contra o qual a barreira protetora deveria funcionar, provoca uma falha nessa barreira.
Em “Além do Princípio do Prazer” (1920/1995, Edição Eletrônica), ele comenta essa
falha:
Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora
que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor.
Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão
desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes
contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está
destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da
energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é
momentaneamente posto fora de ação. Não há mais possibilidade de
impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de
estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as
quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido
psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar.
Outro aspecto que merece ser relatado, é o de que pequenos detalhes, absolutamente
sem importância na situação, ficam intensamente carregados na memória do indivíduo
traumatizado.
Sueli lembra-se do telefone celular caído no chão, durante o assalto, Jorge lembra-se
da marca, modelo e cor dos carros usados pelos assaltantes e de palavras ditas pelos
assaltantes. Teresa não consegue lembrar-se da fisionomia da pessoa que a agrediu, embora
se considere boa fisionomista e lembre-se de outros detalhes presentes na cena. Porque, numa
situação onde está presente o risco de vida, alguém repararia em detalhes insignificantes
presentes na situação?
Freud, (1901 [1899]/1995, Edição Eletrônica) explica o que deveria ser retido na
memória e o que deveria ser esquecido:
Antes, parece que, quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que
faz lembrar a interrupção da memória na amnésia traumática. Como nesse
último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio caminho, por
assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática
fosse retida como fetiche (1927/1995, Edição Eletrônica).
Isso implica numa capacidade de deslocar, por semelhança ou continuidade temporal, a carga
perceptiva para outro elemento presente.
Como exemplo desse processo, pode-se mencionar uma paciente atendida em psicoterapia
que sofreu um estupro em seu próprio automóvel. Durante o estupro, essa mulher, vivendo
uma violência inimaginável, e sendo ameaçada de morte, tinha como principal preocupação
o fato de seu sapato poder arranhar o painel do carro. Esse caso mostra de forma evidente a
função defensiva do deslocamento da carga perceptiva. É como se ela dissesse para si mesma:
“Não está ocorrendo nada comigo, apenas estou deitada em uma posição que pode estragar
o painel de meu automóvel, que gosto tanto. Preciso evitar isso”.
REFERÊNCIAS
1- O sentimento de culpa
A experiência perigosa não traumatiza apenas pelo medo, mas também pelos
sentimentos de vergonha e culpa que ela muitas vezes provoca (McNALLY, 2003). O
sentimento de culpa está presente nos três relatos apresentados. Sueli culpa-se pela agressão
sofrida pelo colega, por não ter tido coragem de abrir o cofre e atribui à sua “energia ruim”
o fato de atrair situações desprazerosas. Talvez também o rompimento com o namorado possa
ter ocorrido em função da culpa. Simon (1989), explica que nas situações de crise onde há
fortes sentimentos de depressão e culpa, “há o risco de o indivíduo tentar aliviar-se por auto-
agressão, que pode variar da mutilação pessoal, material ou situacional, até o suicídio” (
p.61).
Jorge culpa-se por ter sido comodista e naquele dia, não ter deixado o carro com sua
esposa, como ela havia pedido, e ido de ônibus, e de ter provocado a preocupação e
sofrimento de seu filho. Teresa, embora mantenha em seu discurso o fato de ter cumprido as
normas de segurança e a inevitabilidade da situação, culpa-se pela reação que teve diante do
assaltante, gritando com ele e expondo-se a um risco desnecessário.
A culpa, na maioria das vezes irracional e onipotente, parece ter a função de encontrar
um sentido no ocorrido e muitas vezes, de encontrar um culpado pela situação. É preciso
encontrar um sentido para a tragédia, e o sentido pode ser dado a partir de uma suposta falha
individual. Nesse sentido, os gregos talvez fossem mais felizes. A palavra desastre, de algo
que não deveria acontecer, não previsto, vem do grego desastrum, quando os astros saíam de
sua órbita normal, provocando alterações em nosso planeta, quando ocorre o que não deveria
ocorrer (BENYAKAR, 2003).
A culpa também aparece nas três entrevistas em relação ao sofrimento causado à
família, ou pela preocupação despertada, ou pelas alterações sintomáticas após o assalto.
2- Ressentimento
Nas três entrevistas aparece um sentimento de revolta contra algum fator relacionado
à instituição. Sueli queixa-se de que o banco não a treinou sobre como proceder em casos de
assalto, e com as medidas adotadas pela empresa em relação à sua transferência. Jorge
acredita ter sido seqüestrado por engano. Foi confundido com o gerente, “talvez por ter o
carro melhor que o dele”, “Sem ter o salário de gerente”, acrescenta. Teresa “teve de
assumir as responsabilidades” durante o assalto, em função da ausência do gerente, que
“vive em treinamentos e reuniões”. Lopez-Ibor (1998), havia encontrado afetos semelhantes
em veteranos da guerra das Malvinas.
O ressentimento dos veteranos era dirigido para o governo e exército argentinos, e
não contra o exército inglês, o verdadeiro agressor. É como se essa revolta surgisse por uma
falha de proteção. Quem tinha a função de proteger esses indivíduos, falhou nessa missão.
Assim, no caso dos bancários entrevistados, o responsável pela experiência traumatizante
passa a ser o gerente ou a instituição, e o assaltante fica, de certa forma, perdoado. Freud
explica este processo a partir de uma referência ao medo da morte no trabalho “O Ego e o
Id” (1923 /1995, Edição Eletrônica). Na melancolia, o medo da morte ocorre porque o ego
se vê abandonado e perseguido pelo superego. “Para o Ego, portanto, viver significa o mesmo
que ser amado”, conclui.
Assim,
O superego preenche a mesma função de proteger e salvar que, em épocas anteriores, foi
próprias forças, vê-se obrigado a tirar a mesma conclusão. Ele se vê desertado por todas
as forças protetoras e se deixa morrer. Aqui está novamente a mesma situação que
4- Irritabilidade
5- Alterações na saúde
Embora Jorge não tenha mencionado nenhuma alteração nessa ordem, Sueli e Teresa
desenvolveram hábitos não existentes anteriormente. Sueli passou a comer muito “mesmo
sem ter vontade” e engordou. Teresa começou a “passar o dia tomando chá”.
Pode-se pensar no processo regressivo relacionado a essas características. A pessoa
traumatizada, reinvestindo sua libido no ego, fica numa espécie de narcisismo infantil, e o
surgimento de comportamentos regressivos faz parte desse processo.
As pessoas traumatizadas agem como uma criança que, após levar uma queda e
esfolar o joelho, corre para os braços da mãe. O abraço da mãe não tem o poder de cicatrizar
o joelho esfolado, mas tem a capacidade de mostrar à criança que está amparada, e que sua
dor é suportável e passageira.
REFERÊNCIAS
Tudo se passa como se o psiquismo, cuja única função consiste em reduzir as tensões
Quando o desapego com relação à própria vida conduz já a uma imagem de si mesmo
como moribunda e ainda resta uma ligação com sentimentos, o interesse fica concentrado no
que o agressor sente, a parte da relação que está viva, já que o ego vai regredindo a um estado
de porosidade intensa com relação aos estímulos, já que as barreiras foram rompidas. É nesse
processo que Ferenczi encontra a raíz do masoquismo. Para que o masoquismo se manifeste
é necessária uma morte temporária da pessoa, quando então ela desaparece, não sente dor,
porque não existe, passando a existir apenas o agressor e seu gozo com quem a pessoa se
identifica, dessa forma o sofrimento é atenuado. Patrícia Hearst revela a sua própria morte e
o nascimento de uma outra pessoa em seu lugar. Ela se torna uma outra pessoa, efetivamente,
pelos processos de introjeção. Porém, tanto ela como os bancários de Estocolmo guardam
dentro de si os mortos insepultos, a pessoa sofrida e agonizante que são e de quem tiveram
que se desconectar.
Podemos continuar a relação também com “Totem e Tabu” (1913/1995) se
pensarmos que o pai primevo, admirado e temido foi assassinado pelos filhos, passo inicial
para a constituição de uma psique individual. O que temos na situação traumática é o inverso,
um objeto externo que irá colocar em risco a sobrevivência do ego, e se torna um agressor
introjetado , ou o que Ferenczi (1932d,e/1990) denominou de superego louco, como um
enxerto forçado.
Ferenczi identifica esse fenômeno nas situações em que a criança agredida não pode
se defender em forma de protestos, de raiva ou de fuga, e que essa parte revoltada tenta se
exprimir através de uma representação na própria personalidade do que percebe no outro.
Exemplos disso são as caretas deformadoras que visam refletir como um espelho o rosto do
outro, ou através de manias e exageros. Essas manifestações são formas de comunicação,
expressões de ironia, decalques do objeto. Porém, esse caráter de comunicação passa a se
tornar uma parte integrante do ego, na medida em que o interlocutor externo é surdo às
imitações de sua própria voz e interdita, agora no plano intrapsíquico, o caráter de
comunicação com o núcleo do ego. Também no relato de Patrícia Hearst podemos inferir
que houve uma imitação que se tornou identificação: ela se torna uma seqüestradora.
Assim, uma parte da personalidade do agressor é conduzida a uma continuidade
forçada, de forma intrapsíquica, em sua vítima: “Pedaços de transplantes maternos
conservam sua vitalidade e até mesmo sua energia de crescimento; a malignidade das pessoas
continua, por assim dizer, vivendo no espírito daqueles que foram maltratados.”22
REFERÊNCIAS
CARVER, J. M. Love and Stockholm Syndrome: The Mystery of Loving an Abuser. Mental
Health Matters. Disponível em <http://www.mental-health-matters.com/> 2003. Acesso em
15 Jul 2004.
CNN (2001) Patricia Hearst Discusses Her Presidential Pardon. Entrevista a Larry King.
Aired January 31, 2001 - 9:00 p.m.
FERENCZI, S. (1920 1 1930-1933/1992) Notas e fragmentos. In: Obras Completas de
Sandor Ferenczi – Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes p. 235-284.
_____ (1922/1992) “Psicologia de grupo e Análise do Ego”, de Freud .In: Obras
Completas de Sándor Ferenczi – Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes p. 177-181.
O TEPT é uma epidemia tipicamente dos tempos modernos. Vivemos, sem dúvida,
em um ambiente disruptivo ou se preferirmos, repleto de identificação radioativa, e não
escapamos ilesos desse tipo de ambiente.
A violência está presente em todos lugares, seja na realidade, seja na eletrônica,
através de filmes, e jogos. Nos EUA, um jovem de 18 anos teria assistido cerca de 40.000
homicídios na televisão (LAMPRECHT; SACK, 2002). Não se pode concluir ingenuamente
que este fato produza pessoas ou uma sociedade violenta, mas talvez seja uma ingenuidade
maior admitir que isso não tem influência alguma na mente de um jovem.
O ambiente em que vivemos no Brasil sem dúvida permite que o inimigo seja
menino no semáforo que vem nos pedir uma ajuda para comer. E-mails na Internet nos
avisam sobre as mais estranhas peripécias dos assaltantes, e trazem a seguinte mensagem
notícias de jornais do ano 1996, dizendo que as reações dos meios de comunicação ao
organização (por mínima que seja) compatível com a vida” (p. 14).
encontrar uma adaptação que seja adequada. “Para ser adequada, basta que, primeiro, a
resposta solucione o problema que surge para o indivíduo. Segundo, que a solução traga
satisfação para o indivíduo. Terceiro, que a solução encontrada não provoque conflitos
(Simon, 1989, p. 16). O circuito em que o indivíduo com TEPT fica preso, geralmente
faz com que a adaptação a esse mundo alterado, perigoso e ameaçador seja inadequada.
descrito por Benyakar deixou de estar confinado a alguns países ou regiões do planeta,
geralmente distante de nós, brasileiros. A violência hoje não é mais uma exceção no
país, mas está cada vez mais presente e próxima. Infelizmente, podemos predizer que, a
menos que as condições sociais sejam alteradas para que possam ser combatidas as
Este texto reflete bem a relação entre problemas sociais, que a causam a frustração, e
a revolta que surge a partir dele, através de assaltos, seqüestros, e no âmbito deste trabalho,
as ocorrências criminais contra os bancos e por, conseqüência, contra os bancários.
O Psiquiatra argentino Mordechai Benyakar (2003) propôs nove princípios de
atendimento em saúde mental após desastres, conhecidos como os 9 W’s, por todos iniciarem
com a letra W (em inglês), e ele toma o termo desastre a partir de sua etimologia, disastrum
, que significava os momentos em que os astros saíam de suas órbitas naturais, e provocavam
o Caos, criando situações inesperadas na Terra.
O princípio apresentado em primeiro lugar é o da Prevenção (Warning), e esta
prevenção é compreendida a partir de duas vertentes.
A primeira é no sentido da adoção de medidas com o objetivo de evitar a situação
desastrosa. Em nosso país, essa prevenção passa não apenas por uma ação de
judiciárias, que não estão cumprindo com seu papel na sociedade à qual devem servir,
Considerar que a violência seja algo normal pode ser tão patológico quanto ela. “Aceitar
que a violência possa ser naturalizada é uma tentativa de diluir o terror que ela provoca,