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LALANGUE

(Patricio Álvarez Bayón)

O inconsciente está feito de lalangue, ela é o seu material, a sua substância.


Trata-se de um gozo, o gozo de lalangue. Lalangue tem que ver com a singularidade de
cada um. Lalangue não serve para o diálogo. É um gozo primário.

No primeiro tempo lógico, o que existe é lalangue como substância do


inconsciente, ele ainda não está estruturado como uma linguagem.

Trata-se de um inconsciente composto por S1 isolados, não estruturados como


uma linguagem, e sim que só produzem gozo. Lacan chamará esse inconsciente de
inconsciente real, com seu próprio sujeito: o parletrê.

S1 e S2 não são equivalentes. S1 porta em si mesmo um gozo.

Lalangue está feita de uma série S1, há um enxame de S1.

O gozo é produzido por lalangue e não pela linguagem; o gozo originário é o de


lalangue, sobre o qual se assenta, depois, a linguagem.

No segundo tempo lógico, a comunicação se exerce no nível da linguagem,


porém, sustentada no gozo primário de lalangue.

Lalangue é definida como um enxame de S1 isolados que marcam o corpo e lhe


injetam gozo. Trata-se de uma articulação entre o simbólico e o real desprovida da
cadeia significante.

A linguagem é imaterial, porém, sua matéria de gozo são os S1.

Lalangue não está a serviço da comunicação, isto é, lalangue não está em


conexão com o Outro. Lalangue é gozo do Um.

No primeiro tempo, o parletrê se constitui a partir do gozo de lalangue, sem


linguagem e sem Outro. O nascimento do Outro e da linguagem se produz no segundo
tempo.

A linguagem é uma elucubração de saber sobre lalangue, ou seja, é preciso um


tratamento, um trabalho sobre lalangue para constituir a linguagem como um saber.
O inconsciente é um saber, uma habilidade, um saber-fazer com lalangue. O que
se sabe fazer com lalangue vai muito além do que pode dar-se conta em nome da
linguagem. A elucubração não é só um pensamento, e sim um trabalho ativo ao modo
de um saber-fazer.

A linguagem é uma elucubração de saber sobre lalangue e o inconsciente é um


saber-fazer com essa elucubração, um saber-fazer com lalangue. Assim, no segundo
tempo, a partir desse saber-fazer com lalangue, e a partir dessa elucubração de saber, se
constitui o inconsciente estruturado como uma linguagem.

Essa elucubração de saber é o que Lacan chamou, anos antes, de cadeia


significante, a articulação S1-S2. É, também, o que redefiniu a partir das operações de
alienação-separação, em que, no intervalo entre S1 e S2, se encontra o objeto a. É,
também, o que logo localizou como discurso, isto é, o que faz funcionar segundo quatro
lógicas distintas a S1 e S2 e ao objeto a. Porém, todo esse aparato simbólico que constrói
durante anos, é o que justamente em O seminário: livro 20 chamará aparato da
linguagem para localizar que é uma montagem situada em relação a esse gozo primeiro,
o gozo de lalangue.

O gozo de lalangue é a energia que alimenta o aparato da linguagem.

Antes de lalangue não havia gozo.

O encontro com lalangue impacta o corpo, introduz no corpo um quantum, um


excesso de gozo, que mais adiante se chamará acontecimento de corpo. E, logo, os
gozos serão distintos modos em que se distribui esse gozo inaugural mediante o aparato
da linguagem.

Para além da função de distribuição de gozo, há uma função de saber, a


elucubração de saber. O aparato funciona distribuindo gozo mediante um saber-fazer.

Lalangue é, então, definida como um composto de S1, uma série, um enxame de


S1 que portam gozo. E a linguagem é definida como o tratamento e a distribuição desse
gozo, isto é, o saber-fazer com o gozo que porta esse enxame de S1.

O inconsciente, portanto, é estruturado como uma linguagem em um segundo


tempo lógico, o qual implica uma tramitação e distribuição do gozo de lalangue.
São solidários o gozo e lalangue, e resultam derivados o desejo, o discurso e,
inclusive, a linguagem. Primários são lalangue e o gozo, todos os demais são derivados.

O significante não se limita à sua função de representação do sujeito, isto é, o


significante não tem apenas função de mensagem, e sim, também, de gozo.

Como o Um pode passar ao Outro?

Há um nível em que se alinham os termos linguagem, estrutura e inconsciente.


Em contrapartida, lalangue, cuja escrita nos mostra que o artigo não está separado do
substantivo, que a estrutura gramatical mesma está subvertida, não é uma estrutura.
Lalangue não é uma estrutura, mas enquanto sustenta o simbólico, pode escrever-se
como S1, S1, S1, etc. É dizer que está feita de S1 que não chegam a S2.

A passagem da série de lalangue até a estrutura da linguagem inclui o objeto a e


o fantasma.

A partir desse S1 a-estrutural de lalangue, temos dois caminhos: em um se


elabora o saber – estão aí o inconsciente, a estrutura e o discurso – e, no outro, se
encontram o sintoma e lalangue. Trata-se de algo que vai do Um ao Outro na medida
em que o gozo é, primeiramente, gozo do Um, ou seja, do próprio corpo e de seus fora
de. O gozo é gozo do Um, e lalangue, prévia à estrutura, também está feita dele. O
problema é como passar desse Um do gozo e de lalangue ao Outro, quer seja o Outro da
linguagem ou o a do mais-de-gozar.

Há uma oposição entre lalangue como a-estrutural, como um não-sistema, com a


linguagem. O que caracteriza lalangue é que não há um sistema: localiza-se lalangue
como um simbólico especial, ou melhor, que se encontra entre o simbólico e o real,
composta por Uns. É a diferença com a linguagem, que constitui em si mesma um
sistema de oposições e hierarquias, onde há significantes que se opõem, que se
diferenciam, que se combinam e estabelecem leis: as leis do inconsciente, que são a
metáfora e a metonímia, permitem a Lacan dizer que o inconsciente está estruturado do
mesmo modo que uma linguagem.

O primeiro ensino de Lacan, o de seus dez primeiros seminários, celebra a


dominância do Outro. Seu segundo ensino se consagra a articular um Outro e o outro, o
A e o objeto a. O terceiro ensino de Lacan, que chamamos de último, toma como ponto
de partida o singular.

Eis a diferença entre gozo e desejo: o desejo, que foi o termo chave do primeiro
ensino de Lacan, é do Outro. O desejo é uma categoria que não pode sustentar-se sem o
apoio do Outro. Pelo contrário, em todos os esquemas que Lacan nos destila em seu
último ensino, em contraste com o desejo, o gozo é uma categoria que se sustenta no
Um. O gozo diz respeito ao corpo próprio, ao corpo do Um. Problema: como se pode
alcançar esse gozo, como se pode tocar esse gozo do Um e modificá-lo? O gozo exclui
o sentido e por isso podemos considerá-lo opaco. Que o gozo do corpo próprio seja
opaco torna muito mais interessante a psicanálise, pois isso significa que a operação
própria da psicanálise é um forçamento que relaciona o gozo com o sentido para
resolvê-lo.

O significante, e com ele a estrutura da linguagem, se constrói sobre a anulação


e o esvaziamento da substância sonora de lalangue.

PONTUAÇÕES
(Sesarino)
Lalangue são os ecos, as ressonâncias da voz materna marcadas no corpo do
bebê. O inconsciente é um saber-fazer com lalangue. Lalangue são os efeitos, as marcas
de gozo materno que se inscrevem no corpo do bebê fazendo-o corpo gozante e morada
do sujeito que virá a ser. Lalangue é a substância da qual a linguagem e o inconsciente
são feitos, e onde ressoam esses efeitos. A mãe diz mais do que ela quer dizer ao seu
bebê e, em seus ditos, dá o seu amor como dom, porque o seu inconsciente sabe-fazer
com lalangue. O inconsciente materno faz com sua lalangue a lalangue do bebê, o afeta
com os efeitos de seus afetos, marcando no corpo e na alma a linguagem e o discurso.
Lalangue é a substância gozante que inscreve o gozo do Outro-materno no corpo do
bebê, o determina e o faz ser.

Lacan, em 1971, introduziu a noção de lalangue como aquilo que faz trauma e
in-corpora os afetos ao corpo. O encontro do vivente com lalangue introduz o gozo no
organismo, fazendo com que este se perca enquanto organismo e organizando-o como
corpo, tempo que funda um incurável. A partir daí, o ser falante já não poderá mais ser
um corpo, ele passará a ter um corpo, incorporado. O sujeito se define pela fala, e o
corpo, pelo sintoma. A linguagem é feita de lalangue, funda o sujeito e o funda no
Outro. A linguagem nos afeta e produz efeitos. Afeta no corpo, esse reservatório físico
onde a linguagem faz eco, faz sulcos e reverbera. O corpo se torna corpo somente
quando se introduz o simbólico nele. O corpo é feito do significante que inscreve uma
cota de gozo fazendo-o corpo gozante. Não há outro gozo além do gozo do corpo. Só se
sabe que um corpo está vivo porque goza.

COMO SE APRESENTA LALANGUE NA CLÍNICA?


(Paula Pimenta)
Com os autistas, vemos o parlêtre habitado por lalangue, sem poder realizar
uma elucubração de saber (Álvarez, 2020, p. 67), sofrendo, como efeito, do que Laurent
(2014) ressaltou como sendo o “ruído da língua”. O autista encontra-se embaraçado na
passagem de lalangue à letra, para conseguir fazer marca e borda (daí a orientação de
constituir uma neoborda para localizar o gozo). Nas psicoses, vemos o sujeito represado
entre a letra e a linguagem. Um S1 se destacou dentre os uns-entre-outros de lalangue,
mas não se enganchou em um S2 de maneira a promover a inserção em um discurso. Na
clínica da neurose, onde há um discurso constituído, uma ordenação da linguagem por
meio do significante do Nome-do-Pai, vemos o sujeito tendo de se haver com esse fora
do sentido que é lalangue, recorrendo à fantasia para recobrir o gozo e o furo, marcas do
troumatisme da letra. Afinal, com o gozo fora do sentido de lalangue e sua marca de
letra e de acontecimento de corpo, só nos resta saber-fazer. É o que nos mostram os
relatos de passe.

LETRA

(Patrício Álvarez Bayón)

A partir do enxame de S1 de lalangue, um deles alça voo, um que não é qualquer.


Há lalangue como multiplicidades de uns, e um Um que se recorta, que se extrai do um-
entre-outros de lalangue. Essa extração é a condição para que logo haja linguagem, para
que do Um se produza o dois, isto é, que faça cadeia: S1(S1(S1(S1...S2))).

O S1 que se extrai é uma letra que alça voo para que logo se possa passar ao
plano do dois, isto é, o da linguagem.
O Um que alça voo se escreve como letra. Essa é a razão pela qual esse Um não
é qualquer: porque algo da contingência vem a extrair, a recortar, a escrever no corpo
uma letra.

Deste modo, lalangue, a letra e a linguagem – a série, o Um e o dois – se constituem


segundo três tempos lógicos:

 um primeiro tempo de lalangue como enxame de S1, definida como uma a-


estrutura sem sistema nem separação;

 um segundo onde de lalangue se extrai ou alça voo um S 1 que não é qualquer


um;

 e um terceiro tempo onde com isso se elucubra o saber, isto é, o tempo da


linguagem.

Como se extrai a letra de lalangue e como se passa da letra à linguagem?

COMO SE ESCREVE UMA LETRA

Lalangue e a letra não são a mesma coisa.

Não há letra sem lalangue, ou seja, lalangue é a condição para que se escreva
uma letra.

O um-entre-outros é a série infinita de lalangue, da qual pode precipitar-se um


deles que funciona como letra.

Em uma análise, o caminho não vai de lalangue até a linguagem como na


constituição subjetiva, e sim que, em certo sentido, é inverso: da proliferação dos
sentidos dados pelas histórias subjetivas feitas de cadeias significantes inconscientes,
logram extrair-se os S1 de lalangue, e isso produz uma letra que talvez possa constituir-
se como sinthoma.

Lacan, em O Seminário: livro 22: “O que significa o sintoma? É a função do


sintoma, função a entender como seria sua formulação matemática f(x). O que é esse x?
É o que do inconsciente pode traduzir-se por uma letra enquanto que somente na letra a
identidade de sim a sim está isolada de toda qualidade. Do inconsciente todo Um,
enquanto que sustenta o significante em que o inconsciente consiste, todo Um é
suscetível de escrever-se por uma letra.”

A função matemática f(x) designa uma fórmula, por exemplo, a função ao


quadrado: a qualquer número que se coloque no lugar a variável x se lhe aplica a função
ao quadrado, então se no x se localiza o 2, é igual a 4, se localiza-se o 4, é igual a 16,
etc. Na citação acima, a função matemática é a do sintoma, e o x é qualquer um de
lalangue, que se for recortado, pode funcionar como um sintoma. Além do mais, é
importante considerar essa nova forma de chamar o inconsciente: o inconsciente todo
Um, que ressoa com o um-entre-outros, o enxame de lalangue, e também com o que
Miller chamou de inconsciente real.

Desse inconsciente todo Um, qualquer desses Uns é suscetível de escrever-se


como letra. E como se escreve, como precipita um desses S 1 para escrever-se como
letra? Mediante a escritura selvagem do sintoma.

Lacan: “O estranho é que o sintoma opera selvagemente, o que não cessa de


escrever-se no sintoma resulta daí. A repetição do sintoma é esse algo do que acabo de
dizer que selvagemente é escritura.”

O selvagem remete ao gozo, é um gozo o que se escreve recortando-se de


lalangue e, ademais, é um gozo sem Outro.

Deste modo, se o sintoma é a função f(x), e o x é a letra que se escreve


selvagemente, todo Um de lalangue, isto é, qualquer S1, pode escrever-se como letra,
mediante a escritura selvagem do sintoma. E, ao escrever-se, já não será qualquer um, e
sim que será um Um-letra único, um elemento, uma unidade.

Assim, um S1 se recorta do enxame escrevendo-se selvagemente como sintoma,


como aquele destinado a repetir-se, a não cessar de escrever-se, como Lacan define o
necessário. Esse Um que se escreve de modo selvagem adquire a função de letra e, a
partir daí, constitui o necessário do sintoma. Além do mais, essa letra não é definida
somente de modo simbólico e sim também real: ao articulá-la ao sintoma, é um modo de
gozo, na medida em que se repete.
Deste modo, a resposta à pergunta “como pode lalangue precipitar em a letra?”,
é esta: mediante a escritura selvagem do sintoma destinado a repetir-se. E com essa
escritura, com esse recorte, com essa eleição de um S 1 entre outros, se produz também
uma localização.

Na neurose, esta está localizada no sintoma, que é um gozo localizado, e por isso
Lacan o chama modo de gozo, porque se goza repetitivamente de um mesmo modo, tal
como Freud o localizou definindo o sintoma pela compulsão à repetição.

A letra é, então, um tratamento do gozo de lalangue. A letra é também um gozo


– assim como o gozo que injeta lalangue no corpo – porém um gozo localizado. Não
funciona do mesmo modo o gozo de lalangue que o gozo da letra.

Se lalangue é o impacto, a entrada do gozo no corpo, a letra implica uma


localização desse gozo que, em lalangue, estava deslocalizado. Lalangue é o início do
gozo, ao passo que a letra é sua marca, o recorte de um modo singular de gozo. A letra é
marca de gozo e modo de gozo.

É esse justamente o passo que permitirá a passagem de lalangue à linguagem: o


recorte de um S1 sintomático como o que se escreve selvagemente, a letra que marca o
início da repetição, articular-se-á logo ao S2 no que Lacan chama a elucubração de saber
sobre lalangue.

Portanto, podemos dizer que o que se desprende das citações de Lacan


trabalhadas é que há três modos diferentes do Um que se constituem em três tempos
lógicos diferentes, o Um de lalangue, o Um da letra e o Um da linguagem:

 o Um de lalangue é um-entre-outros, enxame indiferenciado, a-estrutural, sem


sistema. Lalangue é diferente da letra, uma é condição da outra. De lalangue se
extrai ou precipita uma letra;

 o Um da letra se escreve, se extrai, se recorta, não é qualquer. É um Um


preferencial, que localiza gozo e que está destinado à compulsão à repetição. É o
um que funda o necessário. É um Um assemântico, sem sentido, que se extrai
sob o modo do sintoma na neurose, e inclusive do sinthoma de um fim de
análise. A letra não produz sentido: sua característica central é que é equívoca,
não fica ligada de um modo fixo a tal ou qual cadeia significante. Nessa medida,
a letra é um S1 como gozo opaco, que rechaça o sentido. Se lalangue é a entrada
de gozo no corpo, a letra é uma marca de gozo que se inscreve como sintoma,
uma localização do gozo, e também um modo de gozar, que inicia a série das
repetições com a lógica do necessário;

 o Um da linguagem é a forma mais conhecida, o que se articula ao dois na


cadeia significante, na elucubração de saber da linguagem. Esse Um em si
mesmo não está no campo da significação, porém, ao articular-se ao S 2, assume
diferentes sentidos. Essa é a diferença entre a letra e a linguagem. O Um que se
articula ao dois da linguagem implica a possibilidade da cadeia significante, a
metáfora e a metonímia, e a significação, a partir da elucubração de saber que o
produz. O Um da linguagem faz laço com o Outro, diferente do Um de lalangue
que, por sua definição, é sem Outro. Com respeito ao Um da letra, só a partir do
tempo lógico onde o S1-letra se articula ao S2 poderemos dizer que o
inconsciente está estruturado como uma linguagem e que há laço com o Outro.

COMO SE FAZ UM FURO

Na medida em que se extrai o Um, que se escreve a letra, também se escreve o


furo. A escritura da letra situa uma marca, uma borda, que delimita um furo.

Desenhar-se a borda do furo no saber, ou seja, no S 2, isso implica que a letra é a


borda mesma. Depois dessa borda, pode construir-se com ela o saber, a cadeia
significante, a estrutura. Mas, primeiro, se escreve a letra produzindo a borda do furo.

A letra não é a impressão primeira, uma vez que o primeiro é o gozo de


lalangue. A letra é segunda a respeito de lalangue, está em um segundo tempo lógico, e
se constitui furando esse gozo, esvaziando-o, extraindo o S1 do conjunto indiferenciado
de uns de lalangue.

Deste modo, a letra não é o que se imprime, e sim o furo, o que esvazia, o que
faz sua borda e deixa uma marca, mas uma marca não no sentido de uma impressão e
sim no sentido de uma cicatriz. É a marca como cicatriz do corte, o umbigo do sonho
freudiano. Por essa razão, a letra funciona como equívoco, como o que perturba o
discurso, como o que faz furo.
A letra que o sintoma escreve selvagemente como S1 fura o enxame de lalalngue
ao delimitar uma borda. É assim como se inscreve o S 1, mas também como se delimita o
furo.

FURO – VAZIO

O vazio é comparado por Lacan com o deserto ou, também, com o espaço: é
uma superfície infinita, sem cortes, sem relevos, sem nada. Pelo contrário, o furo tem
uma borda que o define como tal e o diferencia do vazio.

Para produzir um furo, não deve pensar-se que se trata de um espaço cheio que
se fura ao extrair-lhe algo, ao escavar, ao esburacar, e sim o contrário: para produzi-lo é
necessário constituir uma borda ao redor do vazio, produzindo um furo real. Para
ilustrá-lo, Lacan dá o exemplo da arquitetura: na superfície contínua do deserto,
construir paredes e uma porta para o vazio é um modo de produzir um furo. O vazio não
está delimitado, não está nem dentro nem fora, está em todos os lados. Ao passo que o
furo, para sê-lo, deve ter uma borda que o delimite como tal.

Lacan o ilustra mediante a figura do toro. Em O Seminário: livro 9, define o


conceito de furo como um furo real, que não pode representar-se nem simbólica nem
imaginariamente. Se ao real não falta nada, como pode conceber-se a ideia de um furo
real? Utilizando as figuras do toro e o cross-cap, demonstra como, no registro mesmo
do real, pode conceber-se um furo topológico. Esse furo só pode produzir-se na medida
em que a borda simbólica, que é a letra, é adicionada a ele. Deste modo, podemos falar
de um furo real, delimitado por uma borda simbólica. Essa borda topológica, então, está
localizada entre o simbólico e o real.

ALIENAÇÃO – SEPARAÇÃO

Na operação lógica da separação, se produz a extração do objeto a, a qual


implica outra dimensão do furo: a borda topológica toma outra consistência,
funcionando como borda dos orifícios do corpo, permitindo a rota da pulsão e
constituindo ao corpo imaginário como superfície. Assim, o furo real, delimitado pela
borda topológica, entra na dimensão espacial do corpo imaginário. A borda, neste caso,
situa-se entre o imaginário e o real.
Deste modo, tanto a borda como o furo podem localizar-se em distintos
registros: entre o imaginário e o real se trata da relação entre os orifícios do corpo e a
pulsão. E entre o simbólico e o real se trata da relação entra lalangue, a letra como modo
de gozo, e a linguagem, os quais serão possíveis a partir do conceito de Um.

Há duas dimensões do furo: a borda entre o imaginário e o real, que circunscreve


a rota da pulsão, e a borda entre o simbólico e o real, que marca o limite do simbólico,
expresso no matema S(A barrado).

Fabían Schejtman: “O orifício corporal, que se relaciona com o real pulsional,


compromete, precisamente, a relação com o imaginário do corpo. Enquanto que o outro
é um real que põe em jogo o furo do inconsciente, o simbólico. O furo que está em jogo
ao nível corporal se localiza, diríamos, entre real e imaginário, e o que localizamos
como furo do inconsciente, como reprimido primário, entre real e simbólico.”

Esse furo entre real e simbólico deixa uma marca, que é o umbigo do sonho
freudiano, cicatriz do furo real que fica situado no inconsciente como a letra.

A LETRA E TROUMATISME

Em O Seminário: livro 21, Lacan complexifica a noção de furo real a partir dos
nós. O real só pode ser furado por meio do simbólico, e só a partir dele poderá
constituir-se o enlaçamento do nó. Deste modo, na medida em que o simbólico faz furo,
é possível uma amarração dos três registros.

Como o simbólico produz o furo? A partir do que se chama troumatisme: é o


trauma, irrupção de gozo, que produz um furo no real. Esse troumatisme, furo que se
produz ao nível da estrutura, é um jogo de palavras entre o furo – trou – e o trauma: se
trata do trauma que produz a não-relação sexual. É dizer que o furo real em si mesmo é
a não-relação sexual. E esse furo, como já dito, é produzido como borda simbólica, a
borda que desenha a letra. Assim, retornamos à questão anterior: como se produz a
borda simbólica que fura o real?

Lacan, em O Seminário: livro 21: “Todos sabemos por que todos inventamos um
truque para preencher o buraco no real. Ali onde não há relação sexual, isso produz
troumatisme: um inventa. Um inventa o que pode, é claro. Quando não se é ruim, se
inventa o masoquismo. Tudo o que sabemos é que ‘um’ conota muito bem o gozo, e que
‘zero’ quer dizer ‘não há’, o que falta.”

Então, sobre o zero da não-relação sexual, o Um é o gozo que se recorta, que se


localiza mediante a letra. E com esse furo e esse gozo, um inventa um truque que é um
saber, isto é, cadeias significantes que se sustentam em um fantasma, por exemplo, o
fantasma masoquista, tal como o produziu Sacher Masoch. Temos, assim, o zero da
não-relação, o Um da letra, e o dois da linguagem, que está localizado aqui como
sustentado pelo fantasma masoquista.

Miller: “O troumatisme no sentido de Lacan descobre a incidência de lalangue


no ser falante e, com mais precisão, em seu corpo. O afeto essencial é o que traça
lalangue sobre o corpo.”

Há dois elementos aí: lalangue e o afeto que esta traça sobre o corpo, sua marca.

Em conclusão, o troumatisme consiste na operação de esburacamento do real


que constitui o Um, e também o zero. De que modo? A partir de lalangue como enxame
de S1, se recorta um S1 que produz o escrito. Porém, se colocarmos atenção sobre o
recorte mesmo, vemos que aí se localiza o furo, que é o que Lacan chama troumatisme.
Esse furo, esse zero que recorta o Há Um, o S1 que se escreve, produz uma borda ao
nível da estrutura. Do enxame dos S1, se extrai aquilo que toma valor de trauma. Que
fura e também escreve uma letra.

A letra escreve o zero e o um na contingência do trauma, quer dizer que escreve


o furo e a borda no mesmo ato.

A letra, então, funciona ao mesmo tempo como o furo da repressão primária e


como o que se repete na compulsão à repetição: zero e Um.

Deste modo, o importante da noção de troumatisme é a união que Lacan


estabelece entre a letra, o furo e o que traumatiza. O trauma é o elemento contingente
que marca o corpo, que escreve no corpo a letra de gozo e que, ao mesmo tempo, fura o
real.

Este é o passo que faltava na série: Lacan podia dizer como se escreve
selvagemente o sintoma como letra, como modo de gozo, mas faltava um ponto de
partida, que é o furo. O troumatisme inscreve o zero e o Um, produzindo a borda do
furo e a marca no corpo que é o sintoma.

Assim, aos elementos a que Lacan se referia como lalangue, a letra e a


linguagem, que localiza em termos matemáticos como a série, o Um e o dois, agrega,
agora, o zero.

Este é o acontecimento de corpo que se produz no troumatisme: a inscrição da


letra e sua borda, que instaura a compulsão à repetição do sintoma e a escritura
selvagem do sintoma. Essa inscrição, essa marca que se repete, é um acontecimento de
corpo.

Somente a partir dessa escritura do Um da letra se poderá fazer a passagem ao


dois, formando a cadeia S1-S2. Na citação sobre o troumatisme, é importante a
referência ao masoquismo porque faz alusão ao fantasma: um inventa o que pode [...] o
masoquismo, o qual implica que se constitui a gramática do fantasma como modo de
articulação do gozo, distribuído pela cadeia significante. É dizer que a passagem ao
dois, à cadeia significante, é permitida pelo suporte do fantasma. Deste modo, sobre o
furo e o um que conotam o gozo, sobre o troumatisme, se inventa o fantasma como
recobrimento do gozo e do furo.

Em O Seminário: livro 23, há um capítulo chamado “Do que fura o real”, onde
Lacan insiste com o que fura o real é o simbólico: “Um furo fundamental que provém
do simbólico”. Não esclarece que aspecto do simbólico, se a letra ou o significante, mas
deixa claro que é o reprimido primordialmente, isto é, novamente, o Um. Ademais,
agrega que a função que tem esse Um de furar o real não é outra que a repressão
primária.

Com todos esses elementos, se reformulam os tempos lógicos já citados,


adicionando a eles um quarto elemento, que é o furo:

 um primeiro tempo próprio de lalangue como enxame de S1;

 um segundo tempo onde o S1 se extrai como efeito do troumatisme e produz


uma borda e um furo – o Um da letra e o zero –, isto é, a extração da letra
destinada a repetir-se no sintoma;
 um terceiro tempo onde esse S1 se articula ao S2, produzindo a linguagem. Nesse
terceiro tempo, a linguagem articula o S1 constituindo a invenção do fantasma,
que amarra o Um com o Outro da linguagem.

1 Série Lalangue Enxame indiferenciado de Uns;

2 Um Letra Um localizado, escritura selvagem, borda do furo;

Zero Troumatisme Furo, acontecimento de corpo;

3 Dois Linguagem Estrutura, leis de combinação significante.

A LETRA COMO FURO E O GANCHO CONTRA A LINGUAGEM

Havendo situado o estreito parentesco entre a letra e o furo, podemos localizar


como logra a letra articular-se com a linguagem.

Em O reverso da biopolítica, Eric Laurent avança um passo a mais sobre a letra


e a linguagem. Não só designa a letra como a borda do furo, e sim a designa como o
furo mesmo, no sentido em que a inscrição da letra implica um esvaziamento de gozo
que faz a letra inscrever-se sob o modo de um equívoco. A letra não é igual a si mesma,
implica seu próprio apagamento para inscrever-se como tal e, na medida em que se
inscreve, toma a forma de um equívoco que irá se deslocar na cadeia significante. A
letra apagada, esquecida, é o que permite que se articule à linguagem.

Laurent o diz assim:

“Em Lituraterra, Lacan ainda não fala da escritura de um erro, mas sim da
escritura de um veículo do que circula entre as linhas do dito, não pronunciado. O entre-
linhas é uma das primeiras ilustrações do que só se escreve como furo. A letra, nos diz
Lacan, é litoral [...]. Esse termo, litoral, designa a borda que separa a letra do saber.”

Deste modo, a função da letra de escrever um furo é a modalidade que toma a


letra como borda do saber.
“Lacan deixa para trás a transcrição e a impressão para fazer com que o acento
recaia como enganchamento dos significantes – daí a importância da definição da
escritura como suporte graças ao qual se pensa contra, ou seja, algo ao que os
significantes se engancham. O pensamento, no sentido atual, se situa do lado da
representação, da imagem; enquanto que a escritura, segundo Lacan, indica o que não
tem representação. A escritura se converte em algo que indica o furo, sem imagem e
fora de sentido, em cujas bordas se engancharão representações feitas de um misto entre
imaginário e simbólico. O que engancha o significante não é mais um significante
mestre modulado pela voz, e sim um buraco que, uma vez apanhado em uma anotação,
aparece como ruptura ou obstáculo.”

Deste modo, a letra como borda situa bem a função de designar o furo em si
mesmo, ao modo do furo ao qual se engancharão depois os significantes que farão
cadeia. Isso permite entender como é que a função da letra faz cadeia com o S2,
constituindo a função da linguagem. Na medida em que a letra faz borda e designa o
furo, funciona como o equívoco que permite enganchá-la ao significante. Para isso, é
necessário o esvaziamento que a letra produz, que permite fazer a passagem ao S 2, a
função do gancho contra tal como o designa Laurent.

Assim, a letra não pode conceber-se como a impressão ou inscrição ao modo


derrideano, e sim como o que designa um esvaziamento de gozo, como o que inscreve
um furo e produz uma marca depois de extrair-se do conjunto indiferenciado de
lalangue. Por isso Laurent a designa como um furo, um esquecido, algo que se perde.
Somente na medida em que se produza esse furo será possível sua articulação à
linguagem.

Há uma sincronia entre a inscrição da letra e o troumatismo. À medida que ela se


escreve, também se inscreve o furo. A letra fura o gozo de lalangue, esvaziando-o ao
extrair o S1 do conjunto indiferenciado de Uns, deixando sua marca como cicatriz.
Assim, o Um pode fazer dois, articulando-se com um S2 e compondo uma cadeia. É a
partir desse S1 da letra que a linguagem pode advir, concatenando um S 2 que se encadeia
e promove sentido, compondo a estrutura da linguagem.

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