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Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

2ª prova de História Moderna I – 2021.2 – Prof. João Fragoso


Aluna: Sofia Lopes Lacerda (DRE 120043736)

Questão 1

“Lutero insistia, ainda, na década de 1530, que a verdadeira Igreja não tinha existência real,
exceto no coração dos homens: povo de Deus da palavra divina”. Adaptado de SKINNER,
Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo, Cia das Letras, 2006, p.
292.

“Mais para meados do século XVI, Calvino e seus discípulos reinterpretam a figura dos
magistrados inferiores como populares, ou seja, constituídos para moderar o poder dos reis”.
Adaptado de SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São
Paulo, Cia das Letras, 2006, pp. 506 – 507.

Considerando as passagens acima, analise as mudanças nas concepções e nas práticas


dos movimentos protestantes (especialmente os luteranos e calvinistas) sobre as relações
entre cristãos e as Monarquias.

De início, como coloca Quentin Skinner, os movimentos protestantes eram grandes


defensores das autoridades seculares, uma vez que compreendiam toda autoridade política
enquanto proveniente da vontade de Deus1. Nesse sentido, um dos fundamentos do
protestantismo era a doutrina de obediência passiva de são Paulo, que orientava o respeito
absoluto às figuras de autoridade: na Epístola aos romanos, são Paulo afirma que “todo poder
‘é instituído por Deus, e não há poderes exceto os instituídos por Deus’”2. A tirania era, até
então, compreendida enquanto uma resposta divina aos pecados dos homens, que deveriam,
por sua vez, receber sem resistência a punição de Deus. Assim, mesmo que os magistrados se
expressassem com tirania, deveriam ser respeitados.
Foi, por um tempo, possível sustentar essa prerrogativa de forma mais ou menos
tranquila, durante os “anos de vacilações e concessões” dos governos católicos do Norte da
Europa, em que os espaços que haviam aderido ao protestantismo eram relativamente aceitos3.
Podemos compreender essa tolerância temporária da adesão à fé protestante entendendo que
as sociedades políticas da Europa moderna se organizavam, segundo a análise de Elliot4, em
Monarquias compósitas. Por essa chave de leitura, entendemos que as grandes comunidades
políticas – como, por exemplo, o Sacro Império Romano Germânico – eram compostas por

1
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 297.
2
Ibid., p. 469.
3
Ibid., p. 465.
4
ELLIOT, J.H. Una Europa de Monarquias Compuestas. In: España, Europa y el Mundo de Ultramar,
1500-1800. Taurus, 2009, p. 32.
várias comunidades menores, de modo que cada uma preservava uma relativa autonomia em
sua organização interna. Contudo, com o avançar de políticas que visavam a unidade religiosa
das Monarquias sob a Igreja romana – como a empreendida por Carlos V ao obrigar, na Dieta
de Worms em 1521, que todos os luteranos retornassem à fé católica5 – os protestantes passam
a ser, cada vez mais, ativamente perseguidos. Isso os faz precisar reavaliar a ideia da
não-resistência e abrir brechas na doutrina de são Paulo para garantir a sobrevivência das
comunidades protestantes.
É nesse momento, então, que surgem teorias entre os protestantes para validar a
resistência às autoridades seculares. Foram inicialmente formuladas por dois líderes políticos
alemães luteranos: a teoria constitucionalista de Filipe de Hesse e a teoria do direito privado
de João da Saxônia. Foram posteriormente desenvolvidas e aprofundadas pelos seguidores de
Calvino, tornando-se em alguns lugares, principalmente nas comunidades calvinistas radicais
da Escócia e Inglaterra, mais combativas e revolucionárias. Cabe, porém, iniciar a explanação
com as teorias de Filipe de Hesse e João da Saxônia.
Filipe de Hesse, partindo da necessidade de legitimar “a ideia de uma resistência
armada ao imperador, porém ao mesmo tempo (...) sustentar a tese luterana fundamental
segundo a qual todas as autoridades constituídas são estabelecidas por Deus”6, desenvolve a
teoria constitucionalista: a ideia de que não apenas o “governante maior” de certo lugar seja
eleito por Deus, e sim todos os magistrados. Como coloca Skinner, a consequência dessa
teoria “é que, se o imperador ultrapassar os limites de seu cargo perseguindo o Evangelho ou
tratando com violência qualquer um dos príncipes, estará violando as obrigações a ele
impostas por ocasião de sua eleição, sendo, portanto, legítimo combatê-lo”7.
Já João e demais juristas da Saxônia, partindo de passagens do direito civil e canônico
que afirmavam “ser justificável repelir com força a força injusta”8, formulam a teoria do
direito privado. Adaptando uma linguagem jurídica para um contexto político, defende que o
governante que agir de forma corrupta torna-se um “cidadão privado”, não merecendo o
respeito de alguém escolhido por Deus: nesses casos, seria lícito resistir9.
Cabe, enfim, adentrar a teoria da magistratura popular, desenvolvida pelo próprio
Calvino. Skinner enfatiza que, mesmo sem esta teoria haver tido muito impacto imediato, foi
uma “importante contribuição para o elenco de ideias políticas radicais que estavam à

5
SKINNER, op. cit.., p. 470
6
Ibid., p. 471
7
Ibid., p. 472
8
Ibid., p. 473
9
Ibid., p. 474
disposição de seus seguidores ao suceder, em meados do século XVI, a crise do
protestantismo”10. Partindo da experiência dos éforos espartanos, estabelecidos para refrear o
poder dos reis11, Calvino descreve nas Institutas a existência de “magistrados do povo,
nomeados para restringir a arbitrariedade dos reis”12.
Entende-se, enfim, que na medida em que a perseguição das comunidades protestantes
se tornava maior e mais ativa, tanto luteranos quanto calvinistas elaboraram novas reflexões
teóricas com o intuito de legitimar a resistência ativa à perseguição. Dessa maneira, uma vez
que a doutrina da obediência passiva impedia que houvesse questionamento e embate às
autoridades, foi justamente a produção dessas novas justificativas teóricas que possibilitaram
a mudança prática de postura dos protestantes.

Questão 2

“Por isso tudo o sol, planeta excelso, em nobre proeminência o trono ostenta em sua esfera
própria, entre outros astros; seu olho salutar corrige os males que as estrelas nocivas
ocasionam (...) Porém quando em nociva mistura os astros andam (...) catástrofes, horrores,
fendem, abalam (...) a calma consorciada dos Estados. Quando abalada fica hierarquia, que é
própria escada para os altos planos, periclita a obra toda. Como podem ter estabilidade
duradoura os degraus das escolas, os Estados, o tráfico pacífico entre parias afastadas, os
direitos do berço e nascimento, os privilégios da idade, os louros, os cetros e coroas, se a
desfazer-se viesse a hierarquia? Tirais a hierarquia; dissonante deixai só essa corda, e vede a
grande discórdia que se segue! As coisas todas entram em conflito”

Adaptado de William Shakespeare. Tróilio e Créssida. Ato I – Cena III – Ulisses

Considerando a passagem acima, analise as concepções sobre a ação política e


estratificação social presentes entre os humanistas do Norte.

Para tratar da relação estabelecida entre as hierarquias sociais e a ação política pelos
humanistas do Norte, é possível iniciar situando algumas questões centrais que dialogam com
este tópico: a primeira delas é uma diferença importante entre o humanismo desenvolvido
pelas cidades italianas e no norte da Europa. De acordo com Quentin Skinner, apesar da
grande influência exercida pelos humanistas da Renascença “na maior parte dos casos os
humanistas do Norte apenas se mostraram receptivos àquelas idéias (...) pareciam passíveis de

10
Ibid., p. 507
11
Ibid., p. 505.
12
CALVINO (1536) apud SKINNER, 2006, p. 505.
ser assimiladas no quadro de suas experiências, bastante diversas das italianas.”13 Skinner,
nesse sentido, apresenta no capítulo 4 de As Fundações do Pensamento Político Moderno a
importância central da liberdade para as cidades italianas14; no entanto, no caso dos
humanistas do Norte, “dadas as instituições pós-feudais e monárquicas da França, Alemanha e
Inglaterra, eles evidentemente sentiam bastante dificuldade em entender a obsessão italiana
com a libertas, ou em simpatizar com a tendência anexa a proclamar a forma republicana de
governo como a melhor de todas”15.
No lugar da liberdade, o objetivo político mais enfatizado no Norte era a necessidade
do governante de “manter a boa ordem, a harmonia e a paz”16. As principais questões
mobilizadas por esses autores, então, tinham como finalidade esta manutenção de ordem e
paz. É nesse lugar que entram duas importantes características da maior parte dos humanistas
do Norte: a opção pela Monarquia como melhor forma de governo e a defesa da estratificação
social. Cabe, dessa maneira, abordar cada um desses pontos, buscando mostrar como ambos
se relacionavam com a intenção de manter a harmonia política.
Conforme descrito por Skinner, o humanista francês Budé afirma “no final da
Educação do príncipe, que sempre se deve preferir ‘uma monarquia bem ordenada’ a
‘qualquer outra espécie de governo’”17. Nesse aspecto, os humanistas do Norte defendem
“com freqüência que qualquer homem culto, ao servir de conselheiro ao príncipe, estará
cumprindo um serviço da mais alta importância pública, pois assim favorecerá a ‘boa
ordenação’ da monarquia, e portanto ajudará a preservar a melhor forma possível de
república.”18 Entende-se, por conseguinte, que tais “homens cultos” buscavam com seus
conselhos estimular o Príncipe a seguir um caminho de virtudes, pois, de acordo com eles, um
governante virtuoso seria a garantia do sucesso político. É nesse sentido, então, que os autores
discorrem a respeito das virtudes que deveria possuir um bom príncipe: “a liberalidade,
clemência e fidelidade à palavra dada”19.
É justamente a vinculação entre as virtudes e o bom governo que conecta a defesa da
Monarquia pelos humanistas do Norte com o desejo de manutenção das hierarquias sociais
expresso por boa parte deles. Skinner, após discorrer sobre a importância dada por eles às
virtudes, enfatiza o vínculo estabelecido pelos humanistas do Norte entre a nobreza e as
13
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 2006, p.
219.
14
Cf. Ibid., cap. 4.
15
Ibid., p. 219.
16
Ibid., p. 253.
17
Ibid., p. 238.
18
Ibid., p. 238.
19
Ibid., p. 248.
virtudes, de modo que defendem que as classes altas seriam mais aptas a serem virtuosas:
“Como Elyot engenhosamente diz no início do Magistrado, ‘onde há virtude num fidalgo, ela
costuma estar mesclada com maior condescendência, afabilidade e brandura do que em geral
sucede quando ela aparece num rústico ou numa pessoa de baixa linhagem’”20.
É, dessa forma, pela lógica conjunta de que o bom governo é aquele encabeçado por
um soberano virtuoso e de que a nobreza é a classe que tende a maior virtude, que se
consolida um dos principais argumentos dos humanistas do Norte a favor da hierarquia
corrente. É nesse sentido que Skinner afirma:
Tendo admitido que o governo deve ficar em mãos de quem tem a maior virtude, e
tendo afirmado que a máxima virtude reside nos nobres e fidalgos, disso extraem
agora a conclusão óbvia e conveniente: a fim de se conservar a forma mais bem
organizada de sociedade política, não devemos mexer nas distinções sociais
existentes, mas, ao contrário, temos de conservá-las o melhor possível.21
Observa-se, nesse trecho, que o intuito de manter a estratificação era justamente a
conservação da “forma mais bem organizada da sociedade política”, o que demonstra o
objetivo político máximo aqui descrito anteriormente, a manutenção da paz e da ordem.
Cabe, enfim, analisarmos o vínculo direto feito por estes pensadores entre ordem
política e estratificação social: a crença de que “a boa ‘ordem’ pressupõe que se conserve a
‘gradação’”22. Skinner, nesse aspecto, apresenta o argumento de dois humanistas com posturas
usualmente distintas, mas que demonstram em seus escritos essa mesma lógica, Starkey e
Budé. O primeiro insiste que
“a verdadeira República” (common weal) somente está completada quando todas “as
partes, como membros de um único corpo, se encontram bem atadas em perfeito
amor e unidade, cada qual praticando seu ofício e dever de tal modo que, seja qual
for a condição, ofício ou grau de cada um, esse possa cumprir seus deveres com
diligência e empenho, e isso sem ter inveja ou malícia de outrem”23
Budé, por sua vez, considera que “‘confundir os graus de autoridade e preeminência’ é algo
fatal para a estabilidade de qualquer governo monárquico”24. Entende-se, dessa maneira, que
as concepções de ação política e estratificação social estavam intimamente ligadas entre os
humanistas do Norte.

20
Ibid., p. 256.
21
Ibid., p. 257.
22
Ibid., p. 258.
23
Ibid., p. 258.
24
Ibid., p. 258.
Bibliografia

Questão 1

ELLIOT, J.H. Una Europa de Monarquias Compuestas. In: España, Europa y el Mundo de
Ultramar, 1500-1800. Taurus, 2009

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia. das
Letras, 2006. Capítulo 16.

Questão 2

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia. das
Letras, 2006. Capítulos 7, 8 e 9.

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