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TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO: UMA

NEUROSE DE GUERRA EM TEMPOS DE PAZ

OTHON VIEIRA NETO E CLAUDIA MARIA SODRÉ VIEIRA (Orgs.)

Prólogo – (Othon Vieira Neto e Claudia Maria Sodré Vieira)

Introdução – Uma Neurose de Guerra em Tempos de Paz (Othon Vieira Neto)

Cap. 1 – Transtorno de Estresse pós-Traumático (TEPT) – Etiologia, Conceito, Prevalência.


(Othon Vieira Neto)

Cap. 2 - Um enfoque psicobiológico do TEPT. (Dr. Renato Teodoro Ramos)

Cap. 3 - A metapsicologia do trauma. (Claudia Maria Sodré Vieira)

Cap. 4 – O Trauma psíquico e a teoria da libido. (Claudia Maria Sodré Vieira e Dra. Eva
Maria Migliavacca)

Cap. 5 – A neurose Traumática em Freud e a teoria psicanalítica do TEPT. (Othon Vieira


Neto)

Cap. 6 – A instituição bancária como observatório humano do TEPT. (Othon Vieira Neto)

Cap. 7 – Transtornos de ansiedade – O medo no TEPT. (Othon Vieira Neto)

Cap. 8 – Outras alterações apresentadas após uma situação traumática. (Othon Vieira Neto)

Cap. 9 – Identificação com o agressor, a Síndrome de Estocolmo. (Claudia Maria Sodré


Vieira e Othon Vieira Neto)

Cap. 10 – Um programa de assistência psicológica ao TEPT em trabalhadores bancários.


(Othon Vieira Neto)

Cap. 11 – Contribuições da Psicologia da Saúde na atenção às pessoas com TEPT. (Dr. José
Tolentino Rosa e Othon Vieira Neto)
Prólogo

Porque escrever um livro sobre neurose traumática e trauma psíquico? Por que
retomar o interesse por um tema que, embora importante do ponto de vista histórico para a
Psicanálise, foi abandonado? Talvez por isso mesmo: repensar o abandono do interesse por
esses conceitos, no momento histórico atual em que o indivíduo se relaciona com um mundo
cada vez mais perigoso e agressivo, a partir das alterações e sofrimentos que a violência pode
produzir.
Nosso interesse pelo tema surgiu a partir da experiência com o atendimento
psicoterápico de pacientes que haviam passado por situações de violência, tais como assaltos
e sequestros-relâmpagos, e especialmente de trabalhadores bancários vítimas de assaltos
sofridos em seus locais de trabalho.
Muitos pacientes atendidos apresentavam diversos sintomas relacionados à situação
violenta que sofreram, e vinham com uma demanda específica de “querer ser como eram”,
antes do assalto. Essa demanda, assim como o motivo que a gerou, tornou necessária uma
compreensão maior da relação existente entre a vivência de uma situação traumática e o
sofrimento psíquico posterior a ela. A utilização do referencial teórico psicanalítico adotado
por nós impulsionava-nos a tentar entender os sintomas desses pacientes como uma
expressão simbólica de um conflito inconsciente. Esse pressuposto, correto em relação a
outros pacientes, era de pouca utilidade com àqueles que padeciam de uma “Neurose
Traumática”, tal como era tratada essa doença pela literatura psicanalítica.
Além disso, como supervisores do Estágio de Aconselhamento Psicológico na Uni-
FMU, em função de uma parceria iniciada em 1999 entre a Universidade e a Secretaria da
Justiça do Estado de São Paulo, fazíamos parte de uma equipe responsável pelo
acompanhamento e supervisão dos atendimentos psicológicos dos usuários do Centro de
Referência e Apoio à Vítima (CRAVI). O Cravi foi um projeto-piloto daquela secretaria
criado para prestação de assistência social, jurídica e psicológica, baseado em um modelo
utilizado nos EUA, na cidade de Boston.
Nos atendimentos supervisionados frequentemente os pacientes apresentavam
transtornos psicológicos após terem sofrido assaltos, sequestros ou a perda de alguém
próximo, por assassinato. O atendimento nesse Centro de Referência também instigou
estagiários e supervisores a conhecer melhor esses transtornos.
Essa procura pela compreensão do trauma e de suas consequências levou-nos a
pesquisas sistematizadas em programas de pós-graduação. Como fruto dessas pesquisas,
foram elaboradas as dissertações de Mestrado “As relações Traumatizantes e seus Efeitos no
Aparelho Psíquico”, defendida no Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de
São Paulo, orientada pela Prof. Dra. Eva Maria Migliavacca, e “Transtorno de Estresse pós-
Traumático em Bancários, Vítimas de Assalto e Sequestro” defendida no programa de
Psicologia da Saúde da UMESP-SP, orientada pelo Prof. Dr. José Tolentino Rosa, e que se
tornaram as bases deste livro.
Confirmando em investigação de campo as pesquisas bibliográficas realizadas, foi
verificado que a violência pode trazer consequências psicológicas para suas vítimas e, uma
das consequências comuns é o desenvolvimento do quadro chamado de Transtorno de
Estresse pós-Traumático (TEPT), uma designação recentemente adotada pela Classificação
Internacional das Doenças- CID-10 para o quadro conhecido anteriormente como Neurose
Traumática, mais familiar aos leitores que adotam orientação psicanalítica.
O subtítulo do livro, Neurose de Guerra em tempo de Paz, é uma referência a uma
das formas como Freud se referia à Neurose Traumática, e é mais atual do que nunca no
Brasil de hoje, quando anualmente morrem mais pessoas vítimas de atos de violência do que
em qualquer das guerras oficiais das últimas décadas. A denominação de Transtorno de
Estresse pós-Traumático foi criada para uma compreensão das alterações psicológicas dos
soldados que serviram no Vietnã, mas sua grande utilidade para nós é a possibilidade de
compreensão do que acontece com nossos “veteranos” domésticos: os familiares de jovens
assassinados, as vítimas se assaltos, sequestros, estupros, acidentes automobilísticos.
Esse livro descreve esse quadro patológico, buscando uma compreensão dos sintomas
e de sua dinâmica a partir de diferentes enfoques.
No primeiro capítulo, é fornecida uma visão geral desta patologia que, apesar de
alcançar proporções epidêmicas no mundo todo e especialmente no Brasil, é pouco conhecida
e identificada pelos próprios profissionais de saúde. Em seguida, há uma visão da biologia e
da metapsicologia do trauma psíquico, assim como sua relação com a teoria psicanalítica da
libido. A relação com a visão freudiana de neuroses é dada por um rastreamento das
concepções de Freud sobre a Neurose Traumática e sua tentativa de articulação desta doença
com as demais psiconeuroses.
Os capítulos seguintes descrevem como o Transtorno de Estresse pós-Traumático
aparece em pessoas que foram vítimas de assalto ou sequestro, e apresentam uma proposta
de intervenção multidisciplinar para reduzir as consequências da violência em trabalhadores
desenvolvida por um banco brasileiro.
Após uma análise dos sintomas a partir de conceitos psicanalíticos, é oferecida uma
visão da contribuição que a Psicologia da Saúde pode oferecer para as pessoas vitimizadas.
Esperamos que este livro possa favorecer uma interlocução com grupos e pessoas que
trabalham com esse quadro, e que possa contribuir de alguma forma para que profissionais
de saúde possam ajudar a população a reduzir as nefastas consequências psicológicas da
violência que todos sofremos.

Othon Vieira Neto e Claudia Maria Sodré Vieira

Julho de 2004.
Introdução

Othon VIEIRA NETO

Pode haver uma epidemia


silenciosa de Transtorno de
Estresse pós-Traumático não
detectada pelos médicos de
assistência primária.
(SABBAGH, 1995).

Considerando-se que o quadro psicopatológico denominado Transtorno de Estresse


pós-Traumático está diretamente associado a situações de violência, a afirmação acima
instiga uma reflexão sobre uma série de fenômenos da sociedade brasileira. Tanto para
psicólogos como para cidadãos, é importante compreender de forma mais profunda as raízes
psicossociais do Transtorno de Estresse pós-Traumático e repensar as respostas que nós,
cidadãos e profissionais de saúde, temos a oferecer para as sequelas psicossociais das vítimas
silenciosas da violência entre nós.
A violência no país se impõe de tal forma que não se pode mais negá-la. O que antes
era assunto apenas de poucos jornais, programas de rádio e de televisão sensacionalistas,
atualmente é tema predominante não só na mídia como também na população e entre os
profissionais de saúde.
Muito se discute hoje sobre a psicologia do agressor. A cada crime ocorrido que, por
algum motivo, ganha notoriedade ou choca a população, surgem reportagens e matérias na
mídia sobre as motivações psicológicas do agressor, numa tentativa de compreensão das
raízes da violência, sobre como evitá-la, sobre a possibilidade ou não da recuperação dos
criminosos, se o menor de idade que comete crimes deve cumprir penas semelhantes às de
um adulto e assim por diante. A psicologia do criminoso vem obtendo assim, um destaque.
Profissionais de saúde mental são constantemente procurados pela mídia para
emitirem opiniões sobre o funcionamento mental do agressor.
Pouco se fala, no entanto, da psicologia da vítima, sobre a forma que um crime afeta
psicologicamente a vítima, seus familiares e a sociedade como um todo.
A inclusão do diagnóstico de Transtorno de Estresse pós-Traumático no DSM-III em
1980 teve o mérito de possibilitar o reconhecimento de que uma situação de violência pode
trazer consequências psicológicas (RUSCIO; RUSCIO; KEANE, 2002), e a existência desse
diagnóstico produz um enfoque necessário para olharmos o outro polo de uma situação de
violência – o agredido. Este diagnóstico permite o estudo e a compreensão das sequelas
psicológicas de situações como as geradas por atos violentos, desastres de origem natural,
acidentes, enfim, situações que possam provocar nas pessoas, choque, abalo ou comoção,
que são sinônimos da palavra trauma (GREGORIM et al. 1999).
Considerando a realidade brasileira, em que estamos expostos a situações de violência
que vão desde as ações de quadrilhas organizadas, até a violência doméstica, privada, a
existência deste diagnóstico pode permitir o estabelecimento de estratégias de intervenção
com o objetivo de reduzir as consequências e o sofrimento psíquico das vítimas. A violência
pode provocar um trauma psicológico nas vítimas, e este trauma pode acarretar o
desenvolvimento de um quadro psicopatológico que tem a denominação de Transtorno de
Estresse pós-Traumático.
O termo violência comporta distintas conotações. Implica em uma coerção ou
intimidação pelo uso da força de alguém em condição de inferioridade física ou moral.
Implica também na ruptura de uma lei ou de uma regra (COSTA, 1984/1986). Partindo
dessas conotações, muitos comportamentos podem ser violentos, sem ser necessariamente
traumatizantes. Podemos falar de uma violência política, na censura, ou de uma violência
econômica por parte de um governo que, ao escolher determinado modelo de economia, gera
desemprego. Da mesma forma, um pai que ao educar seu filho, o proíbe por meio de ameaça
ou culpa, de realizar algum comportamento inadequado ou perigoso, está agindo com
violência, por mais que este ato seja uma expressão de amor.
Para evitar ambiguidades, neste trabalho, propõe-se a utilização estrita do conceito de
violência definida por Alarcon e Trujillo (1997), psicólogos argentinos:

Um tipo de conduta individual ou coletiva que, praticada intencional,


impulsiva ou deliberadamente, causa dano físico, mental ou emocional
tanto ao próprio indivíduo ou indivíduos que a executam como a outros em
seu ambiente imediato e mediato e ao ambiente mesmo.

Essa definição foi adotada porque ela requer que haja um dano causado por uma ação
para que esta seja considerada como violenta. Nesse sentido, uma série de atos praticados por
indivíduos ou grupos que, infelizmente, vem crescendo em nosso país, adequa-se a essa
definição.
Não é o objetivo deste trabalho estudar as raízes do comportamento violento, que
pode ter diversas motivações: econômica, política, social, religiosa ou psicológica. O foco
dele limita-se ao estudo das consequências psicológicas que os atos dos indivíduos ou grupos,
que empregam meios violentos para atingir seus objetivos, provocam nas vítimas, de forma
direta ou indireta.
Um rápido olhar nos noticiários da imprensa local, nacional ou internacional, pode
dar uma dimensão da importância do tema: atentados suicidas provocados por homens-
bombas, grupos do narcotráfico que controlam bairros inteiros, sequestros, assaltos e até
maridos ciumentos que matam as suas esposas supostamente infiéis, cada vez mais estão
presentes no cotidiano da população.
Programas televisivos exploram bastante este tema. Cada vez mais ouvimos em
programas de televisão e rádio expressões como “o trauma da vítima” ou o “medo da
população”, sem que isto seja devidamente entendido ou explicado. O sensacionalismo
destes programas, que alcançam grande audiência e popularidade, explora a ineficácia das
autoridades e a desproteção da população, e produzem o efeito de aumentar a sensação de
medo e desamparo nos indivíduos.
Este é apenas um elemento a mais em nossa cultura de medo. A crescente violência
que ocorre em nosso país produz uma sensação de insegurança e instabilidade, que
poderíamos classificar, a partir das ideias de Benyakar (2003), como um ambiente disruptivo
(disfuncional). Para esse autor, ambiente disruptivo é um ambiente no qual as regras de
relacionamento interpessoal, social e com o meio físico ficam distorcidas, obrigando o
indivíduo a adaptar-se a um ambiente incompreensível e imprevisível, ficando assim repleto
de elementos ameaçadores. Essa definição, originalmente destinada a compreender um
fenômeno social presente nos países ou regiões onde atentados terroristas são frequentes,
como o Oriente Médio, Israel ou a Irlanda, posteriormente foi aplicada também a países
sujeitos a desastres geográficos e àqueles onde há grande incidência de violência, seja por
parte de grupos organizados, com conotação política, seja por ações criminosas comuns.
Gampel (2000), referindo-se a este tipo de ambiente, prefere utilizar o conceito de
identificação radioativa, como uma representação metafórica do processo de penetração de
aspectos violentos e destrutivos da realidade social nos indivíduos. Esse processo, segundo a
autora, ocorre através da internalização de resíduos “radioativos” que não são conscientes, e
a pessoa se identifica com os aspectos desumanizantes da realidade, atuando a partir dessas
identificações ou repassando para seus filhos através do processo de transmissão
transgeracional.
Estes dois conceitos descrevem bem um fenômeno presente no Brasil, onde a
presença constante da violência força os indivíduos a, ao mesmo tempo em que buscam
defesas contra a sensação de medo e impotência, esperar por ela e, em alguns casos,
reproduzi-la.
Enquanto em outros países os fatores geradores de um ambiente disruptivo podem ser
localizados em guerras declaradas, oficiais, ou em instabilidades geográficas capazes de
provocar desastres e ceifar vidas, no Brasil o crime contra a pessoa é o elemento mais
preocupante para dois terços da população, que acredita que será vítima de algum tipo de ato
violento, conforme pesquisa do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a
Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (ILANUD, 2002). Outro dado a ser
destacado é o de que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mais
de 70% das mortes ocorridas com pessoas com idade entre 15 e 24 anos foram provocados
por fatores externos, ou seja, pela violência e por acidentes. Esse tipo de mortalidade teve
um aumento de 20,85% no período entre os anos de 1990 e 2002 (ESCÓSSIA, 2003).
Embora o aumento da criminalidade seja um fenômeno presente em muitos países,
inclusive nos EUA (ALARCON; TRUJILLO, 1997), algumas nações estão conseguindo dar
uma resposta social a este problema, invertendo essa tendência. Na Colômbia, país mais
violento da América do Sul, a taxa de homicídios diminuiu 21% em relação ao ano passado
(MAISONNAVE, 2003). É importante citar que, nesse país, essa taxa é dez vezes superior à
dos EUA (BROOK et al., 2003).
Embora pareça ser desnecessário comentar sobre os alarmantes índices da violência
no Brasil, a estatística fornece uma dimensão relativa do problema. Os dados do Seade -
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (1999), registraram em 1999 mais de um
milhão e duzentas mil ocorrências policiais no Estado de São Paulo, referentes a crimes
envolvendo pessoas, para uma população de 36.276.632 habitantes (SEADE, 1999). Foram
excluídos desse levantamento os crimes que não provocaram dano físico ou ameaça física às
vítimas, como furtos, estelionato, contrabando ou tráfico de entorpecentes, entre outros. O
número total de ocorrências naquele ano foi de 2.430.506, o que representa 6,7% em relação
à população do estado.
O número de ocorrências policiais potencialmente traumatizantes representa 3,5% em
relação à população, mas devemos considerar que uma ocorrência policial pode envolver
muitas vítimas. Um roubo a uma residência, por exemplo, gera um único boletim de
ocorrência, mas uma família inteira pode ter sido vitimizada. O mesmo ocorre em assaltos a
estabelecimentos comerciais e bancos, em que muitos funcionários e clientes sofrem ou
testemunham situações de violência. Após o ano de 1999, houve uma modificação na forma
de classificação dos crimes, por parte da Secretaria de Segurança Pública, distribuindo-os em
grandes categorias, como Crimes contra o Patrimônio ou Crimes contra a Pessoa, o que
inviabilizou um levantamento mais atualizado, uma vez que um crime cujo objetivo é o
patrimônio muitas vezes também atinge pessoas.
Muitas das pessoas que viveram as situações de violência em São Paulo podem ter
apresentado sequelas psicológicas, e entre elas, o desenvolvimento do quadro de Transtorno
de Estresse pós-Traumático como decorrência do trauma sofrido por um ato violento. A
principal consequência psicológica da experiência traumática é o desenvolvimento do quadro
psicopatológico do Transtorno de Estresse pós-Traumático (TEPT) ou, como utilizaremos
neste trabalho, PTSD, abreviação da denominação inglesa Post Traumatic Stress Disorder1
(CIA, 2001).
Uma pesquisa realizada nos EUA constatou que 20% das pessoas que foram vítimas
de algum tipo de violência desenvolveram sintomas do PTSD (BREWIN; ANDREWS;
ROSE, 2003). Aplicando essa proporção aos dados do SEADE, chegamos à impressionante
conclusão de que, só no Estado de São Paulo, mais de 250 mil pessoas teriam desenvolvido

1 Apesar da existência da abreviação em português TEPT, será utilizada neste trabalho a abreviação em inglês PTSD por ser a adotada pelos autores, inclusive os
brasileiros, como Roso (1998).
esta patologia no ano de mil novecentos e noventa e nove. Ainda há de se ressaltar que este
número é projetado a partir de dados oficiais. Pela experiência, sabemos que o número real
pode ser muito maior, pelo fato de que muitas vítimas não fazem boletim de ocorrência
policial, por diversos motivos, dos quais pode-se destacar o constrangimento muitas vezes
causado pela polícia, o pequeno prejuízo material envolvido, ou a própria desconfiança na
eficácia das autoridades.
Como vários dos fatores ambientais potencialmente traumáticos estão associados a
condições sociais, econômicas e políticas do país (SCHESTATSKY et al., 2003), pode-se ter
uma ideia do potencial traumatogênico de um país com as desigualdades econômicas, sociais
e culturais como o Brasil que produzem e, de certa forma, reproduzem a violência, como
afirmam Migliavacca e Vieira (2002, p. 237):

Em um contexto mais amplo, não podemos deixar de lembrar que estamos


sendo vítimas sociais de uma violência que nos atinge a todos, direta ou
indiretamente e que, em função disso, a nossa cultura é geradora e
multiplicadora de indivíduos fragmentados, semimortos e de vítimas da
identificação com os agressores: algozes sádicos.

Rodrigues (Informação verbal)2, psiquiatra argentina, confirma essa afirmação ao


mencionar que pesquisas norte-americanas indicam que cerca de vinte e cinco por cento das
pessoas que foram sexualmente abusadas na infância, tornam-se abusadores de crianças
quando atingem a idade adulta. Da mesma forma, sabe-se que os criminosos em série foram
vítimas de algum tipo de maltrato físico em sua infância (LAMPRECHT; SACK, 2002).
Este ambiente contaminado por “identificação radioativa”, no qual ocorre a produção
e reprodução da violência teria potencialmente a capacidade de provocar uma experiência
traumática nos indivíduos, podendo ser definido como um verdadeiro ambiente disruptivo
(BENYAKAR, 2003).
Por experiência traumática entende-se a resultante da interação entre um evento
factual, da realidade externa, onde ocorre algum tipo de risco à vida do indivíduo, com uma

2 Informação transmitida no curso Transtornos Dissociativos. São Paulo, 08.11.2003.


vivência interna, da realidade psíquica, quando o indivíduo é incapaz de assimilar essa
experiência e elaborá-la de forma normal.
Embora a experiência traumática também possa surgir de eventos de origem natural,
tais como erupções vulcânicas, furacões, inundações, e de situações acidentais, como
acidentes de trabalho e de trânsito, Cia (2001) mostra estudos onde foi constatado que a
violência de origem humana é mais prejudicial, do ponto de vista psíquico, que a de origem
natural ou acidental.
Apesar da dimensão epidêmica do que o PTSD pode ter, especialmente no Brasil, país
que ocupa a quarta colocação nas estatísticas de homicídios, segundo a UNESCO,
estranhamente, esta patologia é pouco debatida pelos profissionais de saúde do país, e é
pouco identificada pela própria população que desenvolve os sintomas.
Essa síndrome foi descrita com esta denominação pela primeira vez na terceira edição
do Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Psiquiátrica Americana (APA), o DSM-
III, em 1980. Inicialmente destinava-se ao estudo e diagnóstico dos combatentes da Guerra
do Vietnã, que apresentavam diversas dificuldades emocionais após o fim da guerra. Os
mesmos sintomas foram identificados posteriormente na população civil, em pessoas que
passavam pela experiência de situações traumáticas, tanto as de origem natural, como
terremotos, furacões, inundações e erupções vulcânicas, como por situações provocadas pelo
homem, como assaltos, estupros, acidentes automobilísticos e outros (ROSO, 1998).
O grande avanço da inclusão deste diagnóstico é o reconhecimento de que a exposição
a situações estressoras (ameaçadoras) severas pode produzir patologias que persistem mesmo
quando a situação termina (DAVIDSON, 2002).
A existência deste diagnóstico mostrou-se útil também tanto no campo pericial, no
sentido de fundamentação de demandas judiciais de indenizações, quanto na clínica, pois
permite a organização de um quadro clínico sobre a base de um determinante etiológico
específico, possibilitando o desenvolvimento de uma série de estratégias de intervenção
(AMOR; PEREZ; GANCEDO, 2001).
Embora alguns autores considerem este quadro como uma “neurose de
compensação”, e advirtam quanto aos simuladores (SÁNCHEZ, 2001), porque
frequentemente envolve litígios jurídicos de compensação financeira pelo trauma sofrido,
Bryant e Harvey (2003) não encontraram diferenças entre os sintomas de vítimas de acidentes
de trânsito que entraram com pedidos de compensação financeira, daqueles que não
apresentaram esta demanda jurídica.
Para um profissional de saúde, os aspectos legais relacionados ao desenvolvimento
da patologia podem ser secundários, se for adotada a posição de Emsley, Seedat e Stein
(2003, p. 140): “Como médicos, nós acreditamos que o PTSD é uma doença e que é nosso
papel tentar ajudar aqueles que sofrem dela”, deixando as questões jurídicas que envolvem a
patologia para os advogados.
Apesar da inclusão desse diagnóstico ser recente, a experiência traumática sempre
esteve presente na história da humanidade. “O homem é, assim, um ser da catástrofe...” diz
Berlink (1998), e é a capacidade criativa para sua superação, que desde a era glacial, vem
garantindo a sobrevivência da espécie. O homem sempre teve que enfrentar as forças da
natureza ou inimigos mais poderosos, e nem sempre levou vantagem sobre eles, tendo sua
vida constantemente ameaçada. Podemos imaginar que estas lutas, inevitáveis à
sobrevivência, possam, desde os tempos mais remotos, ter deixado marcas na mente do
homem primitivo. Os primeiros registros dessas marcas são citados por Cia (2001), sobre
evidências de Transtorno de Estresse pós-Traumático em soldados no século seis a.C.
Cazabat (2001) cita também registros de sofrimento psicológico após batalhas presentes na
Bíblia, no Talmud, e em clássicos da antiguidade, como a Ilíada.
O estudo do trauma sempre esteve presente na história de psicologia e, em especial,
da psicanálise (VIEIRA E VIEIRA NETO, 1998). As reações sintomáticas após uma situação
traumática passaram a constituir uma categoria diagnóstica a partir de 1836, quando era
conhecida como “Doença dos Trens”, por se desenvolverem geralmente após acidentes
ferroviários, chegando a ser consideradas como resultantes de um deslocamento do cérebro
no momento da colisão (MARLOWE, 2000). Daquela época até hoje, o quadro resultante de
situações traumáticas é estudado por mais de cem anos (McKEEVER; HUFF, 2003), e passou
por várias denominações diferentes, entre elas: “Fadiga de Batalha”, “Síndrome do Obus”,
“Neurose de Guerra”, “Neurose de Guerra em Tempos de Paz”, “Síndrome de DaCosta”,
“Choque pós-Guerra”, “Síndrome de Abuso Infantil”, “Neurose Traumática, Síndrome de
Campos de Concentração”, “Síndrome de Sobrevivência”, “Síndrome do Trauma do
Estupro”, “Síndrome de Estocolmo” (AMOR; PEREZ; GANCEDO, 2001). Provavelmente,
a maioria dos soldados combatentes na segunda Guerra Mundial, diagnosticados com
“Fadiga Operacional”, como era nomeado na época, apresentavam critérios diagnósticos para
PTSD, (ORR et al., 2000).
É interessante salientar que essas modificações das denominações acompanharam
diversos momentos históricos, dependendo de quem era o agressor ou a vítima principais.
Cazabat (2003) localiza historicamente algumas dessas denominações: No início do
século, com a preocupação com os prejuízos emocionais decorrentes de situações de abuso
sexual infantil, principalmente nos EUA, o quadro passou a ser denominado como “Síndrome
do Abuso Infantil”, por uma organização destinada à proteção de animais, que em função do
crescimento do número das vítimas, criou uma seção para proteção das crianças abusadas.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o surgimento de sintomas era mais frequente nos
soldados em combate, advindo daí as diversas alusões à guerra nos nomes da patologia, como
Coração de Soldado e Síndrome do Obus (peça de artilharia que provocava explosões). Até
mesmo Sigmund Freud (1919a/1995, Edição Eletrônica) utiliza os termos “Neurose de
Guerra” e “Neuroses de Guerra em Tempo de Paz”, para designar este quadro.
Após o conhecimento das atrocidades nazistas em relação aos judeus, no final da
Segunda Guerra Mundial, surgiu o nome de “Síndrome dos Campos de Concentração” para
descrever os sintomas desenvolvidos pelos sobreviventes. Com o advento do movimento
feminista no final da década de sessenta, e das denúncias de ataques de ordem sexual, o
quadro passou a ser chamado de “Síndrome do Trauma de Estupro”. A designação de
“Síndrome de Estocolmo” surgiu após um assalto à banco ocorrido naquela cidade, em 1973,
quando funcionários do banco e clientes foram tomados como reféns pelos assaltantes e
apresentaram diversas alterações psicológicas, inclusive do estabelecimento de laços afetivos
com os agressores. Todas essas denominações foram substituídas pela atual, de Transtorno
de Estresse pós-Traumático.
O trauma e suas consequências atravessam horizontalmente e verticalmente a
sociedade. Encontramos situações traumáticas em todas as sociedades e países, e vão desde
a situação de veteranos de guerra, de vítimas de tortura, de sequestros, situações onde pessoas
são tomadas como reféns, até as mais íntimas situações de violência doméstica, contra a
mulher e contra crianças e bebês (CAZABAT, 2001).
Apesar das situações traumáticas estarem presentes na história da humanidade, o
estudo do trauma parece sempre ser colocado em segundo plano, sofrendo de uma espécie de
“amnésia” (SCHESTATSKY et al. 2003) até que algum desastre, de impacto local ou
mundial, traga novamente à tona a discussão. Isso ocorreu após o atentado às Torres Gêmeas,
em 11 de setembro de 20013.
Na realidade brasileira, os profissionais de saúde não podem mais negar o contexto
social em que a população vive. Em nossa sociedade, onde a violência está tão difundida e
impregnante, o “psicanalista não pode mais trabalhar distraidamente e ignorar o impacto da
violência social que o rodeia. [...] se o espaço psicanalítico permite a introdução do contexto
social violento, isso concede ao indivíduo a oportunidade de revitalizar-se, de viver ao invés
de sobreviver” (GAMBER, 2000. p. 515). Para essa autora, é necessário repensar a teoria
psicanalítica de uma forma que leve ao compromisso e não à negação da realidade. A negação
da realidade em que o homem está inserido já é, em si, um possível sintoma traumático
(LOPEZ-IBOR, 2003)
Little (1995 citado por BENYAKAR, 2003) descreve um episódio ocorrido na
Sociedade Britânica de Psicanálise, durante a guerra. Em meio à reunião, iniciou-se um
violento bombardeio nazista em Londres. No meio do debate, Donald Winnicott ficou em pé
e disse: “Eu gostaria de assinalar que estão bombardeando”. Ninguém lhe prestou atenção
e a reunião continuou como se nada tivesse acontecido (p. [21]). Para Benyakar (2003), essa
postura põe em risco a própria razão de ser do profissional de saúde mental, em nossos dias:
“ajudar a preservar a subjetividade do homem em um mundo cada vez mais ameaçador” (p.
[21]).
Corrêa (2000) comenta as discussões desenvolvidas no Colóquio em homenagem a
N. Abraham e M. Torok, realizado em Paris, em Janeiro de 2000. Neste colóquio, foi
levantada a dificuldade dos analistas europeus em reconhecer o caráter traumático real do
holocausto. Para aqueles analistas, a capacidade traumatogênica do holocausto estaria
baseada na hipótese de que o holocausto seria uma reedição de alguma situação traumática
já conhecida no nível intrapsíquico (p. 12), ou seja, apenas a reedição de conflitos psíquicos
pré-existentes. Abraham e Torok, os homenageados do Colóquio, refutaram esta concepção,
salientando em seus trabalhos “a importância do traumatismo vivido, assinalando que sua
realidade poderia superar a mais terrível das fantasias” (p. 15). Talvez essa seja a capacidade

3 Alusão ao atentado terrorista que ocorreu em 11 de setembro de 2001, quando aviões de passageiros foram seqüestrados e lançados contra os edifícios conhecidos pelo
nome “Torres Gêmeas”, em Nova York, EUA, causando a morte de mais de cinco mil pessoas.
mais patogênica de uma situação traumática – a de provocar uma irrupção brusca do mundo
externo no mundo interno (BENYAKAR, 2003, p. 42).
Uma experiência traumática afeta não só o indivíduo, mas também aqueles que o
rodeiam e a própria sociedade.

A resposta do indivíduo exposto ao trauma afeta a todos os membros da


família, especialmente às crianças. O trauma é uma experiência tão intensa,
de tal modo potente, que os indivíduos que o vivenciam passam a encarar
de modo distinto o mundo e suas vivências posteriores serão modeladas
pela experiência traumática prévia (YEHUDA, 2002).

Uma experiência potencialmente traumática comum no Brasil é a situação de assalto,


e entre os assaltos, o assalto que é cometido contra as instituições bancárias. Dado o grande
número de assaltos a bancos que ocorrem no Brasil, em que funcionários e clientes são
agredidos, e gerentes de agências são constantemente sequestrados, inclusive com suas
famílias, para facilitar o ingresso nas agências, o trabalho bancário pode ser considerado um
fator de risco de desenvolvimento do PTSD para aqueles trabalhadores que vivem situações
de assalto ou sequestro.
Trabalhadores das profissões conhecidas como de médio ou alto risco, como policiais, bombeiros e empregados bancários são

frequentemente confrontados com incidentes críticos, como atos de violência, assaltos, desastres e confrontação com pessoas feridas ou

mortas (VAN DER PLOEG; DORRESTEIJN; KLEBER, 2003). O perigo não está presente apenas no local de
trabalho. “Passa a ser comum que os bancários sejam abordados e se tornem reféns no
caminho para o trabalho ou, até, em suas próprias casas, de forma que a insegurança é levada
a todos os lugares, família, pessoas do convívio cotidiano”, afirma Campos (1998).
Sato (1988, p. 121) menciona que o trabalho bancário está “extremamente
relacionado com o desgaste da saúde, quer por existir riscos de acidentes de trabalho, quer
por existir risco de assalto a bancos”. A partir de seu trabalho no DIENSAT (Departamento
Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde nos Ambientes de Trabalho), ela informa que
“vários trabalhadores (de bancos) procuravam o atendimento médico por crises após assalto”
(p. 121).
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O Transtorno de Estresse pós-Traumático
Othon VIEIRA NETO

1- SOBRE A ETIOLOGIA

A denominação de Transtorno de Estresse pós-Traumático é relativamente recente,


tendo sido instituída em 1980. Foi a nova designação do quadro conhecido anteriormente
como Neurose Traumática, como aparecia até a CID-9, e substituiu diversas outras
denominações anteriores que descreviam parcialmente os sintomas.
Neste trabalho, foi feita a opção pela designação constante da CID-10 (COOPER,
1997), de Transtorno de Estresse pós-Traumático, e não Neurose Traumática, como é mais
familiar para os leitores de orientação psicanalítica, pelas implicações jurídicas relacionadas
ao desenvolvimento dessa patologia, inclusive como um acidente de trabalho, quando a
situação traumática do assalto ocorre no local de trabalho, ou no percurso do funcionário
entre sua residência e o trabalho.
Pelo mesmo motivo, a descrição do quadro e dos critérios diagnósticos será baseada
na Classificação Internacional das Doenças – CID-10 (COOPER, 1997) e no Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais–DSM-IV (APA-AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1995), por serem instrumentos reconhecidos
internacionalmente, e que permitem o diagnóstico a partir de critérios de exclusão de
sintomas, quando mais de um diagnóstico é possível (SLADE; ANDREWS, 2002).
Assim, será utilizada para a categoria nosográfica a abreviação TEPT e não Neurose
traumática como é mais familiar aos leitores de referencial psicanalítico.
A Classificação Internacional de Doenças - CID-10 (COOPER, 1997, pág. 160), em
seu décimo volume, descreve o Transtorno de Estresse pós-Traumático da seguinte forma:

Surge como uma resposta tardia ou protraída a um evento ou situação


estressante (de curta ou longa duração), de uma natureza excepcionalmente
ameaçadora ou catastrófica, a qual provavelmente causa angustia invasiva
em quase todas as pessoas. Fatores predisponentes, tais como traços de
personalidade (por exemplo, compulsivos, astênicos) ou história prévia de
doença neurótica, podem baixar o limiar para o desenvolvimento da
síndrome ou agravar seu curso, mas não são necessários nem suficientes
para explicar sua ocorrência”. (grifo nosso)

Esta descrição sugere que qualquer pessoa está sujeita ao desenvolvimento deste
quadro. Uma vez que fatores predisponentes da personalidade não são necessários, a ênfase
para a compreensão da etiologia do transtorno recai sobre o evento estressante. Neste aspecto,
encontramos uma circularidade conceitual: desenvolvem os sintomas aqueles indivíduos que
passam por uma situação que “provavelmente causa angústia invasiva em quase todas as
pessoas” (COOPER, 1997, p.160).
Quais seriam as situações são essas que causam angustia invasiva e poderiam ser
consideradas como traumáticas? Pela experiência, é reconhecido que algumas pessoas
passam por situações terríveis e sobrevivem sem grandes conseqüências psicológicas, ao
passo que, para outras pessoas, um pequeno susto pode tornar-se traumático. Como localizar
o ponto de corte entre um fato, um evento desagradável da realidade externa e uma situação
traumática? Quais seriam os elementos da realidade que poderiam estar potencialmente
desenvolvendo o TEPT?
Vieira (2001, p.4) ajuda a responder essas questões ao focalizar a relação do
acontecimento do mundo externo com os aspectos econômicos do aparelho psíquico:

O mais desconcertante em um primeiro contato com o tema é a imprecisão,


a névoa que encobre o que é considerado traumático. Ora emerge como
algo que se define pela surpresa, pelo inesperado, como um choque súbito
para o qual o indivíduo não construiu um aparato protetor, ora pela
intensidade do choque que suplanta o aparato protetor, como frustrações
importantes, ora como uma somatória de eventos que se constituem como
traumáticos por seu valor cumulativo. O que parece estar em jogo é uma
relação entre aparato protetor e intensidade, que mantém atrelado o trauma
ao seu aspecto econômico.

A dificuldade de definição pode estar associada ao próprio conceito de trauma. Uma


experiência só pode ser considerada traumática a partir dos efeitos que ela produz na pessoa
que viveu a experiência. Assim, o trauma só pode ser identificado retrospectivamente
(FURST, 1967). Benyakar (2003) ilustra este problema com uma comparação com um
traumatismo físico: Tomemos com exemplo uma pessoa que, ao martelar um prego, bate
acidentalmente em seu dedo, causando uma fratura no osso de um dedo (um traumatismo).
Não se pode simplesmente propor uma lei geral estabelecendo que martelar pregos causa
traumatismos. O traumatismo será conseqüência de uma relação em que, se por um lado, as
presenças do martelo e da ação de martelar são indispensáveis, por outro, será preciso levar
em consideração a intensidade da martelada e a constituição física do indivíduo que sofre o
acidente. Por esse motivo, a descrição dada pela CID-10 (COOPER, 1997), a situação
traumática seria aquela que “causa angústia invasiva na maioria das pessoas” torna-se
demasiadamente vaga para descrever o surgimento do quadro em um indivíduo em particular.
Seria necessário, então, considerar outros fatores, e nesse sentido, Benyakar (2003)
sustenta a idéia de que o caráter traumático de um acontecimento depende da relação entre
três conceitos: Evento Factual, Vivência e Experiência.
Por Evento Factual pode-se pensar no fato em si, vindo da realidade e independente
do pensamento ou desejo do indivíduo, aquilo que costumeiramente é chamado de mundo
externo ou realidade. Já o conceito de Vivência remete exclusivamente ao que é conhecido
como de mundo interno. A Experiência, por sua vez, seria o resultado da articulação entre
os conceitos anteriores, do Evento Factual e da Vivência. Aqui se daria o caráter traumático
a um acontecimento. Uma experiência traumática ocorreria quando um evento factual
específico apresenta-se com intensidade capaz de romper a articulação entre um afeto
(mundo interno) e sua representação (vinda de percepções do mundo externo, da realidade),
conservando-se no psiquismo como um fato não elaborado ou elaborável (BENYAKAR,
2003).
Embora muitos eventos factuais podem ter conseqüências traumáticas, alguns
acontecimentos da realidade podem ter uma maior capacidade traumática, se tiver as
seguintes qualidades:

a) Ser inesperado.
b) Causar a interrupção de um processo normal.
c) Prejudicar o sentimento de confiança no outros.
d) Conter traços estranhos, não codificáveis ou interpretáveis.
e) Ameaçar a integridade física própria ou de pessoas significativas.
f) Distorcer ou destruir o lar.

Apesar destes elementos favorecem uma situação traumática, eles em si mesmos, não são suficientes. Lafont (1998, p.18)
confirma essa concepção defendendo a idéia de que, embora seja evidente que a carga traumática tende a aumentar com a magnitude
da situação, isto é, com a intensidade da ameaça, sua proximidade e o fator surpresa presentes, “não existe acontecimento traumático
absoluto”, e o desenvolvimento do TEPT não ocorreria, portanto, como se fosse um arco reflexo (UCHITEL, 2001), pois não se trata
de uma reação automática e inevitável a uma situação na qual está presente alguma ameaça à vida.
Por outro lado, a especificidade dos sintomas, a ansiedade e a excitação presentes neste quadro psicopatológico não
permitem a aceitação de que a vivência de uma situação traumática simplesmente trouxe à tona uma neurose pré-existente, como
alguns autores defendem (PORTIELES, 2002).

Freud (1925/1995, Edição Eletrônica), descrevia que, para que um acontecimento


tivesse um caráter traumático, era preciso que o elemento de perigo estivesse presente. Ao
discutir o motivo da presença da ansiedade em uma situação de perigo, embora nem toda
situação de perigo pudesse ser traumática:

Claramente, ela (a situação de perigo) consiste na estimativa do paciente


quanto à sua própria força em comparação com a magnitude do perigo e no
seu relacionamento de desamparo em face desse perigo — desamparo físico
se o perigo for real e desamparo psíquico se for instintual. Ao proceder
assim o indivíduo será orientado pelas experiências reais que tiver tido.
(Quer ele esteja certo ou errado em sua estimativa não importa quanto ao
resultado.) Denominemos uma situação de desamparo dessa espécie, que
ele realmente tenha experimentado, de situação traumática. Teremos então
bons motivos para distinguir uma situação traumática de uma situação de
perigo.
A situação que se converteria em traumática ocorreria, então, quando o perigo é maior
do que a capacidade do indivíduo para enfrenta-lo, a partir de suas experiências anteriores.
Além da presença de uma ameaça superior à força da pessoa ameaçada, para Freud
(1893b/1995, Edição Eletrônica), a possibilidade de um acontecimento ter um caráter
traumático inclui também a capacidade do aparelho psíquico em descarregar ou associar a
carga de afeto investida neste acontecimento:

Todo evento, toda impressão psíquica é revestida de uma determinada carga


de afeto (Affektbetrag) da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação
motora, seja pela atividade psíquica associativa. Se a pessoa é incapaz de
eliminar esse afeto excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a
lembrança da impressão passa a ter a importância de um trauma[...]
(FREUD, 1893b/1995, Edição Eletrônica).

A necessidade da reação motora aparece também em outras obras de Freud. Em uma nota de rodapé das traduções de
Charcot, ele associa ao trauma à incapacidade de reação motora, ao mesmo tempo em que aponta a situação traumática como algo
não terminado, para o psiquismo, que encontraria no sintoma sua continuidade:

Um trauma teria de ser definido como um acréscimo da excitação no


sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se
adequadamente pela reação motora. Um ataque histérico talvez deva
ser considerado como uma tentativa de completar a reação ao trauma.
(FREUD, 1892/1995, Edição Eletrônica).

Teríamos assim, para que haja uma experiência traumática de um evento factual, as duas condições: Que o evento
represente um perigo acima da força do indivíduo, inundando seu aparelho psíquico de excitação. Que essa excitação não possa ser
manejada por uma atividade associativa ou pela descarga motora. O trauma seria, então, resultado de um desequilíbrio da economia
psíquica.
Vieira (2001, p. 237), complementa essa idéia a partir de uma visão da economia psíquica. Para essa autora, a partir de
uma fonte ambiental de estimulação para o aparelho psíquico, há uma frágil fronteira entre uma situação ter conseqüência
traumática ou possibilitar o crescimento do indivíduo. Essa fronteira, que a autora chama de ponto de mutação, ocorre pela relação
econômica entre a estimulação e o trabalho do aparelho psíquico frente a ela:

Consideramos que seja indispensável manter a referência quantitativa. Algo


só é traumático pelo seu quantum. Dentro de um certo espectro, o efeito
traumático dependerá da forma como o aparelho psíquico trabalhar com o
fator quantitativo. Se o excedente de estimulação for de tal magnitude que
possa induzir a uma maior complexidade das relações no aparelho psíquico,
entre suas instâncias, com o corpo e com o ambiente, não teremos um efeito
traumático, mas um desenvolvimento, uma progressão. Se, por outro lado,
o excedente de estimulação induzir a uma menor complexidade nas
interações das estruturas, a rupturas de conexões e a obstrução ou
eliminação de funções organizadoras, teremos um estancamento do
desenvolvimento ou uma regressão e nisto consistiria o efeito traumático.

Talvez a melhor forma de pensarmos a relação entre a situação potencialmente traumática e o indivíduo que a vive seja o
modelo proposto por Freud (1917b/1995, Edição Eletrônica), de séries complementares. Em sua conferência XXIII da obra
“Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (1917b/1995, Edição Eletrônica), ele mostra, na forma de um diagrama, como a
psiconeurose depende de uma complementaridade dos fatores constitucionais com uma experiência circunstancial. A disposição da
libido, fixada a partir das experiências infantis proporcionaria o elemento constitucional, enquanto que a frustração da satisfação
libidinal, elemento circunstancial proporcionado pela realidade. Apenas um dos fatores não seria suficiente para o desenvolvimento
da neurose, e, na medida em que um dos fatores torna-se mais forte, é necessária uma quantidade menor do outro fator para atingir o
mesmo resultado.
Como seria a série complementar na neurose traumática? A situação traumática fornece o elemento circunstancial,
advindo da realidade na forma de uma ameaça à vida. Quais seriam os elementos constitucionais?
Abordando essa questão pelo aspecto filogenético, Freud levanta uma hipótese em seu trabalho “Neuroses de
Transferência - Uma síntese”, (1915/1987, p. 75) que, após os perigos da era glacial, a humanidade tornou-se angustiada, e o mundo,
anteriormente fonte de prazer, passou a ser um mundo ameaçador. A angústia real causada pelas ameaças do mundo fica acrescida
da libido insatisfeita, amplificando a situação ameaçadora.. No mesmo trabalho, Freud explica como esse processo ocorre nas
crianças: “o excesso relativo de libido”, insatisfeita, “transformar-se-ia em angústia real, diante de algo estranho, (assim) como
também tende em geral (a criança) a angustiar-se diante de qualquer coisa nova” (p. 75). Essa hipótese explicaria os dois elementos
da série complementar do TEPT, e teríamos então, o seguinte diagrama:
Libido Insatisfeita (Fator endógeno) + Situação de ameaça à vida ou, perigo maior que a capacidade do indivíduo (Fator
exógeno) = Transtorno de Estresse pós-Traumático.
Ferenczi (1919, p. 26) também pensa de mesma forma, mas localizando o excesso da libido no ego, criando uma estase da
libido narcísica. Assim, para ele:

Um indivíduo que desde a origem apresenta uma tendência narcísica


desenvolverá mais facilmente uma Neurose Traumática; mas ninguém lhe
está inteiramente imune, na medida em que o estágio narcísico é um ponto
de fixação importante do desenvolvimento libidinal de todo ser humano.

A esse elemento narcísico, Mingote et al., (2001) acrescentam a ausência de recursos de suporte social, como família,
amigos e intervenção profissional profilática. Para esses autores, a série complementar teria esse aspecto:

Situação Estressora + Vulnerabilidades pessoais


Incidência de TEPT = -----------------------------------------------------------------
Recursos de proteção + Autoestima + Suporte social

Apesar dessas contribuições, os fatores constitucionais necessários para que um acontecimento factual seja potencialmente
traumático e patogênico para um indivíduo ainda não estão devidamente elucidados e essa questão segue sendo discutida
(SCHESTATSKY et al. 2003, MCKEEVER; HUFF, 2003), embora alguns outros elementos já tenham sido identificados.

A partir de pesquisas estatísticas com indivíduos que desenvolveram o TEPT, foram


identificados fatores que favorecem o surgimento da patologia. Cia (2001) elenca alguns
destes fatores: Depressão ou ansiedade pré-existentes, exposição anterior a outras situações
traumáticas, separação ou morte precoce dos pais, histórico de abusos físicos, e inclusive
adversidades da vida adulta, como dívidas, enfermidade física no momento do trauma e
divórcio recente. Ozer et al. (2003) acrescentam a estes fatores a existência de graves
psicopatologias em membros da família do indivíduo.
Outro fator estatisticamente pesquisado que facilitaria o desenvolvimento do TEPT é a atitude mental durante a situação
traumática. Em mulheres vítimas de violência sexual e não sexual, Valentiner et al. (1996), verificaram que aquelas mulheres que, de
alguma forma resistiram mentalmente ao ataque, mesmo que tivessem um comportamento passivo, não desenvolviam os sintomas.
Ao contrário, as pessoas que se abandonaram à situação, com um sentimento de ser um “objeto” nas mãos dos agressores,
desenvolveram mais sintomas. Podemos pensar neste processo a partir do que Kehl (2000, p. 138), afirma, quando comenta que “é a
condição de completa passividade do sujeito (que no caso nem deveria ser chamado de ‘sujeito’), diante de um acontecimento, que o
torna irrepresentável para este sujeito”. Aquilo que está fora do alcance da representação é a catástrofe, como ela diz, ou trauma.
Da mesma forma, estabelecer um plano de ação que possa transformar a passividade em atividade (VALENTINER et al.,
1996) e compreender o sentido da agressão (EHLERS; MAERCKER; BOOS, 2000) parecem reduzir o risco de TEPT. Esses autores
verificaram que, entre os prisioneiros políticos que eram torturados, o índice de desenvolvimento do Transtorno de Estresse pós-
Traumático era pequeno. Eles atribuem esse baixo índice ao fato de que, além da prisão e possível tortura serem fatores presumíveis
para essas pessoas, o comprometimento com a causa política defendida possa ser o elemento protetor da saúde mental do indivíduo
nessa situação. Assim, para essas pessoas, há um sentido, mesmo que hediondo, na tortura sofrida. Na população civil submetida a
atos violentos, é comum a busca desse sentido. Para a pergunta feita constantemente por vítimas de algum tipo de violência: “Porque
foi acontecer logo comigo?”, não há respostas.

2- SINTOMAS E PREVALÊNCIA

• OS SINTOMAS

Segundo a Classificação Internacional das Doenças (CID), os principais sintomas do Transtorno de Estresse pós-
Traumático (COOPER,1997) são:

Aspectos típicos incluem episódios de repetidas revivescências do trauma


sob a forma de memórias intrusas (“flashbacks”), sonhos ou pesadelos;
ocorrendo contra o fundo persistente de uma sensação de entorpecimento e
embotamento emocional, afastamento de outras pessoas, falta de
responsividade ao ambiente, anedonia, e evitação de atividades e situações
recordativas do trauma. Há usualmente um estado de hiperexcitação
autonômica com hipervigilância, uma reação de susto aumentada e insônia.
Ansiedade e depressão estão comumente associados aos sintomas e sinais
acima e ideação suicida não é infreqüente” (p. 160-1).

Estes sintomas nos fazem pensar sobre o sofrimento, a restrição da liberdade pessoal,
amorosa e social, que esta doença produz. No caso de pessoas traumatizadas em seu ambiente de
trabalho, possivelmente a evitação dos estímulos que estejam associados ao trauma sejam
inviabilizadas, o que pode produzir aumento na ansiedade.
Para melhor visualização, os sintomas característicos do TEPT serão apresentados na forma
de um quadro, (Quadro 1):

Quadro 1 – Sintomas e critérios diagnósticos para o transtorno de Estresse pós-


Traumático4 :

Critérios Diagnósticos para F43.1 - 309.81 Transtorno de Estresse


Pós-Traumático

A. Exposição a um evento traumático no qual os seguintes quesitos


estiveram presentes:
(1) a pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais
eventos que envolveram morte ou grave ferimento, reais ou ameaçados,
ou uma ameaça à integridade física, própria ou de outros;
(2) a resposta da pessoa envolveu intenso medo, impotência ou horror.
Nota: Em crianças, isto pode ser expressado por um comportamento
desorganizado ou agitado
B. O evento traumático é persistentemente revivido em uma (ou
mais) das seguintes maneiras:
(1) recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo
imagens, pensamentos ou percepções.
Nota: Em crianças pequenas, podem ocorrer jogos repetitivos, com
expressão de temas ou aspectos do trauma;
(2) sonhos aflitivos e recorrentes com o evento.
Nota: Em crianças podem ocorrer sonhos amedrontadores sem um
conteúdo identificável;
(3) agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo
novamente (inclui um sentimento de revivência da experiência, ilusões,
alucinações e episódios de flashbacks dissociativos, inclusive aqueles
que ocorrem ao despertar ou quando intoxicado).
Nota: Em crianças pequenas pode ocorrer reencenação específica do
trauma;

4 Reproduzido do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais-DSM_IV (APA, 1995, Edição Eletrônica)
(4) sofrimento psicológico intenso quando da exposição a indícios
internos ou externos que simbolizam ou lembram algum aspecto do
evento traumático;
(5) reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos
que simbolizam ou lembram algum aspecto do evento traumático.

C. Esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e


entorpecimento da responsividade geral (não presente antes do
trauma), indicados por três (ou mais) dos seguintes quesitos:
(1) esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas
associadas com o trauma;
(2) esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem
recordações do trauma;
(3) incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma;
(4) redução acentuada do interesse ou da participação em atividades
significativas;
(5) sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras
pessoas;
(6) faixa de afeto restrita (por ex., incapacidade de ter sentimentos de
carinho);
(7) sentimento de um futuro abreviado (por ex., não espera ter uma
carreira profissional, casamento, filhos ou um período normal de vida).
D. Sintomas persistentes de excitabilidade aumentada (não presentes
antes do trauma), indicados por dois (ou mais) dos seguintes
quesitos:
(1) dificuldade em conciliar ou manter o sono
(2) irritabilidade ou surtos de raiva
(3) dificuldade em concentrar-se
(4) hipervigilância
(5) resposta de sobressalto exagerada.
E. A duração da perturbação (sintomas dos Critérios B, C e D) é
superior a 1 mês.
F. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou
prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas
importantes da vida do indivíduo.
Especificar se:
Agudo: se a duração dos sintomas é inferior a 3 meses.
Crônico: se a duração dos sintomas é de 3 meses ou mais.
Especificar se:
Com Início Tardio: se o início dos sintomas ocorre pelo menos 6 meses
após o estressor.

Em relação ao período do surgimento dos sintomas mencionados no quadro, a CID-


10 (COOPER, 1997) esclarece que pode variar de algumas semanas a meses após o evento
traumático. Este dado é confirmado por pesquisas com sobreviventes de incêndios, em que
Perry et al. (2003) encontraram uma incidência de 35% das pessoas da amostra investigada,
que desenvolveram TEPT, dois meses após a ocorrência do incêndio. A mesma população,
avaliada seis meses depois, apresentava índices de 40%. Este número subiu para 45.2% após
um ano. Em outra pesquisa, realizada com membros das forças armadas da Espanha expostos
a atentados terroristas, Amor, Perez e Gancedo (2001), encontraram um período médio de
latência entre a situação traumática e o surgimento do quadro de quatro meses e meio,
variando entre um desenvolvimento imediato, até quarenta e dois meses após a ocorrência.
Sobre o período de duração dos sintomas, a CID (COOPER, 1997, p. 161) alerta ainda
que: “Em uma pequena proporção dos casos, o transtorno pode apresentar um curso crônico
por muitos anos e uma transição para uma alteração permanente da personalidade”.
O período após o qual o TEPT é considerado crônico é a partir de três meses, um
período mais curto que outras desordens psiquiátricas (CARLIER, VOERMAN; GERSONS,
2000). Este aspecto é importante, pois muitos sintomas podem ser incorporados pelo
indivíduo de forma egosintônica. Os aspectos culturais presentes na sociedade em relação
ao medo, à sensação de impunidade atribuída aos criminosos e a ineficiência das políticas de
segurança podem validar alguns sintomas, levando a uma postura permanente de clausura e
evitação, sem que isto seja questionado, nem pelo próprio indivíduo, nem por seus amigos
ou familiares. O sintomas seriam, então, validados socialmente. Um exemplo dessa
validação social é o caso de uma paciente, vítima de seqüestro-relâmpago, que, ao ser
informada sobre o caráter sintomático das alterações que apresentava, argumentou: “Mas não
sou eu que estou doente, o mundo é que é perigoso”.
O tratamento socialmente dado a uma pessoa traumatizada é que seu sofrimento e as

alterações que está apresentando são “normais”, e que passarão com o tempo. Aqui vemos

um equívoco freqüente entre os conceitos de “normal” e “comum”. Segundo o dicionário

Aurélio (FERREIRA, 2001, Edição Eletrônica), o verbete normal significa “o que é

segundo a norma, habitual, natural”. Em saúde este conceito é utilizado com o sentido de

ausência de doença, como uma condição saudável. Já o conceito comum significa o

“pertencente a todos ou muitos, vulgar, trivial” (Idem, op. Cit.). Portanto, o

desenvolvimento de sintomas após uma situação traumática pode ser considerado como

“comum”, mas não podemos considerá-lo “normal”. A freqüência de um fenômeno não

significa sua normalidade, mas apenas sua previsibilidade (VIEIRA e VIEIRA NETO,

1998). Pelo contrário, o trauma pode ser considerado um “corpo estranho” ao psiquismo, da

mesma forma que a violência é um corpo estranho à sociedade, algo que impede o curso

natural de um processo (COSTA, 1984/1986, p.16).

Em uma sociedade violenta como a brasileira, a presenças de sintomas em pessoas


próximas pode ser muito comum, e a própria constância do evento legitima e “normaliza” o
fenômeno. Benyakar (2003) nos ajuda a compreender o impacto de um ambiente violento
nos indivíduos. O ambiente disruptivo provoca uma distorção na compreensão da realidade.
“...À medida que a ameaça é difusa, anônima e impune, cada indivíduo ao lado pode ser um
agressor em potencial, e isso impede que a pessoa se defenda ou prepare-se para um perigo”
(p. 64). Se a fonte de perigo não pode ser identificada, ela se generaliza, e passa a fazer parte
da cultura. Este autor aponta como uma das principais características do “ambiente
disruptivo” a inversão de sentido das instituições sociais, que tornam-se incapazes de cumprir
as funções para as quais foram criadas, principalmente a de garantir a segurança da
população.
Quando Hans Selye formulou sua teoria sobre o Estresse, identificou uma primeira
fase, chamada de Reação de Alarme, durante a qual o organismo reconhece o estressor e
começa ativando o sistema neuroendócrino. A função dessa fase seria de preparação do
organismo para uma ação, seja ela de fuga ou luta, mas que possa garantir a sobrevivência.
Essas alterações teriam a função de adaptação do indivíduo a uma nova realidade. Mas, como
é possível se adaptar a um ambiente disruptivo?
O próprio Benyakar (2003, p.66) responde parcialmente a esta questão: “Integradas
às cenas cotidianas, as ameaças deixam de ser reconhecidas como provenientes do mundo
externo e se internalizam. Uma vez incorporadas como parte da própria subjetividade,
inundam e modelam a vida inteira”. Com isto, as respostas adaptativas de alarme levam os
indivíduos a redesenhar sua vida inteira, evitando as situações perigosas. Mas em um
ambiente disruptivo, estamos cercados por novos fatos que atualizam e fortalecem a ameaça.
“Geralmente, os esforços adaptativos, desgastantes e sabidamente inúteis conduzem ao
recolhimento gradual das pessoas em suas próprias casas, ao isolamento social, a condutas
de auto e hetero-agressão ou, inclusive, a novas violências” (BENYAKAR, 2003, p.67).
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-IV
(American Psychiatric Association, 1995, Edição Eletrônica), o quadro de Transtorno de
Estresse pós-Traumático é descrito como:

A característica essencial do Transtorno de Estresse pós-Traumático é o


desenvolvimento de sintomas característicos após a exposição a um
extremo estressor traumático, envolvendo a experiência pessoal direta de
um evento real ou ameaçador que envolve morte, sério ferimento ou outra
ameaça à própria integridade física; ter testemunhado um evento que
envolve morte, ferimentos ou ameaça à integridade física de outra pessoa;
ou o conhecimento sobre morte violenta ou inesperada, ferimento sério ou
ameaça de morte ou ferimento experimentados por um membro da família
ou outra pessoa em estreita associação com o indivíduo.

Com esta descrição, o DSM-IV evita a definição circular apresentada na CID-10


(COOPER, 1997), conforme discutido anteriormente, delimitando a natureza da situação
possivelmente traumatizante. De uma forma resumida, o estressor é visto como uma situação
em que ocorre o risco de morte ou ferimento, a si mesmo ou a outros, sem mencionar a
“anormalidade do evento” (SCHESTATSKY et al., 2003). Até mesmo situações de
emergência corporal ou mental, como infarto do miocárdio, parada cardíaca ou o surgimento
de uma esquizofrenia paranóide, por serem situações que apresentam uma ameaça à vida,
podem provocar o aparecimento do TEPT (MINGOTE et al., 2001).
Existem, no entanto, situações potencialmente traumáticas que não envolvem um
risco de morte. Estas situações também podem trazer sofrimento psíquico e desenvolvimento
de sintomas. Por este motivo, alguns autores estabeleceram uma classificação dos tipos de
trauma e suas possíveis conseqüências psicológicas. Para Terr (1991, citado por CIA, 2001),
haveria dois tipos básicos de situação traumática. O trauma de Tipo I relaciona-se com o tipo
de evento estudado neste trabalho. São traumas de pequena duração, inesperados e eventuais,
como geralmente são os assaltos ou seqüestros com finalidade de assalto a agências
bancárias, e que freqüentemente favorecem o desenvolvimento de TEPT. O trauma de Tipo
II seria provocado por eventos de maior duração, previsíveis e repetidos. Este tipo de trauma
favorece o desenvolvimento de Transtorno Dissociativo (RODRIGUES, 2003).
Para melhor discriminação das diferenças, os tipos de traumas serão apresentados no
Quadro 2 5:

Quadro 2- Tipos de Eventos Potencialmente Traumáticos

TRAUMAS TIPO I
Acontecimentos repentinos, perigosos e angustiantes, pouco freqüentes e de
duração limitada, como desastres de origem natural, acidentes automobilísticos,
assaltos, sequestros-relâmpago, estupros.
Os eventos são recordados em detalhe e criam lembranças bem vivas e completas.
Geralmente oferecem uma rápida recuperação, mas podem conduzir ao
desenvolvimento de TEPT, com idéias intrusivas, evitação e hiperexcitação.

TRAUMAS TIPO II
Acontecimentos variados, múltiplos, crônicos, de longa duração, são repetitivos
e previsíveis. Geralmente são causados intencionalmente por outras pessoas,
como abuso físico ou sexual contínuo, maus-tratos, tortura, seqüestro prolongado,
assédio moral.
A vítima se sente incapaz de defender-se.

5 Adaptado do livro Trastorno de estrés Postraumático. CIA, A. H. Buenos Aires: Imaginador, 2001. p. 57-58).
As lembranças são geralmente imprecisas, confusas, isoladas e fragmentadas,
devido à dissociação. Com a repetição da situação traumática, a dissociação pode
se tornar uma forma de tornar a experiência menos dolorosa e angustiante.
Traz alterações na forma da pessoa ver a si mesma e ao mundo, devido aos
sentimentos de vergonha, desvalorização e culpa.
As tentativas de defesa podem envolver, respostas dissociativas, negação e
insensibilidade ou anestesia afetiva, isolamento e consumo de drogas.

Uma diferença importante entre os dois tipos, é que o trauma do Tipo II, embora
extremamente violento e angustiante, geralmente não é acompanhado do medo da morte.
Uma pessoa maltratada ou sexualmente violentada por um conhecido ou familiar, apesar do
horror que está vivenciando, sabe que não será morta pelo agressor.
Nesse sentido, O DSM-IV (APA, 1995, Edição Eletrônica) ainda descreve como
respostas aos eventos traumáticos necessários para o diagnóstico de TEPT, o surgimento de
“intenso medo, impotência ou horror”, além de uma rememoração persistente da situação
traumática e tentativa de esquiva de estímulos que possam se associar com o trauma.
Essas lembranças são sentidas como “espontâneas, involuntárias, ao surgirem não são
facilmente interrompidas, parecendo ter ‘vida própria’” (CÂMARA FILHO; SOUGEY,
2001). Na opinião destes autores, as sensações de reviver o acontecimento ou flashbacks
seriam os sintomas mais característicos do TEPT.
Sobre a possibilidade de desenvolvimento de TEPT apenas por testemunhar um fato
violento, em pesquisa realizada em Nova York após os atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001, foram encontrados 44% de pessoas com sintomas de TEPT na população,
que assistiu os eventos pela televisão (SCHUSTER et al., 2001).
Ainda no DSM-IV (APA, 1995, Edição Eletrônica), encontramos o seguinte critério
diagnóstico:

O quadro sintomático completo deve estar presente por mais de um mês e


a perturbação deve causar sofrimento ou prejuízo clinicamente
significativo no funcionamento social, ocupacional ou outras áreas
importantes da vida do indivíduo.
Embora a maioria das pessoas tenha um restabelecimento sem nenhuma intervenção
profissional, pesquisas com uma amostra de 205 mulheres adultas que sofreram agressões
sexuais e não sexuais, verificaram que mais de um terço da população investigada mantinha
sintomas três meses após o ataque, e que uma parcela substancial poderia desenvolver graves
problemas a menos que uma intervenção efetiva fosse providenciada (VALENTINER et al.,
1996).
Além dos sintomas descritos no DSM-IV (APA, 1995) e na CID-10 (COOPER,
1997), outros trabalhos recentes mostraram a existência de outras conseqüências de situações
traumáticas, que Mingote et al. (2001) designaram como “sintomas secundários” presentes
no TEPT, mas não mencionados no DSM-IV. Estes sintomas podem aparecer como
alterações na percepção do tempo presente e passado, antecipações catastróficas e
premonições em “espiral negativa”. Sobre a dificuldade de localização temporal que as
vítimas de traumas apresentam, Câmara Filho e Sougey (2001, www.scielo.br) mencionam
que,

Mesmo estando o perigo afastado e confinado ao passado, o indivíduo pós-


traumatizado continuamente revive o ocorrido, vivenciando-o como
experiência contemporânea em vez de aceitá-lo como algo pertencente ao
passado. Ele fica incapaz de retomar o curso de sua vida porquanto o trauma
constantemente está a interrompê-la: é como se o tempo parasse no
momento do trauma.

Freud (1917a/1995, Edição Eletrônica) descrevia esta dificuldade em relação ao


passado e ao futuro como “fixação ao trauma”, argumentando que toda neurose inclui uma
fixação em uma fase do passado. “É como se esses pacientes não tivessem findado com a
situação traumática, como se ainda tivessem enfrentando-a como tarefa imediata ainda não
executada”. Isso também descreve um dos sintomas constantes do DSM-IV (APA, 1995), o
sentimento de futuro abreviado. A pessoa traumatizada tem dificuldades em fazer
planejamentos em longo prazo, ou mesmo de manter os planos de vida e trabalho previamente
existentes, gerando constantemente conflitos entre a pessoa traumatizada e sua família.
Os sentimentos de vergonha e da raiva após situações traumáticas também são
comuns e podem desempenhar um papel importante na manutenção do quadro. Usando uma
amostra de 116 mulheres vítimas de diversos crimes que envolviam algum tipo de violência,
Andrews et al. (2000), concluíram que a vergonha e humilhação (geralmente pela impotência
diante da situação) e da raiva (contra si mesmo e contra outros) impediam um relaxamento
necessário para a elaboração da situação traumática. Também foi encontrada uma resposta
ao trauma na forma de culpa, como ruminações obsessivas por ter sobrevivido ou na forma
de autorecriminações, geralmente pouco realistas, por não ter, de alguma forma, evitado a
situação traumática. As pessoas traumatizadas recriminam-se também por reações que
consideravam pouco adequadas durante a situação traumática (MINGOTE et al., 2001). O
sentimento de culpa estava presente na CID-9 como sintoma constitutivo da Neurose
Traumática, sendo excluído na CID-10 enquanto critério diagnóstico para o Transtorno de
Estresse pós-Traumático.
Podemos relacionar o aparecimento destes sentimentos com o que Shatan (2001)
descreve como dupla ferida: psíquica e social. Um sujeito que é vitimizado por determinada
situação sente-se, mais tarde, atacado pela sociedade mediante atitudes de incompreensão,
censura ou reprovação. Este autor ainda levanta a importância das perdas na formação dos
sintomas. Ele afirma que toda situação traumática envolve uma perda. Pode tratar-se de uma
perda material, da perda da própria dignidade pessoal, perda da confiança em outras pessoas
e na perda das crenças e ideais de toda a vida. Segundo este autor, estas perdas causam “um
estado de congelamento em que parecem ter experimentado uma espécie de anestesia
emocional”. Talvez este fator possa servir de indicativo para a compreensão do fato de que
pesquisas encontram taxas maiores de TEPT quando o evento traumático é provocado pelo
homem, em comparação com as conseqüências de desastres naturais.
Outra alteração importante encontrada em pessoas que viveram situações traumáticas
é a alteração nas crenças a respeito de si mesmo, das pessoas e do mundo. Cia (2001) elenca
algumas dessas alterações, mais comuns, conforme o quadro abaixo (Quadro 3):

Quadro 3: Alterações nas crenças encontradas após uma experiência traumática 6:

CRENÇAS PRÉ-TRAUMA CRENÇAS PÓS-TRAUMA

6 Adaptado de Cia. A.H. Buenos Aires: Imaginador, 2001. p. 62.


• Invulnerabilidade: Isso não pode • Preocupação recorrente: Vai voltar a
acontecer comigo. acontecer.
• Confiança em si mesmo: Me sinto • Não valho nada, não vou conseguir
bem. Sei que posso conseguir o que o que me proponho.
quero.
• Confiança no futuro: Vou ser feliz • Nunca vou conseguir estar bem.
no futuro.
• Eu posso. • Não consigo nada. Não vou poder.
Não importa o que eu faça, não vou
poder controlar nada
• Sensação que o mundo tem um • Não encontro sentido em nada.
sentido.
• Acreditar que as pessoas obtêm o • O mundo é injusto
que merecem.
• Confiar nas pessoas. • Desconfio de tudo e de todos.
• Sentir que o mundo é um lugar • Sinto-me inseguro de todas as
seguro. formas.

Outro fator importante que deve ser levado em consideração na relação do indivíduo
traumatizado com seu meio é de que as pessoas reagem defensivamente ao relato de uma
experiência traumática, tendendo a, de alguma forma, culpar a vítima. Para manter uma falsa
sensação de segurança, as pessoas reagem de forma a pensar que “Isso não vai acontecer
comigo, pois sou mais cuidadoso que ele” (BENIAKAR, 2003). Esta postura, além de culpar
uma pessoa que já se sente culpada, é puramente defensiva, e irracional. Em uma sociedade
violenta, todos estão sujeitos a sofrer ações criminosas, por mais que tente negar isto. Afinal,
como dizia Freud (1925/1995, Edição Eletrônica) “O viajante surpreendido pela noite pode
cantar alto no escuro para negar seus próprios temores; mas, apesar de tudo isto, não
enxergará mais que um palmo adiante do nariz”.
Indivíduos traumatizados apresentam também uma tendência a apresentar falsas
memórias em quantidade maior que entre indivíduos não traumatizados (ZOELLNER et al.,
2000), respondem de forma mais intensa a estímulos visuais e sonoros (ORR et al., 2000), e
alguns pacientes buscam uma re-exposição compulsiva a novos eventos potencialmente
traumáticos (CÂMARA FILHO; SOUGEY, 2001).
Outras alterações, além das mencionadas, também podem estar presentes. Glina et al.
(2001) mencionam o caso de um motorista de ônibus que, após ter sofrido o último de cinco
assaltos à mão armada, ficou “duas ou três noites sem dormir, com suores intensos e as pernas
tremendo”. No mesmo trabalho é citado o caso de um gerente de banco que, após sofrer um
assalto, passou a apresentar cansaço, “moleza”, mal-estar e palidez. O medo intenso da
repetição da situação fez inclusive com que esta pessoa deixasse crescer a barba e o bigode,
como um “disfarce” para que não fosse reconhecido pelos assaltantes.
Abuso de substância, comportamento violento e prejuízos no relacionamento
interpessoal também são comuns no TEPT, embora não sejam considerados sintomas formais
(CARLIER; VOERMAN; GERSONS, 2000).
Embora seja impossível prever as reações humanas diante de qualquer situação, a partir
de estudos estatísticos, Horowitz, Wilner e Alvarez (1979) descrevem cinco fases
características de respostas aos traumas, com um possível estado final de resolução mais ou
menos completo, que pode incluir várias alterações permanentes na estrutura de
personalidade. Tal curso é ainda influenciado pelo tipo de estressor:

1- Fase de choque: A resposta imediata a um evento traumático pode ir desde o alarme


agudo (uma crise de medo) até a incapacidade perplexa de assimilar o significado da
experiência. Ferenczi (1919) comenta este choque inicial da seguinte forma: “os
sintomas neuróticos só se desenvolvem após o desaparecimento do estado passageiro
de confusão mental, quando os sujeitos abalados revivem a lembrança da situação
perigosa” (p. 18). Ele compara esta fase à situação de uma mãe que, após salvar seu
filho de um perigo com o maior sangue-frio, desaba emocionalmente após lembrar o
perigo pelo qual o filho passou.
2- Fase da negação: Após o choque, algumas pessoas podem experimentar uma negação
que dura de semanas a meses, antes de manifestarem respostas emocionais ao trauma.
Os sintomas incluem amnésia, torpor, distúrbios no sono, sintomas somáticos,
hiperatividade e retraimento. Benyakar (2003), refere-se a este tipo de reação que
algumas pessoas reagem como se “nada tivesse acontecido”, mas que desenvolvem
sintomas sem relacioná-los com a situação traumática pela qual passaram.
3- Fase intrusiva: Algumas pessoas não atravessam a fase de negação. Experimentam um
período de recordação espontânea do trauma. Quando a fase de negação é retardada, a
emergência súbita de sintomas da fase intrusiva (por ex., resposta de alarme exagerada,
pensamentos intrusivos, preocupação, afeto instável, estado de excitação crônica,
distúrbios no sono e nos sonhos) pode levar a uma ansiedade considerável e a um medo
de “ficar louco”. A maioria dos indivíduos responde bem à afirmação de que estas
experiências são normais e transitórias.
4- Fase de elaboração do trauma: Durante esta fase, o indivíduo examina significados do
evento traumático, outros eventos associados e memórias, lamenta as perdas e
ferimentos, e considera novos planos para lidar com o futuro.
5- Fase de aceitação: A fase de aceitação é alcançada quando a pessoa reconhece o impacto
do trauma sobre seu psiquismo, exibe planos esperançosos para o futuro e reassume o
trabalho e atividades de lazer.

Mas, se em decorrência de maior vulnerabilidade pessoal ocorrer um desequilíbrio

psíquico a ponto do indivíduo não alcançar a fase de aceitação, dá-se uma situação de

conflito que, ao ser expressa através de sintomas, caracterizaria o TEPT.

Outros autores identificaram fases com características semelhantes em vítimas de


situações traumáticas em que uma coletividade é atingida.
Ursano, Fullerton e Norwood (1996), a partir de estudos realizados pelo governo
americano, indicam quatro fases após um desastre: a primeira, que ocorre logo após o
desastre, consiste no surgimento de fortes emoções, sentimento de descrença, embotamento
afetivo, medo e confusão. Estas reações seriam respostas esperadas após um evento anormal.
Os familiares, amigos, vizinhos, oferecem um sistema de suporte que é o mais utilizado. A
segunda fase, chamada por eles de fase de adaptação, começa entre uma semana e alguns
meses após o desastre. Nesta fase de adaptação, os sintomas de evitação se alternam com os
sintomas de lembranças intrusivas. Os sintomas intrusivos aparecem primeiro, e consistem
em pensamentos e sentimentos espontâneos, hipervigilância, insônia e pesadelos. Esta fase é
freqüentemente acompanhada de aumento de consultas médicas, com queixas de fadiga,
vertigens, dores de cabeça e náuseas. Irritabilidade, apatia e isolamento social também estão
presentes.
A terceira fase surge após cerca de um ano do desastre, e é acompanhada de
desapontamento e ressentimento, quando as expectativas de auxílio e restauração não são
atendidas. Neste período, o senso de coletividade fica prejudicado diante das preocupações
individuais. A fase final, de reconstrução, pode durar anos. É quando a pessoa reconstrói sua
vida, e a recuperação do desastre envolve a resolução dos sintomas iniciais, através de uma
reavaliação do evento, integrando-o dentro de um novo conceito individual. Embora este
esquema refira-se a desastres naturais, podemos pensar sua aplicabilidade em relação a
situações traumáticas de uma forma geral.
Os trabalhos mencionados mostram que o Transtorno de Estresse pós-Traumático
pode trazer diversas formas de alterações que provocam sofrimento psíquico, além dos
mencionados na CID-10 (COOPER, 1997) e DSM-IV (APA, 1995). A constante, nestes
casos, é o surgimento do sintoma após a “exposição a um extremo estressor traumático”.
Entretanto, a relação entre características pessoais prévias e experiência traumática
não está clara, e há divergências entre quais características seriam mais patogênicas
anteriormente ao trauma.
Por outro lado, não podemos simplesmente afirmar que a situação traumática
desencadeia o aparecimento de sintomas de uma neurose pré-existente. Os sintomas descritos
anteriormente são específicos do quadro estudado, não pertencendo a nenhuma outra
categoria nosográfica.

• A prevalência do Transtorno de Estresse pós-Traumático

Conforme Kessler et al. (1995), entre os americanos, 60,7% dos homens e 51,2% das
mulheres viveram algum tipo de situação traumática em suas vidas, tais como sofrer
ferimentos físicos ou testemunhar alguém sendo ferido ou morto; envolvimento em incêndio,
inundação ou desastre natural; envolvimento em algum acidente com ameaça à vida; ou
exposição a combate. A prevalência de Transtorno de Estresse pós-Traumático nessas
pessoas foi de 10,4 % nas mulheres, e 5% nos homens.
Nesta pesquisa, realizada por Kessler et al. (1995), com uma população de mais de
cinco mil pessoas, com idades entre 15 e 54 anos, foram encontrados dados surpreendentes
da incidência de situações possivelmente traumáticas, e desenvolvimento do quadro de
Transtorno de Estresse pós-Traumático (Ver Quadro 4).
Quadro 4: Índice de experiências possivelmente traumáticas e desenvolvimento de TEPT.7
Mulheres (%) Homens (%)
Trauma Experiência Desenvolvimento Experiência Desenvolvimento
Abuso físico 5 49 3 22
Estupro 9 46 1 65
Ameaça com 7 33 19 2
arma
Combate 0 0 6 39
Molestação 12 27 3 12
Ataque físico 7 21 11 2
Choque 12 10 11 4
Acidente 14 9 25 6
Testemunhar 15 7 36 6
acontecimento
violento
Conforme os dados mostram, e outros autores confirmam (MAES et al.1998,
YEHUDA,1998), os índices encontrados de TEPT variam de acordo com o gênero e com o
fator estressor. Mingote et al. (2001), advertem que o tipo do estressor pode condicionar
variações no curso da enfermidade, devendo receber atenção especial. Os estressores
causados pelos homens parecem apresentar uma prevalência maior que os de origem natural.
Essa discrepância pode ser verificada através de uma comparação: enquanto 57% das
mulheres vítimas de violência sexual desenvolvem TEPT, em erupções vulcânicas, nas quais
a ameaça à vida também é muito intensa, e as perdas materiais são devastadoras, estudos
mostram que apenas 3.6% da população exposta desenvolveram TEPT (MINGOTE et al.,
2001).
Mesmo entre os estressores causados pela violência de origem humana, ocorrem
diferenças. Mueser et al. (1998) encontraram maior taxa de TEPT em crianças quando o
estressor foi o abuso sexual, tanto para meninas como para meninos. Em mulheres adultas,
os maiores estressores encontrados foram o ataque sexual ou físico sem armas e testemunho
de morte ou grave ferimento; entre os homens, o assassinato de amigos ou parentes ou sofrer

7 Extraído de KESSLER, R.C. et al. Posttraumatic stress disorder in the National Comorbidity Survey.
Archives of General Psychiatry. v.52, n.12. 1995
um ataque com armas.
Yehuda, McFarlane e Shalev (1998) citam estudos nos quais foram encontrados
índices menores que os de Kessler et al. (1995), tanto para a vivência de situações
traumáticas, quanto para o desenvolvimento de TEPT. Este estudo, realizado com uma
população fortuita de 1007 jovens, revelou que apenas 39% foram expostos a algum estressor
e destes, 23.6% desenvolveram TEPT.
Em outra pesquisa, com prisioneiros de guerra, o índice de prevalência foi de 47-
50%. Em civis expostos a ataques na Irlanda do Norte, foram encontradas taxas de 94%
(CURRAN; MILLER, 2001).
Maes et al. (1998) citam pesquisa onde foi encontrada taxa de 16% de TEPT em
sobreviventes de infarto do miocárdio. Em vítimas de acidentes de trânsito, a taxa varia entre
10 a 39%. Em vítimas de violência não sexual, 70% apresentam sintomas do TEPT nos
primeiros três meses após a situação violenta e 20% mantiveram os sintomas após este
período (FOA; ZOELLNER; ALVAREZ, 2003) . O DSM-IV (APA, 1995, Edição
Eletrônica) indica uma variação enorme e pouco precisa, “entre 3% e 58%”.
Macready (1998), em pesquisa com prostitutas na África do Sul, Tailândia, Turquia,
Estados Unidos e Zâmbia, encontrou taxa de TEPT de 67%. Este dado sugere a
impossibilidade de uma adaptação a um ambiente disruptivo. A taxa encontrada surpreende,
pois, embora possamos imaginar que pela própria atividade que as prostitutas exercem, na
qual ficam expostas a ataques de ordem física e sexual, elas estariam mais acostumadas com
este tipo de situação. Para esta população, o índice de TEPT encontrado é bem maior que na
população em geral, e superior aos de prisioneiros de guerra.
Além destes números, Benyakar, (2003) comenta que no início dos estudos sobre o
Transtorno de Estresse pós-Traumático, na década de oitenta, era feito um cálculo de que,
para cada indivíduo afetado fisicamente, havia, no mínimo, quatro pessoas afetadas
psicologicamente: ele próprio e seus familiares, ou pessoas próximas. Com os atentados
terroristas, este número aumentou para vinte traumatizados para cada ferido físico e, “desde
o ataque às Torres Gêmeas, sabe-se que, para cada danificado físico há pelo menos duzentas
pessoas que requerem alguma assistência psicológica” (p. 93).
Diversos fatores contribuem para a divergência dos índices de TEPT encontrados nas
diferentes pesquisas:
Em primeiro lugar, diferentes populações estão sujeitas a diferentes estressores.
Mueser et al. (1998) constataram essa diferença pesquisando pacientes de dois hospitais
norte-americanos de cidades diferentes. Além disso, Maes et al. (1998), apontam que um
fato que pode alterar as taxas encontradas nos diversos estudos pode ser o intervalo de tempo
entre a situação ameaçadora e a avaliação diagnóstica. Pesquisa efetuada por Yehuda,
McFarlane e Shalev (1998) na Austrália, encontraram em 19% das vítimas de acidentes
automobilísticos o diagnóstico de TEPT. Este estudo mostra que o índice de pessoas com
TEPT aumentou no período de 6 meses após o acidente. Em pesquisa semelhante
desenvolvida por Resnik, Kilpatrick e Lipovsky (1996), as mulheres adultas da amostra,
vítimas de ataque sexual apresentavam índice de 94% de TEPT uma semana após o assalto,
65% persistiam por um mês após o ataque, e 47% após um ano. Assim, dependendo do
estressor e da população atingida, os índices de desenvolvimento do TEPT podem aumentar
ou reduzir com o passar do tempo e, dependendo do intervalo de tempo decorrido entre a
experiência traumática e a investigação, taxas diferentes de prevalência serão encontradas.
Outro fator mencionado por Maes et al. (1998) pode ser a diferença do referencial
diagnóstico utilizado. Ele comenta um estudo realizado por Creamer (1989) onde em um
grupo exposto a múltiplos homicídios, usando-se o DSM-3, a taxa era de 74% de incidência
de TEPT. Já com a utilização do DSM-III-R, a taxa caía para 33%. Em vítimas de acidentes
de trânsito, usando o DSM-IV,a taxa de incidência era de 34.8%. Para a mesma amostra, com
os critérios do DSM-III-R, a taxa de incidência aumentava para 39.2%.
Um quarto aspecto a ser abordado, é o da existência e utilização de diferentes
instrumentos de avaliação diagnóstica para o TEPT. Roso (1998) lista as tabelas mais
utilizadas, que medem a presença de sintomas, e de outras variáveis associadas ao seu
desenvolvimento. Entre as mais utilizadas, estão a CAPS- Clinician Administered PTSD
Scale, a IES- Impact of Events Scale, a MISS- Mississipi Rating Scal for Combat Related
PTSD e sua versão Civil, e a SOS- Significant Other Scale. O uso de escalas diferentes aponta
índices diversos da presença do quadro patológico. Embora as escalas citadas tenham sido
aprovadas e utilizadas por pesquisadores de diversos países, é inevitável que se encontre
pequenas variações, dependendo do instrumento utilizado.
Um quarto fator importante a ser destacado, é o da diferença da cultura entre as
diversas populações pesquisadas, e as conseqüentes variações nas formas de relacionamento
da população com situações possivelmente traumáticas, como crimes e experiências de
violência. Kerr-Correa (2000), em estudo sobre o abuso sexual, cita pesquisas nos EUA onde
a incidência do abuso sexual contra a mulher varia entre 12,9% e 28%, ao passo que no Brasil,
segundo esta autora, a estimativa é de 7%. Estes dados, lidos ingenuamente, indicariam que
nos EUA, onde a polícia age com maior eficácia e a punição para os criminosos é mais
rigorosa que no Brasil, haveria um número maior de casos de abuso sexual. A autora conclui
que essa diferença não reflete a realidade, podendo ser atribuída a pouca pesquisa sobre o
tema no Brasil e, principalmente, à descrença da população no sistema judiciário brasileiro,
deixando de denunciar muitos crimes. Essa descrença fica evidente ao comparar-se a
estimativa de casos com os números oficiais. O número de ocorrências policiais de casos de
estupros consumados e tentativas de estupro, no ano de 1999, indica um índice de apenas
0,01% deste tipo de ocorrência na população total do Estado de São Paulo (SEADE, 1999),
contra uma estimativa real de 7% (KERR-CORREA, 2000). Um exemplo dessa postura da
população pode ser visto no caso de uma paciente atendida em psicoterapia, vítima de
seqüestro-relâmpago, que comentou não ter feito ocorrência policial do crime do qual foi
vítima. Ao ser questionada sobre o motivo disso, argumentou: “Para quê? A polícia não vai
fazer nada. Não quero virar estatística”. Embora esse seja um dado isolado, pela experiência
sabe-se que esta postura retrata a falta de confiança que parte da população tem nas
autoridades policiais.
Além disso, há o fator de que os sintomas do TEPT são considerados “normais” pela
população, como já foi comentado, e, por isso, não há procura de tratamento, mascarando a
incidência real que este quadro pode ter na população. Objetivando realizar uma pesquisa
sobre a eficácia de diferentes tratamentos para o TEPT, Taylor et al. (2003), recrutaram os
participantes a partir da indicação de médicos e de anúncios através da mídia. Entre os 299
indivíduos que contataram os pesquisadores, 60 cumpriam os critérios diagnósticos de TEPT.
Nessa amostra, o tempo médio que apresentavam os sintomas foi de 8,7 anos. Durante este
período, essas pessoas não procuraram tratamento, deixando de aparecer em levantamentos
epidemiológicos.
Por último, outro aspecto que deve ser levantado, é em relação ao pouco
conhecimento, ou ao pouco valor dado a este diagnóstico, inclusive por profissionais de
saúde. Mueser et al.(1998), pesquisando 275 pacientes do serviço público de saúde mental
norte-americano, encontraram taxa de 43% que apresentavam diagnóstico de TEPT, embora
apenas 2% tivessem recebido este diagnóstico em seus prontuários. Andrade et al. (1999) em
pesquisa epidemiológica realizada entre os pacientes do serviço de triagem do Hospital das
Clínicas de São Paulo, não incluíram o TEPT entre as categorias avaliadas, apesar da alta
prevalência indicada pelo DSM-IV, entre 3% e 58%. Este autor encontrou índice de 12,9%
na categoria Qualquer Transtorno Ansioso, que possivelmente engloba os sintomas do TEPT.

• Outros transtornos associados ao TEPT

O Transtorno de Estresse pós-Traumático também aparece com altas taxas de


comorbidade com outros distúrbios de natureza mental. Kessler et al.(1995), encontraram em
mulheres internadas com graves perturbações mentais, alguma experiência de violência
sexual na infância ou quando adultas, e entre os homens, o fato de terem vivido ataques
armados, ou testemunhado assassinato ou graves ferimentos em outra pessoa. Este autor
chegou a resultados de que, na população em geral, 83% das pessoas com TEPT tem outro
transtorno psiquiátrico associado.
Da mesma forma que a pessoa traumatizada sente-se susceptível diante de sintomas
físicos, muitas vezes procurando o serviço médico sem necessidade, o mesmo ocorre em
relação a sintomas psicológicos. O paciente com TEPT tem uma sensibilidade maior em
relação à depressão e ansiedade. Foi encontrado um significante aumento de comorbidade
em pacientes com TEPT. As doenças associadas mais encontradas foram: Episódio
Depressivo Maior, Transtorno Bipolar e Síndrome do Pânico (com e sem Agorafobia) em
veteranos de guerra (BROWN; STOUT, 1999).
Clark (2001), em pesquisa com cento e cinqüenta drogaditos, encontrou em 53% das
mulheres e 14% dos homens da amostra, critérios diagnósticos de TEPT, segundo o DSM-
IV(APA, 1995). Transtornos relacionados ao uso de álcool foram identificados entre 60% a
80% em veteranos de guerra (MINGOTE et al., 2001). Essa comorbidade talvez possa ser
entendida se pensarmos que o aparelho psíquico, após uma situação traumática, está
inundado de excitação para a qual não consegue uma descarga, e isso faz com que o indivíduo
procure formas de anestesia, como na adição alcoólica, ou na transformação da estimulação,
através de uma mudança da passividade em atividade, com o uso de drogas, ou mesmo do
aumento do consumo de cafeína ou outros estimulantes Em pesquisa realizada nos EUA, foi
verificado que não é a situação traumática que provoca o aumento do consumo de álcool e
drogas, mas sim o desenvolvimento do quadro de TEPT. Na amostra pesquisada que passou
por uma vivência traumática mas não desenvolveu sintomas do Transtorno de Estresse pós-
Traumático, não foram encontrados níveis significativos de aumento do consumo de álcool
e drogas, apenas um ligeiro aumento do consumo de nicotina. Já na parte da amostra que
desenvolveu os sintomas, houve elevação significativa do consumo de drogas e álcool
(BRESLAU; DAVIS; SCHULTZ, 2003). Esses dados levam a pensar que o uso de
substâncias visa aliviar os sintomas e não a experiência do trauma em si.
Câmara Filho e Sougey (2001), mencionam que os pacientes com de TEPT teriam
duas vezes mais probabilidade de apresentar outros transtornos, inclusive Transtorno
Obsessivo Compulsivo (TOC). Sobre essa possibilidade, Torres (2001), aponta a semelhança
entre alguns sintomas do TEPT e do Transtorno Obsessivo Compulsivo, indicando que a
presença de rituais é o principal elemento diferençável para o diagnóstico de TOC.
Mosca e Banchero (2002) descrevem que as alterações fisiológicas provocadas pelo
TEPT, alterando o sistema imunológico e de memória, são responsáveis também pelo
surgimento de casos de dor crônica e alergias.
Mingote et al. (2001), citam ainda alterações persistentes na personalidade, como
traços depressivos, intensificação de traços de caráter prévios, isolamento social e grande
necessidade de controle e dependência, nas pessoas diagnosticadas com TEPT.
Levantando hipóteses sobre a alta taxa de comorbidade entre o TEPT e outros
transtornos mentais, Mueser et al. (1998) comentam que é possível que a experiência de um
trauma e o desenvolvimento de TEPT, especialmente em idade precoce, produza uma
vulnerabilidade para o desenvolvimento de outros distúrbios psiquiátricos. Por outro lado,
pacientes com determinados transtornos, como a depressão, podem ficar mais propensos a
lembrar experiências passadas traumáticas e seus efeitos, deixando os sintomas de TEPT
como um diagnóstico secundário em seu quadro.
A relação entre o Transtorno de Estresse pós-Traumático com a depressão pode ficar
mais evidente se for levada em consideração que alguns sintomas, como a perda do interesse
nas atividades, dificuldades relacionadas ao sono e ideação suicida são comuns a ambos os
quadros. Além destes, o sintoma de autorecriminação, presente na depressão, é muito comum
no Transtorno de Estresse pós-Traumático, surgindo na forma de culpa por não ter evitado a
situação traumática.
Embora muitos sintomas do Transtorno de Estresse pós-Traumático possam
assemelhar-se aos sintomas de outras patologias, é importante mencionar que os estudos
sobre a neurobiologia do TEPT indicam que esse quadro apresenta alterações biológicas
diferentes das demais. As taxas de cortisol e as alterações no funcionamento do eixo
Hipotálamo-Pituitário-Adrenal (HPA), são diferentes dos encontrados em casos de
Depressão e mesmo, do próprio Estresse (GRAEFF, 2003, NEWPORT; NEMEROFF, 2000)

• TEPT e Transtorno de Estresse Agudo- comparação crítica

A experiência traumática não tem como conseqüência psicopatológica única o


desenvolvimento do Transtorno de Estresse pós-traumático. A CID (COOPER, 1997) e o
DSM_IV (APA, 1995) apontam a existência de um outro diagnóstico possível após uma
experiência traumática: O Transtorno de Estresse Agudo (TEA).
Enquanto que, para o diagnóstico de TEPT os sintomas tenham que persistir por mais
de 30 dias, o TEA é um diagnóstico que deve ser utilizado no período entre 48 horas e 30
dias após a situação traumática. Segundo o DSM-IV (APA, 1995, Edição eletrônica):

Por definição, um diagnóstico de Transtorno de Estresse Agudo aplica-se

apenas a sintomas que ocorrem dentro de 1 mês após o estressor agudo.

Uma vez que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático exige mais de 1

mês com sintomas, este diagnóstico não pode ser feito durante o período

inicial de 1 mês. Para os indivíduos com o diagnóstico de Transtorno de

Estresse Agudo cujos sintomas persistem por mais de 1 mês, o

diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático deve ser

considerado.
Essa descrição sugere que a diferença entre os dois diagnósticos seria apenas no
tempo de duração dos sintomas. Teríamos então a seguinte divisão nas alterações provocadas
pela vivência de uma situação traumática:

• Até 48 horas: Uma reação normal a uma situação anormal.


• Após 48 horas e até 30 dias: Transtorno de Estresse Agudo (TEA).
• Após 30 dias: Transtorno de Estresse pós-Traumático (TEPT).

Se o diferencial diagnóstico ficar limitado à duração dos sintomas, fica uma questão

sobre a necessidade da existência dessa categoria diagnóstica. Porque não uma única

categoria para diagnóstico, independente do tempo de duração? A própria limitação de

30 dias para o TEA já dificulta sua utilização diagnóstica, uma vez que só pode ser dado

com segurança retrospectivamente. Uma pessoa avaliada após três semanas da situação

traumática, por exemplo, receberá o diagnóstico de TEA que será válido apenas por uma

semana. Caso não haja alteração nos sintomas nessa semana, deverá ser reavaliada para

receber o diagnóstico de Transtorno de Estresse pós-Traumático. Assim, o TEA seria

apenas um diagnóstico de caráter provisório, enquanto o TEPT seria o diagnóstico mais

duradouro.

No entanto, examinando-se mais cuidadosamente os critérios diagnósticos para o

TEA, veremos que, embora quase todos os critérios do TEA sejam iguais aos do TEPT,

no critério B, há uma diferença fundamental, conforme demonstrada no Quadro 5:


Quadro 5 – Critério Diagnóstico B para Transtorno de estresse agudo8.

B. Enquanto vivenciava ou após vivenciar o evento aflitivo, o


indivíduo tem três (ou mais) dos seguintes sintomas dissociativos:
(1) um sentimento subjetivo de anestesia, distanciamento ou ausência de
resposta emocional;
(2) uma redução da consciência quanto às coisas que o rodeiam (por ex.,
"estar como num sonho");
(3) desrealização;
(4) despersonalização;
(5) amnésia dissociativa (isto é, incapacidade de recordar um aspecto
importante do trauma).

Dessa forma, além dos sintomas comuns ao TEPT, o diagnóstico de TEA exige a

presença de ao menos três sintomas dissociativos, o que, se por um lado, estabelece um

diferencial importante em relação ao TEPT, por outro, cria as seguintes contradições

diagnósticas:

Em primeiro lugar, uma pessoa que, no período de um mês após uma situação

traumática, desenvolve todos os sintomas do TEPT e TEA, exceto os sintomas

dissociativos, ou apenas dois entre os sintomas dissociativos discriminados, não teria os

critérios diagnósticos para TEA e o tempo decorrido não permite o diagnóstico de

TEPT. Embora essa pessoa possa apresentar “sofrimento clinicamente significativo e/ou

prejuízo no funcionamento social ou ocupacional” (APA, 1995), não há diagnóstico

previsto, e isso pode ter relevantes implicações sob o aspecto jurídico-trabalhista, como

8 Extraído do Manual Diagnóstico e Estatístico- DSM-IV (APA, 1995, Edição Eletrônica).


concessão de afastamento do trabalho por licença-saúde e a caracterização da situação

traumática enquanto acidente de trabalho.

Em segundo lugar, uma pessoa que apresenta os sintomas do TEPT após um mês da

situação traumática, apresentando sintomas dissociativos, seria diagnosticada com TEPT

apenas pelo critério do tempo de duração da enfermidade?

A diferença diagnóstica entre as duas categorias diagnósticas recai sobre dois pontos:
O tempo de duração dos sintomas e a presença de sintomas dissociativos. (HARVEY;
BRYANT, 2001).
Sobre a presença de sintomas dissociativos, McCarthy (2001) explica que o “TEPT
crônico em jovens é apresentado com sintomas como dissociação, comportamento
autodestrutivo, abuso de substâncias, e/ou problemas de conduta que podem obscurecer a
origem pós-traumática do transtorno”. Para esse autor, a presença de sintomas dissociativos
não exclui que o diagnóstico mais apropriado seja de Transtorno de Estresse pós-Traumático.
Harvey e Bryant (2001) relacionam as críticas que diversos outros autores fazem
sobre a existência do diagnóstico de TEA:

1) Não há evidências que justifiquem a ênfase na dissociação como tendo um


papel importante após um trauma. A maioria das pessoas que apresentam
todos os sintomas para TEA exceto a dissociação, desenvolvem TEPT 6
meses após a experiência traumática. Embora a dissociação represente um
importante papel, sua importância tem sido desnecessariamente enfatizada
nesse diagnóstico.
2) A função do diagnóstico de TEA teria apenas a capacidade de predizer
outros diagnósticos, uma vez que estudos mostram que a presença da
dissociação durante ou logo após o trauma pode predizer o
desenvolvimento futuro de TEPT. No entanto, embora a maioria das
pessoas com diagnóstico de TEA acabem desenvolvendo TEPT, um
número considerável de pacientes com TEPT não apresentou os sintomas
necessários para o diagnóstico de TEA no primeiro mês após a situação
traumática.
3) A existência desse diagnóstico torna patológicas as reações a uma situação
traumática que podem ser transitórias.
4) A única diferença entre o TEPT e TEA acaba sendo o tempo de duração
dos sintomas.
5) O diagnóstico de TEA foi incluído com poucas evidências que
justificassem sua inclusão, mais baseada em argumentos lógicos do que em
pesquisas empíricas.
6) O próprio “flashback” ou lembrança intrusiva, um dos sintomas mais
característicos do TEPT, pode ser interpretado como uma dissociação
(JONES et al., 2003).

Além das críticas levantadas, pode-se constatar também a sobreposição dos dois
diagnósticos. Entre 72% e 83% das pessoas que desenvolveram TEA, apresentam sintomas
de TEPT 6 meses após a situação traumática. Essas taxas caem para entre 63% e 80% após
2 anos (HARVEY, 2002). Brewin et al., (2003), encontraram uma sobreposição diagnóstica
de 95,5% entre as duas categorias. Este alto índice, segundo esses autores, questiona o quanto
se trata realmente de diagnósticos distintos.

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CAPITULO 2
A metapsicologia do trauma

Cláudia Maria Sodré VIEIRA

Discutir metapsicologia implica considerar aspectos topográficos, dinâmicos e econômicos de um conceito psicanalítico. Este capítulo
tem por objetivo propor uma teorização do trauma, descrevendo sua ação no aparelho psíquico. Não se debruça sobre os traumas
cumulativos, àquelas repetidas e constantes lesões ao narcisismo que acabam por corroer a coesão do ego, mas à situações dramáticas
que rompem as barreiras de defesa do aparelho psíquico. Descreve mais propriamente as experiências infantis, mas fornece elementos
para a compreensão de alguns processos presentes no Transtorno de Estresse pós-traumático, objeto deste livro.
A nossa primeira aproximação ao tema será feita a partir do aspecto econômico em S. Freud, em seguida, exploraremos a dinâmica
do trauma, tendo por base as idéias de S. Ferenczi.
Enfatizar o aspecto econômico é amplamente justificado pela concepção de traumatismo expressa em 1916, na Conferência XVIII, e
que se mantém no decorrer de sua obra. Seriam traumáticos os acontecimentos que provocariam um grande aumento de energia em
um curto espaço de tempo “[...] tornando impossível a supressão ou assimilação da mesma por meios normais e provocam deste modo
duradouras perturbações do aproveitamento da energia.” (1973, p.2294). A impressão subjetiva, ou a sensação de desprazer, independe
da fonte, ou de sua representação: “Temos resolvido relacionar o prazer e o desprazer com a quantidade de excitação existente na vida
anímica, excitação não ligada a fator algum determinado” (FREUD, 1917/1973, p. 2507). Assim, sua origem sendo endógena ou
exógena, não seria a impressão de desprazer que permitiria distinguir uma da outra.
Nosso problema é descobrir como o aparelho psíquico lida com quantidades excessivas. Para tanto, faremos um recuo no tempo para
encontrar no “Projeto para uma Psicologia Científica”9 (Freud, 1950[1895]/1975) as pistas para as respostas.
Apesar do objetivo dessa obra ser positivista e retratar uma concepção de ciência própria de sua época , seu espírito parece superar as
amarras a que o próprio Freud a submeteu. Podemos identificar na construção de seu modelo pré-psicanalítico de aparelho psíquico,
os germes da complexidade dos modelos posteriores, e uma forma de descrição de funcionamento que se coaduna com o que hoje
chamaríamos de uma concepção sistêmica. Obviamente, os avanços do conhecimento das neurociências não nos permitem considerar
com ingenuidade aquilo quer se refere ao funcionamento do sistema nervoso tal como Freud nos apresenta. Não se trata também de
nos posicionarmos a partir de um vértice arqueológico, mas de fazer um uso inovador do texto. Primeiramente vamos evocá-lo para
que nos fale sobre algo no qual ele não se detém: o trauma. Assim, travaremos um diálogo com essa obra, respeitando o contexto em
que foi construída e, posteriormente reintroduzindo as respostas a que chegamos em um novo contexto para transforma-lo em algo
diferente do original, mas não dele divorciado.

Antes de nos adentrarmos nos aspectos metapsicológicos do trauma


psíquico, caberia um esclarecimento metodológico. Não obedecemos a uma
cronologia dos modelos teóricos de Freud sobre o funcionamento mental,
nem nos ativemos sobre as semelhanças e diferenças dentre as concepções
de trauma entre Freud e Ferenczi, mas elaboramos uma nova composição
de elementos teóricos que nos pareceu apropriada para a compreensão de
alguns fenômenos clínicos. Seguindo esse pressuposto, não se assombre o
leitor ao encontrar lado a lado conceitos do Projeto e da teoria estrutural do

9 O ensaio será evocado no decorrer deste trabalho simplesmente como Projeto.


aparelho psíquico de Freud. Consideramos que o Projeto pode ser utilizado
como a descrição de fenômenos de ordem intrapsíquica, como processos que
subjazem e formam a base das instâncias psíquicas, da mesma forma que os
processos de identificação, introjeção e projeção, formam as bases do que
começa a se esboçar em Ferenczi como relações de objeto, não mais de
ordem intrapsíquica, mas interpsíquica e intersubjetiva.
Feito este singelo esclarecimento, passemos à exposição.

1- As bases processuais do trauma

O princípio que rege o sistema nervoso é o princípio da inércia, que leva os neurônios a desfazerem-se de quantidades (Q). Freud não
especifica o que seriam essas quantidades. Em termos gerais é, excitação nervosa e quantidade em fluxo , e o que diferencia a atividade
de repouso.
São duas as funções básicas do sistema nervoso: a recepção de estímulos externos e a descarga das excitações.
O sistema nervoso é composto por três sub-sistemas funcionalmente distintos: ,  e W.
O sistema  é encarregado da recepção dos estímulos que provém das terminações nervosas dos órgãos dos sentidos. Os neurônios do
sistema  têm como característica a permeabilidade. Os estímulos atravessam esse sistema sem deixar nenhuma alteração. Isto significa
que a excitação caminha livremente por , passando de um neurônio a outro sem nenhum tipo de obstáculo. Como conseqüência dessa
permeabilidade dos neurônios  , a excitação não deixa nenhum tipo de registro com a sua passagem, os neurônios  retornam ao seu
estado anterior imediatamente após a passagem de excitação. Seu trabalho implica em transferir a excitação provocada pelos estímulos
externos nas terminações nervosas dos órgãos dos sentidos para o sistema seguinte, . Dito de outra forma, o que é possível
compreender do sistema  é que ele não realiza trabalho psíquico, propriamente. Sua função é meramente de transporte. Os neurônios
 terminam em estruturas celulares que recebem os estímulos exógenos, atenuando-os, deixando passar apenas frações de Q’s, como
um dispositivo protetor, uma barreira de estímulos, uma tela, como Freud a denomina no Projeto.
O segundo sistema, sistema , é composto por neurônios impermeáveis, ou seja, que opõem resistências à condução de Q. Esse sistema
mantém uma fração de Q no interior de seus neurônios- Q’. A soma de q no sistema é constante, mas a sua distribuição nos neurônios
pode variar. Em termos simplificados, a barreira de contato é o que opõe resistência ao fluxo de Q.
Com a passagem de Q, o estado da barreira fica alterado. Freud denominou de facilitação essa alteração.
O sistema  é composto por dois tipos de neurônios: os neurônios nucleares e os neurônios pallium. No sistema , os estímulos
provenientes do interior do organismo são recepcionados pelos neurônios nucleares, enquanto que os advindos de , portanto das
percepções, são acolhidos pelos neurônios pallium.10

A memória, dentre outras, é uma função de , é o registro da experiência, o traço mnêmico. Memória e facilitação estão intimamente
relacionadas: “[...] a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ψ.”(FREUD, 1950[1895]/1975, p. 31,
grifos do autor)
O significado das facilitações vai além da memória, elas dirigem o curso da excitação dentro do sistema , influenciam o trajeto que
será seguido, como uma via aberta, uma trilha em meio à densa floresta. A função primária das facilitações é evitar que os neurônios
fiquem cheios de Q’. Em função das facilitações, no sistema , Q’ ficaria constante, mas distribuída de forma diferenciada. Essa

10Apesar de Freud referir-se ao sistema  como receptor dos estímulos externos, é preciso um certo cuidado
em não acoplar sistema  e estímulo externo, é mais seguro relacioná-lo `a percepção, isto porque uma
alucinação pode ser conduzida regressivamente por . Se pudéssemos nos apoiar no binômio sistema -
estímulo externo, teríamos uma dupla especialização e diferenciação: o sistema  conduziria estímulos de
origem externa e o sistema , através dos neurônios pallium os recepcionaria. Restaria saber se há como fazer
uma distinção entre o que é recepcionado e registrado nos neurônios nucleares e nos neurônio pallium.
diferenciação da distribuição garantiria os diferentes registros de passagem de Q’, as diferentes lembranças e, posteriormente, as
diferentes catexias. Uma conseqüência da maior importância associadas às facilitações é a criação de uma diferenciação dentro de :
o Ego.
Freud descreve o Ego como uma organização no interior de  que influiria na passagem de quantidade, na distribuição de Q’ em seus
domínios. Seguir a via facilitada, sem nenhuma inibição, é característica do processo primário, que é compulsivo e automático.
Lembremos que uma das funções do ego é, justamente, inibir o processo primário. Consideramos trabalho psíquico aquele promovido
pelo ego e que interfere na escolha das vias de condução facilitadas. O ego como organização é, ao mesmo tempo, causa e efeito das
interferências nas vias facilitadas.
O sistema  recebe os estímulos externos duplamente intermediados, pela barreira de estímulos dos órgãos sensoriais e pelo
sistema . As estimulações advindas do interior do organismo são menos intensas que as Q’s, por sua própria origem. Partindo do
interior das células, essas quantidades estão adaptadas à tolerância do organismo, são da mesma ordem que a resistência das barreiras
de contato. Contra essas estimulações não existe um dispositivo protetor como há para os estímulos exógenos, não há uma tela. Essa
função de tela é exercida pelas barreiras de contato entre os neurônios. Somos levados a crer que o problema do excesso de Q não terá
sua origem nos estímulos endógenos, mas nos exógenos, já que estes são mais intensos do que os internos. A experiência demonstra
que não é assim, de fato. Os estímulos endógenos atuam por somação, são constantes e contra eles não há nenhuma barreira. Os
estímulos endógenos são gerados continuamente, mas só quando atingem uma certa intensidade é que passam a ter efeito psicológico.
O transporte das fontes de estimulação endógena até o sistema  é feito pelas vias de condução que são dispostas em série, intercaladas
por barreiras de estímulos. Freud considerava que a quantidade de cada estímulo individual seria pequena, e por isso permitia a
somação. As vias de condução se enchem de Q’ até se tornarem permeáveis, transportando o estímulo até o núcleo . A
permeabilidade depende da intensidade de Q’ e havendo a descarga em , as vias de condução recuperam a sua resistência. Por outro
lado, não havendo descarga, os estímulos endógenos atuam como forças constantes. Assim, um excesso de estimulação em  pode ter
o mesmo efeito de uma falha na função de defesa da barreira de estímulos exógenos.
Freud considera uma situação não patológica que provoca um excesso de excitação: a dor.A dor representaria o fracasso de todos os
dispositivos de proteção contra o excesso de estimulação exógeno.Na dor, a estimulação atravessaria os sistemas, sem que nada
detivesse sua passagem, definindo facilitações permanentes, ultrapassando as barreiras de contato. Freud usa imagem de um raio que
atravessa o aparelho mental de parte a parte. Se a condução em  se der da mesma forma que em , pode-se supor que não há registro
da experiência, pois os neurônios se comportariam como , ou seja, sem resistência. Teríamos, uma Q livre nos sistemas, atravessando
os neurônios. Como descarregar? A idéia que se forma é de colapso. Para isso todo o sistema deve trabalhar de forma a reduzir Q.
Conhecemos os sistemas  e , há que apresentarmos um terceiro, composto pelos neurônios , o sistema W, onde se processa o
fenômeno da consciência.
Os sistemas  e  funcionariam como vasos comunicantes, um aumento de Q’ em  corresponderia a sensações de desprazer em ,
enquanto que uma diminuição de Q’ em , uma descarga, corresponderia a sensações de prazer em  .
Outro padrão de experiência, além da dor, que é fundamental no desenvolvimento mental, é o da satisfação de uma necessidade. Ela é
responsável pela configuração do desejo e do pensamento.
Seguindo a metapsicologia de Freud, e em especial seu aspecto econômico, podemos formular uma pergunta orientadora: quais os
efeitos no aparelho psíquico dos excessos de estimulação? Que tipo de excesso seria o trauma? Tomemos como ponto de partida a
comparação entre dor e trauma que nos pareceu promissora.

. Dor física e dor mental.

“A dor é o mais imperativo de todos os processos[...]”, afirma Freud (1950[1895]/1975, p.39). A dor nos remete ao corpo,
a uma qualidade sensorial imediata, intensa e urgente. Por outro lado, o desejo conduz `a idéia de mente, e de um objeto. Para parar de
doer é preciso eliminar a causa da dor. Para saciar o desejo, é preciso encontrar o objeto, pelo menos uma primeira vez, para o corpo
passar a ser habitado por uma mente. A mente deseja e tem medo, o corpo tem necessidades e sente dor. Dor e desprazer não são
sinônimos, apesar de estarem relacionados. Desprazer pressupõe uma mente, a dor, um sistema nervoso. Evitar a dor e evitar o
desprazer são momentos distintos na evolução.
Vejamos o que o Projeto nos diz sobre a dor. Freud qualifica a dor como um “protótipo normal do patológico”
(FREUD,1950[1895]/1975, p. 38), pois exige do organismo uma eficiência que está além do seu limite. A dor equivale ao fracasso dos
dispositivos defensivos contra o excesso de Q’s externas e a propensão do organismo é fugir da dor, o que é demonstrável pelos reflexos
de defesa, que não exigem do organismo a presença de uma mente, mas de um sistema nervoso.
A dor:

• Produz um grande aumento de nível que é sentido como desprazer por 


• Põe em movimento tanto o sistema  como o 
• Deixa facilitações permanentes em  semelhantes `as que ocorrem em , ou seja, que derrubam a resistências das barreiras
de contato.
• Desencadeia uma propensão à descarga por todas as vias.
• Produz uma facilitação entre a propensão à descarga e uma imagem mnêmica do objeto que acentua a dor.

Se na dor a descarga de excitação referente à dor não exige uma mente, o trauma não pode ser compreendido sem sua ação na mente.
Encontramos em “Além do princípio do prazer” (FREUD,1920/1973) uma definição do que é uma excitação traumática. São aquelas
excitações que pelo seu montante de energia são capazes de romper as proteções. Encontramos também a dor como um desprazer
específico resultante da ruptura da proteção em uma área determinada do corpo. Ou seja, trauma e dor correspondem a excessos de
estímulos e a rupturas de proteção. Provisoriamente vamos manter a correspondência entre trauma e dor.
Baseados no que destacamos mais acima, se há uma imagem mnêmica do objeto relacionado à dor, isto significa que há um registro
da experiência de dor, que  não se iguala à . Se o aumento de nível é sentido como desprazer em , a dor está atrelada à consciência?
Não haveria uma dor inconsciente?
Examinemos este problema, o da dor/consciência. Antonio Damásio (2000), em seu livro “Os mistérios da consciência” define a dor
como “[...] conseqüência de um estado de disfunção local em um tecido vivo, como conseqüência de um estímulo – dano tecidual
iminente ou de fato – que causa a sensação de dor, assim como reações reguladoras como os reflexos [...]” ( p. 100). As fibras nervosas
amielínicas (as fibras C, como são chamadas), e outras pouco mielinizadas (as fibras A-), apresentam-se distribuídas por todo o corpo
e são responsáveis pela condução dos sinais sobre alterações dos estados internos do corpo. São denominadas de nociceptivas porque
são especializadas na reação a estímulos que são, de fato ou potencialmente, lesivos ao corpo. A lesão põe em ação uma série de
substâncias que têm a função de acionar os agentes reparadores, por exemplo, no caso de uma queimadura nos dedos, peptídeo e íons
de potássio que acionam as células brancas para atuar na área atingida. Essas substâncias, por sua atuação, acionam outras fibras
nervosas que, juntamente com as outras, produz uma orquestração de sinais que viajam percorrendo a medula espinhal e, através de
sinapses e das vias que lhes são próprias, ativam o sistema nervoso central, tálamo, o tronco cerebral e córtex cerebral. Obviamente
que a descrição de Damásio, mesmo sendo simplificada como ele mesmo alerta, é bem mais complexa que a de Freud em função de
todos os avanços da neurologia, mas é possível estabelecer uma certa relação de semelhança entre as fibras nervosas mencionadas e o
sistema  e as fibras amielínicas e pouco mielinizadas com o sistema , bem como a complexa comunicação que se estabelece por
todos os conjuntos de sinais, que também foi intuída por Freud, como ficará cada vez mais evidente, na medida em que a descrição do
funcionamento mental for progredindo. A intuição de Freud descreveu, em seu esquema funcional da mente, o que hoje se averigua
com tomografias e ressonâncias magnéticas e pelo conhecimento especializado das diversas substâncias que atuam no sistema
nervosos. Esse conjunto complexo de reações químicas para Freud ficou representado como Q, quando tinham origem externa, e como
Q’ quando eram manifestações endógenas, de qualquer forma como quantidades, como excitação, como quantum de energia; essa
era, pois, a moeda corrente, possível de ser equacionada, na medida em que eram desconhecidos os neurotransmissores, por exemplo.
Mas a relação entre consciência e dor ainda não foi esclarecida. Consideremos as explicações de Damásio:

O que aconteceu depois da sucessão de sinais? Conjuntos de neurônios


situados em diversos níveis do sistema nervoso foram temporariamente
ativados, e a ativação produziu um padrão neuronal, uma espécie de mapa
dos sinais relacionados ao ferimento em seus dedos. O sistema nervoso
ficou então de posse de múltiplos e variados padrões neuronais de danos
tecidual, selecionados segundo as especificações biológicas de seu sistema
nervoso e do corpo com o qual ele se conecta propriamente dito. (2000,
p.101)

Tendo sido cumpridas essas condições, a sensação de dor pode ser gerada, mas esses padrões não produzem a consciência de dor, é
necessário, segundo Damásio, um passo a mais:

Tomar consciência de que você está sentindo dor requer algo a mais,

que ocorre depois que os padrões neurais que correspondem ao

substrato da dor – os sinais nociceptivos – são exibidos nas áreas


apropriadas do tronco cerebral, do tálamo e do córtex cerebral e

geram uma imagem de dor, um sentimento de dor. (2000, p. 101,

grifos do autor).

Imagem de dor e sentimento de dor já sugerem o trabalho de uma mente, mas não

sabemos se pode ser evocado posteriormente e utilizado, ou seja, compor uma forma de

aprendizado.

Há uma série de reações automáticas à dor como mudanças na expressão facial, no ritmo dos batimentos cardíacos, na
circulação sanguínea, que independem da consciência. Como lembra Damásio, muitas dessas reações estão presentes em pacientes em
coma. Assim, dor e consciência não são interdependentes. É possível, então todos os pré-requisitos da dor estarem cumpridos, menos
a consciência, se assim for, há dor inconsciente.
Existiria um trauma inconsciente? Freud considerava que a experiência traumática poderia ser esquecida, tornada
inconsciente. Poderia, todavia, não ter nunca se tornado consciente, não ter sido formada uma imagem do trauma, uma imagem
sensorial da angústia a ele associada.
Freud introduz a consciência como um contraponto `as suas explorações sobre quantidades. A consciência refere-se ao problema das
qualidades “sensações diferentes numa ampla gama de variedades e cuja diferença se discerne em função de suas relações com o
mundo externo”. (FREUD, 1950[1895]/1975, p. 40, grifos do autor).
Para Freud as diferenças discernidas pela consciência são função de suas relações com o mundo externo porque são as percepções que
possuem ritmos. Eventualmente, a passagem da corrente por um neurônio motor implica descarga motora e produz em ω indicações
de qualidade. As indicações de qualidade são, em última instância, indicações de descarga. As indicações de qualidade são da maior
importância do ponto de vista da adaptação do indivíduo, já que elas fornecerão um sinal de realidade, um sinal de que aquela imagem
catexizada corresponde à percepção de um objeto externo e não a uma lembrança. Por esse motivo, urge que o ego seja capaz de inibir
a corrente em direção aos neurônios motores (ou se preferirmos, as imagos motoras), até receber a indicação de qualidade da percepção
para que possa haver descarga, caso contrário, o que ocorrerá é uma solene frustração e desprazer. Da mesma forma, deve inibir a
catexia da imago do objeto para não ocorrer a alucinação e conseqüente frustração e desprazer. Posteriormente, uma descarga motora
indicativa de qualidade será utilizada de forma a possibilitar o registro dos próprios processos egóicos, dos pensamentos, ao ficar
associado às palavras. Inicialmente, o pensamento associado às palavras funcionava como uma forma de descarga, como uma válvula
de segurança como expressou Freud, semelhante ao sonho, adquirindo uma função secundária de influenciar os processos de descarga.
As qualidades não adviriam do mundo externo, já que ele é composto de “massas em movimento” (FREUD, 1950[1895]/1975,
p. 40) , nem de , porque a consciência estaria ligada aos níveis superiores do sistema nervoso, e  não corresponderia ao córtex
cerebral, sequer viriam de  porque as recordações seriam desprovidas de qualidades. A consciência seria o efeito da ação de um
conjunto de neurônios especializados (). O neurônio  “[...] é excitado com a percepção, mas não com a reprodução, e cujos estados
de excitação produziriam as diversas qualidades, ou seja, que seriam as sensações conscientes” (Idem, op. cit., p. 41, grifos do autor).
O sistema ω não estaria habilitado a lidar com quantidades e só se manifestaria na medida em que estas fossem excluídas, apesar de
que não completamente, pois também seria catexizado (Q’ fixa), buscando formas de descarga. A característica especial dos neurônios
 seria de uma completa facilitação, já que funcionam como um órgão de percepção, mas como lidam com baixíssimas Q’, a
facilitação não viria da quantidade, mas de algo de índole temporal, do período, que não seria impedido e se propagaria pelas barreiras
de contato:

A hipótese, porém, vai mais longe e admite que os neurônios 

sejam incapazes de receber Q’ mas que, em compensação, assumem

o período de excitação e que essa sua condição de serem afetados por


um período enquanto admitem uma carga mínima Q’ constitui a

base da consciência.” (FREUD, 1950[1895]/1975, p. 43, grifos do

autor).

O que ocorreria, no caso de uma dor intensa, um afluxo de Q que elevasse o nível geral de Q’? O aumento de Q’ em  é traduzido
como desprazer em .  e  funcionam como vasos comunicantes, quando aumenta o nível em , aumenta a catexia em , que é
sentida como desprazer, como vimos anteriormente. Mas, haveria um limite para essa tradução? Se  não é capaz de lidar com Q’ a
não ser muitíssimo reduzidas, se houver um acréscimo que atravesse os sistemas todos, haveria consciência? Deduzimos que não, não
haveria consciência, e que também para os neurônios , de forma semelhante aos órgãos sensoriais, haveria um umbral abaixo do qual
as qualidades não seriam percebidas, e acima de um teto, também não. Supomos, também, que não se trata apenas de quantidades, mas
de qualidades das excitações. A consciência está especializada em qualidades, em períodos, sugerindo algo como a passagem de tempo.
No trauma, o período é importante. Iniciamos a discussão sobre Freud com uma citação de 1916 e nesta o trauma está associado a um
grande aumento de energia em um curto espaço de tempo. Como parece existir uma tendência a uma espécie de aprendizado que utiliza
reações inicialmente automáticas, posteriormente com finalidades defensivas 11, como ações do ego, podemos supor, também, que a
perda da consciência passe a funcionar como um processo defensivo. Neste último caso, não se trataria de repressão, uma vez que esta
reporta às conexões com os estímulos internos, com os impulsos. Sugere algo como uma alucinação negativa, e mais drasticamente,
uma ausência, um desmaio.
Uma faixa ótima de trabalho é indicada por Freud:

[...] os neurônios  mostram uma aptidão ótima para admitir o

período do movimento neurônico quando tem uma determinada

força de catexia; quando a catexia for mais intensa, eles causam a

sensação de desprazer – até que devido à falta de catexia, a sua

capacidade receptiva se extingue por completo.” (FREUD,

1950[1895]/1975, p.45, grifos do autor)

Em “Além do princípio do prazer” (1920/1973) Freud traz à tona o problema da dor como o resultado de uma ruptura de proteção em
um uma área delimitada. O curso seria:

• De uma lesão afluem para o aparelho psíquico excitações contínuas.


• De todas as partes do aparelho psíquico acodem contracatexias.
• Em função das contracatexias há um empobrecimento de todos os sistemas psíquicos, “... resultando em intensa paralisia
ou minoração do resto da função psíquica...” (1973, p. 2521).

As contracargas seriam equivalentes `as catexias colaterais Têm uma função de interferir nas vias de condução das excitações e de
vinculá-las, transformando energia livre em carga em repouso ou ligada (catexia quiescente).. No Projeto a energia quiescente
corresponde à Q’η que toma posse do neurônio, que nele se fixa, correspondendo também a idéia de catexia. A energia livre é a corrente
de Q que atravessa as vias de condução, seguindo as vias de facilitação ou criando novas, dependendo de sua magnitude. A corrente,

11A angústia como sinal é um bom exemplo dessa tendência, já que ela põe em ação o automatismo do
princípio do prazer, possibilitando a repressão. (Freud, 1933[1932], Conferência XXXII)
encontrando a via facilitada, é compulsiva, não importando se a trilha conduzirá à repetição da dor ou à realização alucinatória de
desejo. O problema da dor intensa é melhor representado pelo excesso de energia livre e não por excesso de catexia. Uma hipercatexia
já pressupõe um trabalho egóico, é uma catexia sobre uma catexia e que corresponde, em sua primeira versão, ao narcisismo primário.

Como seria se considerarmos a libido de ego, ou seja, o investimento narcísico?


Teríamos então, no caso da dor, um excesso de Q ou de Q’η que chegaria aos neurônios
pallium e nuclear. Esse excesso convocaria a Q’η disponível para funcionar como contra-
carga. Se o ego estiver desenvolvido, terá à sua disposição mais contra-cargas. E, quanto
maior a invasão de estímulos, maior a contra-carga exigida, sendo retirada dos investimentos
nos objetos e das funções que o ego tem que desenvolver, como atenção, memória, juízo...O
que ocorreria, então? Um distúrbio energético que poderia ser descrito como um excesso de
investimento narcísico, o que nos conduziria a pensar, por dedução, no trauma como uma
ferida no ego que promove um distúrbio narcísico. O que se pode esperar de uma situação
como essa é, se a contra-carga não for suficiente para vincular o excesso provocado pela
invasão, termos um montante de energia livre no sistema que não poderá ser dominado por
vias normais; um dos efeitos poderia ser uma paralisia de funções, dentre elas, a da
consciência.
Sob a ação de um excesso de estimulação, o aparelho psíquico acionaria as formas de
descarga disponíveis e utilizaria os recursos defensivos já desenvolvidos. Em uma situação
limite, o excesso de estímulos romperia todas as barreiras defensivas e igualaria  e . Isto
implicaria a impossibilidade de registro e a ausência de consciência. No início da vida, dada
a falta de contracatexias, o efeito traumático dependeria menos da intensidade dos estímulos
do que posteriormente, com o desenvolvimento do ego.
Considerando o ambiente do bebê, a função materna é essencial na proteção contra o
excesso de estimulação tanto interno, quanto externo. Ela funciona como barreira protetora
contra os estímulos ambientais, como objeto de desejo e como objeto auxiliar na condução
da satisfação das necessidades do bebê. A transformação do meio externo para a evitação da
dor e para a satisfação de suas necessidades, depende exclusivamente das pessoas
responsáveis pelos cuidados do bebê. Este só tem à disposição métodos autoplásticos, ou
seja, de transformações de si mesmo, até que se torne capaz de comunicar-se.
Essa situação de dependência extrema não é muito diferente da situação emocional
das pessoas que vivem intenso desamparo, ou daquelas pessoas que ficam concretamente à
mercê de outras, para a própria sobrevivência emocional ou física Podemos manter em mente
uma relação como as séries complementares de Freud, entre intensidade de estímulo e
intensidade de contracatexias, do ponto de vista intrapsíquico; e possibilidade de vinculação
e proteção ambiental do ponto de vista das relações com o meio ambiente.
Se  e  estão igualados, no trauma, não há catexias, mas energia livre no aparato
inteiro. Essa energia livre é expressa como angústia traumática, uma angústia sem
representação, possivelmente associada a manifestações de dor física. Todo esse processo se
daria sem a ação da consciência.
O perigo maior que o trauma representa é a distribuição uniforme de Q por todo o sistema, impossibilitando o registro da experiência:
ψ se comportaria como se não tivesse barreiras de contato, semelhante a φ. A imagem de raio que Freud evoca referente à dor pode se
adequar também ao trauma.Um raio como uma Q livre que espalha-se por ψ, ativando neurônios motores, descarregando-se como
emoção, de forma anárquica e ineficaz.
Se o trauma consiste em um excesso de Q livre que percorre ψ sem inibição, as barreiras que possibilitam a estrutura egóica se manter,
são derrubadas. Freud chamou de defesa primária a não catexização dos neurônios que provocam desprazer. No trauma, a defesa
primária é ineficaz. Há que se atentar para o fato de que para atingir a organização egóica, essa Q deve ser de origem endógena, Q,
pois os neurônios nucleares estabelecem conexões com o interior do organismo, trata-se então da ação de instintos. Isto significa que
a origem do trauma é endógena? Não, mas que os impulsos instintivos devem estar em ação.
Voltemos a libido do ego. Poderíamos pensar que o investimento narcísico do ego é uma pré-condição para o próprio
desenvolvimento do ego, que o mantendo catexizado, funcionaria como uma proteção intrapsíquica semelhante às barreiras de
estímulos. Sem esse escudo, o ego seria destruído já em seus primórdios. A possibilidade de uma camada amorosa protetora dependerá,
supomos, da manutenção de um estado ótimo, onde o organismo não seja assolado pela dor física e nem pela frustração excessiva das
necessidades, ambos fatores traumatizantes. Isto significaria que quanto maior o amor próprio, menor a chance de sofrer um trauma?
Não. Inicialmente, essa camada amorosa protetora de investimento narcísico só é possível se o bebê for bem cuidado e amado. Mas,
sabemos também que o narcisismo do bebê só se constitui a partir do narcisismo dos pais, aquele que faz com que os pais vejam em
seu filho como “sua majestade, o bebê” (FREUD, 1914/1973). Entretanto se pais e filhos não puderem suportar a desilusão da
constatação de que, de um lado seus filhos não correspondem a seus sonhos, e de outro se os filhos não forem capazes de ter seus
próprios desejos, a condição narcísica é alienante, e portanto patogênica. Neste caso, o que parece estar latente é o medo da perda do
amor, do desamparo psíquico, ou a morte por inanição.
Por outro lado, Ferenczi (1919/1993) observou que os pacientes com pontos de fixação na etapa do narcisismo eram mais
pré-dispostos a sofrer situações de sofrimento como traumáticas. Parece estar em ação uma permanência da onipotência infantil, uma
incapacidade em perceber os próprios limites. Neste último caso, podemos considerar a angústia de aniquilamento, o medo da
destruição do próprio ego.
Sabemos, a partir de “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD,1914/1973) que o investimento narcísico também é
limitado e que há uma tolerância do aparelho psíquico para a libido narcísica, acima da qual começa a ter efeito patogênico:

Podemos nos aproximar da questão de saber por que a vida anímica se vê


forçada a transpassar as fronteiras do narcisismo e investir de libido objetos
externos. A resposta deduzida da rota mental que viemos seguindo seria a
de que tal necessidade surge quando a carga libidinal do ego ultrapassa certa
medida. Um egoísmo intenso protege contra a enfermidade; mas, no final,
temos que começar a amar para não adoecer e adoecemos quando uma
frustração nos impede de amar. ( p. 2024)

Vejamos o que temos até aqui:

• A dor independe da consciência.


• Um excesso de energia livre em  pode afetar a função da consciência em , tanto na dor como no trauma..
• Dor e trauma convocam para o reequilíbrio do sistema um montante de catexia com função de contra-carga, representando
um sobre-investimento narcísico.
• O narcisismo primário funciona como um escudo protetor contra as excitações, na medida em que provoca uma elevação
de carga no ego.

Continuemos o estudo da dor, pois há mais considerações a serem feitas que nos serão úteis na compreensão do trauma.
Freud menciona a existência de uma imagem mnêmica de um objeto hostil, aquele que acentua a dor, um objeto algoz. Mas, há dores
que não são provocadas por nenhum objeto distinguível, como uma cólica, por exemplo. Parece ser mais fácil conceber a construção
de um objeto de desejo, porque existe um objeto externo, real, que é a fonte dos prazeres. Mas isso nós, adultos, sabemos. Mas e o
bebê? Quando ele passa a saber? Em uma cólica, qual é o objeto que acentua a dor? Não faz sentido. Não faz sentido porque nós
adultos cultos, aprendemos que ninguém entra em nossa barriga e maldosamente produz dor. É uma reação do organismo a
determinadas substâncias, as toxinas, por exemplo. A toxina seria um objeto algoz de um adulto?
Atendi a um paciente que tinha úlcera gástrica. Em uma sessão ele comentou sobre uma macarronada que havia comido e que
o fez sentir dor. Ao descrever o molho na sessão, recomeçaram as suas dores. Perguntei-lhe se o molho parecia com algo. “Com
sangue”, respondeu. “Que tipo de sangue, de onde?”, eu quis saber. Ficou em silêncio por um tempo. Em seguida começou a contar
que tinha gente que comia carne de cavalo, demonstrando nojo. Lembrou-se que tinha visto um absorvente higiênico da irmã no
banheiro e que quase vomitou. “Era como o molho?”, perguntei-lhe. Disse que quando foi comer o macarrão lembrou do absorvente
com sangue, mas estava com muita fome e comeu. O motivo que fez esse paciente procurar psicoterapia foi de impotência sexual..
Para esse paciente eram sucos gástricos que lhe devoravam o estômago? Na adolescência, teve relações sexuais com éguas.
Na sua fantasia ele comia seus objetos de amor e depois era perseguido por eles, que o devoravam, castravam, comiam-lhe o estômago
e o pênis. O que importa neste relato é que há uma teoria inconsciente do paciente sobre as causas de suas dores e não é a que os
médicos aprendem nas faculdades de Medicina. Essa teoria não respeita as leis físicas, químicas, biológicas, mas as leis dos deuses e
dos homens, leis como: se há crime há castigo. A recíproca passa também por verdadeira: se doer, é castigo; se há castigo, há crime.
O terror é não conseguir supor qual é o crime, ou quando o protetor revela-se, inesperadamente como o algoz. Mas, esta vertente do
sofrimento, esta vertente do trauma terá Ferenczi como guia.
O que podemos extrair dessa ilustração é que, da mesma forma que há um objeto de desejo, também é construído um objeto
hostil, responsável pela dor e pelo sofrimento. Investigar como se dá a construção desses objetos nos afastaria demasiadamente do
caminho, além do que Melanie Klein o fez com todo brilhantismo. À experiência de dor é associado um objeto hostil do qual se constrói
um traço mnêmico. O protótipo que Freud pode ter considerado foi o de estímulos externos que podem ser afastados por meio de
defesas reflexas, como contração das pupilas, ou afastamento brusco de fontes de calor. Para argumentar sobre o conceito de instinto
como um dos estímulos internos, Freud se baseia na Fisiologia, que o habilita a apropriar-se do conceito de estímulo, e assim revela a
fonte de suas idéias sobre a forma de se trabalhar com os estímulos externos, que é o arco-reflexo, como podemos observar em “Os
instintos e suas vicissitudes” (FREUD, 1915/1973):

Esta ciência [a Fisiologia] nos deu o conceito de um ‘estímulo’ e o

esquema do arco reflexo, conceito segundo o qual um estímulo

aplicado ao tecido vivo (substância nervosa) a partir de fora é

descarregado para o exterior por meio de uma ação. Essa ação

alcança seu fim afastando a substância estimulada da influência do

estímulo, removendo-a da esfera de atuação do mesmo. (p. 2040,

grifos do autor).

Mas, o ser humano se depara com a tarefa de ter de se defender não só do excesso de estimulação externa como também interna, cuja
fonte prioritária são as necessidades, os instintos, o que lhe complica consideravelmente o trabalho, uma vez que dos estímulos internos
é impossível empreender fuga: “Os estímulos externos não promovem mais problemas do que se afastar deles, o que acontece por meio
de movimentos musculares, um dos quais acaba por alcançar tal fim e se converte então, como o mais adequado, em uma disposição
hereditária.” (Idem, op.cit, p. 2041)
Com um movimento de braços afastamos terremotos, enchentes, incêndios e as catástrofes?. Não, Freud não era ingênuo, ele só se
apropriou de um modelo que repetirá muitas vezes no decorrer de sua obra, o de que contra os estímulos internos não há fuga, não
podemos fugir de nosso corpo, como também não podemos fugir da realidade externa, do mundo real, das forças da natureza e das
pessoas violentas e mais fortes do que nós, mas nesse mundo de fora podemos encontrar a assistência que nos auxilia na proteção
contra o perigo de definhar, nos alimentando; de morrer pela ação de forças naturais, através da cultura, da ciência ..
É de fundamental importância enquanto processos de defesa, que o objeto hostil seja concebido como externo. Do ponto de vista
econômico, o excesso de estimulação pode ser amortecido pelas barreiras de estímulos se tiverem origem externa. Aos estímulos
internos, nada se lhes opõe. Tratá-los como vindos de fora talvez seja um rodeio necessário para acionar as defesas adequadas aos
estímulos externos. Obviamente, trata-se de um engodo, de uma ilusão, cuja eficácia é limitada. Essa idéia do objeto hostil, seja ele
uma dor de ouvido, ou uma mãe desatenta ou cruel, concebidos como vindos de fora reaparecerá, também em “Além do princípio do
prazer” (FREUD, 1920/1973):

[...] é adotada uma maneira específica de lidar com quaisquer

excitações internas que produzam um aumento demasiado grande de

desprazer; há uma tendência a tratá-las como se atuassem, não de

dentro, mas de fora, de maneira que seja possível colocar o escudo

contra estímulos em operação, como meio de defesa contra elas. É

essa a origem da projeção, destinada a desempenhar um papel tão

grande na causação dos processos patológicos. (p. 2520, grifos do

autor).

No “Esboço da Psicanálise” (1940[1938]/1973), Freud traz um novo aporte ao problema da dor demonstrando que o corpo - e suas
manifestações – pode ser vivido como pertencentes ao mundo externo:

É verdade que também recebemos informações conscientes do interior do


corpo, sensações que exercem sobre nossa vida psíquica uma influência
ainda mais peremptória que as percepções externas, e em determinadas
circunstâncias os próprios órgãos sensoriais transmitem sensações, por
exemplo, dolorosas, além de suas percepções específicas. No entanto, desde
que essas sensações (como as chamamos em contraste com as percepções
conscientes) emanam também dos órgãos terminais e desde que
concebemos a todos estes como prolongamentos e apêndices da capa
cortical, continuamos a poder manter a mencionada afirmação [no início do
parágrafo]12. A única diferença residiria em que o próprio corpo substitui o
mundo externo para os órgãos terminais das sensações e impressões
internas. (p. 3389)

A dor pode ser associada a um objeto hostil que a provoca, bem como uma parte do corpo ou todo ele pode ser representado como um
não-eu mau, um objeto hostil. No Projeto, Freud aponta que há uma facilitação entre as vias de descarga e uma imagem mnêmica do
objeto hostil. A propensão à descarga se dá porque a primeira função do aparelho mental é a descarga do excesso de estimulação. A
descarga motora é a forma primária de rebaixamento do nível de estimulação, através de inervações para o interior do corpo que

12O inicio do parágrafo referia-se a que o processo de tornar algo consciente está ligado à percepções que os
órgãos sensoriais recebem do mundo externo. (p. 211)
responde com movimentos expressivos, mímica facial e manifestações de afetos, conforme o artigo de 1911 de Freud, “Formulações
sobre os dois princípios do funcionamento mental”.
Os afetos e a manifestação motora ficam indissoluvelmente ligados, mas não são iguais. O afeto surge em trabalhos posteriores de
Freud como um correspondente do instinto. Em “O Inconsciente” (1915/1973), Freud afirma que um instinto nunca pode se tornar
objeto da consciência, mas apenas a idéia que o representa e que mesmo no inconsciente deve associar-se a uma idéia, ou se preferirmos,
a uma fantasia. Porém, há uma outra forma de sinalização da ação de um instinto: “Se o instinto não se enlaçou a uma idéia ou não se
manifestou como um estado afetivo, nada poderemos conhecer sobre ele”. (Idem, op.cit., p. 2067).
Um estado afetivo é uma indicação da manifestação de um instinto, a idéia está necessariamente relacionada com objetos, enquanto os
afetos são processos de descarga, formas de reações `as experiências de satisfação e de dor, são como Freud os denominou no Projeto,
resíduos dessas experiências13. A diferença entre afeto e idéia, no que se refere a essas experiências está claramente expressa em “O
Inconsciente” (FREUD,1915/1973):

A diferença procede em sua totalidade de que as idéias são cargas psíquicas


e no fundo cargas de traços mnêmicos, enquanto que os afetos e as emoções
correspondem a processos de descarga cujas últimas manifestações são
percebidas como sentimentos. (p. 2068).

Qual relação poderíamos estabelecer entre afeto e dor?


Damásio (2000) conta de um paciente que sofria de nevralgia do trigêmio que causava extremo sofrimento porque o mais leve e suave
toque em seu rosto provocava dores intensas. Não havia medicamento algum que lhe aliviasse a dor. O paciente submeteu-se a uma
intervenção cirúrgica que produziu lesões em uma região do lobo frontal que tinha por objetivo diminuir o seu sofrimento. Damásio
relata a sua surpresa pela forma como encontrou o paciente após a cirurgia. Perguntado sobre a dor, o paciente respondeu,
despreocupadamente, que continuava igual, mas que agora ele se sentia bem. Avaliando o estado de espírito do paciente, Damásio
considerou que:

A operação fizera pouco ou nada em relação aos padrões sensoriais

correspondentes à disfunção tecidual local que estava sendo

suprimida pelo sistema trigemial. As imagens mentais daquela

disfunção tecidual não foram alteradas, e por isso o paciente podia

dizer que as dores estavam iguais. Ainda assim, a operação fora um

sucesso. Ela seguramente eliminara as reações emocionais que os

padrões sensoriais de disfunção tecidual tinham provocado.(p. 114).

A dor não é uma emoção, ou um afeto, mas existe uma associação entre sensação de dor e afeto de dor e que podem ser dissociadas
como demonstram o uso de medicamentos como betabloqueadores, bem como a hipnose, que atuam embotando a emoção , mas que
não alteram os padrões neuronais relacionados `as sensações de dor, e mesmo assim eliminam o sofrimento que seria acompanhado
pela percepção. (Idem, op.cit., loc.cit)
No Projeto, Freud menciona que o estado de desejo e os afetos têm em comum o fato de que provocam um aumento de Q´ em . O
afeto, pela liberação súbita, o estado de desejo por somação, já que é preciso atingir um determinado umbral para que os estímulos

13 Em nome da precisão, a primeira relação que Freud estabelece no Projeto entre experiência e afeto refere-se
a dor e não ao prazer, entretanto o afeto, passa a ocupar um lugar mais amplo, envolvendo também a experiência
de satisfação, mesmo no Projeto.
internos tenham efeito psíquico. Mas, isso implica que um afeto, uma descarga, pode aumentar o nível de Q´ em . Não é
contraditório? Um afeto, então, poderia ter um efeito traumático? Isto só se torna compreensível se considerarmos não a experiência
primária de dor, mas uma repetição desta, uma segunda versão.
A catexia de uma imagem mnêmica de um objeto hostil que pode se dar por uma nova percepção do objeto provoca um estado
semelhante a dor. Não pode ser dor porque não há uma nova lesão de tecido Mas, aqui há um senão. Não é necessária a lesão para que
ocorra a dor, os casos de histeria de conversão nos dão exemplos múltiplos de alucinações de dor.
O que compõe esse estado onde há uma reativação da imagem mnêmica? Desprazer e tendência `a descarga. Se há desprazer, há
aumento de Q’, e estamos diante da contradição exposta acima. Freud é absolutamente ciente dessa contradição e a enuncia claramente
no Projeto: “Na reprodução da experiência – no afeto – a única Q adicional é a que catexiza a lembrança, sendo evidente que essa é da
mesma natureza que qualquer outra percepção e que não pode resultar, portanto, num aumento geral de Q’”. ( FREUD,
1950[1895]/1975, p. 95)
Para solucionar essa contradição Freud cria a hipótese da existência de um outro conjunto de neurônios, os “neurônios-chave”,
secretores, que quando excitados se conduziriam de forma semelhante aos motores, que provocam a resposta muscular de descarga. A
semelhança diz respeito à influência nos processos do organismo que, ao contrário dos motores, provocariam “[...] a manifestação de
algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de condução até  - neurônios que dessa forma influenciam a produção de Q’
endógena e, conseqüentemente , não descarregam Q’, mas fornecem-na por vias indiretas.”(Idem, Op.cit., loc. Cit)
Com a introdução dos neurônios-chave, temos uma descrição do funcionamento mental muito mais complexo, uma vez que processos
mentais, como uma lembrança, afetam processos corporais e aumentam o nível de Q’ nos sistemas, algo como uma retroalimentação.
Poderíamos ter aqui uma ponte para a compreensão das fantasias traumáticas. Seria possível defender sua ação? Por ora, o que podemos
considerar, com maior grau de coerência, é o possível efeito traumático das facilitações, uma vez que não é a catexia a responsável
pelo aumento de nível em : “Como a liberação do desprazer pode ser extremamente grande quando existe uma catexia bastante
insignificante de lembrança hostil, pode-se concluir que a dor deixa atrás de si facilitações especialmente abundantes.” (FREUD,
1950[1895]/1975, p. 56).
Se a experiência de dor foi intensa o suficiente para romper as barreiras defensivas, criam facilitações de caráter compulsivo. Ao menor
estímulo, uma lembrança provoca uma reação em cadeia que desembocará em desprazer. Não estamos descrevendo algo que se
aproxima dos sintomas do transtorno de estresse pós-traumático? Ao menor sinal de semelhança com a situação traumática a resposta
é de intenso sofrimento e tentativas de evitação. Essa facilitação que quase aproxima  de , é o que consideramos como o efeito
primeiro do excesso de estimulação, portanto do trauma, seja ele provocado por causas externas, como uma queda, um corte; ou
situações de ameaça à vida como assaltos e seqüestros, ou internas, como a ação dos instintos, desejos incestuosos ou fantasias de
estar sendo devorado. Trata-se de excessos.
A relação entre lesão corporal e trauma já fora discutida por Freud em “Estudos sobre histeria” (1895/1973), atentando para o fato de
que o que é a causa da enfermidade na neurose traumática não é a lesão corporal, mas o sobressalto, o trauma psíquico e acrescenta:
“Qualquer experiência que provoque os afetos penosos de medo, angústia, vergonha e a dor psíquica pode atuar como tal trauma”. (
p.43)
Por outro lado, não só a dor provoca afetos penosos que podem ter efeito traumático, as feridas narcísicas também, como a vergonha.
Sintetizemos as idéias as idéias centrais defendidas aqui:

• Os processos de dor e trauma podem ser equiparados na medida em que o trauma é definido como um excesso de
estimulação, que afeta a forma como a energia opera no aparelho psíquico.
• A dor independe da consciência.
• Um excesso de energia livre em  pode afetar a função da consciência em , tanto na dor como no trauma.
• A dor provoca facilitações do tipo compulsivo em , o mesmo com referência ao trauma.
• Sensação de dor e afeto da dor não são o mesmo, apesar de estarem associados.
• A descarga de excitação no caso da dor é expressão de afeto. Deve haver uma equivalência no trauma.
• Uma pequena catexia associada a uma lembrança de um objeto hostil pode provocar um aumento de Q´ se as facilitações
forem intensas.
• Não é a lesão corporal que é traumática, mas o afeto a ela associada. Transportando para o tema da dor, não é a dor que
pode ter um efeito traumático, mas o afeto a ela associado.
• Os estímulos de origem interna, quando excedem o nível ótimo de operacionalidade do aparelho psíquico, passam a ser
tratados como se fossem de origem externa, como forma de por em ação as barreiras de estímulos. Esta é a origem da
projeção.
• Uma forma de trabalhar com o excesso de estimulação no trauma é tratá-lo, independente de sua origem, como estímulo
externo.
• Da mesma forma que a dor possibilita a construção de um objeto hostil, o trauma conduzirá `a construção de um objeto
traumatizante, que é vivido como objeto externo.
• Tanto os traumas, como a dor, convocam um sobre-investimento narcísico.
• O trauma teria como efeito deletério a distribuição uniforme de Q livre em ψ, que impediria o registro da experiência,
igualando ψ e φ.
• O trauma afetaria a estrutura egóica, provocando uma elevação geral do nível de Q, e eliminando as diferenciações internas.
• Para afetar a organização egóica deve haver participação dos instintos com Q livre.

2- Aspectos dinâmicos do trauma: aportes de S. Ferenczi

• Os mecanismos do trauma psíquico

A concepção de trauma para Ferenczi é bastante ampla. Implica tudo aquilo


que provoca uma transformação autoplástica(1932,1932a/1990). Neste
sentido, as alterações nas barreiras de contato, portanto as memórias, seriam
traumáticas: algo se inscreve e deixa a sua marca no aparelho psíquico.
Entretanto, utilizaremos a noção de trauma acoplando ao aspecto econômico
aquilo que diz respeito à forma como o aparelho psíquico é afetado pelo
excesso: regredindo a organizações menos complexas, aliado à condição de
não haver nenhuma possibilidade ao alcance da pessoa de transformação
aloplástica. Em outras palavras, a pessoa vivencia uma condição de
abandono e impotência diante de uma ameaça à sua existência.
O trauma é uma ferida no ego, portanto uma ferida narcísica. A forma com
que ego busca a manutenção de um estado mínimo de organização, quando
avassalado por angústia, é através da clivagem (FERENCZI, 1932a, 1932b,
1932c/1990, 1933/1992). Quanto mais precoce o trauma, ou quanto mais
intensa angústia, maior a fragmentação do ego. A fragmentação garantiria
um mínimo de organização no caos, entretanto ela traz por conseqüência
uma espécie de fenda, ou usando a analogia de Freud (1940[1938]/1973),
uma cicatriz permanente. A ação imediata do trauma é a ativação de
processos psicóticos: despersonalização, alucinações (FERENCZI,
1930/1992, 1932d/1990). A experiência traumática pode ser descrita como
um estar fora de si, uma dissociação, como se fosse impossível conceber que
quem está vivendo algo inominável é a própria pessoa. Expressar essa
vivência em palavras seria algo como: “Não. Isto não está acontecendo
comigo.” Uma parte vivencia a experiência e dela nada compreende, e outra
parte despregada do núcleo do ego, ou núcleo narcísico, é capaz de ter a
cognição, mas não o sentimento. A noção de realidade fica de imediato
transtornada, ou impedida: Aquilo que está sendo vivido é inaceitável
demais para ser concebido como real. Poderíamos dizer que o real é de tal
forma invasivo que não pode ser simbolizado.

• O seqüestro do ego

Uma maneira de lidar com a invasão do real é , como vimos anteriormente,


através da perda da consciência. Mas, isso não impede que a percepção
invada o aparelho psíquico: "Contra uma impressão que não é percebida não
há defesa possível.” (FERENCZI,1934[1920-1932]/1992, p. 113) Essas
impressões não podem ser lembradas, mas repetidas, atuadas. A esse
processo Ferenczi denomina como seqüestro do ego14
(FERENCZI,1922/1993), que é um extremo de reação autoplástica. O grau
de inconsciência pode variar desde uma regressão a um estado intra-uterino,
até um estado de não vida: daí a gradação descrita por Ferenczi de perda da
consciência, estado comatoso, até morte. Esse abandono das defesas é
interpretado por Ferenczi como a última trincheira: entregar-se à morte para
não morrer uma morte inesperada.
No seqüestro do ego (FERENCZI, 1921?/1993), os objetos externos não podem ser
investidos, a carga de percepção é retirada e o próprio corpo passa a ser território estrangeiro:
a alma não habita mais o corpo, mas está algures, por um processo de autotonia psíquica e de
retirada de investimento libidinal no corpo. Se a carga de percepção é retirada e as conexões
com o corpo ficam barradas, a única realidade parece ser a psíquica. As vias de representação
que possibilitariam diferentes formas de vinculação da Q’η excedente tornam-se inacessíveis.
No seqüestro do ego, o narcisismo se concentra no ego mental, desconectado do corpo e da
realidade externa. A flexibilidade cérea dos catatônicos seria um sintoma que se torna

14 A primeira vez que Ferenczi menciona o seqüestro do ego foi em um artigo de 1922 cujo tema não era o
trauma,mas uma patoneurose cerebral, uma reação emocional às perdas causadas pela paralisia geral. É
interessante notar que nesse trabalho Ferenczi relaciona as patoneuroses com as neuroses de guerra, ambas
como uma disfunção da libido narcísica.
possível através do seqüestro, que fica evidenciado como um completo desinteresse sobre o
que acontece com o próprio corpo e com o mundo externo.
Ferenczi mencionou uma ilusão de retorno ao útero(1921?/1993). Uma ilusão
pressupõe a ação do princípio do prazer. Devemos lembrar que é característica do trauma
apresentar um montante de excitação indômita, ou seja, que não pode ser tratado de acordo
com o princípio do prazer. O que está encontrando representação não é a experiência
aterradora, mas uma forma de encontrar um escoadouro para a Q livre, o excesso
característico do trauma, a reconstrução de uma realidade segundo os moldes do princípio do
prazer. Ora, mas se isso está ocorrendo, não podemos dizer que há falha do princípio do
prazer porque foi encontrada uma via de representação que tem como função escoar a energia
de uma forma tal que favorece a descarga.

O ego, desconectado do corpo e do mundo externo, não processa mais os sinais de

ameaça nem internos, nem externos, como um retorno a uma fase de onipotência

incondicional, correspondente à vida intrauterina. Se o ego todo é vítima desse seqüestro,

esse estado pode conduzir à morte. Esse mergulho no vácuo tem como conseqüência a

fragmentação do ego até um estado de dissolução e indiscriminação, que equivaleria, no

modelo do Projeto, a equivalência entre ψ e φ em vários pontos afetados. O ego ferido atrai

para si toda a libido, como uma forma de cuidar da própria ferida, mas isto implica um

abandono dos objetos, sendo que a pulsão de morte também refluiria para o ego. O excedente

de Q’η destrói as conexões, inviabiliza funções outrora desenvolvidas, rompe com as

associações e fragmenta o ego em múltiplos pedaços. Uma desconexão importante é a que

poderia se dar entre ψ e φ . A recepção dos estímulos externos seria afetada, bem como, entre

os neurônios nucleares e pallium. A recepção dos estímulos do interior do organismo, os

proprioceptivos, também seria prejudicada. Equivaleria a “não vejo, não sinto” e no lugar

desses vácuos teríamos as alucinações, ou, em última instância, descargas motoras sem
imagens. É como um corpo que convulsiona e uma mente em agonia, que sonha não ter

nascido, ainda.

O seqüestro do ego é a expressão de cisões entre mente e corpo e entre mente


e meio ambiente. Não podendo mais confiar em seus sentidos, nem em suas
sensações, as fantasias passam a ganhar sinal de realidade. Desconectar-se
do ambiente significa ficar `a sua mercê , da mesma forma que se desligar
do corpo é abandoná-lo aos processos de automatismo.
As idéias de barreira de contato do Projeto e de fronteira da Teoria Geral dos Sistemas
induzem-nos a uma noção de que é um lugar de passagem, de troca, de limite que, quando
perdido poderia conduzir a destruição da organização daquele espaço contido, organização
que se mantém pelo crivo das barreiras, como a recepção de estímulos e a memória. Assim
poderíamos pensar em estruturas ou subsistemas que realizam trocas como os neurônios, o
ego e o id, o aparelho psíquico e o organismo total, a díade mãe-bebê, a tríade edípica, a
família, o grupo, a comunidade, a sociedade, em uma ordem crescente de complexidade. O
estado das fronteiras entre cada sub-sistema garantiria a organização de cada sub-sistema e
suas funções específicas. A cisão equivaleria a um estado na fronteira que impediria as
conexões, ou seja, as trocas entre os sub-sistemas, enquanto a atomização equivaleria a uma
perda de fronteiras, a uma indiscriminação. A idéia de fronteira nos faz associar com uma
topografia, mas não devemos levar muito longe essa imagem, pois ela não corresponderia
aos fenômenos que se processam, por exemplo, no cérebro. Determinados processos
neuronais que culminam com a formação de imagens não se processam em regiões
circunscritas e ligadas, mas por uma sincronização.., possíveis, da mesma

• Fragmentação do ego

Se a pessoa consegue manter a consciência pode tentar lançar mão de uma


alucinação negativa e procurar substituir a realidade insuportável por algo
mais de acordo com o princípio do prazer. Entretanto, a clivagem terá de se
estabelecer, mantendo fora do alcance aquele estrato negado.
O espaço vazio provocado pela denegação é ocupado pela introjeção do
agressor (FERENCZI, 1932/1990). Já que a pessoa se encontra incapacitada
de fazer qualquer alteração no ambiente, ou com relação ao objeto a que está
submetida, esse algoz é introjetado para que possa transformá-lo de acordo
com o princípio do prazer, através da construção de fantasias optativas de
desejo, na medida em que o algoz tem o estatuto de objeto interno
(FERENCZI, 1933/1992). Porém, essa tentativa será fadada ao fracasso, pois
a transformação não se faz completamente e a angústia não é eliminada.
Assim, permanecem lado a lado, horror e prazer. Tal processo pode
desenvolver-se como masoquismo, quando o objeto algoz passa a ser
erotizado. Voltaremos a falar nessas transformações quando discutirmos no
Cap que discutirá sobre a Síndrome de Estocolmo.
Logo de saída convém recordar que o mecanismo em ação nos fenômenos
que Ferenczi descreve é a clivagem, fragmentação da personalidade, e a
atomização, em uma seqüência crescente de danos, diferentemente da
repressão, o processo mais central e organizador, no modelo freudiano.
Sob ação de poderosos estímulos, independente de sua origem,
quando o que prevalece é o efeito de susto, encontramos um ego
despreparado, sem contra-investimentos, ou contracatexias. Lembramos que
as contracatexias funcionam como pára-choques intrapsíquicos,
positivamente psíquicos. A ação sob o psiquismo será de fragmentação. O
mesmo se daria com o corpo sem preparação para um choque:

Fragmentos de órgãos, elementos de órgãos, fragmentos e elementos


psíquicos são dissociados. No plano corporal, trata-se realmente da
anarquia dos órgãos, partes de órgãos e elementos de órgão, quando a
colaboração recíproca é a única que torna possível o verdadeiro
funcionamento global, ou seja, a vida; no plano psíquico, a irrupção da
violência, ou a ausência de um contra-investimento sólido, provoca uma
espécie de explosão, uma destruição das associações psíquicas entre
sistemas e conteúdos psíquicos, que pode estender-se até aos elementos de
percepção mais profundos.(FERENCZI, 1932e/1990, P. 105-6).

A fragmentação implicaria primeiramente a perda de fronteiras,


como se os elementos coesos agrupados retornassem a uma indistinção, a
uma ausência de diferenciação, ou usando o esquema conceitual do Projeto,
as barreiras de contato deixariam de oferecer resistência. Ferenczi não
considera que a meta seja a autodestruição, mas uma estratégia desesperada
de manter a vida (FERENCZI, 1932a/1990). O abandono da cooperação
funcionaria como uma economia de energia que poderia estar à disposição
para os processos de regeneração. Ferenczi faz um paralelo com a biologia,
com experimentos onde um ovo de ouriço era submetido a processos
agressivos tendo como resultado a paternogênese artificial e compara essa a
produtividade como conseqüência da destruição, nos traumas:

Algo semelhante no caso seguinte: uma criança é atingida por uma agressão
inevitável, conseqüência: ela ‘entrega a sua alma’ com a convicção de que
esse abandono total de si mesma (desmaio) significa a morte. Mas
justamente a descontração total que se estabelece pelo abandono de si pode
criar circunstâncias mais favoráveis para poder suportar a violência. ( p.73)

A vertente positiva do trauma seria a tentativa de reconstrução da


personalidade a partir de seus fragmentos. Quais seriam esses fragmentos?
Qual o seu número? Aparentemente, quanto mais intensa a ação da pulsão
de morte invocada pelo desprazer insuportável, e pela perda da vinculação
como libido de objeto, maior será a fragmentação, e a cada nova violência,
nova fragmentação. Mas, em termos gerais, tentaremos expor uma paisagem
menos nebulosa, resgatando as possibilidades expressas por Ferenczi.
Ferenczi refere-se muitas vezes que uma parte da personalidade fica
‘fora de si’, como se continuasse a existir fora do corpo, fora da mente, em
algum lugar na realidade psíquica, havendo assim uma clivagem e uma
projeção para um espaço, que é, em última instância, o próprio espaço
mental, o seqüestro do ego. Essa parte seria a que se submeteu à força, a
vontade vencida, que contém os protestos, uma tendência a para dar
continuidade ao que foi interrompido pelo choque, inclusive do ponto de
vista muscular, como um gesto congelado, uma ação interrompida.
Parece prevalecer nessa parte clivada tendências anteriores ao
choque, tentativas de defesa, reações aloplásticas, uma avaliação talvez até
arrogante das próprias capacidades, bem como tentativas de reparação,
inclusive do estrago interno do próprio agressor, o seu distúrbio mental.
(FERENCZI, 1932f/1990).
Uma outra parte pode conter o sofrimento puro, que é o que emerge
nos sonhos sem imagens, ou sob a forma de doenças funcionais: é o que
ficou no corpo abandonado pela alma, executando atos sob sugestão da
vontade externa.
Uma terceira parte cumpre uma função materna, ou regida pela
“Orpha”15, como um anjo da guarda. Esta parte é a responsável pela
construção da ilusão, de fantasias compensatórias, de alucinações, de
controles de funções corporais, que visam impedir o suicídio: “Esse ‘anjo da
guarda’ é construído a partir de fragmentos da personalidade psíquica.
Provavelmente fragmentos do afeto de autoconservação” (FERENCZI, 1934
[1931-2]/1992, p. 143)
Esta parte mantém a busca de uma realização de desejo que, em
função de sua natureza compensatória é impossível, gigantesca.
No caso dos traumatismos infantis, ao final destas fragmentações jaz
uma criança como morta, agonizante ou em pleno desespero, que é a criança
ferida, o ego infantil lesado, cercado de segredo e silêncio, porque as
conexões com o restante da mente foram cortadas, ou porque o registro não
se realizou. Nesses caos, em que a pessoa perde a consciência , não há o que
recordar, só o que repetir, é preciso que as impressões desfalecidas se
recomponham através da realidade externa, seja via transferência, seja como
outras formas de compulsão à repetição. Esta é a parte indômita do trauma,
o resíduo não elaborado.
Esse conjunto de neoformações é resultante da clivagem narcísica do ego,
uma nova forma de organização que deixa marcas profundas no Ego e que
retém um núcleo, o núcleo da explosão, como que cercado por um fosso.
Acercar-se dele só se torna possível (se o for) através da construção de
inúmeras conexões, como uma cerzidura, o que seria na linguagem do
Projeto a abertura de múltiplas vias de condução, cadeias associativas, ou
segundo Ferenczi, uma ampliação do círculo de interesses:

15Orpha para Ferenczi são instintos vitais organizadores que suscitam, entre outras coisas, fantasias de
consolação, alucinações, anestesia a consciência e a sensibilidade contra sensações que se tornam intoleráveis.
As referências mais explícitas encontram-se no Diário Clínico, p. 40 e 130.
Quanto mais forte é o sofrimento, quanto mais destrutivo, e talvez quanto
mais precocemente ele teve que ser experimentado, determinando assim
uma orientação, tanto mais terá que ser o círculo de interesses a traçar em
torno do centro do sofrimento para que este seja vivenciado como rico de
sentido, inclusive naturalmente necessário. (FERENCZI, 1932d/1990, p.
65)

Após a explosão inicial, as partes se combinam de forma nova e o ego é


reconstruído a partir dos fragmentos, mas ele manterá nas clivagens o
registro histórico da brutalidade do trauma que é sempre um ataque ao
narcisismo, com suas cicatrizes que rompem a unidade do Ego.
Freud usara no Projeto, como metáfora para o poder de ação do
estímulo da dor a imagem de um raio. Essa imagem nos faz atentar para o
estímulo, enquanto que explosão, para o efeito e Ferenczi descreve esse
efeito - dissociação e fragmentação - remetendo-nos uma vez mais à ação da
pulsão de morte. Efeito do trauma seria não só a impossibilidade de registro,
mas a destruição de conjuntos antes agregados, vinculados por associações.
Na verdade, o que parece mais coerente não é a destruição dos conteúdos,
mas dos elos de ligação entre eles. Aqui, não se trata de repressão primeva.
A repressão primeva refere-se `a fixação de um conjunto de relações que se
tornam imutáveis; a fragmentação desconecta o que antes estava ligado. A
fixação da libido, para Ferenczi (1932h/1990) só pode se dar por medo. Não
haveria fixação da libido por ‘excesso de prazer’. Nossa premissa é de que
para haver a fixação deve ter havido trauma e antes houve uma
fragmentação, esta sim, primeira reação ao trauma. A criança, por estar mais
próxima da não-vida, está mais pronta para a explosão e fragmentação do
que para o contra-investimento. A fixação e a repressão primeva seriam
ulteriores à fragmentação.
Ferenczi se pergunta sobre o que é trauma e responde: “‘Comoção’,
reação a uma excitação externa ou interna num modo mais autoplástico (que
modifica o eu) do que aloplástico (que modifica a excitação).”(1932/1990,
p. 227)
E Ferenczi complementa esclarecendo qual é a modificação do eu:

Essa neoformação do eu é impossível sem uma prévia destruição parcial ou


total, ou sem dissolução do eu precedente. Um novo Ego não pode ser
formado diretamente a partir do Ego precedente, mas a partir de
fragmentos, produtos mais ou menos elementares da decomposição deste
último. Explosão, pulverização, atomização.) A força relativa da excitação
‘insuportável’ determina o grau e a profundidade da decomposição do Ego:
a) Mudança do estado consciente (transe, estado onírico).
b) Perda do estado consciente
c) Síncope
d) Morte.(1932g/1990, p. 121)

Ferenczi não desconsidera o elemento quantitativo, e é efetivamente


a magnitude da resultante entre a resistência (defesa) do ego e a força da
excitação que definirá o grau de decomposição do Ego.
Nunca é demais repetir a importância da ação das pessoas que
cuidam do bebê no início de sua vida, pois são os elementos mais importantes
do meio ambiente do bebê:
O indivíduo ainda inacabado só pode prosperar num meio ótimo. Numa
atmosfera de ódio não pode respirar e perece. Psiquicamente, a destruição
exprime-se na fragmentação própria da psique, ou seja, o abandono da
unidade do Ego. Se o indivíduo ainda ‘semilíquido’ não é sustentado de
todos os lados por esse ótimo, ele tende a ‘explodir’ (pulsão de morte de
Freud). Mas de um modo que nos parece místico, os fragmentos do Ego
permanecem ligados, ainda que deformados e encobertos uns pelos outros.
(1932/1990, p. 221)

Ferenczi considerava que os bebês e crianças pequenas têm, pela fluidez da


própria personalidade, uma sensibilidade aos estímulos maior que dos
adultos o que os torna passíveis de responder em ressonância com o meio,
ou ser por ele moldados, e que essa sensibilidade poderia afetar não só os
órgãos dos sentidos, mas de uma forma mais extensiva e ainda
indeterminada, como percepções extra-sensoriais. O trauma reproduziria
esse estado semifluido, uma vez que rompendo as barreiras de estímulos
criariam condições para que esses enxertos penetrassem sem resistência. Isso
afetaria diretamente a formação do superego:

A formação do superego adquire por meio dessas representações um caráter


mais plástico. Devo a diversos pacientes a representação, anotada em outro
lugar, segundo o qual os adultos fazem entrar a força a vontade deles e,
mais particularmente, os seus conteúdos psíquicos de caráter desagradável
, na pessoa pueril; esses estranhos transplantes clivados vegetam ao longo
da vida na outra pessoa (reciprocamente, ouço declarações sobre o fato de
que as partes expulsas da pessoa pueril são, por assim dizer, assimiladas
pelo dispensador do superego). (FERENCZI, 1932i/1990, p. 118)

A criança que sofreu um traumatismo desenvolve – ou mantém – uma


hipersensibilidade voltada para o exterior, como uma parte clivada da
personalidade, cuja função é a de uma sentinela (FERENCZI, 1932e/1990)
que vigia contra os perigos externos, o equivalente da censura que vigiaria
contra os perigos internos. Essa sentinela seria a responsável pela
hipervigilância que encontramos no transtorno de estresse pós-traumático.
Segundo o Projeto, uma importante função da atenção seria a de inibir o
processo primário: evitar as vias primárias facilitadas e os processos afetivos
concomitantes. Sigamos a descrição de Freud:

A princípio, uma catexia perceptiva, em sua qualidade herdeira de uma


experiência dolorosa, gerou desprazer: ela, [a catexia] foi intensificada pela
Q’η liberada, continuando depois até a descarga por vias de passagem que
já se encontravam parcialmente pré-facilitadas. Uma vez formado um ego
catexizado, a ‘atenção’ para novas catexias perceptivas se desenvolveu da
forma que se sabe e ela [a atenção] segue, com as catexias colaterais, o
curso [de quantidade] de percepção.(FREUD, 1950[1895]/ 1975, p. 100)

O intuito da atenção é evitar o efeito de susto: um ego com baixa catexia


ficaria à mercê dos estímulos. Além disso, a sentinela, com sua tarefa
semelhante à censura, só que com seus olhos voltados para o meio e para a
superfície do corpo, põe em ação, em minha opinião, o sinal de angústia,
como nos indica a continuação da passagem anterior:“Desse modo, a
liberação de desprazer ficou quantitativamente restrita e seu início serviu,
precisamente, de sinal para o ego para por em ação a defesa normal”.(Idem,
op. cit, loc. cit.)
O sucesso da defesa dependerá da magnitude de liberação de desprazer e da
Q’η que se esforça em manter seu curso : da angústia e/ou da dor e do
montante de estímulo. Para tanto, ψ necessita de indicações de qualidade, ou
seja, a eficácia do processo depende da percepção consciente e da atenção,
outra função do ego consciente. A atenção pressupõe uma focalização, ou
em termos da Psicologia da percepção, a formação de uma gestalt. Ali onde
falhar a consciência a sua malha protetora não será acionada, o aparelho
psíquico é tomado de surpresa : não se espera que um golpe venha dali de
onde ele vem. É de especial importância quando o ataque sobrevém de quem
se espera amor ou cuidado. Depois do ataque inesperado, o mundo não será
mais o mesmo e o corpo em estado de prontidão impede que o contato com
as fontes de prazer e os objetos de amor resgate a entrega confiante, em
especial se o ser ferido não encontra alguém que lhe tenha compaixão e que
lhe confira realidade e sentido ao sofrimento. As experiências de satisfação
serão afetadas daí por diante pelos traços de uma ambivalência afetiva. A
comunhão com o objeto e a atitude de entrega confiante não é mais possível
porque a sentinela não pode abandonar seu posto.
Podemos hipotetizar que um traumatismo precoce que ocorra quando já se
estabeleceu uma crença em potências externas, que é a etapa de
desenvolvimento da realidade que sucede a onipotência do narcisismo
primário, corresponde a uma perda na crença da bondade e benevolência
externa. Não há nada nem ninguém em quem se possa acreditar ou esperar
um gesto de bondade. A criança, muda em sua dor, só pode contar consigo
mesma e tem que desenvolver os meios para tanto. Se, entretanto, não há
uma desilusão a chorar, não há uma perda na crença de um objeto protetor
externo, como um deus, o caminho para a construção desse objeto fica
vedado. O mundo externo se oferece à força, provocando uma divisão
prematura e abrupta entre um sistema objetivo e subjetivo: “[...] tendo cada
um seu próprio modo de rememoração, do qual, de fato, só o sistema objetivo
está completamente consciente.” (FERENCZI, 1932e/1990, p. 105)
O que fica separado? Afeto e representação, sensações e percepções? Vimos
anteriormente que Ferenczi supunha uma clivagem entre o subjetivamente
narcisista e o objetivo. Sugere uma clivagem entre os registros nos neurônios
nucleares e pallium, o que é reforçado pela descrição de Ferenczi de uma
clivagem entre uma parte da personalidade que tudo sabe e nada sente, e uma
que sente e nada sabe, e de inúmeras repetições em análise em que os
pacientes reviviam experiências traumáticas, mas quando se dispunham a
pensar sobre elas provocavam-lhes um intenso sentimento de irrealidade. As
conexões estavam cortadas. E um dos cortes mais brutais é aquele que é
processado por alguma pessoa do ambiente da criança que nega a realidade
dos fatos ocorridos e ainda castigam a criança (FERENCZI, 1930/1992). A
experiência vivida, as impressões sensoriais e as respostas corporais só
podem retornar sob a forma de alucinações, distorcidas, retocadas,
composições híbridas, irreconhecíveis. Trata-se do que Freud denominou de
cerne da verdade nos delírios e alucinações. Não é o retorno do reprimido,
mas do retorno da realidade impossível de ser aceita: o registro do que
provoca tamanho desprazer é impossível, incompreensível e sem palavras.
Há aqui um novo elemento: parte do mundo externo encontra acesso e
assento constituindo-se com uma parte separada do ego com poder de
comando: o superego. O superego é uma interdição externa introjetada, é
algo que frustra a satisfação dos impulsos e é também o representante do
perigo que ameaça a barreira de estímulos. Ora, a tendência natural de um
impulso é a descarga. Essa tendência só é inibida por força do meio externo
que conduziu a associação entre satisfação e perigo. Assim, parece plausível
que a etiologia do trauma conduza-nos sempre ao ambiente que priva ou fere,
que frustra a satisfação provocando um excesso de Q’η que por somatória
tem efeito traumático - uma estase de excitação - ou rompendo a barreira de
estímulos um excesso de Q, provocando uma ferida narcísica com seu
excedente de Q’η não vinculada. Como objetivamente nos demonstrou Freud
em “Mal estar da civilização” (1930/1973) , o sofrimento pode vir de três
fontes: do nosso próprio corpo, do mundo exterior com seu poder de
destruição, e das relações com as pessoas. Desta última fonte emanaria um
sofrimento mais doloroso que os demais. Assim, sem desprezar as doenças
orgânicas e a nossa finitude, nem as catástrofes naturais, o que nos faz
adoecer são as relações traumatizantes. E são essas mesmas relações que
podem tornar mais ou menos suportáveis os sofrimentos das outras fontes.

O trauma afeta, assim, a possibilidade de reconhecimento do mundo externo


por absoluta incapacidade de suportar o desprazer.
O aspecto econômico do trauma se apresenta mais uma vez: trata-se de
excessos, de magnitudes impossível de serem dominadas. Para isso, é preciso
que alguém intervenha para auxiliar, como a mãe auxiliou o bebê, na
distribuição desse excesso, e na sua vinculação. Um aparelho psíquico
auxiliar, como um rim vivo, não artificial, que vai ajudar a eliminar as
toxinas e irrigar sangue saudável para todas as partes, ou um coração auxiliar
capaz de compaixão.
Oferecemos uma proposta de delimitação do conceito de trauma
segundo seu efeitos. Toda alteração no montante de excitação, num dado
momento conduziria o aparelho psíquico a realizar trabalho, ou seja, a algum
tipo de alteração autoplástica ou aloplástica que conduza a uma forma de
contenção ou de descarga do excesso de estimulação. A tendência do
organismo seria buscar a homeostase - o retorno a um estado anterior, ou a
uma adaptação, uma mudança no montante de excitação presente no
organismo num dado momento que conduz a um novo estado de equilíbrio.
Se esse novo estado de equilíbrio se torna possível por um aumento de
complexidade das relações ou funções do aparelho psíquico, temos uma
mudança qualitativa que propicia a tolerância de um montante de tensão
presente no organismo maior do que o anterior. Exemplos dessa condição
poderiam ser:

• Um aumento de Q refletida como aumento do número de neurônios em ψ


• A realização alucinatória de desejo como forma de auto-afirmação
• A inauguração do processo secundário
• Os processos de inibição do ego como o pensamento: interpolação entre estímulo e
resposta e como formas estratégicas
• A constituição do narcisismo primário
• As escolhas objetais
• A comunicação
• As ações específicas deliberadas.

Se, por outro lado, o montante de excitação conduz a uma


organização menos complexa, como uma regressão, o trabalho de dominação
da excitação não se deu de forma funcional. Teríamos, então um excedente
de excitação que permanecerá como tensão crônica e não como energia à
disposição do ego para a genitalidade e para ações específicas. São
exemplos:
• Os processos defensivos cronificados como a repressão primeva e a divisão do ego
• A fixação da libido
• A divisão somato-psíquica
• A constituição da censura
• A constituição da sentinela
Há, entretanto, um limite em que a tolerância da tensão dentro do
aparelho psíquico que conduz a formas híbridas de descarga e contenção e
que produzem uma ineficácia de adaptação mantendo o organismo como se
estivesse em estado de emergência:
• A formação dos sintomas
• As neuroses, psicoses e psicopatias.
• As caracteropatias
• As doenças psicossomáticas
• Sob a forma de neurose atual: o transtorno de estresse pós-traumático
• A prevalência das transformações autoplásticas em detrimento das aloplástica.

Poderíamos dizer que o estado de tensão crônica contém os pré-


requisitos para a formação nos processos mórbidos: qualquer aumento de
excitação seja ele de origem ambiental ou intrapsíquico, conduzirá à
produção de patologias. Na base de toda a morbidade está a dificuldade de
integração do aparelho psíquico, que Freud evidenciou como conflitos do
Ego com o Id, do Ego com o Superego e do Ego com a realidade externa e,
nos termos das fronteiras que discutimos, de cisões intrapsíquicas, da mente
com o corpo e da mente com o ambiente. O que promove o trabalho psíquico
é tanto a estimulação externa (como um perigo) quanto à estimulação interna
(como necessidades frustradas).
Manteríamos a denominação de traumático para aquele efeito de
estimulação, seja ele externo ou interno que não pode ser tratado de acordo
com o princípio da realidade, nem com o princípio do prazer, com a presença
de um resíduo que provoca rupturas na integridade do ego, dificultando a
conjugação do sentir, pensar e agir.
Em última instância, poderíamos considerar traumatófilas quaisquer
impressões que tratamos segundo o modelo da transferência, ou seja,
travestindo de velhas roupagens aquilo que se apresenta como inesperado ou
desconhecido, tudo aquilo que provoca o efeito de susto ou de surpresa.

REFERÊNCIAS

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A fixação no trauma e a teoria da libido16
Cláudia Maria Sodré VIEIRA
Eva Maria MIGLIAVACCA

Freud, em diversos momentos de sua obra (1893, 1916, 1926, 1939), defrontou-nos
com o enigma da fixação no trauma. Encontramos evidências dessa fixação nos sonhos
traumáticos, nas “neuroses de destino”17, nos sintomas neuróticos e psicóticos e na
transferência. Todos esses fenômenos revelam uma repetição compulsiva de experiências de
intenso sofrimento, que conduziram Freud a cogitar a hipótese de um masoquismo do ego,
sinal da ação da pulsão de morte voltada para o próprio ego, cujo efeito seria o sofrimento e
a autodestruição.
Podemos defender uma origem traumática dos fenômenos citados exatamente pela
manifestação da compulsão à repetição de uma experiência de desprazer. O aspecto
compulsivo indica que um montante de excitação busca derivação, a repetição do sofrimento
indica a ineficácia do modo de conduzir a energia e, mais ainda, a impossibilidade de
aprender com a experiência: repete, repete e repete o horror, sem alteração. A única alteração
é aquela que permite que o outro se conduza como o mesmo, como alguém dominado por
uma maldição, um Édipo que fugindo ao seu destino, o realiza. Tal é a eficácia da compulsão
à repetição: ela obedece a um mecanismo que poderia ser equiparado `a retroalimentração

16 Artigo originalmente publicado com o título de O trauma como a fixação da libido ao instinto de morte, na
revista Mudanças- Psicologia da Saúde. V.10 (1), jan-jun 2002, p. 31-40.
17 Freud, em 1932, na Conferência XXXII, Ansiedade e vida instintual, refere-se a uma espécie de destino
demoníaco que persegue algumas pessoas, mas que se trata de uma faceta da compulsão à repetição e que,
portanto, incide no campo de determinações da própria pessoa. A pessoa, sem se dar conta, favorece a
repetição de relações ou mesmo fatos desagradáveis, perigosos ou assustadores.
negativa, buscando um equilíbrio homeostático que seria caracterizado pela ausência de
estímulos que obviamente não é alcançado enquanto o organismo estiver vivo.
A compulsão à repetição é para Freud uma característica pulsional e não monopólio
da pulsão de morte, ela sinaliza o caráter conservador dos impulsos que visa conduzir a um
estado anterior. Pensamos que a pulsão de morte, mais primitiva que a de vida, obedece ao
princípio do nirvana, à ausência absoluta de excitação. A pulsão de vida, por seu turno,
apresenta também a tendência à repetição, mas da experiência de prazer, da descarga de
excitação e não do estado de ausência de estímulos. A pulsão de vida parece ser regulada por
freqüências, modulações, ritmos que experienciamos como prazer ou desprazer:

O prazer e o desprazer, portanto, não podem ser referidos ao aumento e a


diminuição de uma quantidade a que chamamos tensão do estímulo, ainda
que, desde logo, apresentem uma estreita relação com este fator. Mas não
parece enlaçar-se a este fator quantitativo, senão a certo caráter do mesmo,
de indubitável natureza qualitativa. Teríamos avançado muito na psicologia
se pudéssemos indicar qual é este caráter qualitativo. Talvez seja o ritmo, a
ordem temporal das modificações, dos aumentos e diminuições da
quantidade de estímulo.Mas isto não sabemos.

A descarga de excitação não é sempre e necessariamente prazerosa, da mesma forma


que o desprazer não está sempre associado a aumento de excitação. Há um elemento
qualitativo que parece ser decisivo e, podemos aventar a hipótese de que esse elemento
qualitativo refere-se ao modus operandus das pulsões de vida e de morte. Se a pulsão de
morte é mais primitiva que a de vida, ela reage a Eros como a um distúrbio em um sistema
em equilíbrio, constituindo, desde a origem da vida, uma luta entre os instintos.
As pulsões fazem combinações, como uma espécie de pacto, ou como uma formação
de compromisso, não entre as instâncias, como estamos acostumados a pensar, mas entre as
diferentes manifestações pulsionais: criação e destruição, síntese e ruptura, vida e morte. A
hipótese de Freud (1923/1973) é que essência da diferença entre os instintos repousaria em
processos fisiológicos distintos, já que sua referência é a Biologia.
Para a mente em formação, essa possibilidade de acordo pulsional é uma salvaguarda
contra a ação direta da pulsão de morte livre na mente. Não poderíamos afirmar, dentro do
sistema conceitual de Freud, que a sua primeira direção fosse o próprio indivíduo, pois o
objeto ainda não estaria constituído. Para tanto, teríamos que considerar a constituição do
narcisismo primário, podemos aventar a hipótese de que a pulsão de morte estaria presente
sob a forma de energia livre18, não vinculada, e que juntamente com a libido, enquanto não
se constituíssem os desejos, atuariam como forças constantes e traumatizantes.
Enquanto a experiência de satisfação não habilita a formação do desejo, Eros só pode
comportar-se como Thanatos, ou seja, obedecendo ao princípio do nirvana: descarga total da
excitação, ou, a morte. Uma alteração ambiental, a satisfação das necessidades, é o que
propiciará as condições para a manifestação dos fenômenos da vida mental. Todavia, não é
o desejo erótico que conduzirá ao mundo externo e aos seus objetos, mas a pulsão de morte.
O ódio, para Freud, é anterior ao amor, parte da pulsão de morte é voltada como destruição,
para o exterior e é ela quem primeiro se lança ao objeto. Nesse sentido, podemos concluir
que o mundo externo como espaço mental será fundado pela pulsão de morte : a realidade
externa é primeiramente odiada e é esse espaço que servirá de apoio para o cultivo dos objetos
desejados.
A entrada do objeto é fundamental na ampliação dos pactos entre as pulsões cuja regra
de ouro é a descarga de excitação, ou seja, o que orienta o pacto é o princípio do prazer. Na
medida em que o ego se constitui como um objeto do Id no narcisismo primário, corre o risco
de atrair de volta para si também a pulsão de morte. Assim, é da maior importância que a
libido encontre outros objetos, mesclando-se com a pulsão de morte. Mesclar-se a Eros,
voltar-se contra o mundo externo, ser absorvida pelo superego e atuar livre no ego são as
vicissitudes da pulsão de morte. Podemos cogitar que essa mescla com Eros dependerá da
possibilidade da constituição de objetos e, fundamentalmente da possibilidade de vivenciar
um narcisismo positivo, ou seja, que o meio funcione como uma barreira de estímulos contra
o excesso de estimulação interna e externa, favorecendo a satisfação das necessidades, para
que o desejo se constitua.
A dissociação dos instintos ou a sua fusão deficiente estão na base de todos os
processos mórbidos e a formação dos pactos parece ter como pré-requisito os processos de
vinculação. A energia livre só pode ter um destino: descarga imediata e se isso não for

18Por energia livre entende-se, sucintamente, a forma de condução dos processos energéticos pr´prios do Id.
A condução dos processos referentes à energia vinculada incluem a catexia e a construção de fantasias, de
estruturas de relações de objeto, e dos processos de pensamento.
possível, só um efeito: trauma.
Para Freud, o aspecto econômico do trauma é determinante, pois trauma é descrito
como: “[...] um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso e que resulta em
perturbações permanentes da forma em que essa energia opera" (FREUD, 1916/1973, p.
2.294). O trauma é trauma por estar associado à impossibilidade do sistema mental absorver
o excesso de estimulação, transformando-o em trabalho psíquico ou em descarga eficaz, ou
seja, aquela que é capaz de alterar a própria fonte de estimulação. O problema energético que
o trauma traz repete a situação do início da vida: há um excesso de estimulação que se
configura como energia livre e que se manifesta, fenomenologicamente, como angústia
traumática. Trata-se da tarefa de criar condições para que o princípio do prazer possa se
estabelecer, ou, nos traumas posteriores, se restabelecer. Um sistema altamente catexizado
funciona como uma proteção contra o trauma19 como uma barreira interna de proteção. Nesse
sentido, o investimento narcísico, a catexia do ego é medida de autoproteção e o que garante
o desenvolvimento inicial do próprio ego. Parece, entretanto, que a capacidade do ego em
funcionar como objeto do Id tem limitações, e o caminho para os objetos deve ser trilhado
sob o risco de sucumbir ao excesso de estímulos e à incapacidade de transformação das fontes
de estimulação: não é suficiente alucinar um seio, é necessário alimento. Ao mesmo tempo,
a pulsão de morte deve ser desviada do próprio ego.
Os fenômenos relativos à compulsão à repetição, tão funestos nas pessoas
traumatizadas, revelam que a tarefa primária de dominar a excitação, de vinculá-la, ainda não
obteve sucesso. A repetição da experiência traumática, seja em sonhos, sintomas,
transferência ou no cotidiano, representam diversas tentativas de domínio da excitação
fracassadas. A repetição do trauma é como um desejo às avessas, é o seu negativo. A fixação
no trauma revela o lado obscuro do funcionamento pulsional, como um curto-circuito onde
Eros e Thanatos estão separados, a fixação da libido emerge como uma forma de organização
que permite manter um montante de energia vinculada, mesmo que com uma fusão
imperfeita, carregada de ambivalência: “[...] a essência de uma regressão da libido (por
exemplo, desde a fase genital à sádico-anal) está integrada por uma dissociação dos
instintos.” (FREUD, 1923/1973, p. 2717).

19A importância da catexia como medida protetora é apresentada por Freud de maneira muito explícita em
Além do Princípio do Prazer (1920) e é discutida no cap. 3 deste livro.
A regressão20 é menos danosa do que a angústia traumática em seu estado original,
ela já comporta um trabalho mental mais evoluído e, ao mesmo parcialmente, o princípio do
prazer está em atuação. A fixação no trauma revela a necessidade de encontrar a experiência
que forneceria a possibilidade de registro de uma descarga adequada. Em outras palavras, a
repetição do trauma é como uma fome não saciada, e que não se reconhece como fome: Eros
está mudo. Poderíamos considerar a hipótese de que a fixação de uma cota da pulsão de morte
no trauma é a contra-parte da fixação da libido .
A fixação da libido funcionaria como uma barreira defensiva contra a repetição do
trauma, como uma forma do aparelho psíquico seduzir-se a si mesmo, desviando a condução
da libido para uma organização de desejos, fantasias e angústias em que prevalece o princípio
do prazer, daí a possibilidade de formar sintomas, por exemplo. Sob esse escudo se esconde
o núcleo traumático como um vórtice que sorve o que lhe está próximo em uma tentativa de
reproduzir a experiência traumática, e descarregar o montante de energia livre que o consome
e que julgamos ser a relativa à pulsão de morte. Ambas as fixações têm a mesma origem
traumática. O efeito tenaz e devastador do trauma é o de um ódio que não encontrou a
representação de objeto que lhe dê sustentação, ou de um objeto impossível de ser pensado
porque as experiências sensoriais ligadas ao trauma foram objeto de alucinação negativa, ou
não encontraram forma de representação, exceto pelos registros proprioceptivos. A
alternativa possível em um estado tal poderia ser o refluxo da pulsão de morte de volta para
o interior da mente ou o que é mais drástico, para o interior do organismo.
O conjunto de idéias exposto acima faz-nos resgatar a hipótese apresentada em “As
relações traumatizantes e seus efeitos no aparelho psíquico” (VIEIRA, 2001), a de que o
trauma impede os processos de vinculação por efeito direto da pulsão de morte. O trauma
provocaria a separação entre pulsões de vida e de morte. Tendo o princípio do prazer sido
colocado a nocaute, o que resta é a tentativa de voltar a um estado anterior: a regressão da
libido, o retorno a um estado de menor organização do aparelho psíquico, à desintegração do
ego, a cisão entre corpo e mente, a morte psíquica, a morte física....
Assim, o trauma seria responsável pela defusão dos instintos, pela fixação da pulsão de
morte no momento traumático pela fixação da libido em determinados pontos do

20As regressões do Ego e da libido podem ser compreendidas como efeito do caráter conservador das pulsões
e a tendência a retornar a um estado anterior de menor complexidade.
desenvolvimento libidinal, formas que não dão conta do montante de energia livre que
permanece no aparelho psíquico. O trabalho terapêutico com pacientes traumatizados
deveria favorecer um novo acordo entre Eros e Thanatos, encontrar formas de
representação da experiência de devastação traumática, resgatar o desejo. Um sinal de
que o trauma começa a ser superado é a possibilidade de sonhar: uma realização
alucinatória de desejo inconsciente, reprimido e infantil, sinal este de que o princípio do
prazer retoma sua posição de vanguarda e cria as condições necessárias para que o
princípio da realidade, o último em nossa evolução, se faça atuante.

Talvez nós, como seres nascidos tão incompletos e dependentes, tão passíveis de
sermos traumatizados, tenhamos que odiar o mundo externo, odiar a nós mesmos, sonhar
com um mundo criado para realizar nossos desejos, para que possamos conhecer algo como
real, sem amor e sem ódio. E aceitar que o real, seja ele o mundo dos objetos concretos, dos
seres humanos ou aquilo que chamamos de mente é, em última instância, incogniscível. E
assim, diante de algo que mais uma vez nos é desconhecido, inesperado e que nos assusta, e
que é intensamente atuante como um trauma, recomeçamos odiando, amando e conhecendo
para poder amar e odiar e conhecer de uma forma mais evoluída.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1893 [1888-1893]/1973) Algumas considerações para um estudo comparativo


das paralisias motoras orgânicas e histéricas. In: Edición standard de lãs obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-Ballesteros y Torres. 3. ed. Madrid,
Biblioteca Nueva.
________ (1914/1973) O problema econômico do masoquismo. In: Edición standard de lãs
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-Ballesteros y Torres.
3. ed. Madrid, Biblioteca Nueva.

_________ (1916/1973) A fixação em traumas – O inconsciente. In: Edición standard de


lãs obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-Ballesteros y Torres.
3. ed. Madrid, Biblioteca Nueva.
________ (1923/1973) O Ego e o Id. In: Edición standard de lãs obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-Ballesteros y Torres. 3. ed. Madrid,
Biblioteca Nueva.
________(1926[1925]/1973) Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edición standard de lãs
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-Ballesteros y Torres.
3. ed. Madrid, Biblioteca Nueva.
_____ (1939 [1934-1938]/1973) Moisés e a religião monoteísta: três ensaios. In: Edición
standard de lãs obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.: Luis Lopez-
Ballesteros y Torres. 3. ed. Madrid, Biblioteca Nueva.
VIEIRA, C. M. S.(2001) As relações traumatizantes e seus efeitos no aparelho psíquico:
uma cantata polifônica das idéias de S. Freud e S. Ferenczi. São Paulo, 78 p. Dissertação de
Mestrado em Psicologia Clínica, não publicada. Departamento de Psicologia Clínica.
Orientadora: Dra Eva Maria Migliavacca, USP. São Paulo.
A concepção psicanalítica de neurose e o TEPT
Othon VIEIRA NETO

No Transtorno de Estresse pós-traumático tanto o DSM-IV e a CID-10, estabelecem


uma relação direta entre a existência de um “fator estressor traumático” e o desenvolvimento
de sintomas psíquicos.
Esta relação, a princípio, contraria a concepção etiológica das neuroses, utilizada
pela psicanálise, de que a neurose seria, segundo Laplanche e Pontalis (1983), uma :
“afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico
que tem as suas raízes na história infantil do indivíduo e constitui compromissos entre o
desejo e a defesa” (p. 377).
Como articular essa compreensão da neurose com um quadro que se origina a partir
de um único evento, atual, e não infantil, e no qual os sintomas não são uma representação
simbólica, mas estão diretamente relacionados, na forma de repetição ou temor, com o fator
desencadeante? Como entender uma neurose na qual o conflito entre o desejo e a defesa não
estão presentes?
Aparentemente, Freud, depara-se com questões semelhantes. Sua preocupação com a
Neurose Traumática transpassa verticalmente sua obra. Desde o trabalho Novas Observações
Sobre as Neuropsicoses de Defesa, de 1896, até seu último trabalho Esboço de Psicanálise
de 1938, encontramos uma preocupação em relacionar a Neurose Traumática com suas
recentes descobertas sobre a etiologia e a dinâmica das demais psiconeuroses.. Em diversas
ocasiões, classifica a Neurose Traumática como uma exceção etiológica, que necessita de
uma maior compreensão de sua metapsicologia.
Freud considerava a Neurose Traumática como uma Neurose Atual, ao lado da
Neurose de Angústia e da Neurastenia. Neuroses Atuais são aquelas em que a origem não
“deve ser procurada nos conflitos infantis, mas no presente;” e que “os sintomas não são,
nelas, uma expressão simbólica e sobre-determinada” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983.
p. 382).
Podemos observar que vários sintomas que aparecem como critérios diagnósticos no
DSM-IV (APA-1995) para o Transtorno de Estresse pós-Traumático estão presentes na
descrição que Freud fazia da Neurose Traumática, que ele também denominava como
“Neurose de Guerra” ou “Neuroses de Guerra em Tempo de Paz”. Na conferência Fixação
em Traumas-O Inconsciente (1917/1995, Edição Eletrônica), ele faz o seguinte comentário
sobre os sintomas da Neurose Traumática e sua classificação como uma Neurose Atual:

As neuroses traumáticas dão uma indicação precisa de que em sua raiz se


situa uma fixação no momento do acidente traumático. Esses pacientes
repetem com regularidade a situação traumática, em seus sonhos, onde
ocorrem ataques histeriformes que admitam uma análise, verificamos que
o ataque corresponde a uma completa transportação do paciente para a
situação traumática. É como se esses pacientes não tivessem findado com
a situação traumática, como se ainda tivessem enfrentando-a como tarefa
imediata ainda não executada; e levamos muito a sério esta impressão.

Neste trecho podemos constatar a semelhança da descrição de um dos principais


sintomas do TEPT. Enquanto o DSM-IV (APA, 1995) descreve como: “episódios de
repetidas revivescências do trauma sob a forma de memórias intrusivas (“flashbacks”),
sonhos ou pesadelos”, Freud (op. Cit.) fala de uma situação não acabada, e da repetição que
ocorre na lembrança constante ou nos pesadelos.
Da mesma forma, sobre o período de surgimento dos sintomas, a descrição que Freud
faz dessa neurose, em “Moisés e a Religião Monoteísta” (1939/1995, Edição Eletrônica),
muito se assemelha à do DSM-IV (APA, 1995):

Pode acontecer que um homem que experimentou algum acidente


assustador — colisão ferroviária, por exemplo, — deixe a cena desse evento
aparentemente incólume. No decorrer das semanas seguintes, contudo,
desenvolve uma série de sintomas psíquicos e motores graves, os quais só
podem ser remontados a seu choque, à concussão, ou ao que quer que seja.
Agora, esse homem tem uma ‘neurose traumática’. Trata-se de um fato
inteiramente ininteligível — o que equivale a dizer: novo. O tempo
decorrido entre o acidente e o primeiro aparecimento dos sintomas é
descrito como sendo o ‘período de incubação’, numa clara alusão à
patologia das doenças infecciosas.

Esta comparação com as doenças infecciosas é interessante, pois dá ao trauma um


caráter de “corpo estranho”, não metabolizado pelo aparelho psíquico e alheio aos processos
psíquicos normais e que necessita ser, de alguma forma, combatido, pois implica sempre num
dano à integridade, e à dignidade como uma vivencia de morte para a própria pessoa que
“passa a ser registro biográfico indelével e ameaça de morte permanente, com características
sinistras de ‘corpo estranho que fratura minha vida’ e que ‘me aprisiona em um sem-sentido’”
(MINGOTE et al., 2001).
As tentativas de Freud de relacionar a Neurose Traumática com as demais neuroses,
e com a compreensão do funcionamento mental, vão requerer diversas reformulações do
conceito de trauma. Como a discussão acerca da evolução da concepção de trauma em Freud
foge ao objetivo deste trabalho, será utilizada a descrição de 1917 em que trauma seria “[...]
uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo
excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto pode
resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera”. (1917/1995,
Edição Eletrônica).

• A Neurose Traumática na obra de Sigmund Freud

“[...] porque teremos de


trabalhar de lá para cá, do
mundo para seu homem, e o
sentido do percurso talvez
choque o leitor, que de costume
vê a Psicanálise aplicar-se
‘psicologicamente’, referir-se a
impulsos, defesas, sintomas, a
´coisas de dentro’”.
(HERMANN, 1985, p.75)
A afirmação acima dá idéia do desconforto que o estudo do TEPT provoca para um pesquisador que utiliza o referencial
psicanalítico. Articular o TEPT, um quadro que surge a partir de um acontecimento externo, real, com uma dinâmica psíquica
constituída por desejos, fantasias e ansiedades, dá uma sensação de estar tentando “reinventar a roda”.
Por vezes, tem-se a impressão de um retrocesso, como se houvesse uma negação das descobertas sobre o funcionamento
mental que a Psicanálise realizou durante todo o século XX. É como se estivéssemos ainda no final do século XIX, ao lado de Freud,
defendendo a “Teoria da Sedução”. E sempre fica o medo de, ao final do trabalho, chegarmos à conclusão, assim como Freud
chegou, de que “não acredito mais em minha neurótica”, como escreveu a Fliess na famosa carta de 21 de setembro de 1897
(MASSON, 1986, p. 265), em que expressa seu desapontamento com a importância do trauma advindo da realidade externa na
etiologia da histeria.
Por esse motivo, tornou-se imprescindível o recorte de algumas passagens da obra de Freud, onde ele menciona o caráter
de excepcionalidade da dinâmica da Neurose Traumática em relação às demais neuroses.
Por tratar-se de um levantamento do tema na obra de Sigmund Freud, neste capítulo serão utilizadas as denominações
Neurose Traumática, Neurose de Guerra e Neurose de Guerra em Tempo de Paz, como eram conhecidas naquela época, e não o
nome atual, Transtorno de estresse pós-Traumático.
Uchitel (2001) defende a idéia de que a Neurose Traumática questiona a psicanálise e os psicanalistas. Como falar de uma
neurose sem raízes na infância? Como trabalhar com um paciente com sintomatologia tão específica?

A partir da leitura de alguns trabalhos da obra de Freud, podemos perceber, como será
demonstrado a seguir, que o trauma, juntamente com suas conseqüências, está diretamente
relacionado à história da psicanálise, e põe em evidência algumas dificuldades teóricas em
relação à sua especificidade etiológica, a metapsicologia do trauma e a necessidade, ou não,
de uma terapêutica própria (VIEIRA E VIEIRA NETO, 1998).
Em suas primeiras descobertas, Freud considerava que toda neurose era de origem
traumática. Em seu trabalho “Novas Observações sobre as Neuropsicoses de Defesa”
(1896/1995, Edição Eletrônica), ele afirma:

Para causar uma histeria, é preciso que a experiência que vai se tornar
traumática, através da liberação e da repressão do afeto doloroso, pertença
aos traumas sexuais da infância e seu conteúdo deve consistir numa
irritação real dos órgãos genitais

O trauma, nesse momento da obra freudiana, teria duas características: envolver dor e estar relacionado aos órgãos
sexuais. Apesar de já ter abandonado a teoria da sedução, a idéia de um acontecimento sexual não prazeroso permanece.
Quanto ao período da vida em que este trauma ocorreria, nesse momento da teoria freudiana, Mezan (1982, p.38) comenta que:

A data do trauma é localizada ao redor dos três ou quatro anos de idade. A


“predisposição à histeria”, tão genérica nos escritos anteriores, é agora
explicitamente substituída pelo efeito póstumo do trauma sexual infantil.

Sydney Furst (1971, p. 16), confirma essa concepção afirmando:

Evidentemente, a primeira teoria freudiana acerca das neuroses foi de


índole traumática. Como clínico, interessou-se primeiramente pelo trauma
por sua patogenicidade; foi nesta relação que Freud tratou com aqueles
aspectos formais e dinâmicos dos fatos traumáticos que determinaram o
resultado patológico.

Toda neurose, então, teria etiologia traumática, necessitando de um fator


circunstancial da realidade externa. O próprio Freud coloca isto textualmente, quando, nas
“Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise” (1917/1995, Edição Eletrônica), já com
uma compreensão maior sobre o funcionamento mental, revê essa concepção:

Assim, a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria


em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo
fosse excessivamente intenso. Na verdade, foi esta realmente a primeira
fórmula pela qual (em 1893 e 1895) Breuer e eu explicamos teoricamente
nossas observações.

Na primeira de suas “Cinco Lições de Psicanálise”, (1910/1995, Edição Eletrônica),


quando apresenta a paciente Anna O., atendida por Breuer, dá a seguinte explicação para a
origem de seus sintomas:

Quase todos se haviam formado desse modo, como resíduos — como


‘precipitados’, se quiserem — de experiências emocionais que, por essa
razão, foram denominadas posteriormente ‘traumas psíquicos’; e o caráter
particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena
traumática que o causara. Eram, segundo a expressão técnica,
determinados pelas cenas cujas lembranças representavam resíduos, não
havendo já necessidade de considerá-los como produtos arbitrários ou
enigmáticos da neurose.

A partir dessa concepção, ter-se-ia a visão de que Anna O. sofreu de neurose


Traumática. Os conceitos de impulso e defesa ainda não haviam sido definidos, assim como
seus decisivos papéis no conflito que prova a neurose.
Aqui o trauma ainda é visto como um corpo estranho alterando o equilíbrio
homeostático do aparelho psíquico. O elemento necessário para o desenvolvimento da
histeria vinha do mundo exterior, era uma circunstância acidental na vida do paciente. A
situação traumática, denominada por Breuer como “estado hipnóide” seria responsável pela
dissociação psíquica, criando um conjunto de idéias inconscientes, paralelas à consciência.
A proposta terapêutica coerente com essa teoria era, então, sob hipnose, ab-reagir o afeto
relacionado à situação traumática inconsciente, liberando a energia (de forma catártica)
associada à cena traumática.
Para Garcia-Roza (1984/1999), a teoria do trauma como origem da histeria foi, ao
mesmo tempo, uma grande descoberta e um obstáculo para o desenvolvimento da teoria
psicanalítica. A descoberta deve-se ao fato do estabelecimento da origem psicológica dos
sintomas histéricos, e o obstáculo consistiu em um impedimento temporário da compreensão
da sexualidade infantil e do Complexo de Édipo, no período em que a origem da histeria era
entendida a partir de um fato único, proveniente da realidade externa.
Com as descobertas posteriores e o abandono da explicação da origem traumática das
neuroses, o papel etiológico do trauma foi substituído pela fantasia inconsciente. No entanto,
a existência de uma neurose traumática era um fato, e permaneceu como um enigma. Em
diversas passagens de sua obra, Freud discute a análise das neuroses traumáticas, buscando
a relação entre estas, que classificava entre as Neuroses Atuais, com as demais psiconeuroses
de defesa, originadas por um conflito inconsciente. Esta relação parece nunca ter sido
completamente desenvolvida, e percebe-se que esta neurose ficou como uma espécie de
exceção à teoria da etiologia sexual das neuroses.
Já no início de suas investigações em psicanálise, em uma carta a seu amigo Fliess,
Freud (1950[1894]/1995, Edição Eletrônica), descreve os fatores presentes na causa das
neuroses, já colocando em destaque a Neurose Traumática. Comunica a Fliess os diversos
fatores causadores da neurose, como a degeneração, a senilidade e o conflito. Em seguida,
apresenta o conceito de conflagração:

Conflagração: é uma concepção nova. Significa o que se pode chamar de


degeneração aguda (por exemplo, nas intoxicações graves, nas febres, no
estágio inicial da paralisia geral) — ou seja, catástrofes em que há
perturbações dos afetos sexuais sem causas desencadeantes sexuais. Talvez
as neuroses traumáticas pudessem ser abordadas sob esse enfoque.

Embora o conceito de conflagração não seja mais retomado posteriormente, segundo


esse raciocínio, um trauma, uma intoxicação, ou uma febre, teria o mesmo efeito etiológico,
de perturbar o afeto sexual. Este trecho mostra também que, mesmo em um período anterior
às descobertas sobre o funcionamento mental e a causa das neuroses, o tema da Neurose
Traumática estava presente em suas preocupações, sobre uma doença que provocava
perturbação no afeto sexual, sem origem sexual. Além disso, permitia a conclusão de que
“em conseqüência de determinados fatores nocivos sexuais, até mesmo as pessoas sadias
podem adquirir as diferentes formas de neurose” (FREUD, op. Cit.).
No trabalho “Estudos Sobre a Histeria” (1895b/1995, Edição Eletrônica), publicado
no ano seguinte, persiste a necessidade de uma compreensão dessa neurose, e Freud tenta
estabelecer uma analogia com o processo da conversão histérica, que seria a representação
simbólica de um afeto aflitivo cuja associação foi inibida:

As experiências que liberaram o afeto original, cuja excitação foi então


convertida num fenômeno somático, são por nós descritas como traumas
psíquicos, e a manifestação patológica que surge desta forma, como
sintomas histéricos de origem traumática. (A expressão ‘histeria
traumática’ já foi aplicada a fenômenos que, por serem conseqüência de
danos físicos — traumas no sentido mais estrito do termo — fazem parte
da classe das ‘neuroses traumáticas’).

Ainda no mesmo trabalho, Freud tenta estabelecer uma correspondência etiológica a


partir da concepção dos estados hipnóides, termo proposto por Breuer para explicar o
surgimento de um estado mental, capaz de provocar uma divisão da mente, e o conseqüente
“represamento” de afetos que, impossibilitados de uma expressão normal, procurariam
formas patológicas de expressão:

Penso, contudo, que o caso [de Anna O.] lança alguma luz também sobre
o desenvolvimento das neuroses traumáticas. Durante os primeiros dias
após o fato traumático, o estado de pavor hipnóide repete-se a cada vez
que o fato é relembrado. Enquanto esse estado se repete com freqüência
cada vez maior, sua intensidade vai diminuindo tanto que ele não mais se
alterna com o pensamento de vigília, mas apenas coexiste com ele. Torna-
se então contínuo, e os sintomas somáticos, que antes só se faziam
presentes durante o ataque de pavor, adquirem existência permanente.
Todavia, posso apenas suspeitar de que seja isso o que acontece, já que
nunca analisei um caso dessa natureza .

Nesse momento de sua obra, Freud ainda tem a concepção do trauma psíquico como
fator etiológico presente em toda neurose. Ele introduz a concepção de trauma em dois
tempos, o do acontecimento em si, e o da compreensão do significado do acontecimento.
Ocorre, assim, uma grande mudança no conceito de trauma, porque há o
reconhecimento da necessidade de um processo associativo que dá um significado a ele,
deixando de ser compreendido como um corpo estranho. O segundo momento do trauma,
propõe que a vivência psíquica passa a ser o fundamental na etiologia das neuroses. A partir
desse momento, começa haver uma separação entre o trauma associado, integrado numa
série psíquica, que gera a psiconeurose, e outro trauma, o não representável, que originaria a
Neurose Traumática.
A histeria era compreendida como conseqüente do primeiro tipo, como o resultado
de um grande trauma, ou da acumulação de traumas parciais, mas com um significado.
È dessa forma que ele explica o caso Katharina , em seu trabalho Estudos sobre a
Histeria (1895b). Katharina vê seu tio tendo relações sexuais com uma moça, e Freud fala
dessa cena como um momento traumático. No entanto, ela só se torna patogênica porque faz
com que Katharina lembre de duas investidas desse mesmo tio contra ela, às quais ela não
deu conotação sexual por não ter conhecimentos sobre sexo. Na discussão deste caso, ele
afirma:

Em toda análise de casos de histeria baseados em traumas sexuais,


verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram
nenhum efeito na criança atingem um poder traumático, numa data
posterior, como lembranças, quando a moça ou a mulher casada adquire
uma compreensão da vida sexual (1895b/1995, Edição Eletrônica).

Um fato digno de nota no acompanhamento do tema Neurose Traumática na obra de


Freud é o intervalo de tempo em que estudo do trauma deixa de aparecer em sua obra. Até
1895, o estudo do trauma psíquico aparece de forma freqüente nos escritos freudianos. A
partir daí, aparece em 1910 no trabalho Cinco Lições de Psicanálise, descrevendo o caso
Anna O., e depois só é retomado em 1915, a partir das Conferências Introdutórias sobre
Psicanálise. No período considerado das grandes descobertas psicanalíticas, entre 1900 com
a publicação da Interpretação dos Sonhos, até 1915 foram desenvolvidos os principais
conceitos teóricos da psicanálise como o de inconsciente, aparelho psíquico, os princípios do
funcionamento mental, sexualidade infantil, complexo de Édipo. Nesse período, no entanto,
o trauma e a Neurose Traumática não aparecem. É como se tivessem ficado relegados a um
limbo, incompatíveis com as descobertas que estavam sendo realizadas sobre as
psiconeuroses. A partir de 1915, o tema se impõe para Freud: havia terminado a I Guerra
Mundial, e o grande número de pessoas com Neurose de Guerra pede uma compreensão
dessa patologia. A partir desse momento, os temas voltam a aparecer com freqüência na obra
freudiana, mas em outro patamar, o da tentativa de compreensão da articulação teórica dessa
neurose com o conhecimento já desenvolvido sobre o psiquismo. Agora, a Neurose
Traumática é que aparece como um “corpo estranho” na teoria Psicanalítica. Em 1917,
quando publica suas “Conferências Introdutórias”, Freud coloca de maneira inequívoca a
distinção da neurose traumática:

As neuroses traumáticas não são, em sua essência, a mesma coisa que


as neuroses espontâneas que estamos acostumados a investigar e
tratar pela análise; até agora, não conseguimos harmonizá-las com
nossos pontos de vista, e espero, em alguma época, poder explicar-
lhes a razão desta limitação.

Essa limitação, no entanto, não chegou a ser convincentemente explicada. Quando


Freud (1918/1995, Edição Eletrônica) fala do futuro da psicanálise, e sobre a necessidade de
um maior alcance social, visando o atendimento das classes menos abastadas da população,
e com isto, possibilitando que o número de pacientes favorecidos pela psicanálise deixe de
ser “desprezível”, destaca a neurose traumática como entidade nosográfica distinta das
demais neuroses, apontando para a necessidade de uma terapêutica também diferenciada para
as Neuroses de Guerra:

É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa


terapia nos force a fundir o ouro puro da análise livre com o cobre da
sugestão direta; e também a influência hipnótica poderá ter novamente seu
lugar na análise, como o tem no tratamento das neuroses de guerra. No
entanto, qualquer que seja a forma que essa psicoterapia para o povo
possa assumir, quaisquer que sejam os elementos dos quais se componha,
os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser,
certamente, aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa.

Conforme nota do editor inglês ao trabalho “Introdução à Psicanálise e Neuroses de


Guerra” (1919a/1995, Edição Eletrônica), no Quinto Congresso Psicanalítico Internacional,
ocorre um simpósio sobre a Psicanálise das Neuroses de Guerra, aberto com a exposição de
artigos de Sandor Ferenczi, Karl Abraham e Ernst Simmel. No ano seguinte, Freud escreve
um pequeno trabalho sobre as Neuroses de Guerra, onde ele esclarece sua relação com as
neuroses traumáticas:

À parte isso, as neuroses de guerra são apenas neuroses traumáticas, que,


como sabemos, ocorrem em tempos de paz também, após experiências
assustadoras ou graves acidentes, sem qualquer referência a um conflito no
ego (1919a/1995, Edição Eletrônica).

Em outro momento do mesmo trabalho, mais uma vez a neurose traumática (ou de
guerra) é vista como uma exceção à etiologia sexual das neuroses:

Essa outra parte da teoria psicanalítica, com a qual o estudo das neuroses
de guerra não entrou em contato, é no sentido de que as forças
motivadoras que se expressam na formação dos sintomas são sexuais e
que as neuroses nascem de um conflito entre o ego e os instintos sexuais
que este repudia. (‘Sexualidade’, neste contexto, deve ser entendida no
sentido amplo em que é usada na psicanálise e não se deve confundir com
o conceito mais limitado de ‘genitalidade’.) Não deixa de ser verdade,
como observa Ernest Jones na sua contribuição a este volume, que essa
parte da teoria não se mostrou ainda aplicável às neuroses de guerra. O
trabalho que poderia provar o contrário não foi realizado ainda. Pode ser
que as neuroses de guerra sejam absolutamente material adequado para
este propósito.

Este caráter de exceção que adquire a Neurose Traumática é constatado até mesmo
pelos adversários da psicanálise, para quem Freud, neste momento, não podia apresentar
respostas. Explicita isto no “Estudo autobiográfico” de 1919 (1919a/1995, Edição
Eletrônica):

Após a guerra nossos adversários tiveram o prazer de anunciar que os


fatos haviam produzido um argumento conclusivo contra a validade das
teses de análise. As neuroses de guerra, disseram eles, haviam provado
que os fatores sexuais eram desnecessários à etiologia de distúrbios
neuróticos. Mas seu triunfo foi frívolo e prematuro, pois, por um lado,
ninguém tinha sido capaz de efetuar uma análise completa de um caso de
neurose de guerra, de modo que, de fato, não se conhecia ao certo
absolutamente nada quanto à motivação deles e nenhuma conclusão podia
ser inferida dessa incerteza: ao passo que, por outro lado, a psicanálise de
há muito havia chegado ao conceito do narcisismo e das neuroses
narcísicas, nas quais a libido do paciente está vinculada ao seu próprio
ego, em vez de vinculada a um objeto.

Ainda no mesmo ano, escreve um Memorandum a uma comissão estabelecida pelo


Ministério de Guerra austríaco, no qual defende a existência da Neurose de Guerra como uma
neurose e que não “tratava-se de uma questão de graves danos no sistema nervoso,
semelhantes às hemorragias e inflamações que ocorrem em doenças não traumáticas”
(1919a/1995, Edição Eletrônica), como muitos médicos da época defendiam. Neste
memorando, critica a postura dos médicos do exército, que tinham como proposta terapêutica
para a neurose de guerra a postura de tratar o paciente como se estivesse simulando a doença.
Esses médicos tinham como proposta terapêutica tornar a vida no hospital pior do que no
front, através da constante aplicação de choques elétricos e banhos frios, impedindo que os
pacientes dormissem, juntamente com outros castigos. Com isso, pretendiam o
restabelecimento do doente. Na verdade, parece que o objetivo destes médicos era o de curar
um trauma com outro maior ainda. Dessa forma, o médico colocava-se a serviço da pátria ou
da guerra, numa postura criticada por Freud, e não a serviço do restabelecimento da saúde,
meta constantemente defendida por ele:

Esse procedimento terapêutico, contudo, ostenta desde o início um


estigma. Não se destinava à recuperação do paciente, ou, pelo menos, não
em primeira instância; destinava-se, acima de tudo, a restaurar a sua
aptidão para o serviço. Nisso a medicina servia a propósitos estranhos à
sua essência. O próprio médico estava sob comando militar e tinha seus
próprios perigos a temer — perda de posição ou uma acusação de
negligenciar o dever —, se permitiu ser levado por considerações outras
além daquelas que lhe foram prescritas. O insolúvel conflito entre os
direitos de humanidade, que normalmente pesam para um médico de
maneira decisiva, e as exigências de uma guerra nacional estavam fadados
a confundir a sua atividade.

Nesse mesmo trabalho Freud defende a utilização das técnicas desenvolvidas a partir
de seu método para tratamento dessas enfermidades, embora não explicite como essas
técnicas podem adequar-se ao tratamento de uma neurose diferente das neuroses que surgem
a partir de conflitos psíquicos.
Em 1920, é escrito o trabalho “Além do Principio de Prazer” (FREUD, 1920/1995,
Edição Eletrônica), onde Freud redefine a teoria pulsional, e isto altera toda a psicanálise,
lançando novos fundamentos que vão alterar a concepção de aparelho psíquico, transferência
e a própria técnica psicanalítica. Nesse trabalho, ele inclui o conceito da compulsão à
repetição. Aqui, novamente, pode-se perceber a preocupação com a Neurose Traumática,
descrevendo-a como uma neurose que traz mais sofrimento e incapacitação do que a própria
histeria:

O quadro sintomático apresentado pela neurose traumática aproxima-se


do da histeria pela abundância de seus sintomas motores semelhantes; em
geral, contudo, ultrapassa-o em seus sinais fortemente acentuados de
indisposição subjetiva (no que se assemelha à hipocondria ou melancolia),
bem como nas provas que fornece de debilitamento e de perturbação
muito mais abrangentes e gerais das capacidades mentais. Ainda não se
chegou a nenhuma explicação completa, seja das neuroses de guerra, seja
das neuroses traumáticas dos tempos de paz .

.
No mesmo trabalho, volta a falar da excepcionalidade desta neurose em relação à
teoria dos sonhos, desenvolvida vinte anos antes:

Se não quisermos que os sonhos dos neuróticos traumáticos abalem nossa


crença no teor realizador de desejos dos sonhos, teremos ainda aberta a nós
uma saída: podemos argumentar que a função de sonhar, tal como muitas
pessoas, nessa condição está perturbada e afastada de seus propósitos, ou
podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas tendências masoquistas
do ego [...]. Nesse ponto, proponho abandonarmos o obscuro e melancólico
tema da neurose traumática, e passar a examinar o método de
funcionamento empregado pelo aparelho mental em uma de suas primeiras
atividades normais;

Em 1923, já no momento da psicanálise conhecido como Segunda Tópica (após a


publicação de “O Ego e o Id”), no texto “Observações sobre a teoria e prática da
Interpretação dos Sonhos” (1923/1995, Edição Eletrônica), Freud reafirma:
Tanto quanto eu possa perceber, no momento, os sonhos ocorrentes em
uma neurose traumática constituem as únicas exceções genuínas, e os
sonhos de punição as únicas exceções aparentes à regra de que os sonhos
se orientam para a realização de desejos.

Em 1925, no texto “Inibições, Sintomas e Ansiedade” (1925/1995, Edição


Eletrônica), discute os dois tipos de ansiedade - um gerado a partir de perigos provenientes
do Id, outro que seria a reprodução de situações semelhantes ao ato do nascimento:

Como sabemos, uma psiconeurose está especialmente sujeita a


desenvolver-se com base em uma neurose ‘atual’. Isto se afigura como se o
ego tivesse tentando poupar-se à ansiedade, que ele aprendeu a manter em
suspensão por algum tempo, e ligá-la pela formação de sintomas. A análise
das neuroses de guerra traumáticas — expressão que, incidentalmente,
abrange grande variedade de perturbações — provavelmente teria revelado
que grande número delas possui algumas características das neuroses
‘atuais’.

Os sonhos, no entanto, parecem evidenciar a especificidade da neurose traumática.


Os pesadelos presentes na neurose traumática, elementos constitucionais dos sintomas de
Transtorno de Estresse pós-traumáticos no DSM-IV (APA, 1995), parecem configurar uma
exceção à teoria de que os sonhos são uma “satisfação alucinatória de desejos inconscientes”.
Na revisão de sua teoria sobre os sonhos, expressa nas “Novas Conferências Introdutórias
sobre Psicanálise” de 1933 (1933[1932]/1995, Edição Eletrônica), ele confirma esse caráter
de excepcionalidade, já indicado anteriormente, em 1920 e 1923:

Contra a teoria da realização de desejos dos sonhos surgiram apenas duas


dificuldades sérias. Uma discussão a respeito destas afastar-nos-ia muito
do caminho que seguimos e, na verdade, ainda não nos proporcionou
qualquer conclusão inteiramente satisfatória.
A primeira dessas dificuldades apresenta-se no fato de que as pessoas que
experimentaram um choque, um trauma psíquico grave — tal como
acontecia, com tanta freqüência, durante a guerra, e tal como propicia a
base para a histeria traumática —, são regularmente reconduzidas, em
seus sonhos, à situação traumática. De acordo com nossas hipóteses
referentes à função dos sonhos, isto não deveria ocorrer. Que impulso
decorrente de desejos poderia satisfazer-se retornando, dessa maneira, a
essa experiência traumática tão desagradável? É difícil imaginar.
[...] Nas neuroses traumáticas as coisas são diferentes. No caso destas, os
sonhos regularmente terminam em geração de ansiedade. Não teríamos
receio de admitir, penso eu, que aqui a função do sonho falhou. Não
invocarei o ditado segundo o qual a exceção comprova a regra: sua
sabedoria me parece ser a mais questionável. Mas, sem dúvida, a exceção
não subverte a regra. Se, no interesse de estudá-la, isolamos determinada
função psíquica, como o sonhar, do mecanismo psíquico como um todo,
possibilitamos a descoberta das leis que lhe são peculiares; quando, porém,
a inserimos novamente no contexto geral, devemos estar preparados para
descobrir que esses achados são obscurecidos e prejudicados por colidirem
com outras forças.

Mesmo em seu último trabalho, “Esboço de Psicanálise”, de 1938 (1940 [1938]/1995,


Edição Eletrônica), Freud parece deixar para os futuros psicanalistas a resolução da
inconsistência da Neurose Traumática frente ao corpo teórico desenvolvido e consolidado
pela Psicanálise. É como se, em seu último trabalho, reforçasse a idéia expressada no início,
da especificidade da Neurose Traumática:

Podemos falar com um bom grau de certeza sobre o papel desempenhado


pelo período da vida. Parece que as neuroses são adquiridas somente na
tenra infância (até a idade de seis anos), ainda que seus sintomas possam
não aparecer até muito mais tarde. A neurose da infância pode tornar-se
manifesta por um curto tempo ou pode mesmo nem ser notada. Em todo
caso, a doença neurótica posterior se liga ao prelúdio na infância. É
possível que aquelas que são conhecidas como neuroses traumáticas
(devido a um susto excessivo ou graves choques somáticos, tais como
desastres ferroviários, soterramentos, etc.) constituem exceção a isto; suas
relações com determinantes na infância até aqui fugiram à investigação.

Este breve rastreamento do tema Neurose Traumática na obra de Sigmund Freud

permite a aceitação, sob a ótica da psicanálise freudiana, da relação apontada no DSM-

IV (APA, 1995) e CID-10 (COOPER, 1997) de que o Transtorno de Estresse pós-


Traumático seja desencadeado por um único fator estressor, associado a fatores

predisponentes individuais, como citado anteriormente.

• Alguns aspectos da dinâmica do Transtorno de Estresse pós-


Traumático

O TEPT seria apenas uma reação normal a um evento anormal, um quadro


nosográfico próprio, ou a experiência de uma situação traumática teve apenas uma função
desencadeante para uma neurose pré-existente?
Não podemos afirmar ser uma reação normal, quando em muitos casos os sintomas
permanecem por anos, como um “corpo estranho” (FREUD, 1893/1995, Edição Eletrônica).
O próprio fato de que os sintomas regridem e desaparecem quando a pessoa se submete a
tratamento psicoterápico específico (FIGLEY, 2003), também atesta pela “anormalidade”
de sua presença.
A sintomatologia específica do Transtorno de Estresse pós-Traumático evoca algumas
questões sobre sua dinâmica: por um lado, não podemos falar, simplesmente, de uma resposta
automática e previsível a uma situação em que a vida ou integridade esteve ameaçada, como
se fosse um arco reflexo. Por outro lado, ainda que a prevalência de casos de pessoas que
desenvolvem os sintomas seja alta, a maior parte delas sobrevive a estas situações sem o
surgimento do transtorno. Diversos autores apontam a necessidade de fatores pessoais
anteriores ao trauma, capazes de facilitar o desenvolvimento de TEPT após a vivência de
uma experiência traumática. A própria natureza e duração da experiência, influem não apenas
no desenvolvimento ou não dos sintomas, mas também em sua prevalência.
Fatores pré-existentes como histórico de traumas anteriores, separações,
características depressivas, parecem produzir uma vulnerabilidade ao desenvolvimento do
TEPT. Para Anna Freud (1971), o principal elemento para o desenvolvimento da Neurose
Traumática seria a repetição de situações traumáticas. Segundo essa autora, nenhum fato
verdadeiramente traumático é assimilado plenamente” (p.261), e a vulnerabilidade crescente
é inevitável, quando ocorre a repetição quantitativa ou qualitativa de traumas anteriores.
O aparelho psíquico funciona seguindo-se o princípio da constância ou homeostase.
Qualquer aumento de energia recebida requer uma descarga equivalente tendo como objetivo
o retorno do aparelho ao estado anterior. Após um transtorno produzido por um estímulo
externo, quando não são possíveis a descarga ou as via associativas (FREUD, 1893/1995,
Edição Eletrônica), o desenvolvimento dos sintomas é a única saída possível.Isso se coaduna
coma a concepção de que “um trauma teria de ser definido como um acréscimo da excitação
no sistema nervoso, que este é incapaz de fazer dissipar-se adequadamente pela reação
motora” (FREUD, 1892). Para um ego tornado frágil, por mais que não seja a mais adequada,
essa é a melhor solução (FENICHEL, 1957/1998).
Este excesso de energia não descarregada provocaria alterações no modo de
funcionamento mental, e o aparelho psíquico passa a tentar eliminar a excitação ou defender-
se dela. Nesse sentido, o Transtorno de Estresse pós-Traumático seria resultado de três
alterações no modo normal de funcionamento psíquico: facilitação da memória e sua
tentativa de descarga, compulsão a repetição e a falha nas defesas.
Freud, em seu trabalho “Fixação em Traumas - O Inconsciente” (1917/1995, Edição
Eletrônica), comenta que a “As neuroses traumáticas dão uma indicação precisa de que em
sua raiz se situa uma fixação no momento do acidente traumático” (grifo nosso). É importante
chamar a atenção para um ponto desta frase: que na raiz da neurose traumática encontra-se a
fixação, e não que é um sintoma dela. O acontecimento traumático parece ter a capacidade
de atrair catexias para a constante recordação da situação traumática. Essa idéia se coaduna
com a concepção de facilitação contida no trabalho “Projeto para uma psicologia científica”
(FREUD, 1895a/1995, Edição Eletrônica).
Vieira, (2001) explica dessa forma a relação entre uma situação traumática e a
facilitação provocada: Um estímulo externo , que chega ao sistema  (responsável pela
recepção de estímulos), é classificado por sua qualidade e quantidade, ou repetição. Essa
classificação ocorre desde o limiar da percepção, até o limite da dor. O estímulo percorre 
sem alterar este sistema. Quando atinge o sistema  (responsável pela memória), o estímulo
distribui-se, obedecendo a uma razão direta em que a maior quantidade em  corresponde a
uma maior complexidade em . Quanto maior a intensidade do estímulo em , maior a
quantidade de neurônios envolvidos em . Pelo tipo de estímulo específico, será definida a
via de conexão que o estímulo vai percorrer. Se a pessoa já tiver vivido uma experiência
parecida, porém menos intensa que a experiência atual, já existe um caminho formado para
a condução do estímulo. Se, porém, este caminho não for suficiente, será necessária abertura
de novas vias. A facilitação nova vai depender da intensidade do estímulo atual em relação
aos anteriores, e do número de repetições. Se um estímulo for muito intenso, ele vai criar
uma ampla facilitação tanto nas barreiras de contato (sinapses) já facilitadas anteriormente
(pelo número de repetições), quanto pelas novas vias, abertas pela intensidade. O próximo
estímulo, de mesma qualidade, vai se conduzir pela mesma via, facilitada, aberta pelo excesso
de estímulos, ou seja pelo trauma.
Pode-se fazer uma analogia deste processo com o que ocorre com a água das chuvas
em um terreno sem vegetação. Quando ocorre uma chuva intensa, cuja quantidade de água
seja superior à capacidade de absorção do terreno, a partir da composição e inclinação do
solo, o excedente de água tenderá a escorrer, criando sulcos na terra. Uma vez abertos, esses
sulcos provocarão uma alteração na topografia do terreno, e, a cada nova chuva, funcionarão
como um caminho natural para o escoamento da água, antes mesmo do que a absorção da
água pelo terreno. Seria necessário um longo período de estiagem para que o terreno voltasse
a ser como era antes.
Da mesma forma, após a facilitação provocada por um estímulo de muita intensidade,
ele atrairá novos estímulos de qualidade semelhantes, e isso provocaria a continuidade da
situação traumática ou a atração das catexias para as vias facilitadas.
Assim, se uma parte da libido atém-se a estas vias facilitadas, ocorre o desinvestimento
em outras áreas, de onde podemos inferir a causa das seguintes características comuns no
TEPT segundo Fenichel (1957/1998):

1 – Diminuição da libido: a energia sexual é mobilizada para atuar sobre a excitação


invasora , em função de um bloqueio ou diminuição de várias funções egóicas;
2 – Atitudes instintivas ou egóicas regressivas, por exemplo, a dependência e a
passividade, sensação de desamparo e regressões orais.
3 – Alterações do sono (que é um estado supostamente de investimento da libido no
próprio ego, que é invadido pela excitação): insônia e repetição do trauma nos sonhos;
5 – Repetições do trauma em estado de vigília, numa tentativa de descarga do excesso de
estimulação associada às lembranças.

A tarefa do aparelho psíquico seria, nesse caso, tentar ligar a energia livre presente no
trauma em uma série psíquica, associativamente. Mas isso não é possível devido à própria
intensidade da estimulação, e ele continua se reinvestindo, criando um círculo vicioso.
Esses conceitos corroboram a concepção de Ferenczi (1919), de que o trauma produz
uma retirada da libido dos objetos, que é investida narcisicamente. Esse sobreinvestimento
libidinal provoca um excesso de estimulação sem representação.
Essa seria a diferença entre o trauma e o estresse para Benyakar (2003). No trauma, a
irrupção brusca do mundo externo no mundo interno interrompe a articulação entre o afeto e
a representação, enquanto o estresse implica numa distorção dessa articulação, pois está
sujeita a uma tensão e pressão máximas.
Quando ocorre a quebra dessa função articuladora , o que ocorre é que uma vivência
traumática, que é vivência de vazio, fica ligada ao evento factual que provocou a essa
experiência. Essa associação de evento factual com vivencia traumática leva a perceber a
experiência como se fosse traumática.
Assim, a essência do traumático seria a irrupção no psiquismo de algo heterogêneo,
do não próprio, quando o psiquismo não tem possibilidades de transformar em próprio, ou
seja, de buscar associações. Então o afeto desligado buscará incessantemente a representação
do experimentado, produzindo a sintomatologia do traumático, sonhos, hipervigilância,
flashbacks, pensamentos repetitivos (CROCQ, 2002).
O trauma não representa, ele apresenta (UCHITEL, 2001) e, ao re-apresentar, ele

precisa ser descarregado, uma vez que não pode ser associado. Uma das formas de

descarga seria através de sua repetição.

A repetição teria várias funções para o aparelho psíquico:


A) Descarregar a excitação, num funcionamento automático da Compulsão à
Repetição, a serviço do Instinto de Morte, de forma mecânica, automática e
sem aprendizagem (BASILI E BASILI 2002).
B) Permitir, através de uma descarga parcial, a diminuição da intensidade das
lembranças traumáticas, permitindo a ligação dessa catexia, tornando-a
inofensiva (FUKS, 2002).
C) Transformar a passividade decorrente da própria situação traumática em
atividade, a serviço de um instinto de dominação (FREUD, 1920/1995,
Edição Eletrônica). Nesse sentido pode-se ver pesquisa de Valentiner et al.
(1996), que constataram que mulheres que assumiam uma postura ativa
durante um abuso sexual tinham menos probabilidade de desenvolver os
sintomas do TEPT do que as que se abandonavam à situação.
D) A repetição egóica tem o intento de elaborar o evento traumático,
completando a integração da nova informação da realidade a antigas,
armazenada em formas de esquemas cognitivo-afetivos (MINGOTE et.al.,
2001).
E) A repetição também tem o intuito de encontrar uma saída nova para a
situação traumática em que prevaleça o princípio do prazer. Isso pode
explicar o que ocorre com algumas pessoas traumatizadas, nas quais é
presente a busca compulsiva de novas situações perigosas, que ofereçam a
possibilidade de alterar seu desfecho.
F) Há uma ordem progressiva na forma como os estímulos são trabalhados e o
efeito do trauma obriga a repetição dessa ordem evolutiva: da morte para a
alucinação e desta para a aceitação do desprazer e a representação da
realidade (VIEIRA, 2001)

Em relação às defesas, alguns aspectos devem ser enfatizados. Como a experiência


traumática é um fator da realidade externa, a maioria das defesas utilizadas pelo indivíduo
com TEPT dirige-se contra os sintomas, e acabam sendo, em si, novos sintomas.
O evento factual tornou-se traumático por uma falha da barreira contra estímulos ou
escudo protetor (FREUD, 1920/1995, Edição Eletrônica), inundando o ego com um excesso
de energia. Essa inundação dilacera a capacidade defensiva do ego, fazendo com que ele
regrida a formas de funcionamento mais primitivas, como o desamparo.
As alterações provocadas no Ego pelo trauma fazem com que seja necessária uma
compreensão da relação do indivíduo com os sintomas e as defesas utilizadas, a partir de
alguns caminhos.
O primeiro, no sentido de providenciar parâmetros para avaliar o impacto de eventos
potencialmente traumáticos no funcionamento egóico (entendendo-se como funcionamento
egóico a capacidade de sintetizar e controlar o impacto emocional de eventos externos e
estímulos internos). Em segundo lugar, estar orientado a identificar em profundidade, o
propósito dinâmico da apresentação dos sintomas e os eventos traumáticos que os
precipitaram.
Além desses fatores, avaliar as defesas mais comumente utilizadas:

1) As formas regredidas que a pessoa adota em seu relacionamento com


a realidade. Esta regressão pode ser verificada a partir das adições
orais, comumente presentes na sintomatologia do TEPT
2) A criação de uma condição de vitimização, transformando o
sofrimento em lucro secundário (FENICHEL, 1957), o que fez com
que o TEPT fosse considerado por vários autores como sendo uma
“neurose de compensação”.
3) Identificação com o agressor, perpetuando a violência e criando novas
vítimas (BASILI e BASILI, 2002)21.

Além destes, é preciso levar em consideração que o confronto com a situação


traumática provoca uma descontinuidade no psiquismo. Quando o self experimenta uma
descontinuidade muito radical, perde sua qualidade de integração, e a vulnerabilidade

21Montaño (2003) relata como jovens adolescentes colombianos tinham o traficante Pablo Escobar como
ídolo. Muitos destes jovens tiveram familiares assassinados pelos traficantes, a mando do próprio Pablo
Escobar.
provoca a dissociação e cisão. Isso poderia explicar a atemporalidade dos sintomas e a
fixação no passado (LIFTON, 1979 apud CIA, 2001).
Finalizando, para Chertoff (1998), uma situação traumática teria também a capacidade
de tornar manifestos conflitos latentes anteriores. Um dos casos clínicos apresentados por
essa autora descreve uma mulher para a qual o parto difícil de seu primeiro filho foi
traumático, gerando sintomas de TEPT. A situação do parto, para a paciente, ativou as
lembranças de um estupro provocado por uma gangue de jovens, quando esta mulher era
adolescente. Essa forma de compreensão aproxima-se da dinâmica de uma psiconeurose, na
discussão de que o TEPT seria uma neurose atual versus a compreensão de uma psiconeurose.
Desta forma, o trauma seria apenas um estímulo que ativa um conflito anterior,
dinamicamente controlado. Ele teria, nesse enfoque, um papel semelhante ao do resto diurno
na teoria da formação dos sonhos, de ser um estímulo externo, circunstancial e sem
importância em si mesmo, mas que desorganiza o equilíbrio econômico entre impulsos e
defesas que, durante o sono, procura descarga de forma alucinatória, produzindo um sonho.

REFERÊNCIAS

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A instituição bancária como observatório humano do
transtorno de estresse pós-traumático
Othon VIEIRA NETO

A natureza do trabalho bancário já é, em si, estressante.


Essa foi a argumentação legal da campanha sindical iniciada em 1933 que, após vários
movimentos grevistas, conseguiu a redução da jornada de trabalho do bancário para seis
horas, enquanto a maioria dos outros trabalhadores cumprem uma jornada de 8 horas diárias.
“O salário exíguo, o trabalho desarticulado e a insegurança, somados ao horário exaustivo,
tiveram por conseqüências um empregado de pequena produção, e doente. As doenças mais
comuns eram a tuberculose e a ‘psiconeurose bancária’” (CANEDO, 1978).
Essa era a forma como era visto, em 1938, o trabalho bancário pelo IAPB, o extinto
Instituto de Aposentadoria dos Bancários. Essa “psiconeurose bancária” ainda era descrita
com os seguintes sintomas:

afeta as funções do cérebro, dando fraqueza, dificuldade de concentrar atenção, dor de cabeça e irritabilidade. Surgem insônias e as
fobias de várias espécies, ou seja, o medo de comer alimentos comuns e a aversão a muita coisa mais, que até aí a vítima do mal
costumava fazer sem nada sentir. O sintoma que domina é a angústia ou o excesso de escrúpulo (CANEDO, 1978, p.43).

Além dos desgastes inerentes à própria atividade profissional, o trabalhador bancário


também está sujeito à situações traumáticas. Uma experiência potencialmente traumática
comum no Brasil é a situação de assalto, e entre os assaltos, o assalto que é cometido contra
as instituições bancárias. Dado o grande número de assaltos a bancos que ocorrem, em que
funcionários e clientes são agredidos, e gerentes de agências são constantemente
seqüestrados, inclusive com suas famílias, para facilitar o ingresso nas agências, o trabalho
bancário pode ser considerado um fator de risco de desenvolvimento do TEPT para aqueles
trabalhadores que vivem situações de assalto ou seqüestro.
Trabalhadores das profissões conhecidas como de médio ou alto risco, como policiais, bombeiros e empregados bancários são

freqüentemente confrontados com incidentes críticos, como atos de violência, assaltos, desastres e confrontação com pessoas feridas ou

mortas (VAN DER PLOEG; DORRESTEIJN; KLEBER, 2003). Esses trabalhadores estão expostos a situações
violentas não apenas como cidadãos que vivem em um ambiente disruptivo, mas também no
exercício de suas atividades profissionais. No caso dos trabalhadores bancários, estes se
tornam alvo dos assaltantes, uma vez que eles podem se tornar um obstáculo ou um meio de
acesso ao cofre do banco e seu conteúdo. O perigo não está presente apenas no local de
trabalho. “Passa a ser comum que os bancários sejam abordados e se tornem reféns no
caminho para o trabalho ou, até, em suas próprias casas, de forma que a insegurança é levada
a todos os lugares , família, pessoas do convívio cotidiano”, afirma Campos (1998).
Essa sensação de poder tornar-se um refém para um assalto ao banco provoca no
bancário uma necessidade de vigilância e controle de seus familiares que provoca uma tensão
muito grande, que comumente tem como resultado alterações na saúde e desgaste nas
relações familiares, o que provoca mais tensão, numa espiral ascendente.
Sato (1988, p. 121) menciona que o trabalho bancário está “extremamente
relacionado com o desgaste da saúde, quer por existir riscos de acidentes de trabalho, quer
por existir risco de assalto a bancos”. A partir de seu trabalho no DIENSAT (Departamento
Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde nos Ambientes de Trabalho), essa autora
acrescenta que “vários trabalhadores (de bancos) procuravam o atendimento médico por
crises após assalto” (p. 121).
Por esse motivos, como exemplos do desenvolvimento do Transtorno de Estresse pós-
Traumático em pessoas que passaram por situações de violência, serão apresentados três
casos de trabalhadores bancários que foram vitimados em função de sua atividade
profissional. A seleção desses casos levou em apresentação dos casos teve como critérios a
descrição do local da entrevista, a identificação do indivíduo, a descrição da situação
traumática, e as alterações sentidas após essa situação. Por motivos éticos, o nome dos
entrevistados foi alterado. As entrevistas foram abertas, mas tendo como roteiro norteador as
alterações indicadas na Uma experiência potencialmente traumática comum no Brasil é a
situação de assalto, e entre os assaltos, o assalto que é cometido contra as instituições
bancárias. Dado o grande número de assaltos a bancos que ocorrem no Brasil, em que
funcionários e clientes são agredidos, e gerentes de agências são constantemente
seqüestrados, inclusive com suas famílias, para facilitar o ingresso nas agências, o trabalho
bancário pode ser considerado um fator de risco de desenvolvimento do TEPT para aqueles
trabalhadores que vivem situações de assalto ou seqüestro.
Estes dados trazem os seguintes questionamentos: O bancário, ao viver a situação de
assalto ou seqüestro desenvolve os sintomas do Transtorno de Estresse pós-Traumático?
Quais sintomas são mais comuns? Estes sintomas persistem por muito tempo? Quando os
funcionários assaltados continuam a trabalhar na mesma instituição, na mesma agência, este
fator interfere na cronificação ou na superação dos sintomas? Estes funcionários alteram sua
produção funcional, sua perspectiva profissional e o relacionamento com colegas e com a
própria instituição?
Estes casos serão usados com ilustração para a discussão da dinâmica dos sintomas,
apresentada nos capítulos seguintes.

1- O caso de Sueli – A culpa pelo assalto

A funcionária, que chamarei de Sueli, tem 39 anos, é divorciada há 12 anos e tem


uma filha de 15. Já havia passado por outros dois assaltos anteriormente que, segundo ela,
não trouxeram alterações em sua vida, ao contrário do último. Em um dia de Outubro, cinco
meses antes da realização da entrevista, dirigiu-se normalmente ao trabalho. Era um dia
como outro qualquer.
Quando chegou a agência bancária onde trabalhava, os assaltantes já haviam entrado,
embora ela não os tivesse notado. Sueli era uma das pessoas que detinham a combinação do
cofre, embora não fosse sua atribuição abri-lo diariamente. Nessa agência, alguns
funcionários tinham a combinação do cofre para poder abri-lo no caso da ausência do gerente
ou tesoureiro. Ao entrar na agência, foi rendida pelos assaltantes, e dirigiu-se para junto dos
outros funcionários que chegaram antes dela. Um dos assaltantes disse para que ela ficasse
em sua mesa de trabalho, na frente da agencia, mostrando que já conheciam a localização
dos funcionários. Ao ficar isolada dos demais colegas, Sueli pensou que seria morta ou
tomada como refém na saída dos assaltantes, e passou a temer a chegada da polícia. Os
assaltantes perguntaram-lhe então quem abria o cofre, e Sueli manteve-se em silêncio, pois
acreditava que não conseguiria abri-lo, por estar nervosa, e por não se lembrar onde estava o
papel no havia guardado os números da combinação.
Sueli queixa-se de não ter recebido orientação, por parte do banco, sobre como se
comportar durante um assalto. Sentiu-se perdida, sem saber a postura mais segura a adotar.
Enquanto estavam no interior da agência, os assaltantes fizeram diversas ameaças, inclusive
para ela. Quando os assaltantes quebraram o aparelho de circuito interno das câmeras de
segurança, Sueli interpretou o barulho de vidros quebrando como decorrentes da morte de
algum colega e ficou olhando para os assaltantes. Nesse momento, um deles, que estava com
o vigilante da agência, dirigiu-se a ela gritando: “O que você está olhando aí, sua puta, sua
puta. Senão eu dou um tiro agora na sua cabeça”, e ela começou a chorar. “Aí esse que disse
que era para gritar ficou com a arma, um revolver cor de prata, me xingando, querendo
saber quem tinha o segredo, quem estava com a chave, se quem tinha o segredo ainda ia
chegar, só que quem tinha o segredo era eu, mas até pelo fato de estar tendo este tratamento,
a gente acaba esquecendo, não é?”
Quando outro colega chegou, foi abordado e agredido violentamente pelos
assaltantes, para que abrisse o cofre. Este fato gerou posteriormente um sentimento de culpa
em Sueli, pois ela avalia que, se tivesse aberto o cofre quando interpelada, teria evitado a
agressão do colega e diminuiria o tempo que os assaltantes permaneceram na agência. Seu
colega abriu o cofre, mas ainda levou um tempo para que os assaltantes saíssem, pois o cofre
tinha mecanismo de tempo para abertura. Esse período de espera foi marcado por muita
tensão. Após a abertura do cofre, os assaltantes pegaram o dinheiro e fugiram.
Sueli foi trabalhar no dia seguinte, mas sentiu-se mal, “não agüentava nem olhar
para as pessoas” e pediu um afastamento do trabalho ao serviço médico do banco, ficando
afastada por quinze dias. Alguns dias depois do assalto, teve um sonho em que a agência
estava sendo assaltada novamente. Na tarde desse mesmo dia, recebeu um telefonema de uma
colega, que disse que a agência havia sofrido novo assalto. Quando recebeu essa
notícia,“entrei em desespero”, disse ela, completando que “fiquei louca, gritando, chorando,
lembrando do sonho”. Tentou ligar para a agência, mas não atendiam ao telefone, e ela
imaginou que seus colegas estavam todos mortos. Sentiu-se novamente muito culpada por
não ter alertado seus colegas, evitando o assalto. Após o término da licença médica, tentou
voltar ao trabalho, mas sentia muito medo e não conseguia atender os clientes. Começou a
ter sintomas depressivos, só querendo ficar na cama, e chorando muito, por pequenos
motivos.
Foi deslocada para um departamento interno do banco, que não tinha atendimento de
público nem havia manuseio de valores. Sueli interpretou essa transferência como sendo um
ato apenas para ajudá-la, uma vez que ela não tinha uma função definida nesse departamento.
Atualmente foi transferida para outra agência, na mesma cidade, localizada em um prédio
mais seguro, no centro da cidade, mas não conseguiu adaptar-se. Considera seus colegas frios
e distantes em relação a ela, e considera que não foi bem acolhida.
Sueli relatou as seguintes alterações após o assalto:
Estava namorando há dois anos com um rapaz, mas terminou o relacionamento
porque achava que não podia corresponder às expectativas dele de ter uma vida sexual
normal, pois após o assalto, não conseguiu mais ter relacionamentos sexuais.
Passou a evitar sair de sua casa, reduzindo seus momentos de lazer, como ir à praia,
cinema e encontrar-se com os amigos em barzinhos, atividades que eram freqüentes antes do
assalto. Afastou-se dos amigos e seu relacionamento com sua filha adolescente ficou muito
tenso, com brigas constantes, porque Sueli tem medo de levá-la nos lugares em que a filha
quer ir, com medo de que ela ou a filha sejam seqüestradas. Esse medo não havia antes do
assalto.
Sua filha desenvolveu anorexia e “toma remédios controlados”. Sueli avalia que, de
alguma forma, teve participação na doença da filha, sentindo-se culpada por isso. Ela mesma,
por sua vez, percebe alterações na sua alimentação, pois está comendo muito, “mesmo sem
vontade”, especialmente doces e chocolates. “Estou só engordando, engordando.. Eu tenho
muita ansiedade” , completa.
Tem medo de sofrer novos assaltos e sente a presença constante do assaltante
“balançando a arma, como aconteceu no dia”.
Aumentou o número de consultas a médicos, e chega a ir ao hospital todos os dias,
com diversas queixas físicas.
Sente-se culpada pelas adversidades que vem enfrentando, e sente que as pessoas
também a culpam. Comentou durante a entrevista que “as pessoas acham que a minha
energia é que está atraindo coisas ruins”. Esse sentimento parece ser fortalecido pela
psicóloga com quem iniciou uma psicoterapia recentemente, que em uma sessão na véspera
de nossa entrevista, disse a ela: “Nossa Sueli, você está tão sem energia que está até me
contagiando. Eu vou ter que fazer alguma coisa porque deste jeito...”

2- O caso de Jorge – A dificuldade de um herói

O funcionário que chamarei de Jorge, tem 33 anos, atualmente faz curso superior, é
casado, tem dois filhos, um menino de 11 anos e uma menina de três anos. Trabalha no banco
há três anos, sua função é de Auxiliar Administrativo. Trabalhava em uma cidade pequena,
no interior, distante vinte e seis quilômetros de sua residência. Antes de entrar no banco, foi
proprietário de um pequeno comércio, e sofreu alguns furtos, mas nunca um assalto à mão
armada.
Na manhã do dia do assalto, há pouco mais de um ano atrás, sua esposa havia pedido
para usar o carro, único do casal. Jorge, “por comodismo”, não concordou e argumentou com
ela que seu colega, com quem pegava carona ocasionalmente, não iria trabalhar nesse dia, e
que tinha de ficar como carro, para deslocar-se até sua faculdade após o trabalho.
Durante o percurso até a agência onde trabalhava, foi cercado por três carros: “um
Vectra prata, um Uno cor de vinho e o Astra verde” sendo obrigado a parar. Quando
percebeu que era um assalto, imaginou que já tivessem pegado sua família, como em outros
assaltos que ouvira falar.
Os assaltantes eram “mais ou menos quinze pessoas, todas bem armadas”.
Anunciaram que iriam assaltar o banco e começaram a contar detalhes de sua família e de
sua casa, ameaçando que se não colaborasse, matariam sua filha (seu filho tinha viajado para
casa de parentes, fato conhecido pelos assaltantes). Relatou que ficou preocupado com sua
família e teve que obedecer aos assaltantes, pois, “se a pessoa não tivesse uma família, nada,
acho que a pessoa tomava uma atitude”.
Dirigiu então seu carro para a agência, acompanhado de dois dos assaltantes, sendo
seguido pelos outros veículos. No trajeto, ficou muito preocupado com o momento da entrada
na agência, pois temia que seus colegas não permitissem o ingresso dos assaltantes, ainda
mais por ter um cargo baixo no banco.
Soube também, pelos assaltantes, que ele foi escolhido por ter sido confundido como
sendo o gerente da agência. Jorge atribuiu esse erro pelo fato de trabalhar com o atendimento
ao público e abertura de contas, na frente da agencia, e também pelo fato de ter um carro
melhor que o do gerente. Não quis corrigir essa informação, temendo que os assaltantes,
pudessem fazer algo a ele por pensarem que o assalto não daria certo.
Ao chegarem à porta da agência, Jorge percebeu que um dos carros dos assaltantes
estacionou em frente à delegacia de polícia, que ficava na mesma praça. Desceu do carro,
acompanhado do líder da quadrilha. Quando se aproximaram da porta da agência, chamou o
gerente e o assaltante disse ao gerente: “Olha, você manda abrir isso aí porque a gente tem
como entrar aí de qualquer jeito, e a gente sabe que seu filho está sozinho em casa, sua
mulher saiu com um filho seu para o médico, certo? Seu filho está sozinho dentro de sua
casa, você mora na rua tal”. Jorge sentiu-se muito aliviado neste momento, o que gerou um
sentimento de culpa posterior. O alívio ocorreu, segundo ele, porque, por um lado, o gerente
não se oporia à entrada deles, e por outro, porque não haveria suspeita de que ele estivesse,
de alguma forma, associado aos assaltantes, que era outra preocupação que teve durante o
trajeto até a agência.
O gerente abriu a porta e entraram na agência. Os vigilantes foram rendidos e suas
armas retiradas pelos assaltantes. Após pegarem o dinheiro que estava no cofre, os ladrões
consideraram pequeno o valor recolhido e quiseram levar também o dinheiro dos terminais
eletrônicos. Isso aumentou sua tensão, pois havia clientes usando os terminais e Jorge teve
medo de que houvesse tiroteio. Nesse momento, dois colegas, “mais experientes de banco”
argumentaram com o assaltante no sentido de que algum cliente poderia chamar a polícia e
deixaram-nos mais calmos. Depois de terem recolhido esse dinheiro os assaltantes saíram da
agência, deixando a instrução de que esperassem algum tempo antes de acionarem o alarme.
Jorge sentiu-se muito abalado com o assalto e revoltado por ter sido tomado como
refém, por ser confundido com o gerente. “a gente está preparado para alguém pegar o seu
celular e sair correndo, principalmente porque eu não tinha cargo nenhum no banco, não
tinha preocupação, tinha medo mas eu nunca achava que ia ser alvo... eu estava recebendo
uma carga muito grande ali, porque o gerente normalmente tem a chave, tem o segredo, ele
tem como resolver o problema, quando o cara é gerente do banco ele tem como resolver e a
gente, como tinha pouco tempo de banco...eu não sabia como ia resolver aquela situação...”
Após o assalto, Jorge quis pedir demissão do banco para não se expor a novos assaltos,
mas acabou aceitando uma transferência. para outra cidade. Essa nova agencia fica distante
110 Km de sua residência, mas ele diz que vale a pena, pois não queria mais trabalhar naquela
agência, temendo por sua família, uma vez que os assaltantes sabiam seu endereço.
Sentiu-se culpado pelo sofrimento causado ao filho, pois seu filho assistiu pela
televisão a notícia do assalto e, ao não conseguir telefonar para casa, imaginou que seu pai
havia morrido. Culpa-se também pelas limitações que tem colocado a sua família,
especialmente em relação a passeios e lazer, devido aos sintomas que vem apresentando, e
pela preocupação constante que passou a existir em sua esposa, temendo novos assaltos.
Relatou as seguintes alterações após esse seqüestro e assalto:
Por medo de ser assaltado novamente, altera constantemente sua rotina e percurso
para ir ao trabalho e à faculdade.
Não deixa mais seu filho andar sozinho de bicicleta ou ir desacompanhado à casa de
amigos, como fazia antes. Seu lazer tem se limitado a sair com a família apenas para ir ao
Shopping Center da cidade, único local em que se sente seguro e mesmo assim, evita voltar
para casa tarde da noite.
Quanto ao relacionamento com sua esposa, Jorge comenta que percebeu alterações
no relacionamento sexual, tanto na diminuição da freqüência, como na qualidade, pois já não
sente tanto prazer como antes. Atribui isso ao cansaço que sente pelo deslocamento diário
até o banco.
Tem ido mais a médicos por sentir um aumento em sua gastrite.
Durante toda a entrevista, ele sublinhava o armamento e o numero de integrantes da
quadrilha, assim como o fato de saberem seu endereço e detalhes de sua família Isso causou-
me a impressão de que Jorge pedia, implicitamente, um reasseguramento de que sua conduta,
durante o seqüestro e assalto, foi correta, por não reagir.

3. O caso de Teresa - Sentimentos de descontrole.


Teresa, 48 anos, nível superior completo, é casada e tem duas filhas, com 22 e 21
anos. Trabalha há 26 anos no banco e atualmente exerce a função de gerente de contas,
constantemente substituindo o gerente principal da agência.
Passou anteriormente por dois assaltos que se alternam em seu relato, sempre
comparando o último, pior, com o anterior, no qual manteve o controle sobre a situação, e
que não deixaram conseqüências. Segundo ela, os assaltos anteriores foram mais
tranqüilos,pois ela ficou com o grupo de colegas em um canto enquanto os assaltantes
dominavam o gerente e pegavam o dinheiro. Já no último foram empregadas mais violência
e ameaças, principalmente dirigidas a ela.
Seis meses antes da entrevista, durante um dia normal de trabalho, no horário de
expediente ao público, chegou na agência uma quadrilha conhecida na cidade como a Gangue
da Marreta. Teresa já havia ouvido falar dessa quadrilha em noticiários policiais. Dez
assaltantes, aproximadamente, colocaram-se à frente das portas de vidro da agência e
começaram a bater com marretas nos vidros do banco, para quebrá-los, enquanto outros deles
apontavam armas para dentro, causando “aquele barulho de dos vidros caindo, o cara
gritando, pisoteando o vigilante”. “Aquilo me deixou marcas”, acrescenta em seguida.
Após entrarem na agência, dirigiram-se a ela perguntando pelo gerente. Como o
gerente não estava, e “como eu substituo o gerente, assumi toda a responsabilidade para
mim”, disse ela. Essa postura Teresa manteve durante o assalto, tentando proteger e cuidar
dos colegas. Uma de suas colegas disse que ia esconder a chave do cofre, ao que ela
contestou, ordenando que chave fosse entregue, e transmitiu “segurança para ela”. Um dos
assaltantes aproximou-se de Teresa e pediu para que abrisse cofre. Eles dirigiram-se para
abordar a “mulher de óculos”, que era ela. Respondeu a eles dizendo que não tinha a chave
do cofre com ela, que precisaria pegá-la em outro setor, mas o assaltante não a ouvia e gritava
para que ela abrisse o cofre. Teresa respondeu então de forma ríspida, gritando que não estava
com a chave, e o assaltante passou a dar socos em seus braços e ombros. Neste momento, ela
ficou muito assustada e teve certeza de que iria morrer. Após pegarem o dinheiro, os
assaltantes mandaram que ela se deitasse no chão, com os outros funcionários e clientes.
Teresa ficou acalmando as pessoas que estavam nervosas. Após algum tempo, um colega
levantou-se e verificou que os assaltantes já tinham deixado a agencia.
Teresa diz que ficou muito nervosa após esse assalto, e faltou ao trabalho por três
dias.
Comenta as seguintes alterações em sua vida após o assalto:
O ambiente no grupo de trabalho, que era bom antes do assalto, ficou muito
prejudicado. Uma colega pediu demissão do banco com medo de ser novamente assaltada,
outra foi transferida para outra cidade. Há um colega “traumatizado” que passa o tempo todo
assustado. Ela sente-se muito cobrada pelos subordinados para que consiga uma mudança da
agência para um local que ofereça maior segurança. Este pedido já foi feito aos setores
responsáveis, mas ainda não foi providenciada a mudança, e os funcionários a acusam de ser
displicente em relação a essa mudança e à segurança pessoal do grupo. Teresa fica revoltada
com essa situação, pois isso seria responsabilidade do gerente principal da agência, mas é a
ela que são dirigidas as reclamações e críticas.
Em sua vida pessoal, Teresa está mais assustada e temerosa de novos assaltos. Tem
sobressaltos quando ouve barulhos inesperados ou de vidros quebrando, e sonha
constantemente com cenas do assalto. “Até hoje, eu não posso ouvir qualquer barulho,
quando vem alguém instalar algum equipamento, faz um barulho, a gente acha que já é um
assalto”.
Passou a controlar suas filhas, ligando freqüentemente para elas através do telefone
celular, apenas para saber se estão bem. Suas filhas não aprovam esse controle, gerando
constantes atritos familiares.
Teresa também desenvolveu uma preocupação constante em ligar para sua casa para
dizer que está bem, quando ocorre algum imprevisto e ela se atrasa em alguma atividade.
Está mais nervosa do que antes e irrita-se com mais facilidade com sua família. Não
percebeu aumento de consultas médicas, por ser "avessa a médicos”, mas começou a ter
dores de cabeça, o que não ocorria antes do assalto.
Aumentou o consumo de chá que, segundo ela, passa o dia todo bebendo.

O TEPT constitui um novo paradigma no estudo das interações de fatores psico-

sociais com os neurobiológicos. (MINGOTE ET AL., 2001). Não se pode falar deste

transtorno sem falar em realidade externa e no momento histórico-social que o indivíduo

e o “fator estressor” estão inseridos.


Freud dizia que “os histéricos sofrem de reminiscências” (1910/1995, Edição
Eletrônica) em um momento da psicanálise em que o trauma ainda era visto como fator
necessário na etiologia das neuroses. Esta frase adequa-se bem à situação do indivíduo com
Transtorno de Estresse pós-Traumático, e aos três bancários entrevistados.
Para as pessoas entrevistadas, mais do que um medo que é quase certeza da repetição
da agressão sofrida, fica a sensação de que aquela situação ainda não terminou, que o perigo
continua e que, como na situação original, não se sabe como vai terminar. Este é um dos
motivos pelos quais, no atendimento emergencial, conhecido por Critical Incident Stress
Debriefing (CISD), ou simplesmente debriefing, um dos procedimentos propostos ao
terapeuta é de retomar com os indivíduos a lembrança do término da situação traumática.
Com perguntas do tipo “Quando você percebeu que terminou o evento estressor?” e “O que
sentiu nesse momento?”, coloca-se a ênfase no término daquela situação. Talvez esse seja
um dos motivos para a eficácia profilática desse tipo de intervenção, embora alguns autores
questionem sua validade (DEAHL, 2000).
Os três entrevistados apresentaram critérios diagnósticos para o TEPT, segundo o
DSM-IV.
Em relação ao Critério A do DSM_IV (APA, 1995, Edição eletrônica), os três
“experimentaram ou foram testemunha de ameaças ou risco real de perder a vida ou tiveram
contato com ameaça à integridade física”.
Entre os sintomas constantes do Critério B, de re-experimentação, foram encontrados
nos três casos os sintomas de Ideação intrusiva e de Ansiedade provocada por estímulos
associados ao trauma. Os três entrevistados ainda sentem como se a situação traumática não
tivesse terminado.
Quanto aos sintomas de evitação, Critério C, a diminuição do interesse, a sensação de
isolamento a evitação de lugares e pessoas que recordem o trauma estão presentes nos
entrevistados. Este último sintoma, inclusive, foi o responsável pela solicitação de
transferência de local de trabalho de dois dos entrevistados. A terceira entrevistada está
tentando providenciar a mudança do local de funcionamento da agência.
Em relação aos sintomas do Critério D, de excitabilidade, os três apresentaram
irritabilidade, hipervigilância e reação de susto aumentada, além de perceberem o surgimento
de doenças físicas não existentes previamente.
Quanto ao critério E, para todos eles, a perturbação dos sintomas ultrapassa um mês.
Para os três, inclusive, a duração dos sintomas é superior a três meses, podendo ser
considerados, para efeito diagnóstico, com Transtorno de Estresse pós-Traumático Crônico,
segundo os critérios do próprio DSM-IV (APA, 1995).
O critério F estabelece que “A perturbação causa sofrimento clinicamente
significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional, ou em outras áreas
importantes da vida do indivíduo” (APA, 1995. Edição Eletrônica). Os três apresentam,
além do sofrimento significativo, prejuízo social e ocupacional. Dois dos entrevistados
sentem-se isolados na nova agência para a qual foram transferidos. A terceira entrevistada
queixa-se do ambiente ruim que ficou no local de trabalho após o assalto.
A perturbação causada pelo assalto ou seqüestro causou sofrimento clinicamente

significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas

importantes da vida do indivíduo. Não apenas sua produtividade laboral ficou afetada,

mas seus relacionamentos afetivos e, inclusive, sexuais sofreram alterações. Para dois

dos entrevistados, a dificuldade surgida em relação à sexualidade após a situação

traumática, ficou explicitada na entrevista.

Fica assim constatado que os três entrevistados desenvolveram e apresentam o quadro


patológico de Transtorno de Estresse pós-Traumático Crônico. Isso faz pensar nos outros
assaltos ocorridos no banco durante todos esses anos, e em quantos funcionários ainda podem
estar sofrendo seqüelas dessa experiência traumática. Não há estudos epidemiológicos deste
tipo no país, um campo aberto para novas pesquisas.
As medidas defensivas adotadas por eles, como a restrição social e controle das

pessoas próximas para evitar supostos perigos, acabam fazendo com que os sintomas se

irradiem no âmbito familiar, afetando família e amigos.

Embora a situação traumática não tenha alterado os planos profissionais dos

entrevistados, o relacionamento deles com o Banco ficou prejudicado. A revolta por ter

passado por essa experiência e o sentimento de impotência durante a situação traumática


persistem até esse momento. Os três entrevistados mencionaram o fato de que colegas

seus saíram do banco devido a uma experiência traumática do tipo da que eles passaram.

Esse dado indica o transtorno de Estresse pós-Traumático possa estar fazendo

com que as empresas estejam perdendo bons funcionários e os funcionários, bons

empregos.

REFERÊNCIAS

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transtornos mentais DSM-IV. Edição eletrônica. Coordenação: Dr. Miguel R. Jorge. Porto
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A ansiedade no Transtorno de Estresse pós-Traumático

Othon VIEIRA NETO

Nos três casos apresentados no capítulo anterior vemos o surgimento de uma


ansiedade pela possibilidade da repetição da situação traumática, e sofrer novas violências,
em relação a si mesmos ou a pessoas próximas, que limita suas vidas. Aqui cabe um
esclarecimento. Porque estamos tratando esse afeto como ansiedade, que seria, segundo o
Dicionário Aurélio, uma “sensação de receio e de apreensão, sem causa evidente, e a que se
agregam fenômenos somáticos como taquicardia, sudorese, etc”. (FERREIRA, 1999, grifo
nosso) e não como medo, um sentimento que surge diante de uma ameaça real e que nos
prepara para enfrentar ou fugir dessa ameaça? Porque achar que não há “causa evidente” para
este sentimento quando o mundo realmente é perigoso e essas pessoas, por trabalhar em
bancos, são potencialmente alvos de assaltantes? Dito de outra forma: estaríamos diante de
uma situação de medo ou de ansiedade?
Aqui cabe um breve esclarecimento do termo ansiedade, tão presente na literatura
psicanalítica. Segundo Hanns (1996, p. 62), o termo ansiedade foi traduzido do original angst
ou furcht que muitas vezes é traduzido por angústia. Segundo ele, a palavra Angst em
alemão significa medo, “abarcando desde os sentidos de ‘temor’ e ‘receio’ até os sentidos
intensos de ‘pânico ‘ e ‘pavor’”. “Um animal perante o predador sente Angst”, acrescenta (p.
63). O termo Angst, assim, refere-se não somente ao medo de um objeto real, como um
predador, mas também a objetos não específicos, aproximando-se daquilo que conhecemos
como Ansiedade. Nas Conferências Introdutórias (1917/1995, Edição Eletrônica), essa
diferença fica expressa quando Freud utiliza-se de qualidades da Angst: Há uma ansiedade
realística, que seria um estado de preparação para o enfrentamento de um perigo real, o
sentimento que conhecemos popularmente como medo, e uma ansiedade neurótica, onde o
perigo é inexistente ou desproporcional à ansiedade causada (FREUD, 1917/1995, Edição
Eletrônica). Mesmo a ansiedade realística, aparentemente adequada à uma situação perigosa,
é questionada por ele:

[...] Em geral, a reação ao perigo consiste numa mistura de afeto de ansiedade


e de ação defensiva. Um animal aterrorizado sente medo e foge; mas a parte
adequada desse processo é a ‘fuga’ e não o ‘estar com medo’.Assim, é-se
tentado a afirmar que a geração da ansiedade nunca é uma coisa apropriada
(1917/1995, Edição Eletrônica).

Dessa forma, podemos dizer que sempre há um caráter “neurótico” na ansiedade,


mesmo naquela que poderíamos considerar apropriada.
Em relação à ansiedade neurótica, Freud explica no mesmo texto que ela pode dar-se
basicamente de três maneiras. A primeira, de uma forma expectante, não vinculada, ou seja,
sem a presença de um objeto ameaçador, que seria a ansiedade presente no quadro
psicopatológico de Neurose de Angústia. A segunda, que aparece vinculada a um objeto, o
qual não oferece perigo real, ou o perigo oferecido é desproporcional à ansiedade gerada. É
o caso das fobias, ou, como Freud designava na época, Histeria de Angústia, nas quais o
objeto temido é a representação simbólica de conseqüências da satisfação libidinal. A
terceira, surge acompanhada dos sintomas nas psiconeuroses, como na histeria ou na neurose
obsessiva, quando o neurótico é impedido de realizar seu ritual.
Pode-se concluir dessa passagem que a ansiedade neurótica pode surgir sem objeto,
ter objeto simbólico, ou ser substituta de sintomas.
Qual seria a ansiedade no Transtorno de Estresse pós-Traumático? Ela tem um objeto
específico, que é a repetição da situação traumática. Este objeto não é simbólico de um
conflito, o temido é a repetição da situação. Por outro lado, não está por trás do sintoma; ela
é um dos principais sintomas desse quadro.
Poderíamos então considerar que no caso do Transtorno de Estresse pós-Traumático,
estamos lidando com uma ansiedade realística, com um medo real, de um perigo real. Afinal,
como justificado por uma pessoa traumatizada por um seqüestro-relâmpago: “Não sou eu que estou
doente. O mundo é que é perigoso”.
No caso da pessoa com Transtorno de Estresse pós-Traumático, mais do que a
ansiedade natural provocada pela convivência em um ambiente reconhecidamente perigoso,
parece haver a certeza de uma nova agressão iminente. Contra essa hipotética agressão, a
preparação para o enfrentamento do perigo é constante.
Pode-se argumentar contra isso que o perigo já existia antes da vivência da situação
traumática. A possibilidade de ocorrer uma violência para essa pessoa, na maioria dos casos,
é a mesma que existia antes da violência já sofrida. O mundo já era perigoso e, se haviam
motivos para cautela e apreensão, estes não alteravam a vida e as atividades dos indivíduos.
No paciente com Transtorno de Estresse pós-Traumático, o que mudou não foi o mundo, mas
sim a forma que ele vê o mundo.
Essa diferença fica evidenciada quando Freud (1925/1995 Edição Eletrônica)
distingue a ansiedade frente ao perigo e a ansiedade frente ao trauma:

Teremos então bons motivos para distinguir uma situação traumática de


uma situação de perigo.
O indivíduo terá alcançado importante progresso em sua capacidade de
autopreservação se puder prever e esperar uma situação traumática dessa
espécie que acarrete desamparo, em vez de simplesmente esperar que ela
aconteça. Intitulemos uma situação que contenha o determinante de tal
expectativa de uma situação de perigo. É nessa situação que o sinal de
ansiedade é emitido. O sinal anuncia: ‘Estou esperando que uma situação de
desamparo sobrevenha’ ou ‘A presente situação me faz lembrar uma das
experiências traumáticas que tive antes. Portanto, preverei o trauma e me
comportarei como se ele já tivesse chegado, enquanto ainda houver tempo
para pô-lo de lado.’ A ansiedade, por conseguinte, é, por um lado, uma
expectativa de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma
atenuada. Assim os dois traços de ansiedade que notamos têm uma origem
diferente. Sua vinculação com a expectativa pertence à situação de perigo,
ao passo que sua indefinição e falta de objeto pertencem à situação
traumática de desamparo — a situação que é prevista na situação de perigo.
Teríamos, então, por um lado, o sinal de ansiedade, que surge como uma preparação
diante do perigo, algo adequado frente a uma situação perigosa. Por outro lado, o estado de
ansiedade, como se o perigo já estivesse presente. Esse é o mecanismo presente no indivíduo
com TEPT.
Esse estado de ansiedade, por sua vez, remonta a ansiedade presente no TEPT parece
ser do tipo que remonta a um protótipo de toda experiência traumática posterior, que seria o
trauma do nascimento, uma situação especial, e única.(Freud 1925/1995, Edição Eletrônica)
.
Vieira (2001, p.117-118) discute essa relação:

A resposta automática do trauma de nascimento é a angústia. A angústia


ficará daí para sempre associada com o excesso de estimulação, com o
trauma e surgirá como uma reação sempre que haja um perigo de repetição
desse estado. A angústia é um afeto essencialmente desprazeroso e é uma
forma de encontrar vias de descarga, o que se evidencia por seu componente
corporal.

Assim, cada situação traumática produziria uma ansiedade vivida originalmente no


nascimento. “A ansiedade surgiu originalmente como uma reação a um estado de perigo e é
reproduzida sempre que um estado dessa espécie se repete”, como ele afirma no trabalho
“Inibições, Sintomas e Ansiedade” (1925/1995, Edição Eletrônica).
Nas pessoas entrevistadas, podemos encontrar a ansiedade presente no temor da
repetição de uma situação perigosa. Por este motivo, Sueli não vai mais aos lugares que
freqüentava, como praia, cinema e barzinhos, nem leva mais sua filha para passeios, com
medo de novos assaltos. Jorge cerca-se de medidas de segurança, e não permite mais que
seus filhos saiam de casa desacompanhados. Teresa controla a atividade e horário de suas
filhas e tem medo o tempo todo de um novo assalto, não apenas durante o expediente
bancário, mas também no trajeto entre o banco e sua residência e em seus passeios de lazer.
Talvez o exemplo mais impressionante da ansiedade produzida pela certeza da
repetição de uma situação traumática tenha ocorrido em 11 de setembro de 2002: No primeiro
aniversário do atentado terrorista às Torres Gêmeas, muitas pessoas do mundo todo,
traumatizadas pelo atentado, cancelaram viagens aéreas, temendo a repetição dos atentados.
Não foram canceladas as viagens de trem, ônibus, navios, assim como não foram canceladas
as viagens de avião no dia 10 ou 12 de Setembro. É como se o medo ficasse localizado na
repetição idêntica da situação. É possível, então imaginar a sensação de quem tem que repetir
identicamente seu trajeto, seu ambiente de trabalho.

1- A lembrança constante da situação traumática (flashback)

Outro elemento que chama a atenção nos relatos dos entrevistados descrito no
capítulo anterior é a forma viva e rica em detalhes da descrição dos assaltos, apesar do
intervalo de tempo decorrido (seis meses para Sueli, um ano para Jorge e cinco meses para
Teresa) desde o assalto. Esse elemento é comum em muitas pessoas que passaram por
experiências traumáticas.
A imagem do momento traumático fica viva na memória, mesmo dezenas de anos
após o incidente traumático (LÓPEZ-IBOR, 1998). Nas entrevistas realizadas, pode-se ver
este elemento. Sueli ainda lembra constantemente do assaltante “balançando a arma, como
aconteceu no dia”. Jorge ainda sonha com o dia do assalto, e também tem constantes
lembranças intrusivas, mesmo em momentos de descontração.Teresa também recorda do
assalto constantemente, especialmente a cena da entrada da quadrilha na agência, dos
“vidros caindo, do cara gritando, pisoteando o vigilante”. Todos eles lembram-se com
exatidão de algumas palavras ameaçadoras dos assaltantes.
Sobre a força do registro de uma situação traumática, Freud, no “Projeto para uma
Psicologia Científica” (1895/1995, Edição Eletrônica), explica que a memória está
representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios, e que “esta facilitação
ocorre em virtude da magnitude da impressão ou da freqüência em que a impressão se repete”
(grifo nosso). Assim, em uma situação onde a vida está ameaçada, o excesso de estimulação
contra o qual a barreira protetora deveria funcionar, provoca uma falha nessa barreira.
Em “Além do Princípio do Prazer” (1920/1995, Edição Eletrônica), ele comenta essa
falha:
Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora
que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor.
Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão
desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes
contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está
destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da
energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é
momentaneamente posto fora de ação. Não há mais possibilidade de
impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de
estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as
quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido
psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar.

Devido à quantidade de estímulos, a vinculação no sentido psíquico, ficaria


impossível. Isso daria à situação traumática um caráter de uma experiência não representável
(BENYAKAR, 2003). A única possibilidade de reduzir esse excesso de estimulação seria a
descarga que ocorre, por exemplo, através dos sonhos repetitivos da repetição da situação.
Como essa via é insuficiente para a descarga, a impressão continua altamente catexizada,
outorgando às lembranças esse caráter atemporal. Seria como um aparelho eletrônico
projetado para funcionar em 110 volts, que por algum motivo é ligado em uma tomada de
220 volts. Os aparelhos mais modernos são dotados de “barreiras protetoras” através de um
sistema de fusíveis que, ao queimarem, protegem os circuitos do aparelho. Quando esse
sistema falha, os componentes ficam sobrecarregados, e mesmo ligando posteriormente o
aparelho em uma tomada de 110 volts, ele não mais funcionará normalmente.
Garcia-Roza (1991), nos lembra que para Freud, o aparelho psíquico é,
fundamentalmente, um aparelho de memória, e que toda impressão, mesmo a mais
insignificante, deixa um traço inalterável, indefinidamente capaz de ressurgir um dia”. A
memória, no “Projeto para uma psicologia científica”, é concebida como o poder que uma
vivência tem de continuar produzindo efeitos. E esse poder depende de dois fatores: “a
memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz contínua) depende de um fator que se
pode chamar de magnitude da impressão e da freqüência com que a mesma impressão se
repete” (FREUD, 1895/1995, Edição eletrônica).
No caso do TEPT, não é a repetição que está em jogo, mas a magnitude da impressão.
Essa magnitude está diretamente relacionada ao temor da morte, presente na situação
traumática.

2- A lembrança de pequenos detalhes

Outro aspecto que merece ser relatado, é o de que pequenos detalhes, absolutamente
sem importância na situação, ficam intensamente carregados na memória do indivíduo
traumatizado.
Sueli lembra-se do telefone celular caído no chão, durante o assalto, Jorge lembra-se
da marca, modelo e cor dos carros usados pelos assaltantes e de palavras ditas pelos
assaltantes. Teresa não consegue lembrar-se da fisionomia da pessoa que a agrediu, embora
se considere boa fisionomista e lembre-se de outros detalhes presentes na cena. Porque, numa
situação onde está presente o risco de vida, alguém repararia em detalhes insignificantes
presentes na situação?
Freud, (1901 [1899]/1995, Edição Eletrônica) explica o que deveria ser retido na
memória e o que deveria ser esquecido:

É somente a partir do sexto ou sétimo ano — em muitos casos, só depois


dos dez anos — que nossa vida pode ser reproduzida na memória como
uma cadeia concatenada de eventos. Daí em diante, porém, há também uma
relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na
memória. O que quer que pareça importante por seus efeitos imediatos ou
diretamente subseqüentes é recordado; o que quer que seja julgado não
essencial é esquecido. Quando consigo relembrar um acontecimento por
muito tempo após sua ocorrência, encaro o fato de tê-lo retido na memória
como uma prova de que ele causou em mim, na época, uma profunda
impressão. Surpreendo-me ao esquecer uma coisa importante, e talvez me
sinta ainda mais surpreso ao recordar alguma coisa aparentemente
irrelevante.
É apenas em certos estados mentais patológicos que torna a deixar de
aplicar a relação mantida, nos adultos normais, entre a importância psíquica
de um evento e sua retenção na memória. (Grifo nosso)

A situação traumática é o estado mental patológico, nestes casos, com a quantidade


de energia que o ego não elabora e com o desenvolvimento da angústia de morte. A situação
criaria uma tendência à fuga do excesso de estimulação, nos moldes em que Freud descreve
em “Inibições, Sintoma e Ansiedade” (1925/1995, Edição Eletrônica) sobre o processo de
fuga ser uma forma de defesa contra estímulos externos. A primeira forma de fuga seria a
retirada da carga de percepção do objeto perigoso. Apesar do objeto estar ali, a pessoa não o
vê ou substitui por algum outro objeto presente na cena perigosa. Seria um processo
semelhante ao que ocorre na origem do fetichismo (FREUD, 1927/1995, Edição Eletrônica)
e que ele denomina como rejeição. Neste texto, o perigo abordado é o do menino, na fase
fálica, perceber a ausência do pênis na mulher e entrar em contato com a angústia de
castração, temendo perder seu próprio pênis. Ele rejeita essa percepção e o que ocorre em
seguida é uma fixação da visão em outra parte do corpo da mulher ou nas roupas íntimas.

Antes, parece que, quando o fetiche é instituído, ocorre certo processo que
faz lembrar a interrupção da memória na amnésia traumática. Como nesse
último caso, o interesse do indivíduo se interrompe a meio caminho, por
assim dizer; é como se a última impressão antes da estranha e traumática
fosse retida como fetiche (1927/1995, Edição Eletrônica).

No caso exemplificado por Freud, o perigo temido é o da castração. No indivíduo


traumatizado, o perigo vivido ou presenciado produz a angústia de morte, e como defesa
contra ela, aspectos mais ameaçadores da cena são substituídos, em termos de investimento
de carga perceptiva, por detalhes sem importância. Dessa forma, o medo da morte é rejeitado
ou fica reduzido..
Freud (1901 [1899]/1995, Edição Eletrônica) explica esse processo como resultante
de duas forças em conflito: a primeira, tenta estabelecer a retenção na memória da situação
importante. A outra, se opõe na forma de uma resistência. O resultado desse conflito é uma
conciliação:

O que é registrado como imagem mnêmica não é a experiência relevante


em si — nesse aspecto, prevalece a resistência; o que se registra é um outro
elemento psíquico intimamente associado ao elemento passível de objeção
— e, nesse aspecto, o primeiro princípio mostra sua força: o princípio que
se esforça por fixar as impressões importantes, estabelecendo imagens
mnêmicas reprodutíveis.

Isso implica numa capacidade de deslocar, por semelhança ou continuidade temporal, a carga
perceptiva para outro elemento presente.
Como exemplo desse processo, pode-se mencionar uma paciente atendida em psicoterapia
que sofreu um estupro em seu próprio automóvel. Durante o estupro, essa mulher, vivendo
uma violência inimaginável, e sendo ameaçada de morte, tinha como principal preocupação
o fato de seu sapato poder arranhar o painel do carro. Esse caso mostra de forma evidente a
função defensiva do deslocamento da carga perceptiva. É como se ela dissesse para si mesma:
“Não está ocorrendo nada comigo, apenas estou deitada em uma posição que pode estragar
o painel de meu automóvel, que gosto tanto. Preciso evitar isso”.

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Outras alterações apresentadas após uma situação
traumática.
Othon VIEIRA NETO

1- O sentimento de culpa

A experiência perigosa não traumatiza apenas pelo medo, mas também pelos
sentimentos de vergonha e culpa que ela muitas vezes provoca (McNALLY, 2003). O
sentimento de culpa está presente nos três relatos apresentados. Sueli culpa-se pela agressão
sofrida pelo colega, por não ter tido coragem de abrir o cofre e atribui à sua “energia ruim”
o fato de atrair situações desprazerosas. Talvez também o rompimento com o namorado possa
ter ocorrido em função da culpa. Simon (1989), explica que nas situações de crise onde há
fortes sentimentos de depressão e culpa, “há o risco de o indivíduo tentar aliviar-se por auto-
agressão, que pode variar da mutilação pessoal, material ou situacional, até o suicídio” (
p.61).
Jorge culpa-se por ter sido comodista e naquele dia, não ter deixado o carro com sua
esposa, como ela havia pedido, e ido de ônibus, e de ter provocado a preocupação e
sofrimento de seu filho. Teresa, embora mantenha em seu discurso o fato de ter cumprido as
normas de segurança e a inevitabilidade da situação, culpa-se pela reação que teve diante do
assaltante, gritando com ele e expondo-se a um risco desnecessário.
A culpa, na maioria das vezes irracional e onipotente, parece ter a função de encontrar
um sentido no ocorrido e muitas vezes, de encontrar um culpado pela situação. É preciso
encontrar um sentido para a tragédia, e o sentido pode ser dado a partir de uma suposta falha
individual. Nesse sentido, os gregos talvez fossem mais felizes. A palavra desastre, de algo
que não deveria acontecer, não previsto, vem do grego desastrum, quando os astros saíam de
sua órbita normal, provocando alterações em nosso planeta, quando ocorre o que não deveria
ocorrer (BENYAKAR, 2003).
A culpa também aparece nas três entrevistas em relação ao sofrimento causado à
família, ou pela preocupação despertada, ou pelas alterações sintomáticas após o assalto.

2- Ressentimento

Nas três entrevistas aparece um sentimento de revolta contra algum fator relacionado
à instituição. Sueli queixa-se de que o banco não a treinou sobre como proceder em casos de
assalto, e com as medidas adotadas pela empresa em relação à sua transferência. Jorge
acredita ter sido seqüestrado por engano. Foi confundido com o gerente, “talvez por ter o
carro melhor que o dele”, “Sem ter o salário de gerente”, acrescenta. Teresa “teve de
assumir as responsabilidades” durante o assalto, em função da ausência do gerente, que
“vive em treinamentos e reuniões”. Lopez-Ibor (1998), havia encontrado afetos semelhantes
em veteranos da guerra das Malvinas.
O ressentimento dos veteranos era dirigido para o governo e exército argentinos, e
não contra o exército inglês, o verdadeiro agressor. É como se essa revolta surgisse por uma
falha de proteção. Quem tinha a função de proteger esses indivíduos, falhou nessa missão.
Assim, no caso dos bancários entrevistados, o responsável pela experiência traumatizante
passa a ser o gerente ou a instituição, e o assaltante fica, de certa forma, perdoado. Freud
explica este processo a partir de uma referência ao medo da morte no trabalho “O Ego e o
Id” (1923 /1995, Edição Eletrônica). Na melancolia, o medo da morte ocorre porque o ego
se vê abandonado e perseguido pelo superego. “Para o Ego, portanto, viver significa o mesmo
que ser amado”, conclui.
Assim,

O superego preenche a mesma função de proteger e salvar que, em épocas anteriores, foi

preenchida pelo pai e, posteriormente, pela Providência ou Destino. Entretanto, quando


o ego se encontra num perigo real excessivo, que se acredita incapaz de superar por suas

próprias forças, vê-se obrigado a tirar a mesma conclusão. Ele se vê desertado por todas

as forças protetoras e se deixa morrer. Aqui está novamente a mesma situação que

fundamenta o primeiro grande estado de ansiedade do nascimento e a ansiedade infantil

do desejo — a ansiedade devida à separação da mãe protetora .

A decepção pelo abandono do protetor, sentido quando o indivíduo fica exposto a um


perigo de vida parece ser mais intenso que o ódio contra o agressor.
Outro fator que ajuda a entendermos esse processo é o fato de vivermos em um
ambiente disruptivo. Em nossa sociedade, é como se a figura do criminoso estivesse
incorporada à paisagem. A presença do criminoso é vista como algo natural, e o que é
circunstancial é o fato do criminoso chegar até a vítima. É aí que ocorre a falha de quem
deveria proteger o indivíduo. Isso explicaria porque, em entrevistas na mídia com parentes
de vítimas, as pessoas geralmente culpam a polícia, a justiça, ou, mais genericamente, o
governo, mas dificilmente a acusação é dirigida contra o criminoso, o verdadeiro responsável
pela tragédia.

3- Dificuldades no relacionamento interpessoal

Freud, em “Neuroses de Transferência:uma Síntese” (1915/1987, p.75), fazendo uma


analogia entre o desenvolvendo psicossexual do indivíduo com a história da humanidade,
diz que “o mundo externo, que era preponderantemente amistoso, propiciando qualquer
satisfação, transformou-se em um acúmulo de riscos iminentes”. Essa mudança da realidade
externa provocou uma alteração no investimento libidinal das pessoas. A sobrevivência
passou a ser tarefa prioritária, e humanidade “transformou em angústia real o que antes era
libido objetal”, mantendo a libido no ego.
Essa descrição hipotética da história da humanidade pode ser aplicada ao indivíduo
com Transtorno de Estresse pós-Traumático. O mundo, para esse indivíduo, passou a ser
visto como um local repleto de perigos, dos quais suas defesas são ineficazes. A vivência
traumática tem a capacidade de transformar a visão de mundo do indivíduo, e modela a partir
dela suas vivências posteriores (YEHUDA, 2002).
A conseqüência dessa mudança de visão de mundo com o aparecimento de um novo
mundo visto como angustiante (perigoso) após uma situação traumática impede a capacidade
de amar, e esse impedimento facilitaria o afastamento do relacionamento interpessoal, pois
há pouca libido objetal para ser investida. A pessoa passa então a viver dentro de um
invólucro narcísico (SYMINGTON, 2003, p. 66), com pouca abertura para o relacionamento
interpessoal. Ferenczi (1919) já defendia a idéia de que o indivíduo com tendências narcísicas
estaria mais predisposto a desenvolver uma neurose traumática. Para essas pessoas, a
vivencia da situação traumática agudizaria essa tendência.
Acrescenta-se a esse processo o fato de que a ansiedade provoca o confinamento da
pessoa, diante da possibilidade de novas situações traumáticas. A conjugação destes dois
fatores: redução da libido objetal e o medo de sair no mundo perigoso, teriam como resultado
o isolamento social e as dificuldades nos relacionamentos interpessoais.
Nos bancários entrevistados, essa dificuldade está presente. Sueli, além de ter parado
de ir a barzinhos e à praia com seus amigos, percebe um “clima ruim” na agência onde
trabalha atualmente, onde não se sente aceita. Jorge limitou seu lazer a passeios com a familia
no Shopping Center da cidade onde mora Teresa ressente-se do clima gerado pelo assalto na
agência onde trabalha, por sentir-se cobrada e distante dos funcionários. Esse sintoma está
presente nos três casos analisados.

4- Irritabilidade

O sintoma de irritabilidade mencionado no DSM-IV (APA, 1995) pode ser


compreendido a partir de uma consideração neurológica: A ansiedade
constante, presente nos indivíduos traumatizados, provoca uma descarga
contínua de adrenalina que inibe o funcionamento do córtex frontal,
permitindo respostas emocionais subordinadas ao sistema límbico
(RODRIGUES, 2003). Assim, o comportamento da pessoa torna-se mais
impulsivo, gerando respostas agressivas que o indivíduo não teria sem a
presença do estado de ansiedade.
Freud já tinha conhecimento desse processo quando afirmava que “A irritabilidade
aumentada aponta sempre para um acúmulo de excitação ou uma incapacidade de tolerar tal
acúmulo - isto é, para um acúmulo absoluto ou relativo de excitação” (1895[1894]/1995,
Edição Eletrônica), processo comum das neuroses atuais, nos quais os sintomas “não têm
nenhum ‘sentido’, nenhum significado psíquico” (FREUD, 1917a). Nas pessoas com
Transtorno de Estresse pós-Traumático, a excitação é uma constante. O “incremento de
energia não descarregado pelas vias normais” ou associado psiquicamente, que constitui a
própria noção de trauma (FREUD, 1917b) explicariam tal alteração.
Teresa reconhece estar “mais nervosa” com seus familiares. Sueli menciona brigas
diárias com sua filha. Na entrevista com Jorge, não houve elementos para verificar este dado.

5- Alterações na saúde

Nos três entrevistados foram identificadas alterações na saúde após a exposição às


situações traumáticas. Sueli teve uma série de problemas, que a levam ao hospital “quase
todos os dias”. Jorge menciona o surgimento de uma gastrite. Teresa relata o aparecimento
de uma dor de cabeça constante, não existente antes do assalto.
Vieira (2001, p.183), referindo-se ao excesso de energia livre provocado pelo trauma
que reflui para o corpo, “fará com que o órgão afetado funcione como um símbolo mudo,
análogo aos elementos oníricos mudos dos sonhos, com relação aos quais o sonhador não era
capaz de fazer nenhuma associação” e conclui que o estado de excitação é manifestado nos
órgãos, alterando sua função original, acrescentando a eles a função de uma tentativa de
descarga. A doença do individuo traumatizado seria resultante da exigência de uma função
mental e a órgãos não destinados a esse fim. Semelhante processo encontramos na histeria
de conversão com os impulsos eróticos. A diferença, no caso do trauma, é a ausência de
simbolização individual.
Outro elemento relacionado a essa característica do TEPT, é explicado por Ferenczi
(1919, p. 26). Ele defende a idéia de que, parte da libido retirada dos objetos é investida no
próprio ego, criando uma hipersensibilidade do ego, que se exprime por sensações orgânicas
hipocondríacas, o que leva o indivíduo traumatizado a uma necessidade de ser mimado,
cuidado e amado como crianças.
Essa hipersensibilidade também estaria na raiz dos sintomas de irritabilidade, pois o
ego torna-se incapaz de suportar qualquer situação que possa produzir moral, reagindo diante
da situação com agressividade.
Além dos aspectos mencionados, as sensações de impotência e fragilidade fazem com
que o indivíduo traumatizado supervalorize qualquer alteração corporal percebida. A
sensação de estar exposto a perigos de vida, provocada pela ansiedade faz com que qualquer
dor ou alteração fisiológica seja interpretada como sinal de grave doença.

6- Adições a hábitos orais

Embora Jorge não tenha mencionado nenhuma alteração nessa ordem, Sueli e Teresa
desenvolveram hábitos não existentes anteriormente. Sueli passou a comer muito “mesmo
sem ter vontade” e engordou. Teresa começou a “passar o dia tomando chá”.
Pode-se pensar no processo regressivo relacionado a essas características. A pessoa
traumatizada, reinvestindo sua libido no ego, fica numa espécie de narcisismo infantil, e o
surgimento de comportamentos regressivos faz parte desse processo.
As pessoas traumatizadas agem como uma criança que, após levar uma queda e
esfolar o joelho, corre para os braços da mãe. O abraço da mãe não tem o poder de cicatrizar
o joelho esfolado, mas tem a capacidade de mostrar à criança que está amparada, e que sua
dor é suportável e passageira.
REFERÊNCIAS

APA-AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais DSM-IV. Edição eletrônica. Coordenação: Dr. Miguel R. Jorge. Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 1995. 1 CD-ROM, Windows 98.
BENYAKAR, M. Lo disruptivo. Amenazas individuales y colectivas: el psiquismo ente
guerras, terrorismos y catástrofes sociales. Buenos Aires: Biblos, 2003. 224 p.
FERENCZI, S. (1919) Psicanálise das Neuroses de Guerra. In Sandor Ferenczi, Obras
Completas- Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 442 p.
FREUD, S. 1894 [1895] Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome
específica denominada neurose de angústia. In: Edição eletrônica das obras completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1995. 1 CD-ROM, Windows 98. ______ (1895
[1894]) A sintomatologia clínica da neurose de angústia. In: Edição eletrônica das obras
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1995. 1 CD-ROM, Windows 98.
______ (1915) Neuroses de transferência- Uma síntese. São Paulo: Imago, 1987. 503 p.
______ (1917a) Conferências introdutórias à Psicanálise. Conferência XVIII – A Fixação
em Traumas- O Inconsciente. In: Edição eletrônica das Obras Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago. 1995. 1 CD-ROM, Windows 98.
______ (1917b) Conferências introdutórias à Psicanálise. Conferência XXIII –Conferência
XXIII- Os Caminhos Da Formação Dos Sintomas. In: Edição eletrônica das obras completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. 1995. 1 CD-ROM, Windows 98.
_______(1923) O Ego e o ID. In: Edição eletrônica das Obras Completas de Sigmund Freud.
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LOPEZ-IBOR, A. R. Estrés postraumático quince años después de Malvinas. Vertex-Revista
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Síndrome de Estocolmo – a identificação com o agressor

Claudia Maria Sodré VIEIRA


Othon VIEIRA NETO

O termo Síndrome de Estocolmo foi cunhado em 1973 para descrever as enigmáticas


reações de quatro trabalhadores bancários em relação a seus seqüestradores. No dia 23 de
Agosto daquele ano, dois ex-presidiários entraram armados no Kreditbanken na cidade de
Estocolmo, Suécia, atirando e mantendo quatro funcionários como reféns durante 6 dias.
Como no filme “Um dia de cão”, com Al Pacino, os reféns estranhamente começaram
a defender seus agressores, resistindo contra as tentativas da polícia em resgata-los. Muitos
meses após a libertação dos bancários e a prisão dos assaltantes, eles ainda nutriam
sentimentos afetuosos pelos agressores , e queriam auxiliar os advogados na defesa dos
homens que ameaçaram suas vidas.
Esse fenômeno, já observado em situações anteriores, inclusive com alguns
prisioneiros de campos de concentração em relação a seus carcereiros nazistas, passou a
receber, a partir desse assalto, o nome de Síndrome de Estocolmo, nome dado por Nils
Bejerot, psiquiatra que auxiliou a polícia nas negociações com os assaltantes.
Essa síndrome também pode ser encontrada nas relações familiares, conjugais e
interpessoais. O agressor pode ser o marido ou esposa, namorado ou namorada, pai, mãe,
chefe, ou qualquer outra pessoa que ocupe o papel de autoridade ou controle. Suas principais
alterações são as seguintes:

a) Sentimentos de amor e ódio pelo agressor.


b) A vítima tem muita gratidão por qualquer bondade mostrada pelo agressor
c) A vítima nega ou racionaliza a violência do agressor.
d) A vítima vê o mundo a partir da ótica do agressor.
e) A vítima vê as pessoas que querem auxilia-la como más, e os agressores como bons.
f) A vítima tem medo de que o agressor volte para pegá-la, mesmo se estiver preso ou morto.
g) A vítima apresenta outros sintomas de Transtorno de Estresse pós-Traumático.

Para alguns pesquisadores, há quatro elementos necessários para o desenvolvimento


da síndrome (CARVER, 2003):

1) A presença ou percepção de ameaça à sobrevivência física ou psicológica e a convicção


de que o agressor irá concretizar a ameaça.
2) A presença de alguma bondade do agressor em relação à sua vítima.
3) Isolamento de outras perspectivas que não a do agressor.
4) Percepção de impotência para escapar da situação.

O caso público mais impressionante de Síndrome de Estocolmo é, sem dúvida, o de


Patrícia Hearst. Patrícia ou Patty, como era conhecida, era filha de um milionário norte-
americano, dono de um império de empresas relacionadas aos meios de comunicação. Em
1974, Patty, então com 19 anos, foi seqüestrada de seu apartamento pelo Exército de
Libertação Simbionês, grupo de esquerda cujo objetivo era de promover a “luta para salvar
o povo que sofre” (Folha de São Paulo, 1975). Os seqüestradores entraram no apartamento
atirando, e Patty foi levada para um cativeiro, onde foi amarrada, amordaçada, vendada e
posteriormente, violentada pelos seus captores.
O Exército de Libertação Simbionês pediu aos pais de Patty um resgate no valor de
400 milhões de dólares, além da exigência de que sua família doasse alimentos aos pobres e
desempregados da Califórnia.
Um mês após o seqüestro, a jovem enviou uma fita gravada ao pai, criticando-o e
afirmando que ele não havia feito o possível para libertá-la, apesar do programa elaborado
pelos Hearst para a distribuição de alimentos. Dois meses depois, em outra fita, Patty
comunicava que teve a opção de ser libertada, mas que decidira "ficar com o ELS e continuar
a lutar".
Após esse período, ela foi filmada por uma câmera de segurança de um banco
americano participando de um assalto. No início, sua família acreditava (ou queria acreditar)
que ela havia sido coagida pelo grupo para participar do assalto. Algum tempo depois, porém,
a imprensa começou a receber fitas com depoimentos de Patty afirmando que seu nome agora
era Tânia, e que havia nascido em 4 de Fevereiro (data do seqüestro), e renunciando à sua
herança. Nessas fitas, ela chamava familiares e seu noivo, que estava presente na ocasião do
seqüestro, de “palhaços”. Patty permaneceu com os seqüestradores por 18 meses. (Folha de
São Paulo, 19.09.1975)
Patty chegou a ser a pessoa mais procurada pelo FBI. Em um tiroteio entre a
polícia e o Exercito de Libertação Simbionês, a maioria dos integrantes do
grupo foi morta, mas Patty não estava entre eles. Ela foi presa em São
Francisco em 18.09.1975, após a prisão de outros membros do grupo, que
informaram seu paradeiro à polícia. Pesavam sobre ela as acusações de
assalto, roubo de automóveis, posse de armas de guerra, e inclusive do
seqüestro de um estudante de 18 anos. A seqüestrada transformou-se em
seqüestradora.
Patty foi condenada a 35 anos de prisão, que posteriormente foram reduzidos para 7
anos. Hoje em liberdade, ela casou-se com seu antigo guarda-costas e tornou-se atriz.
Em entrevista a Larry King, descreveu um pouco o processo que fez com que, de sua
condição de vítima, passasse a seqüestradora e assaltante: “uma vez que eles (os
seqüestradores) não te mataram, eles parecem bons. E cada dia em que eles não matam você,
eles parecem melhores”. (CNN, 2001)
Essa gratidão paradoxal faz com que a vítima alimente sentimentos que vão desde a
compaixão até um amor romântico em relação ao agressor. “Os sentimentos são comumente
experimentados como uma irônica mas profunda gratidão pela dádiva da vida, vindo de
alguém que expressou sua vontade de matar” (OCHBERG, 2001). É como se fosse uma
gratidão sincera por um herói que acaba de salva-la de um assassino. A diferença é que,
nestes casos, o herói e o assassino são a mesma pessoa.
As vítimas começam então, a ver o mundo com a perspectiva dos agressores e passam
a acreditar que, mantendo o agressor feliz e seguro, tem mais chances de sobreviver. Essa
atitude, que poderia ser considerada uma boa tática de sobrevivência diante das condições,
passa a ter outras conseqüências, pois é comum que a vítima, inconscientemente, passe a
negar sua visão de mundo e necessidades, sentindo dificuldade em perceber as diferenças
com o agressor, pois essas diferenças podem ser vistas como deslealdade e passíveis de
alguma retaliação. Ela nega também os aspectos agressivos de seu algoz, geralmente através
de racionalizações e com isso, ver-se através da ótica dele, justificando as agressões. Assim,
ele começa a ser visto como inofensivo. (RAWLINGS et al. 1994).
Nas três entrevistas mostradas no capítulo 6, podem ser notadas semelhanças com os
elementos descritos na Síndrome de Estocolmo, embora em menor escala. Sueli, ao culpar-
se pela agressão sofrida pelo colega, é como se sentisse a responsável pela agressão, e não
uma vítima impotente do assalto. Teresa aceita as recriminações dos colegas por não
conseguir mudar o local da agência, como se estivesse expondo os funcionários a novas
agressões. O caso mais impressionante foi o de Jorge. Quando sugeri ao funcionário
entrevistado que escolhesse um pseudônimo para si, após pensar por alguns segundos, disse-
me “Jorge”. Em seguida esclareceu que “Jorge” era o nome pelo qual era chamado o líder de
seus seqüestradores.
Podemos compreender as enigmáticas reações da Síndrome de Estocolmo, em
primeiro lugar, esclarecendo que se trata de um desdobramento do Transtorno de Estresse
pós-traumático.Em segundo lugar, discutir os aspectos psicodinâmicos enfatizando dois
mecanismos decorrentes do trauma psíquico: a identificação com o agressor e a introjeção
do agressor.
A Identificação com o Agressor é um mecanismo de defesa , isolado e definido por
Anna Freud (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p.299), que ocorre quando o “...indivíduo,
confrontado com um perigo exterior, identifica-se com o seu agressor, ou assumindo por sua
própria conta a agressão enquanto tal, ou imitando física ou moralmente a pessoa do
agressor”.
Ferenczi foi um dos pioneiros na descrição da identificação com o agressor em
situações traumáticas. Para ele, esse mecanismo está presente em todos os traumas e revela
um dos processos mais primitivos da mente : a identificação. Ferenczi considera que entre o
narcisismo e as relações de objeto propriamente ditas, há uma etapa intermediária marcada
por identificações.
No decorrer dessa etapa, os objetos não são realmente incorporados como na fase
canibal, mas são tão-somente na imaginação, ou como se diz, eles são introjetados, suas
propriedades são anexadas e atribuídas ao próprio ego. Ao identificar-se, assim, com um
objeto (pessoa), cria-se uma ponte entre o ego e o mundo externo, e esse vínculo permite em
seguida deslocar a ênfase do ‘ser’ intransitivo para o ‘ter’ transitivo; portanto permite a
identificação evoluir para o verdadeiro amor objetal. (FERENCZI, 1922/1992)
Essas identificações irão formar o núcleo do ego, que para Ferenczi tem uma função
semelhante a do líder em um grupo. É ele que mantém a coesão do ego com o cimento de
libido narcísica .
A situação de submissão nos casos de seqüestro, reconduz a uma condição de
impotência e desamparo semelhante ao do bebê. A coesão do ego não pode ser mantida e o
ego é tomado como Tróia pelos gregos, só que a convite do próprio ego.
Por que alguém traria para dentro de si mesmo algo que destrói e ataca?
Porque o agressor torna-se intrapsíquico e pode ser transformado
alucinatoriamente, e também como uma forma de conhecer detalhadamente
os desejos do agressor para cumpri-los, uma adaptação semelhante a das
barreiras de contato com os estímulos: um mimetismo.(FERENCZI,
1932a/1990). Diferente dos troianos, certos de sua vitória, a vítima acolhe o
invasor porque os muros já foram arrebentados. Os estímulos para os quais
se volta, ou a única realidade com a qual se mantém conectada, são os afetos
de um objeto externo e seus conteúdos mentais. O resultado desse
mimetismo é um implante forçado. O agressor é eternizado e se mantém vivo
dentro de sua vítima.(FERENCZI, 1932b,c/1990).
Durante uma situação em que a vida da pessoa está sendo ameaçada, ela pode
tentar lançar mão de uma alucinação negativa e procurar substituir a
realidade insuportável por algo mais de acordo com o princípio do prazer.
Entretanto, a clivagem terá de se estabelecer, mantendo fora do alcance
aquele estrato negado.
O espaço vazio provocado pela denegação é ocupado pela introjeção do agressor. Já
que a pessoa se encontra incapacitada de fazer qualquer alteração no ambiente, ou com
relação ao objeto a que está submetida, esse algoz é introjetado para que possa transforma-
lo de acordo com o princípio do prazer, através da construção de fantasias optativas de desejo,
na medida em que o algoz passa a ter o estatuto de objeto interno. Porém, essa tentativa será
fadada ao fracasso, pois a transformação não se faz completamente e a angústia não é
eliminada. Assim, permanecem lado a lado, horror e prazer. Tal processo pode desenvolver-
se como masoquismo (FERENCZI, 1920/), quando o objeto algoz passa a ser erotizado.
Esse processo pode ajudar-nos a compreender as centenas de cartas de amor e
consolo que Francisco de Assis Pereira, o assassino confesso que ficou conhecido como
“Maníaco do Parque” recebe mensalmente na prisão. Essas cartas têm basicamente dois
temas: juras de amor e compreensão/perdão, muitas com conteúdo religioso (RAMOS,
1999).
Há um outro aspecto em jogo nesse processo de introjeção:

Tudo se passa como se o psiquismo, cuja única função consiste em reduzir as tensões

emocionais e evitar as dores no momento da morte de sua própria pessoa, transferisse

sua função de apaziguamento do sofrimento automaticamente para as tensões,

sofrimentos e paixões do agressor, a única pessoa a sentir alguma coisa – isto é, a

identificar-se com aqueles.(FERENCZI, 1932a/1990, p.142).

Quando o desapego com relação à própria vida conduz já a uma imagem de si mesmo
como moribunda e ainda resta uma ligação com sentimentos, o interesse fica concentrado no
que o agressor sente, a parte da relação que está viva, já que o ego vai regredindo a um estado
de porosidade intensa com relação aos estímulos, já que as barreiras foram rompidas. É nesse
processo que Ferenczi encontra a raíz do masoquismo. Para que o masoquismo se manifeste
é necessária uma morte temporária da pessoa, quando então ela desaparece, não sente dor,
porque não existe, passando a existir apenas o agressor e seu gozo com quem a pessoa se
identifica, dessa forma o sofrimento é atenuado. Patrícia Hearst revela a sua própria morte e
o nascimento de uma outra pessoa em seu lugar. Ela se torna uma outra pessoa, efetivamente,
pelos processos de introjeção. Porém, tanto ela como os bancários de Estocolmo guardam
dentro de si os mortos insepultos, a pessoa sofrida e agonizante que são e de quem tiveram
que se desconectar.
Podemos continuar a relação também com “Totem e Tabu” (1913/1995) se
pensarmos que o pai primevo, admirado e temido foi assassinado pelos filhos, passo inicial
para a constituição de uma psique individual. O que temos na situação traumática é o inverso,
um objeto externo que irá colocar em risco a sobrevivência do ego, e se torna um agressor
introjetado , ou o que Ferenczi (1932d,e/1990) denominou de superego louco, como um
enxerto forçado.
Ferenczi identifica esse fenômeno nas situações em que a criança agredida não pode
se defender em forma de protestos, de raiva ou de fuga, e que essa parte revoltada tenta se
exprimir através de uma representação na própria personalidade do que percebe no outro.
Exemplos disso são as caretas deformadoras que visam refletir como um espelho o rosto do
outro, ou através de manias e exageros. Essas manifestações são formas de comunicação,
expressões de ironia, decalques do objeto. Porém, esse caráter de comunicação passa a se
tornar uma parte integrante do ego, na medida em que o interlocutor externo é surdo às
imitações de sua própria voz e interdita, agora no plano intrapsíquico, o caráter de
comunicação com o núcleo do ego. Também no relato de Patrícia Hearst podemos inferir
que houve uma imitação que se tornou identificação: ela se torna uma seqüestradora.
Assim, uma parte da personalidade do agressor é conduzida a uma continuidade
forçada, de forma intrapsíquica, em sua vítima: “Pedaços de transplantes maternos
conservam sua vitalidade e até mesmo sua energia de crescimento; a malignidade das pessoas
continua, por assim dizer, vivendo no espírito daqueles que foram maltratados.”22

REFERÊNCIAS

CARVER, J. M. Love and Stockholm Syndrome: The Mystery of Loving an Abuser. Mental
Health Matters. Disponível em <http://www.mental-health-matters.com/> 2003. Acesso em
15 Jul 2004.
CNN (2001) Patricia Hearst Discusses Her Presidential Pardon. Entrevista a Larry King.
Aired January 31, 2001 - 9:00 p.m.
FERENCZI, S. (1920 1 1930-1933/1992) Notas e fragmentos. In: Obras Completas de
Sandor Ferenczi – Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes p. 235-284.
_____ (1922/1992) “Psicologia de grupo e Análise do Ego”, de Freud .In: Obras
Completas de Sándor Ferenczi – Psicanálise III. São Paulo: Martins Fontes p. 177-181.

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_____ (1932a/1990) Auto-estrangulamento traumático. In: Diário Clínico. Trad.: Álvaro
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Contribuições da psicologia da saúde na atenção às
pessoas com TEPT

Jose Tolentino ROSA


Othon VIEIRA NETO

O TEPT é uma epidemia tipicamente dos tempos modernos. Vivemos, sem dúvida,
em um ambiente disruptivo ou se preferirmos, repleto de identificação radioativa, e não
escapamos ilesos desse tipo de ambiente.
A violência está presente em todos lugares, seja na realidade, seja na eletrônica,
através de filmes, e jogos. Nos EUA, um jovem de 18 anos teria assistido cerca de 40.000
homicídios na televisão (LAMPRECHT; SACK, 2002). Não se pode concluir ingenuamente
que este fato produza pessoas ou uma sociedade violenta, mas talvez seja uma ingenuidade
maior admitir que isso não tem influência alguma na mente de um jovem.
O ambiente em que vivemos no Brasil sem dúvida permite que o inimigo seja

fragmentado, diluído e identificado no estranho que nos pede uma informação ou no

menino no semáforo que vem nos pedir uma ajuda para comer. E-mails na Internet nos

avisam sobre as mais estranhas peripécias dos assaltantes, e trazem a seguinte mensagem

implícita: desconfie de tudo e de todos, não relaxe. Chnaiderman (2003) comenta

notícias de jornais do ano 1996, dizendo que as reações dos meios de comunicação ao

aumento da violência foram desproporcionais ao aumento da própria violência. A

preocupação com a criminalidade saltou de 10% da população pesquisada por um jornal,

para 29% em apenas 4 meses.


As pessoas deveriam, então, estar acostumadas com esse ambiente, com a violência,
e de certa forma, anestesiadas com relação aos seus efeitos. A passagem por uma situação
traumática, porém, não se transforma em experiência, no sentido de um aprendizado, de
“habilidade que se adquire pela prática” (GREGORIM et. al, 1999). Como o próprio conceito
de trauma estabelece, ele fica como um corpo estranho no psiquismo, e cada situação
ameaçadora é vivida como única. Pelo contrário, a partir da concepção freudiana de
facilitação, expressa no “Projeto para uma psicologia científica” (1895a/1995 Edição
Eletrônica) é de se pensar que os traumas provocam um efeito cumulativo, se não
descarregados ou integrados através de associações, isso é, se não tiverem um sentido. Essa
característica cumulativa foi constatada por Brunet et al. (2001), com motoristas de ônibus
que desenvolveram TEPT após vários acidentes. Em um caso atendido em consultório, uma
bancária, que já havia sofrido três assaltos na agência em que trabalhava, sem desenvolver
sintomas, passou a desenvolve-los após um assalto durante o qual estava no banheiro, e que
apenas ouviu os gritos e ameaças dos assaltantes.
O filósofo grego Heráclito dizia que uma pessoa não pode mergulhar duas vezes no
mesmo rio. Na segunda vez, nem ela, nem o rio, são os mesmos. Da mesma forma, cada
situação de violência pode ser considerada como nova, e não se transforma em experiência,
como em ocorre em outras situações da vida. Ao contrário, o efeito cumulativo de situações
traumáticas é um dos fatores predisponentes do desenvolvimento do TEPT.
Isto parece ter ocorrido com os bancários entrevistados. Todos já haviam sofrido
assaltos anteriormente, ou no próprio trabalho ou fora dele. A situação que foi considerada
traumática, no entanto, foi sentida como a “pior”, com mais elementos ameaçadores para a
própria vida.
O indivíduo que, após uma experiência traumática desenvolve sintomas de
TEPT fica preso em um circuito: re-experimentação-ansiedade-evitação.
Estas pessoas perdem a capacidade de assimilar novas experiências, como se
sua personalidade estivesse detida em um certo ponto, incapaz de
desenvolvimento (CIA, 2001). A pessoa fica presa no circuito do medo, e a
quantidade de libido investida para sua proteção impede que a quantidade de
energia à disposição do ego para o desenvolvimento pessoal e
relacionamento interpessoal fique extremamente prejudicado.
É muito difícil para alguém, conseguir uma adaptação eficaz após a situação

traumática vivida. Aqui vale a pena pensarmos no conceito de adaptação desenvolvido

por Ryad Simon (1989) na elaboração da EDAO (Escala Diagnóstica Adaptativa

Operacionalizada), instrumento extremamente útil para avaliação diagnóstica e

planejamento de ações terapêuticas e preventivas.

Para esse autor, adaptação implica “um conjunto de respostas de um organismo,

em vários momentos, a situações que o modificam, permitindo manutenção de sua

organização (por mínima que seja) compatível com a vida” (p. 14).

Sempre ocorre algum tipo de adaptação a uma mudança. A dificuldade é a de

encontrar uma adaptação que seja adequada. “Para ser adequada, basta que, primeiro, a

resposta solucione o problema que surge para o indivíduo. Segundo, que a solução traga

satisfação para o indivíduo. Terceiro, que a solução encontrada não provoque conflitos

intrapsíquicos (coerência com os valores internos), nem conflitos sócio-culturais”

(Simon, 1989, p. 16). O circuito em que o indivíduo com TEPT fica preso, geralmente

faz com que a adaptação a esse mundo alterado, perigoso e ameaçador seja inadequada.

As reações sintomáticas comuns de isolamento e evitação de situações perigosas não

resolvem o problemas, não trazem satisfação e comumente geram conflitos, tanto

intrapsíquicos como interpessoais, com a família do traumatizado. Percebe-se que os três

entrevistados apresentam uma adaptação ineficaz severa, pelos critérios da EDAO

(Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada).

O conceito de adaptação aproxima-se do conceito de Resiliência, muito usado


atualmente por diversos autores (BRUNET et al., 2001, NIEVES-GRAFALS, 2001,
OGDEN, 2001), em relação a situações traumáticas. Este conceito é emprestado da física e
significa a “propriedade pela qual a energia armazenada em um corpo deformado é devolvida
quando cessa a tensão causadora duma deformação elástica” (FERREIRA, 1999). Este
conceito também é ilustrado com a capacidade de um metal voltar à sua forma original,
depois de ser amassado.
O conceito de adaptação, no entanto, torna-se mais útil no caso de um trauma, porque
não é possível voltar ao estado anterior. Não se refaz o passado. A situação traumática
ocorreu, e a elaboração e superação dessa situação exige seu reconhecimento. “A volta do
organismo ao estado primitivo, depois da perturbação causada pelo estímulo, não é possível,
nem desejável, se considerarmos as modificações causadas pelo crescimento” (SIMON,
1989, p. 15)
Das três pessoas entrevistadas, apresentadas no cap. 6, duas não procuraram
auxílio médico ou psicológico, apesar de apresentar sintomas que trazem
“sofrimento significativo”, conforme apregoado pelo DSM-IV (APA, 1995).
A terceira está insatisfeita com a psicoterapia procurada. Esse dado confirma
que a maioria das vítimas de violência não procura tratamento ou
decepciona-se com ele, quando o procuram (OCHBERG, 1991), o que
confirma os achados de Mezey; Evans e Hobdell (2002) e McFarlane (2000)
para quem os pacientes com Transtorno de Estresse pós-Traumático, por
desconhecimento ou pela própria ambivalência em relação aos sintomas, não
procuram auxílio médico-psicológico. Confirmando esta idéia, convém
retomar os dados de Taylor et al. (2003), que recrutaram os participantes para
uma pesquisa a partir da indicação de médicos e de anúncios na mídia. Entre
os 299 indivíduos que contataram os pesquisadores, 60 cumpriam os critérios
diagnósticos de TEPT. Nessa amostra, o tempo médio que apresentavam os
sintomas foi de 8,7 anos. Fica o questionamento: porque essas pessoas, que
estão sofrendo com os sintomas por mais de 8 anos não procuraram
tratamento anteriormente?
A experiência traumática, de um assalto ou seqüestro de um bancário com objetivo
de assalto, “atravessa o escudo protetor” e traz um acréscimo de energia que incapacita o ego
de descarga ou de ligar por associação. O que seria essa ligação por associação? Como Freud,
podemos pensar que a única experiência comum, que talvez possa deixar um registro
mnêmico dessa experiência seja o trauma do nascimento, a primeira vez em que estivemos
expostos a uma possibilidade de morte. A angústia da morte é algo que atinge a todas as
pessoas. No TEPT, a proximidade da morte parece ser uma experiência que altera a
continuidade da vida. É como se a pessoa entrasse em contato com a perspectiva real da
finitude, e seus valores, esperanças e perspectivas nunca mais fossem os mesmos.
Pierre Janet (apud CIA, 2001, p.78) argumentava que o individuo criava uma “fobia
à lembrança”, que evitava a “síntese ou integração” das lembranças traumáticas, mantendo-
as afastadas da consciência.
Embora o Banco investigado seja mais sensível e invista mais em relação à saúde e
qualidade de vida de seus funcionários, criando um programa para aqueles que passam pela
traumatizante experiência de ser assaltado ou seqüestrado em sua atividade profissional,
ainda há muito para ser feito, e é preciso salientar que este banco é uma exceção no país.
Campos (1998), médico do trabalho do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte (MG),
sobre o desenvolvimento do TEPT nos bancos da cidade, avalia que só conseguem
estabelecer o nexo causal do desenvolvimento do quadro com uma situação traumática de
trabalho, quando ocorrem lesões físicas nos funcionários. “O sofrimento psíquico é ignorado
e velado de um silêncio, no mínimo, estranho. A este, na maioria dos casos, não se dá
assistência médica ou psicológica e, muito menos, se reconhece o vínculo com o trabalho”.
Essa afirmação dá uma dimensão do pioneirismo de um programa como o elaborado pelo
banco pesquisado, principalmente se pensarmos na falta de recursos sociais para esta
problemática, especialmente para os adultos com TEPT, como constatado por Gray e Acierno
(2002).
Os índices de TEPT encontrados nas diferentes pesquisas internacionais

mencionadas nos fazem questionar o mundo em que vivemos. O ambiente disruptivo

descrito por Benyakar deixou de estar confinado a alguns países ou regiões do planeta,

geralmente distante de nós, brasileiros. A violência hoje não é mais uma exceção no

país, mas está cada vez mais presente e próxima. Infelizmente, podemos predizer que, a

menos que as condições sociais sejam alteradas para que possam ser combatidas as

raízes do comportamento violento de natureza sócio-econômica, cada vez mais teremos

situações traumáticas e pessoas desenvolvendo sintomas de TEPT. E sabemos que não

se alteram condições sociais rapidamente.


O próprio Freud (1927/1995, Edição Eletrônica) em “O futuro de uma ilusão” já
estabelecia essa relação entre a frustração social de parcelas da população e o crescimento da
violência:

É de esperar que essas classes subprivilegiadas invejem os privilégios das


favorecidas e façam tudo o que podem para se liberarem de seu próprio
excesso de privação. Onde isso não for possível, uma permanente parcela
de descontentamento persistirá dentro da cultura interessada, o que pode
conduzir a perigosas revoltas. Se, porém, uma cultura não foi além do ponto
em que a satisfação de uma parte e de seus participantes depende da
opressão da outra parte, parte esta talvez maior — e este é o caso em todas
as culturas atuais—, é compreensível que as pessoas assim oprimidas
desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência
elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem
mais do que uma quota mínima. Em tais condições, não é de esperar uma
internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas.
Pelo contrário, elas não estão preparadas para reconhecer essas proibições,
têm a intenção de destruir a própria cultura e, se possível, até mesmo
aniquilar os postulados em que se baseia. A hostilidade dessas classes para
com civilização é tão evidente, que provocou a mais latente hostilidade dos
estratos sociais mais passíveis de serem desprezados. Não é preciso dizer
que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus
participantes e os impulsiona à revolta, não tem nem merece a perspectiva
de uma existência duradoura.

Este texto reflete bem a relação entre problemas sociais, que a causam a frustração, e
a revolta que surge a partir dele, através de assaltos, seqüestros, e no âmbito deste trabalho,
as ocorrências criminais contra os bancos e por, conseqüência, contra os bancários.
O Psiquiatra argentino Mordechai Benyakar (2003) propôs nove princípios de
atendimento em saúde mental após desastres, conhecidos como os 9 W’s, por todos iniciarem
com a letra W (em inglês), e ele toma o termo desastre a partir de sua etimologia, disastrum
, que significava os momentos em que os astros saíam de suas órbitas naturais, e provocavam
o Caos, criando situações inesperadas na Terra.
O princípio apresentado em primeiro lugar é o da Prevenção (Warning), e esta
prevenção é compreendida a partir de duas vertentes.
A primeira é no sentido da adoção de medidas com o objetivo de evitar a situação

desastrosa. Em nosso país, essa prevenção passa não apenas por uma ação de

transformação social, mas também pela transformação das políticas de segurança e

judiciárias, que não estão cumprindo com seu papel na sociedade à qual devem servir,

mas também das empresas e as próprias pessoas reconhecerem de fato a realidade.

Considerar que a violência seja algo normal pode ser tão patológico quanto ela. “Aceitar

que a violência possa ser naturalizada é uma tentativa de diluir o terror que ela provoca,

de se submeter aos seus efeitos, e de não se implicar com as possibilidades, mesmo

pequenas, de sua transformação” (SOUZA, 2000).

A segunda relaciona-se com o conceito de “imunidade psíquica”. Este conceito,


derivado da imunidade biológica, propõe o contato com doses controladas do elemento
patogênico. No tocante a este tema, significaria a discussão e divulgação de mais esta
conseqüência de situações violentas: a capacidade de provocar patologias psicológicas.
Eranen e Liebkind (Apud URSANO; FULLERTON; NORWOOD, 1996) defendem
que a diferença entre um acidente e um desastre é de grau; uma distinção crucial entre elas
é que, em um desastre, a estrutura social e os processos são afetados suficientemente para
ameaçar a existência e o funcionamento da pessoa ou da comunidade. As necessidades de
recurso são maiores do que os recursos disponíveis.
É tarefa da sociedade como um todo, mas principalmente dos profissionais que
escolheram para si o trabalho com saúde como profissão, criar, desenvolver e disponibilizar
esses recursos para a população.
Isso nos faz pensar na necessidade de disponibilizar recursos para o atendimento das
vítimas. Como cidadãos, temos de cobrar esses recursos das autoridades competentes. Como
profissionais de saúde, construí-los.
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