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O EVANGELHO ETERNO DE APOCALIPSE 14 E A MISSIO DEI

UMA ANÁLISE EXEGÉTICA DE AP. 14:6-7.

Marcelo Plioplis1

RESUMO: O termo εὐαγγέλιον αἰώνιον (evangelho eterno) de Apocalipse 14:6-7


deve ser considerado o evangelho de Deus e Sua salvação que inclui a missio Dei?
Se for analisado apenas gramaticalmente a resposta pode ser não, mas através de
uma exegese completa desses versos a ideia é que esta expressão esteja se
referindo ao mesmo evangelho pregado por Cristo e Seus apóstolos. Este evangelho
não se limita apenas ao Novo Testamento, mas se expande em toda a bíblia, e está
intimamente ligado com a missio Dei desde os primórdios da criação. No meio
acadêmico há vários comentaristas que não veem dessa forma, embora alguns, em
particular Ellen White, entendem que o evangelho eterno de Apocalipse é o mesmo
evangelho de toda a história de Deus e a missio Dei neste mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Evangelho eterno, missio Dei, Apocalipse

ABSTRACT: Should the term εὐαγγέλιον αἰώνιον (everlasting gospel) of Revelation


14:6-7 be considered the gospel of God and His salvation that includes the missio
Dei? If analyzed only grammatically, the answer may be no, but through a complete
exegesis of these verses the idea is that this expression is referring to the same
gospel preached by Christ and His apostles. This gospel is not limited to the New
Testament, but expands throughout the Bible, and it is closely linked with the missio
Dei since the beginning of creation. In academia there are many commentators who
do not see it that way, although some, in particular Ellen White, understand that the
everlasting gospel of Revelation is the same gospel of the entire history of God and
the missio Dei in this world.

KEYWORDS: Evangelho eterno, missio Dei, Apocalipse

1
Candidato ao Mestrado Denominacional em Interpretação Bíblica pelo Centro Universitário
Adventista de São Paulo (UNASP-EC). E-mail: mplioplis@yahoo.com
2

1. INTRODUÇÃO
Dean Flemming pergunta sobre o livro de Apocalipse: “Uma hermenêutica
missional pode oferecer a chave para abrir a mensagem teológica do último livro do
cânon cristão?2” (FLEMMING, 2012, p. 162, tradução livre) A resposta, é claro,
depende de como o livro de Apocalipse é lido e interpretado. De acordo com vários
comentários bíblicos3 e baseado na construção original do texto grego, o evangelho
eterno mencionado por João no Apocalipse não deve ser considerado o evangelho
(as boas novas) de Deus e Sua salvação. De acordo com esses teólogos, a falta do
artigo definitivo τὸ antes da palavra εὐαγγέλιον é evidência de que a mensagem do
primeiro anjo de Apocalipse 14:6 é uma mensagem de julgamento (de implicância
eterna), mas que não deve ser confundida com o evangelho anunciado por Cristo e
os apóstolos já que nas diversas vezes onde o termo aparece no Novo Testamento
ele está sempre com o artigo (com exceção de Rom. 1:1) 4.
Porém, se o evangelho eterno de 14:6 realmente são as boas novas
anunciadas por Jesus e seus apóstolos, poderiam essas boas incluírem não
somente a salvação do ser humano, mas uma descrição do próprio caráter de Deus,
do conflito cósmico da criação, da salvação e restauração do mundo providenciada
por Deus? Sendo assim, o evangelho eterno é a base que leva a missio Dei.
Este artigo argumentará que o evangelho eterno pode ser ampliado ao
contexto da Missio Dei que pode ser considerada como a grande metanarrativa das
escrituras.
2. EXEGESE
2.1 Análise Contextual de Apocalipse
Para que a análise exegética dos versos seja completa, é necessário fazer
uma análise contextual do livro em questão, nesse caso o Apocalipse de João.
Serão analisados o contextual (1) histórico; (2) sociocultural; (3) literário.
1. Histórico

2
might a missional hermeneutic offer a key to unlocking the theological message of the final book of
the Christian canon?
3
MOUNCE, 1997, p. 273; MICHAELS, J. R. (1997); TONSTAD, S. (2019, p. 203); BAUCKHAM,
(1993, p. 286-287)
4
São 76 usos do substantivo εὐαγγέλιον no Novo Testamento, seja ele no acusativo, dativo ou
genitivo. Romanos 1:1 usa a expressão εὐαγγέλιον θεοῦ que mesmo sem o artigo contextualiza o
substantivo como sendo as boas novas de/sobre Deus.
3

O contexto histórico se dá durante o reinado do império Romano no primeiro


século EC. Os cristãos eram considerados uma seita judaica e tinham alguns
privilégios em comum com os judeus que recebiam privilégios do império Romano
desde os tempos da queda da dinastia dos Asmoneus em 37 AEC.
João, talvez o apóstolo, talvez outro membro da comunidade crista da época
foi o autor da carta. Provavelmente era um Judeu palestino, devido a familiaridade
como a bíblia hebraica (AUNE, p. 1). Tom Schriner crê que é o apostolo: “A solução
mais simples e persuasiva é a que João o Apostolo escreveu o livro de Apocalipse. 5”
(2018, p. 746, tradução livre)
A carta de Apocalipse foi escrita de Patmos, ilha no Mar Ageu, onde João
estava exilado (1:9) e endereçada a sete igrejas da Ásia Menor (1:4), mas
direcionado aos cristãos de todas as regiões da igreja primitiva e a partir de sua
canonização, destinado a todos aqueles que vivem sobre a terra (14:6; 22:6).
Ela foi escrita durante o período do reinado de Domiciano, cerca de 95 EC.
Justin Martyr menciona o Apocalipse de João e ele escreveu logo depois da revolta
de Bar Kosiba (132-35 EC) (AUNE, 1997, p. Ivii). Novamente Schriner: “O
Apocalipse, então, foi provavelmente escrito na década de 90, para igrejas que
enfrentavam perseguições esporádicas de Roma, com uma ameaça particular do
culto imperial.6” (p. 747, tradução livre).
2. Sociocultural
A maioria dos acadêmicos firmam a data aproximada na qual o Apocalipse de
João foi escrito para o fim do primeiro século (95 EC), pois determinam que
enquanto a igreja não sofria perseguição do império, ainda assim sofriam de um
“ambiente hostil de duas direções - o mundo judaico e o mundo romano. 7”
(OSBORNE, 2002, p. 11, tradução livre) Este ambiente hostil deixava as igrejas
cristãs em posição difícil já que eles não pagavam os impostos dos Romanos lhes
causavam problemas econômicos e sociais.

Os cristãos na Ásia Ocidental enfrentavam pressões diárias para


participar da vida pública romana, que estava intimamente ligada à

5
The simplest and most persuasive solution is that John the Apostle wrote the book of Revelation.
6
Revelation, then, was probably written in the 90s, to churches facing sporadic persecution from
Rome, with a particular threat from the imperial cult.
7
4

religião civil do culto ao imperador e à adoração de deuses


tradicionais.8 (FLEMMING, 2012, p. 169-170, tradução livre)

3. Literário
O gênero de Apocalipse é variado dependendo de quem argumenta.
Certamente é uma carta, mas também deve ser considerado uma profecia, com
vários oráculos proféticos e também um livro de gênero apocalíptico judaico.
Schreiner define o gênero apocalíptico como:

Uma revelação sobrenatural do que está para acontecer. Uma


revelação divina é dada, geralmente por anjos a alguma pessoa
proeminente, na qual Deus promete intervir na história humana,
destruir o mal e trazer seu reino.9 (p. 748, tradução livre)

O contexto literário se divide em três partes, (1) imediato – o contexto mais


próximo além do verso em questão; (2) geral – o que vai além da perícope e (3)
canônico – examinando toda a escritura.
1. Imediato – O contexto imediato de Apocalipse 14:6-7 são as 3 mensagens
angélicas em meio as primeiras 7 visões não numeradas da carta (12:1-15:4).
2. Geral – A carta pode ser dividida em 6 grupos de 7 além do prólogo e
epílogo. As divisões seriam: sete mensagens, 1:9-3:22; sete selos, 4:1-8:5; sete
trombetas, 8:2-11:19; as primeiras sete visões, 12:1-15:4; sete taças, 15:1-16:21; a
segunda parte de sete visões, 19:11-21:810.
3. Canônico – Como livro apocalíptico, o livro de Apocalipse é o livro que
concluí a história do mundo. Os dois últimos capítulos detalham a história do mundo
em seu final antes da eternidade. O bem triunfa sobre o mal, o pecado e suas
consequências acabam. O gênero apocalíptico do livro é apenas visto em algumas
profecias dos profetas de Israel e no livro do profeta Daniel, mas o gênero
apocalíptico judaico era muito comum entre os judeus do período do segundo
8
Christians in Western Asia faced everyday pressures to participate in Roman public life, which was
closely intertwined with the civil religion of the emperor cult and the worship of traditional gods.
9
a supernatural unveiling of what is about to take place. A divine disclosure is given, usually by angels
to some prominent person, in which God promises to intervene in human history, destroy evil, and
bring his kingdom.
10
Existem ainda os apêndices Babilônico, 17:1-19:10 e de Jerusalém, 21:9-22:5 que não fazem parte
dessa divisão de sete.
5

templo. Alguns dos livros mais comuns desse gênero estão: 1–2 Enoque, 2–3
Baruque, 4 Esdras, e o Apocalipse de Abraão.
2.2 Análise textual da perícope
O texto em questão aparece no grego assim:

6 Καὶ εἶδον ἄλλον ἄγγελον πετόμενον ἐν μεσουρανήματι, ἔχοντα


εὐαγγέλιον αἰώνιον εὐαγγελίσαι ἐπὶ τοὺς καθημένους ἐπὶ τῆς γῆς καὶ
ἐπὶ πᾶν ἔθνος καὶ φυλὴν καὶ γλῶσσαν καὶ λαόν,
7 λέγων ἐν φωνῇ μεγάλῃ· φοβήθητε τὸν θεὸν καὶ δότε αὐτῷ δόξαν, ὅτι
ἦλθεν ἡ ὥρα τῆς κρίσεως αὐτοῦ, καὶ προσκυνήσατε τῷ ποιήσαντι τὸν
οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν καὶ θάλασσαν καὶ πηγὰς ὑδάτων.

Minha tradução:

6 E eu vi outro anjo voando no meio do céu, tendo um evangelho


eterno para anunciar para aqueles que vivem sobre a terra e para
todas as nações, tribos, línguas e povos.
7 Dizendo em uma grande voz: “Temei a Deus e dai-lhe glória, pois
chegou a hora de seu juízo, e adorai aquele que fez o céu, e a terra, o
mar e as fontes das águas.”

2.3 Estudo gramatical do texto grego


ἔχοντα εὐαγγέλιον αἰώνιον εὐαγγελίσαι
No Novo Testamento, a falta do artigo definitivo antes de εὐαγγέλιον só
acontece aqui e em Romanos 1:1, levando alguns comentaristas 11 entenderem que o
contexto do evangelho aqui em Ap. 14 e Romanos 1 tem a ver com seu julgamento
e ira (MOUNCE, 1997, p. 273) e (pelo menos o evangelho de Ap. 14) não deve ser
confundido com o evangelho de salvação e restauração pregado por Jesus e seus
apóstolos. Mounce também menciona que Ladd e Ford creem que o evangelho em
14:6 não são as boas novas da salvação, mas sim uma mensagem de juízo, embora
eu creia que ele esteja equivocado quanto a posição de Ladd 12). Beale, porém, diz:
“O significado da palavra aqui deve ser determinado em última análise pelo contexto

11
Um exemplo desta posição se sintetiza em J. Ramsey Michaels (1997) que também discorda que o
evangelho eterno seja o mesmo que as boas novas de Jesus, principalmente por usar o termo eterno,
onde ele associa a palavra “good news” de notícia/novas com o termo “new” de novo, inferindo que o
evangelho de Cristo é algo novo, mas esta mensagem de juízo que é eterna. Infelizmente ele comete
uma falácia dos cognatos “news” e “new” e seu argumento se enfraquece por causa disso.
12
Ladd (1993) diz, “Perhaps too much ought not be made of the omission of the definite article. Paul
speaks of God’s gospel (Rom. 1:1) without the definite article”.
6

imediato. O anjo anuncia não um evangelho diferente, mas aquele que acarreta
terríveis consequências se for rejeitado.13” (p. 748, tradução livre)
Sigve Tonstad, desta vez no meio adventista, concorda que evangelho eterno
de Ap. 14 não deve ser confundido com a mensagem de salvação de Deus, mas que
“uma concepção tradicional para as ‘boas novas’, portanto, errará o alvo. 14” Ele
concorda com Bauckham (1993) e vê uma alusão a Salmos 96. Mas ele insiste que
esta “mensagem de validade eterna15” significa a “dignidade de Deus16”. (TONSTAD,
2019, p. 203, tradução livre)
Louis Brighton (1999) provavelmente sintetiza o significado mais em comum
com a posição tipicamente adventista quando diz:

Assim, o ‘evangelho eterno’ é a mensagem eterna de Deus - do


julgamento e da graça - com base na pessoa e na obra salvadora de
Jesus Cristo. E esta mensagem eterna tem como ponto de referência
(seu ponto final, o τελος, Mc. 13: 7, 13) a segunda vinda de Cristo,
quando ele irá julgar os incrédulos e libertar seus seguidores crentes.17
(p. 381, tradução livre)

ἐπὶ τοὺς καθημένους ἐπὶ τῆς γῆς


Outra frase que difere da forma como é tipicamente escrita, desta vez em
Apocalipse, é καθημένους ἐπὶ τῆς γῆς (os que se assentam/vivem sobre a terra).
Normalmente o que João escreve é κατοικοῦντας ἐπὶ τῆς γῆς (3:10, 8:13, 11:10,
13:12, 13:14) e sempre está representando os ímpios e não o povo de Deus. Mas
esse verso usando καθημένους pode ser uma alusão a Jeremias 25:29 (32:29 na
LXX usa a mesma expressão), onde fala do cálice da ira de Deus contra as nações
pagãs (mas não exclui Israel - “Pois eis que na cidade que se chama pelo meu nome
começo a castigar”)18.
13
The meaning of the word here must be determined ultimately by the immediate context. The angel
announces not a different gospel, but one that carries dire consequences if it is rejected.
14
a traditional conception for the ‘good news’ will thus miss the mark.
15
eternal valid message
16
God’s worthiness
17
Thus the ‘eternal gospel’ is the eternal message of God–of both judgment and grace–based on the
person and saving work of Jesus Christ. And this eternal message has as a reference point (its end
point, the τελος, Mk. 13:7, 13) the second coming of Christ, when he will both judge the unbelievers
and deliver his believing followers.
18
Ver Beale, p. 750 para mais detalhes sobre essa variação.
7

φοβήθητε τὸν θεὸν καὶ δότε αὐτῷ δόξαν, ὅτι ἦλθεν ἡ ὥρα τῆς κρίσεως αὐτοῦ,
καὶ προσκυνήσατε τῷ ποιήσαντι τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν καὶ θάλασσαν καὶ πηγὰς
ὑδάτων.
O uso de três imperativos φοβήθητε (temei), δότε (dai-lhe), προσκυνήσατε
(adorai) indicam um comando do anjo, ou seja, não é opcional uma atitude diferente
perante o juízo de Deus, pois aquele que não o fizer, consequentemente (quer
queiram ou não) está emaranhado em todas as nações que beberam do vinho da
fúria da prostituição da babilônia que certamente são o contraste dos 144 mil
descritos em Ap. 14:4, que não participaram desta prostituição. E aqueles que
adorarem a besta e a sua imagem e recebem sua marca sofrem a consequência
eterna da ira de Deus.
Ladd conclui a análise deste verso com uma frase impactante:

Os habitantes da Terra ficaram maravilhados com os poderes


demonstrados pela besta e seu falso profeta (13: 12-14); eles agora
são lembrados de que têm a ver com alguém que é mais poderoso do
que a besta - com aquele que é a fonte de todas as coisas no céu e na
terra.19 (1993, p. 194, tradução livre)

3. HERMENEUTICA MISSIONAL
3.1 O que é o evangelho eterno?
O substantivo εὐαγγέλιον foi provavelmente usado pelos cristãos primitivos,
embora seja Paulo que cunhe o termo primeiro em suas cartas (DECHOW, 2014).
Subsequentemente, o termo vai aparecer nos evangelhos, em particular Marcos 1:1,
o que John Kloppenborg (2008) argumenta derivar-se do material do evangelho Q.
Ele diz sobre o termo evangelho,

εὐαγγέλιον foi uma mensagem de transformação decisiva da vida


humana. Este é o mesmo termo usado em uma inscrição da cidade
asiática de Priene, datada de 9 AEC, descrevendo a mensagem de
uma época de ouro que se acreditava ter inaugurado o imperador
Augusto.20 (2008, p. 60, tradução livre)

19
The inhabitants of the earth have been amazed by the powers displayed by the beast and his false
prophet (13:12-14); they are now reminded that they have to do with one who is mightier than the
beast – with him who is the source of all things in heaven and on earth.

20
εὐαγγέλιον was a message of decisive transforming of human life. This is the very term that was
used in an inscription from the Asian city of Priene, dated 9 BCE, describing the message of a golden
8

Para Kloppenborg, a comparação entre o termo utilizado no contexto romano


e o termo utilizado no contexto cristão são então paralelos. Flemming diz sobre o
contexto imediato de Apocalipse:

O Apocalipse de João, então, tem um objetivo duplo. Negativamente,


ele busca distanciar os ouvintes de João dos atrativos do império
idólatra e seus caminhos. Positivamente, ele chama as igrejas na Ásia
a uma adoração intransigente do Deus único e do Cordeiro imolado. 21
(FLEMMING, 2020, p. 114, tradução livre)

Logo, a compreensão do termo evangelho como a proclamação de uma era


dourada inaugurada por Cesar (para os romanos) seria contrastada com o
evangelho (agora eterno) que está sendo proclamado agora a todas as nações,
tribos, línguas e povos e que transcende a jurisdição do império romano.
Mais especificamente, analisando o contexto canônico sobre o evangelho,
particularmente de Paulo, veja como ele se refere ao evangelho (que nessa citação
também não contém o artigo definitivo):

Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, separado


para o evangelho de Deus [εὐαγγέλιον θεοῦ], que ele, no passado,
prometeu por meio dos seus profetas nas Escrituras Sagradas. Este
evangelho diz respeito a seu Filho.” (Rom. 1:1-3).

Em Rom. 1:16, Paulo diz que ele não se envergonha do evangelho, pois [o
evangelho] é “o poder de Deus para a salvação tanto de judeus quanto do grego
(gentio)”. Esse poder procede de Deus, se origina em Deus e é influente para a
salvação tanto do judeu quanto do gentio. Logo, quando se refere ao evangelho
nessa introdução de sua epístola, Paulo procura alinhar o entendimento do
evangelho com a demonstração do próprio poder de Deus, da sua própria justiça e
do Seu próprio Filho.
A expressão εὐαγγέλιον αἰώνιον é então, no livro de Apocalipse, paralela a
narrativa sobre o próprio Cristo que é, e que era, e que há de vir (1:8); o princípio e o

age that the emperor Augustus was believed to have inaugurated.


21
John’s Apocalypse, then, holds a dual aim. Negatively, it seeks to distance John’s hearers from the
allures of the idolatrous empire and its ways. Positively, it calls the churches in Asia to an
uncompromising worship of the one God and the slain Lamb.
9

fim (1:8); o alfa e o ômega (1: 11); o primeiro e último (2:8). Tal como Cristo é eterno,
as boas novas também são.
3.2 A implicação missional de Apocalipse 14:6-7
Muitos leitores e críticos de Apocalipse tendem a encaixar a carta dentro dos
parâmetros de interpretação proféticos como o preterismo, historicismo e futurismo,
o que Flemming chama de “leituras dispencionalistas” de Apocalipse (2020a, p.
123). Existe uma tendência a interpretar a mensagem de Apocalipse de uma forma
que seus símbolos e profecias sejam códigos de interpretação de eventos históricos.
Na verdade, o próprio título da carta dado por João aponta para uma reavaliação
desse método de estudo de Apocalipse. Este é a revelação de Jesus Cristo, não
necessariamente de eventos históricos. E como vem sendo apresentado até aqui, o
evangelho eterno e o livro de Apocalipse enfatizam o caráter de Deus e como Ele
age no mundo em prol de suas criaturas. De forma sintetizada, a narrativa missional
do livro de Apocalipse,

conta a história de um Deus soberano e criador, cujo propósito


amoroso está corporificado na missão de Jesus, o Cordeiro abatido,
em nome de pessoas de todas as tribos e nações. Esta narrativa
atinge seu objetivo na nova criação, na qual Deus faz ‘tudo novo’ (21:
5) ... A fidelidade imparável de Deus à criação requer uma guerra
divina contra os poderes que procuram destruir a terra (11:18). Nada
será permitido para atrapalhar o propósito missionário de Deus de
libertar, redimir e restaurar o mundo.22 (FLEMMING, 2020a, p. 120,
tradução livre)

No contexto de Ap. 14:6-7, o contraste entre o evangelho eterno e o juízo não


devem existir. Na verdade, “o propósito do julgamento divino é levar pessoas de
todas as nações a temer, glorificar e adorar o Criador de todas as coisas. 23"
(FLEMMING, 2020b, p. 187, tradução livre)
O Dr. Chris J. Anderson também expande sobre o assunto. Ele argumenta
que a hermenêutica missional da Bíblia não deve ser limitada a entrada do pecado
no mundo, mas que deve ser expandida para incluir toda a Bíblia desde seu início:

22
tells the story of a sovereign, creator God, whose loving purpose is embodied in the mission of
Jesus, the slaughtered Lamb, on behalf of people of every tribe and nation. This narrative reaches its
goal in the new creation, in which God makes “everything new” (21:5)…God’s unstoppable faithfulness
to creation requires a divine war against the powers that seek to destroy the earth (11:18). Nothing will
be allowed to derail God’s missional purpose to liberate, redeem, and restore the world.
23
the goal of divine judgment is to lead people from all nations to fear, glorify, and worship the Creator
of all things.
10

Teologicamente, a missio Dei origina-se, por definição, do próprio


Deus ... Sugiro que pode haver uma tensão entre a teologia da missio
Dei e a hermenêutica: temos uma teologia da missão de Deus
decorrente dos propósitos cósmicos e da iniciativa amorosa do Deus
Triúno, mas temos uma narrativa hermenêutica da missão de Deus
surgindo como uma resposta à entrada do pecado. 24” (2017, p. 415,
tradução livre).

O que Anderson quer dizer é que a missio Dei não deve ser limitada a quando
Deus inicia sua atividade missionária, nem deve ser dito que os mandatos,
comissionados dados a Adão, Noé, Abraão devem ser separados como diferentes
mandatos (criação, cultural, evangelístico, etc...). Sendo assim ele conclui:

Mas, em essência, a missão de Deus - centrada no envio de seu Filho


e testemunhada por uma igreja enviada pelo Espírito - não é uma
comissão paralela à de Adão, mas a mesma comissão, reconfigurada
e restaurada após muitas transgressões pela graça de um homem,
Jesus Cristo.25 (2017, p. 415, tradução livre).

Tanto a Missio Dei, quanto o evangelho transcendem as atividades ou ações


comissionadas seja a criação ou ao próprio Cristo e são parte da essência de quem
Deus é (e consequentemente Seu Filho e Espírito Santo) e como Seus atributos,
Seu caráter de amor (1 Jo. 4:8) determinam suas ações.
Os acadêmicos que não interpretam o evangelho eterno dessa maneira não
estão necessariamente ignorando a gramática do texto, nem a sintaxe, mas talvez
separam o contexto geral da perícope dos três anjos, do capítulo e o próprio livro do
Apocalipse da Missio Dei. Outros teólogos 26, porém, incluindo Ellen White no meio
adventista, conseguem ver como a mensagem das boas novas de Deus e de Cristo,
de Seu caráter e justiça tem a ver com levar uma mensagem de âmbito eterno para
o mundo – o fato de haver um juízo, sim, mas também um chamado para adorar
aquele que tudo fez.

24
Theologically, the missio Dei originates, by definition, with God himself… I suggest that there may be
a tension between missio Dei theology and hermeneutics: we have a theology of God’s mission arising
from the Triune God’s cosmic purposes and loving initiative, yet we have a narrative hermeneutic of
God’s mission arising as a response to the entry of sin.
25
But in essence, God’s mission – centered on the sending of his Son, and witnessed to by a Spirit-
sent church – is not a parallel commission to Adam’s but the same commission, reconfigured and
restored after many trespasses by the grace of the one man, Jesus Christ
26
Beale (1999); Ladd (1993); Brighton (1999) concordam ou pelo menos tendem a aceitar a
possibilidade de que o evangelho eterno de Ap. 14 é justamente o evangelho pregado por Cristo,
Paulo e apóstolos.
11

A mensagem do evangelho eterno não é apenas uma mensagem singular


sobre o juízo que sobrevirá ao mundo, mas também é um chamado ao
arrependimento e a adoração ao verdadeiro imperador do universo, e não ao
imperador romano. Diz Flemming: “Os comportamentos de temer a Deus, honrar seu
nome e adorá-lo dão todas as indicações de arrependimento e conversão genuínos,
não simplesmente uma confissão forçada.27” (2012, p. 167, tradução livre)
Obviamente que essa atividade do primeiro anjo, aliás de todos os anjos de
Apocalipse e as atividades de Deus e o cordeiro tem a ver com a missio Dei, não é
apenas uma mensagem de condenação, mas a última mensagem de redenção a ser
levada ao mundo, com o objetivo de buscar que todos se arrependam (2 Pe. 3:9).
3.3 A relação do Adventismo com Apocalipse e a missio Dei
Em meios adventistas, por incrível que pareça, a ênfase na missão
especificamente no livro de Apocalipse não foi o foco principal dos pioneiros, mesmo
sabendo que o fim estava próximo. De acordo com William A. Spicer, em seu livro
“Our Story of Missions”, ele diz que os pioneiros tinham uma “ofuscada ideia de
missões28” (1921, p. 90)29.
Existia também, além da ideia ofuscada de missão, em particular a missio
Dei, uma ideia bem primitiva de atividades missionárias. Como diz o historiador
Adventista David Trim no capítulo 7 do livro “Lessons from Battle Creek”, muitas
vezes o movimento deixava de lado o aspecto missionário em favor de achar ser
suficiente apenas “requerer o envio postal de folhetos, e não mandar missionários 30”
(TRIM, 2018, p. 140, tradução livre). Na realidade, apenas décadas depois do
desapontamento de 1844 foi que a igreja percebeu a ênfase missionaria das três
mensagens angélicas e do alto clamor de Apocalipse 18. Isso se deve, em especial,
ao êxito do primeiro missionário, Michal B. Czechowski, que foi o primeiro a
apresentar a mensagem adventista aos Europeus (TRIM, 2018), mas também ao
primeiro missionário oficial, J.N. Andrews (SPICER, 1912), ao próprio James White,
que em um sermão na conferência geral de 1873 apresentou seu argumento para ir
27
The behaviors of fearing God, honoring his name, and worshiping him give every indication of
genuine repentance and conversion, not simply a forced confession.”
28
But a dim idea of missions
29
Em sua maioria, nas citações adventistas da época, o contexto de missão ainda era limitado a
pensar somente no trabalho missionário. Para o contexto da missio Dei, é preciso examinar o
conteúdo das mensagens e não termos como ‘missão’ ou ‘missionário’.
30
to require mailing tracts, not sending missionaries.
12

a todas as nações do mundo a luz da mensagem do terceiro anjo (TRIM, p. 144) e


sem dúvidas à Ellen White, com suas visões, conselhos (Ibid., p.145).
Ellen White considerava a mensagem do evangelho eterno expansiva, por
exemplo incluindo o Sábado no contexto do evangelho eterno. Ela também diz que
este é “o mesmo evangelho que foi anunciado no Éden” (WHITE, GC, p. 202).
especificamente no contexto do caráter de Deus e Sua lei,

Aí está a primeira promessa de um Salvador que havia de erguer-Se


no campo de batalha para contestar o poder de Satanás e prevalecer
contra ele. Cristo veio ao nosso mundo a fim de representar o caráter
de Deus assim como ele é representado em Sua santa lei; pois esta é
uma transcrição de Seu caráter. (WHITE, ME2, p. 106).

Ela também diz que no evangelho eterno “é mostrado que a pregação da


segunda vinda de Cristo ou a anunciação de sua brevidade, é parte essencial da
mensagem evangélica.” (WHITE, PJ, p. 228)
Além disso, ela também especifica o escopo de toda narrativa bíblica como
fazendo parte do evangelho eterno, incluindo a bíblia hebraica. O evangelho não é
limitado ao Novo Testamento ou a carta de Apocalipse. Ela diz:

Sobre o significado do evangelho eterno: Não deixe o homem zombar


da antiga economia judaica, da qual Cristo foi o Originador, e Aquele
para quem os tipos e sombras apontavam. Nestes tipos e sombras é
revelado o Evangelho eterno.31 (WHITE, 1898, par. 4, tradução livre)

31
On the meaning of everlasting gospel:Let not man mock the ancient Jewish economy, of which
Christ was the Originator, and the One to whom the types and shadows pointed. In these types and
shadows is revealed the everlasting Gospel.
13

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A carta de Apocalipse foi escrita em uma época de transição da igreja cristã.
O império romano tolerava a religião judaica e suas seitas ainda assim buscava a
adoração a seus deuses e ao imperador, o exclusivismo cristão que até então era
visto como uma seita judaica começava a causar problemas para o império, já que
os cristãos particularmente, não participavam de tais cultos nem das orações aos
seus deuses e imperador. Baseado nesse contexto de perseguições localizadas aos
grupos de cristãos espalhados na Ásia Menor, João escreve seu livro como uma
“visão alternativa do mundo em qual eles vivem32” (FLEMMING, 2020a, 114).
Mas a carta não se limita a uma crítica ao império, e nem uma visão
dispensacionalista de suas profecias, mas sim a missio Dei. Flemming escreve:

Toda a Escritura conta a história abrangente do propósito de Deus de


redimir e formar um povo missionário e restaurar todas as coisas. O
livro do Apocalipse narra o clímax e o triunfo dessa história. 33
(FLEMMING, 2012, p. 163)

Nesse contexto portanto, o evangelho eterno de Ap. 14:6-7 é o evangelho de


Deus, de sua redenção e salvação no qual se desencadeia a missio Dei. Mesmo não
contendo o artigo definitivo no grego original, assim como Romanos 1:1, o contexto
de juízo não deve confundir o entendimento que essa mensagem deva ser apenas
considerada uma mensagem de juízo, mas que há embutida nesta mensagem de
juízo a mensagem de boas novas (evangelho) eternas, de que também devemos
adorar aquele que tudo fez para não cairmos em juízo. Dentro do evangelho eterno
está também embutida a missio Dei. Deus não apenas manda uma mensagem de
juízo em Ap. 14:6-7. Mas através da primeira (em realidade as três) mensagens
angélicas, há uma mensagem de busca daquelas criaturas que ainda se encontram
perdidas, lhes dando a última chance de responder a seu chamado.

32
an alternative vision of the world in which they live.
33
The whole of Scripture tells the sweeping story of God's purpose redeem and form a missional
people and to restore all things. The book of Revelation narrates the climax and triumph of that story.
14

5. REFERÊNCIAS
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