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1 AMPLIAÇÃO HARMÔNICA DURANTE O PERÍODO

ROMÂNTICO

Como dissemos anteriormente, a incorporação de alterações cromáticas


começa a ocorrer desde o nascimento do sistema tonal como um prolongamento
do modalismo, embora, a princípio, isto não se colocasse como uma verdadeira
ameaça à consolidação do sistema. Entretanto, durante o Romantismo, as
relações que caracterizavam e garantiam o estabelecimento do sistema tonal
foram sendo pouco a pouco ampliadas até o ponto de sua descaracterização.
Até mesmo a supremacia da tônica começa a ser colocada em questão por
diversos compositores como Schumann, Debussy, Liszt e Wagner. Tal
movimento parece ter sido particularmente consciente no caso de Schumann
que, muitas vezes, evita a polarização clara da tônica, invertendo a lógica
estabilidade-instabilidade-estabilidade (T-D-T).

Um exemplo disso ocorre na Siciliana do Álbum da Juventude de


Schumann. Os quatro primeiros compassos da parte A parecem estar centrados
na tonalidade de lá menor. No entanto, os quatro seguintes negam este centro
em favor de Mi menor, estabelecendo uma certa ambiguidade que decorre do
fato de que, findos os primeiros oito compassos, ainda não se tem certeza se a
peça começa na região de subdominante menor (lá menor) e conclui na tônica
(mi menor) ou se começa na Tônica (lá menor) e conclui no quinto grau menor
(mi menor). O início da subseção b (compassos 9 a 16) parece reforçar o Mi
como centro através da alternância entre os acordes de Lá# diminuto (dominante
da dominante sem fundamental) e Si maior (dominante) e de uma nova
confirmação do mi menor no compasso 13. A partir de então uma cadência em
Sol Maior, relativa de mi menor, é atingida antes da repetição da parte a, que
volta integralmente. Em vista da totalidade dos acontecimentos da parte A, a
tonalidade de mi menor se sobressai como a tônica da peça em detrimento do
lá menor:
Fig. 1: Subseção a e b da parte A da Siciliana de Schumann.

A parte B (de 25 a 36) não apresenta a mesma ambiguidade harmônica


no que diz respeito às suas relações internas. Também em forma aba, sua
primeira subseção está claramente em Lá menor em razão da alternância entre
os acordes de lá menor (tônica), Ré menor (subdominante) e Mí Maior
(dominante). A subseção b, que parte de lá menor, caminha para a tonalidade
de Mi menor que agora soa como o quinto grau menor de Lá. Ao mesmo tempo,
no contexto geral da peça, mesmo a afirmação clara do Lá como centro reforça
a ambiguidade da escuta, pois contrapõe os dois principais centros da parte A
em um novo contexto, contrário ao inicial.

Fig. 2: Parte B da Siciliana.


Apesar da riqueza das relações propostas por Schumann, a Siciliana
ainda pode ser facilmente explicada do ponto de vista tonal. No entanto, durante
o século XIX, incursões a regiões tonais cada vez mais distantes da tônica
passam a ocorrer mais comumente e, a partir disto, não tardaram a serem
incorporadas ao campo harmônico outras alterações - além das alterações
modais já mencionadas – provenientes destas regiões. Estas alterações, por sua
vez, geraram todo um conjunto de novos acordes construídos sobre os sete
graus da escala. De acordo com Leibowitz:

“A arte da modulação não se contenta[va] mais com modulações


simples. Tensões cada vez mais fortes são organizadas por meio de
incursões a regiões cada vez mais distantes do tom fundamental.
Antes que esse processo seja levado ao seu extremo, como no caso
de Weber e Schubert, a modulação para a subdominante menor é
livremente utilizada por Bach e Mozart. Agora, os empréstimos dos
modos antigos, ainda que tivessem sido suficientes para exaurir as
possibilidades da região de dominante, nada fizeram para captar os
recursos da região de subdominante menor, cujas relações com a
tônica aparecem apenas na modulação. Estas relações podem
naturalmente ser incorporadas ao modo maior. Uma vez que isto foi
feito, qualquer tonalidade maior assim constituída poderia se fundir
com qualquer outra, já que todas contêm todos os tipos de acorde de
todos os tons” (LEIBOWITZ, 1972, p. 35).

A ampliação do campo harmônico através da utilização de acordes do


campo harmônico menor no maior e vice-versa se tornou tão própria da
linguagem Romântica que levou Hauptmann (2014), um teórico do século XIX, a
propor a existência de um único modo: o maior-menor, que englobava os
acordes destes dois campos harmônicos. O próprio Hugo Riemann, cuja teoria
da harmonia funcional foi extremamente influenciada pelo trabalho de
Hauptmann, chegou a incorporar esta ideia à sua teoria funcional adaptando-a
em sua quarta lei tonal, uma lei que diz que qualquer acorde pode ser seguido
por qualquer outro (RIEMANN, 1886); na prática, isto significou absorver, no
campo harmônico, os acordes relacionados com a tônica menor, subdominante
menor e demais regiões. Schoenberg trata especificamente da ampliação do
campo harmônico e das possibilidades modulatórias no capítulo VII de Funções
Estruturais da Harmonia, cujo título é: Permutabilidade entre Maior e Menor. Diz
ele:
“Uma dominante pode introduzir uma tríade maior ou menor, e pode
ser a dominante de uma região maior ou menor. A possibilidade de
permutação entre maior e menor está ancorada na força da dominante.
Esta força faz com que as seguintes regiões sejam fortemente
aparentadas com uma tonalidade maior: Tônica menor (t),
Subdominante menor (sd) e Quinto menor (v). Graças ao princípio da
permutabilidade, as seguintes regiões também são fortemente
aparentadas: as formas maiores da Mediante (M) e Submediante (SM),
e (derivadas da Tônica Menor) as formas maiores e menores da
Mediante abaixada (Mb, mb) e da Submediante abaixada (SMb, smb)
(...). É por intermédio destas relações que muitos acordes alterados
tornam-se disponíveis” (SCHOENBERG, 2004, p. 73).

Todas estas relações que se estabelecem entre uma tônica maior e as


regiões de tônica menor, subdominante menor e quinto menor passam a ser
cada vez mais cultivadas pela música do século XIX, e as relações entre a tônica
e suas mediantes e submediantes (isto é, por relação de terça com a tônica),
que haviam sido pouco exploradas anteriormente, passam a ser cada vez mais
comuns a partir da música de Schubert, Schumann, Liszt e Brahms, apenas para
citar alguns compositores que fizeram uso destes recursos. A Consolação nº 1
de Liszt ilustra especialmente bem a utilização das regiões em relação de
mediante. Com apenas uma página, a peça, em Mi Maior, modula para sol#
menor (a mediante) que permanece por quatro compassos. Então, em uma
modulação absolutamente inusitada (para dizer o mínimo), a peça atinge
repentinamente a tonalidade de Sol Maior (mediante abaixada) que também se
perpetua por outros quatro compassos antes do retorno à tônica.

Além da utilização destes recursos que podem obscurecer a tonalidade,


muitos compositores passaram a, propositalmente, ocultar a tônica negando a
ela o privilégio de um reinado absolutista1. Schumann, sobretudo, é um mestre
nesta prática da qual podemos nos lembrar de diversos exemplos, como a
primeira canção do ciclo Dichterliebe, Im Wunderschönen Monat Mai:

1 A propósito das analogias possíveis entre ordem social e as suas implicações nas formas de
organização propostas pelos sistemas musicais ocidentais, recomenda-se a leitura de Pousseur
(2009, p. 95–97). No trecho, o autor interpreta a ampliação do tonalismo no decorrer do século
XIX e o foco cada vez mais dirigido aos momentos de tensão (ou seja, ao alargamento das
regiões tonais e à ampliação dos acordes do campo harmônico, etc.) como um questionamento
da ordem reinante decorrente da percepção de que “o indivíduo não vibra mais em uníssono
com um universo que deveria dominar completamente, mas se sente cada vez mais jogado
nesse mundo, como num espaço estranho” (POUSSEUR, 2009, p. 96).
Fig. 3: Início da Canção Im Wunderschönen Monat Mai, do ciclo Dichterliebe
op. 48 de Schumann.

No momento em que os primeiros dois compassos promovem a


alternância dos acordes de si menor e Dó# Maior, a peça sugere fá# menor como
centro. Estes acordes soam, desta forma, como subdominante menor e
Dominante, respectivamente. Os compassos 3 e 4 são uma repetição literal dos
dois primeiros, aumentando a expectativa de resolução em fá# menor.
Entretanto, a cadência perfeita que se segue no fim do compasso 5 e início do 6
não se dirige para o acorde esperado (fá# menor) e sim para Lá Maior (a relativa
maior da tônica menor se fá# for considerado como tônica). A escuta do Lá Maior
como um novo centro, é corroborada pelo movimento escalar ascendente da
melodia da voz (dobrada pelo piano).

A cadência em Lá é reafirmada por uma repetição do conteúdo exposto


pelos compassos 5 e 6 nos compassos 7 e 8. A seguir, Schumann flerta com
outras regiões tonais por meio de cadências autênticas em si menor
(subdominante menor de fá# menor) em 9 e 10 e em Ré Maior (anti-relativa maior
da tônica menor) nos compassos 11 e 12. Particularmente significativo nesta
última cadência é a utilização do acorde de sol menor ao invés do esperado Sol
Maior, sugerindo a passagem pela região de ré menor, o que acaba não se
confirmando (o acorde final da cadência é o Ré Maior).

Fig. 4: compassos 8 a 12 da canção Im Wunderschönen Monat Mai.

Cada seção parece se ligar organicamente à próxima: o final de uma


corresponde ao início da próxima, formando uma cadeia de eventos contínuos.
A peça termina em suspenso, com o acorde de Dó# Maior com sétima
(Dominante) em uma reminiscência dos primeiros compassos da peça. Como
nas formas abertas de Wölflinn (1989), a peça parece não ter começo nem fim:

Fig. 5: últimos compassos da canção Im Wunderschönen Monat Mai.


Estes não são os únicos aspectos notáveis da peça: é marcante a relação
entre as linhas do piano e da voz, que se completam como se fossem uma
mesma. Assim como Beethoven havia feito nas suas sonatas para violino e
piano, o piano de Schumann transcende o papel de mero acompanhador para
se tornar protagonista, eliminando parcialmente as hierarquias propostas
comumente entre a voz e o piano no tonalismo. Também seria possível
apontarmos a existência de similaridades motívicas entre o piano e a voz, que
contribuem para unificar o conjunto, como ocorre, por exemplo, no primeiro
compasso quando o intervalo de sexta menor do início da peça reaparece no
próprio piano (voz aguda). Além disto, esta melodia da voz aguda, por sua vez,
é invertida de modo não literal pela melodia da voz no compasso cinco.

Retornando ao nosso assunto, como resultado desta ampliação do campo


harmônico, logo todos os acordes eram possíveis (e justificáveis)
independentemente da tonalidade em questão. E não apenas as tonalidades
passaram a se assemelhar cada vez mais entre si do ponto de vista harmônico
à medida em que as alterações foram sendo assimiladas, mas também foram
gerados (e utilizados) uma série de acordes ambíguos do ponto de vista tonal
que, por conta de seus significados múltiplos, foram denominados por
Schoenberg de acordes errantes (como os acordes diminutos e aumentados),
por parecerem vagar entre as tonalidades (SCHOENBERG, 2004, p. 65).

Evidentemente, qualquer acorde pode ter sua função reinterpretada em


virtude do contexto harmônico, mas o que Schoenberg procura apontar é que
alguns deles se prestam especialmente a esta múltipla interpretação. É isto
precisamente o que ocorre com as tétrades diminutas e as tríades aumentadas.
Uma mesma tétrade diminuta, por exemplo, pode, no temperamento igual, ser
escrita de diversas maneiras, cada qual pressupondo o exercício de uma função
harmônica distinta das demais. Alguns destes acordes errantes, inclusive, já
ocorriam com relativa frequência antes do século XIX, mas foi a partir do
Romantismo que eles passaram a ser explorados em toda sua potencialidade e
caráter modulatório, sendo eventualmente encadeados uns aos outros ou
dispostos de maneiras pouco convencionais, como neste trecho da Sonata em
Si menor de Liszt:
Fig. 6: trecho da Sonata em Si menor de Liszt

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNSTEIN, L. The unanswered question: six talks at harvard. Cambridge:


Harvard University Press, 1976.

LEIBOWITZ, R. Schoenberg and his school. New York: Da Capo Press, 1972.

MENEZES, F. Apoteose de Schoenberg. Segunda edição. São Paulo: Ateliê


Edit., 2002

ROSEN, C. The classical style: Haydn, Mozart, Beethoven. New York: W. W.


Norton, 1998.

SCHOENBERG, A. Harmonia. Tradução M. MALUF. São Paulo: UNESP, 2001.

______. Funções estruturais da harmonia. São Paulo: Via Lettera, 2004.

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