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Marcelo Plioplis1
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Candidato ao Mestrado Denominacional em Interpretação Bíblica pelo Centro Universitário
Adventista de São Paulo (UNASP-EC). E-mail: mplioplis@yahoo.com
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1. INTRODUÇÃO
Dean Flemming pergunta sobre o livro de Apocalipse: “Uma hermenêutica
missional pode oferecer a chave para abrir a mensagem teológica do último livro do
cânon cristão?2” (FLEMMING, 2012, p. 162, tradução livre) A resposta, é claro,
depende de como o livro de Apocalipse é lido e interpretado. De acordo com vários
comentários bíblicos3 e baseado na construção original do texto grego, o evangelho
eterno mencionado por João no Apocalipse não deve ser considerado o evangelho
(as boas novas) de Deus e Sua salvação. De acordo com esses teólogos, a falta do
artigo definitivo τὸ antes da palavra εὐαγγέλιον é evidência de que a mensagem do
primeiro anjo de Apocalipse 14:6 é uma mensagem de julgamento (de implicância
eterna), mas que não deve ser confundida com o evangelho anunciado por Cristo e
os apóstolos já que nas diversas vezes onde o termo aparece no Novo Testamento
ele está sempre com o artigo (com exceção de Rom. 1:1) 4.
Porém, se o evangelho eterno de 14:6 realmente são as boas novas
anunciadas por Jesus e seus apóstolos, poderiam essas boas incluírem não
somente a salvação do ser humano, mas uma descrição do próprio caráter de Deus,
do conflito cósmico da criação, da salvação e restauração do mundo providenciada
por Deus? Sendo assim, o evangelho eterno é a base que leva a missio Dei.
Este artigo argumentará que o evangelho eterno pode ser ampliado ao
contexto da Missio Dei que pode ser considerada como a grande metanarrativa das
escrituras.
2. EXEGESE
2.1 Análise Contextual de Apocalipse
Para que a análise exegética dos versos seja completa, é necessário fazer
uma análise contextual do livro em questão, nesse caso o Apocalipse de João.
Serão analisados o contextual (1) histórico; (2) sociocultural; (3) literário.
1. Histórico
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might a missional hermeneutic offer a key to unlocking the theological message of the final book of
the Christian canon?
3
MOUNCE, 1997, p. 273; MICHAELS, J. R. (1997); TONSTAD, S. (2019, p. 203); BAUCKHAM,
(1993, p. 286-287)
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São 76 usos do substantivo εὐαγγέλιον no Novo Testamento, seja ele no acusativo, dativo ou
genitivo. Romanos 1:1 usa a expressão εὐαγγέλιον θεοῦ que mesmo sem o artigo contextualiza o
substantivo como sendo as boas novas de/sobre Deus.
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The simplest and most persuasive solution is that John the Apostle wrote the book of Revelation.
6
Revelation, then, was probably written in the 90s, to churches facing sporadic persecution from
Rome, with a particular threat from the imperial cult.
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3. Literário
O gênero de Apocalipse é variado dependendo de quem argumenta.
Certamente é uma carta, mas também deve ser considerado uma profecia, com
vários oráculos proféticos e também um livro de gênero apocalíptico judaico.
Schreiner define o gênero apocalíptico como:
templo. Alguns dos livros mais comuns desse gênero estão: 1–2 Enoque, 2–3
Baruque, 4 Esdras, e o Apocalipse de Abraão.
2.2 Análise textual da perícope
O texto em questão aparece no grego assim:
Minha tradução:
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Um exemplo desta posição se sintetiza em J. Ramsey Michaels (1997) que também discorda que o
evangelho eterno seja o mesmo que as boas novas de Jesus, principalmente por usar o termo eterno,
onde ele associa a palavra “good news” de notícia/novas com o termo “new” de novo, inferindo que o
evangelho de Cristo é algo novo, mas esta mensagem de juízo que é eterna. Infelizmente ele comete
uma falácia dos cognatos “news” e “new” e seu argumento se enfraquece por causa disso.
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Ladd (1993) diz, “Perhaps too much ought not be made of the omission of the definite article. Paul
speaks of God’s gospel (Rom. 1:1) without the definite article”.
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imediato. O anjo anuncia não um evangelho diferente, mas aquele que acarreta
terríveis consequências se for rejeitado.13” (p. 748, tradução livre)
Sigve Tonstad, desta vez no meio adventista, concorda que evangelho eterno
de Ap. 14 não deve ser confundido com a mensagem de salvação de Deus, mas que
“uma concepção tradicional para as ‘boas novas’, portanto, errará o alvo. 14” Ele
concorda com Bauckham (1993) e vê uma alusão a Salmos 96. Mas ele insiste que
esta “mensagem de validade eterna15” significa a “dignidade de Deus16”. (TONSTAD,
2019, p. 203, tradução livre)
Louis Brighton (1999) provavelmente sintetiza o significado mais em comum
com a posição tipicamente adventista quando diz:
φοβήθητε τὸν θεὸν καὶ δότε αὐτῷ δόξαν, ὅτι ἦλθεν ἡ ὥρα τῆς κρίσεως αὐτοῦ,
καὶ προσκυνήσατε τῷ ποιήσαντι τὸν οὐρανὸν καὶ τὴν γῆν καὶ θάλασσαν καὶ πηγὰς
ὑδάτων.
O uso de três imperativos φοβήθητε (temei), δότε (dai-lhe), προσκυνήσατε
(adorai) indicam um comando do anjo, ou seja, não é opcional uma atitude diferente
perante o juízo de Deus, pois aquele que não o fizer, consequentemente (quer
queiram ou não) está emaranhado em todas as nações que beberam do vinho da
fúria da prostituição da babilônia que certamente são o contraste dos 144 mil
descritos em Ap. 14:4, que não participaram desta prostituição. E aqueles que
adorarem a besta e a sua imagem e recebem sua marca sofrem a consequência
eterna da ira de Deus.
Ladd conclui a análise deste verso com uma frase impactante:
3. HERMENEUTICA MISSIONAL
3.1 O que é o evangelho eterno?
O substantivo εὐαγγέλιον foi provavelmente usado pelos cristãos primitivos,
embora seja Paulo que cunhe o termo primeiro em suas cartas (DECHOW, 2014).
Subsequentemente, o termo vai aparecer nos evangelhos, em particular Marcos 1:1,
o que John Kloppenborg (2008) argumenta derivar-se do material do evangelho Q.
Ele diz sobre o termo evangelho,
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The inhabitants of the earth have been amazed by the powers displayed by the beast and his false
prophet (13:12-14); they are now reminded that they have to do with one who is mightier than the
beast – with him who is the source of all things in heaven and on earth.
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εὐαγγέλιον was a message of decisive transforming of human life. This is the very term that was
used in an inscription from the Asian city of Priene, dated 9 BCE, describing the message of a golden
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Em Rom. 1:16, Paulo diz que ele não se envergonha do evangelho, pois [o
evangelho] é “o poder de Deus para a salvação tanto de judeus quanto do grego
(gentio)”. Esse poder procede de Deus, se origina em Deus e é influente para a
salvação tanto do judeu quanto do gentio. Logo, quando se refere ao evangelho
nessa introdução de sua epístola, Paulo procura alinhar o entendimento do
evangelho com a demonstração do próprio poder de Deus, da sua própria justiça e
do Seu próprio Filho.
A expressão εὐαγγέλιον αἰώνιον é então, no livro de Apocalipse, paralela a
narrativa sobre o próprio Cristo que é, e que era, e que há de vir (1:8); o princípio e o
fim (1:8); o alfa e o ômega (1: 11); o primeiro e último (2:8). Tal como Cristo é eterno,
as boas novas também são.
3.2 A implicação missional de Apocalipse 14:6-7
Muitos leitores e críticos de Apocalipse tendem a encaixar a carta dentro dos
parâmetros de interpretação proféticos como o preterismo, historicismo e futurismo,
o que Flemming chama de “leituras dispencionalistas” de Apocalipse (2020a, p.
123). Existe uma tendência a interpretar a mensagem de Apocalipse de uma forma
que seus símbolos e profecias sejam códigos de interpretação de eventos históricos.
Na verdade, o próprio título da carta dado por João aponta para uma reavaliação
desse método de estudo de Apocalipse. Este é a revelação de Jesus Cristo, não
necessariamente de eventos históricos. E como vem sendo apresentado até aqui, o
evangelho eterno e o livro de Apocalipse enfatizam o caráter de Deus e como Ele
age no mundo em prol de suas criaturas. De forma sintetizada, a narrativa missional
do livro de Apocalipse,
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tells the story of a sovereign, creator God, whose loving purpose is embodied in the mission of
Jesus, the slaughtered Lamb, on behalf of people of every tribe and nation. This narrative reaches its
goal in the new creation, in which God makes “everything new” (21:5)…God’s unstoppable faithfulness
to creation requires a divine war against the powers that seek to destroy the earth (11:18). Nothing will
be allowed to derail God’s missional purpose to liberate, redeem, and restore the world.
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the goal of divine judgment is to lead people from all nations to fear, glorify, and worship the Creator
of all things.
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O que Anderson quer dizer é que a missio Dei não deve ser limitada a quando
Deus inicia sua atividade missionária, nem deve ser dito que os mandatos,
comissionados dados a Adão, Noé, Abraão devem ser separados como diferentes
mandatos (criação, cultural, evangelístico, etc...). Sendo assim ele conclui:
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Theologically, the missio Dei originates, by definition, with God himself… I suggest that there may be
a tension between missio Dei theology and hermeneutics: we have a theology of God’s mission arising
from the Triune God’s cosmic purposes and loving initiative, yet we have a narrative hermeneutic of
God’s mission arising as a response to the entry of sin.
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But in essence, God’s mission – centered on the sending of his Son, and witnessed to by a Spirit-
sent church – is not a parallel commission to Adam’s but the same commission, reconfigured and
restored after many trespasses by the grace of the one man, Jesus Christ
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Beale (1999); Ladd (1993); Brighton (1999) concordam ou pelo menos tendem a aceitar a
possibilidade de que o evangelho eterno de Ap. 14 é justamente o evangelho pregado por Cristo,
Paulo e apóstolos.
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On the meaning of everlasting gospel:Let not man mock the ancient Jewish economy, of which
Christ was the Originator, and the One to whom the types and shadows pointed. In these types and
shadows is revealed the everlasting Gospel.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A carta de Apocalipse foi escrita em uma época de transição da igreja cristã.
O império romano tolerava a religião judaica e suas seitas ainda assim buscava a
adoração a seus deuses e ao imperador, o exclusivismo cristão que até então era
visto como uma seita judaica começava a causar problemas para o império, já que
os cristãos particularmente, não participavam de tais cultos nem das orações aos
seus deuses e imperador. Baseado nesse contexto de perseguições localizadas aos
grupos de cristãos espalhados na Ásia Menor, João escreve seu livro como uma
“visão alternativa do mundo em qual eles vivem32” (FLEMMING, 2020a, 114).
Mas a carta não se limita a uma crítica ao império, e nem uma visão
dispensacionalista de suas profecias, mas sim a missio Dei. Flemming escreve:
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an alternative vision of the world in which they live.
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The whole of Scripture tells the sweeping story of God's purpose redeem and form a missional
people and to restore all things. The book of Revelation narrates the climax and triumph of that story.
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5. REFERÊNCIAS
ANDERSON, C. J. Beginning at the beginning: Reading missio Dei from the
start of the Bible. Missiology. 45(4), p. 414-425, 2017.
DECHOW, J. F. The ‘Gospel’ and the Emperor Cult. From Bultmann to Crossan.
Forum, Third Series, 3,2, 2014.
____________. Divine Judgment and the Missio Dei in the Book of Revelation.
Em Listening Again to the Text: New Testament Studies in Honor of George Lyons.
Ed: Richard P. Thompson. Claremont, CA: Claremont Press, p. 171-91, 2020b.
SPICER, W. A. Our Story of Missions. Mountain View, CA: Pacific Press Publishing
Association, cáp. 9, p. 86-101, 1923.
TRIM, D. J. B., Illuminating the Whole Earth: Adventism and Foreign Mission in the
Battle Creek Years (1859 to c.1912), em Lessons From Battle Creek: Reflections
After 150 Years of Church Organization, Hagerstown: Review and Herald, cáp. 7, p.
134-161, 2018.