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Eis a diferença entre gozo e desejo: o desejo, que foi o termo chave do primeiro
ensino de Lacan, é do Outro. O desejo é uma categoria que não pode sustentar-se sem o
apoio do Outro. Pelo contrário, em todos os esquemas que Lacan nos destila em seu
último ensino, em contraste com o desejo, o gozo é uma categoria que se sustenta no
Um. O gozo diz respeito ao corpo próprio, ao corpo do Um. Problema: como se pode
alcançar esse gozo, como se pode tocar esse gozo do Um e modificá-lo? O gozo exclui
o sentido e por isso podemos considerá-lo opaco. Que o gozo do corpo próprio seja
opaco torna muito mais interessante a psicanálise, pois isso significa que a operação
própria da psicanálise é um forçamento que relaciona o gozo com o sentido para
resolvê-lo.
PONTUAÇÕES
(Sesarino)
Lalangue são os ecos, as ressonâncias da voz materna marcadas no corpo do
bebê. O inconsciente é um saber-fazer com lalangue. Lalangue são os efeitos, as marcas
de gozo materno que se inscrevem no corpo do bebê fazendo-o corpo gozante e morada
do sujeito que virá a ser. Lalangue é a substância da qual a linguagem e o inconsciente
são feitos, e onde ressoam esses efeitos. A mãe diz mais do que ela quer dizer ao seu
bebê e, em seus ditos, dá o seu amor como dom, porque o seu inconsciente sabe-fazer
com lalangue. O inconsciente materno faz com sua lalangue a lalangue do bebê, o afeta
com os efeitos de seus afetos, marcando no corpo e na alma a linguagem e o discurso.
Lalangue é a substância gozante que inscreve o gozo do Outro-materno no corpo do
bebê, o determina e o faz ser.
Lacan, em 1971, introduziu a noção de lalangue como aquilo que faz trauma e
in-corpora os afetos ao corpo. O encontro do vivente com lalangue introduz o gozo no
organismo, fazendo com que este se perca enquanto organismo e organizando-o como
corpo, tempo que funda um incurável. A partir daí, o ser falante já não poderá mais ser
um corpo, ele passará a ter um corpo, incorporado. O sujeito se define pela fala, e o
corpo, pelo sintoma. A linguagem é feita de lalangue, funda o sujeito e o funda no
Outro. A linguagem nos afeta e produz efeitos. Afeta no corpo, esse reservatório físico
onde a linguagem faz eco, faz sulcos e reverbera. O corpo se torna corpo somente
quando se introduz o simbólico nele. O corpo é feito do significante que inscreve uma
cota de gozo fazendo-o corpo gozante. Não há outro gozo além do gozo do corpo. Só se
sabe que um corpo está vivo porque goza.
LETRA
O S1 que se extrai é uma letra que alça voo para que logo se possa passar ao
plano do dois, isto é, o da linguagem.
O Um que alça voo se escreve como letra. Essa é a razão pela qual esse Um não
é qualquer: porque algo da contingência vem a extrair, a recortar, a escrever no corpo
uma letra.
Não há letra sem lalangue, ou seja, lalangue é a condição para que se escreva
uma letra.
Na neurose, esta está localizada no sintoma, que é um gozo localizado, e por isso
Lacan o chama modo de gozo, porque se goza repetitivamente de um mesmo modo, tal
como Freud o localizou definindo o sintoma pela compulsão à repetição.
Deste modo, a letra não é o que se imprime, e sim o furo, o que esvazia, o que
faz sua borda e deixa uma marca, mas uma marca não no sentido de uma impressão e
sim no sentido de uma cicatriz. É a marca como cicatriz do corte, o umbigo do sonho
freudiano. Por essa razão, a letra funciona como equívoco, como o que perturba o
discurso, como o que faz furo.
A letra que o sintoma escreve selvagemente como S1 fura o enxame de lalalngue
ao delimitar uma borda. É assim como se inscreve o S 1, mas também como se delimita o
furo.
FURO – VAZIO
O vazio é comparado por Lacan com o deserto ou, também, com o espaço: é
uma superfície infinita, sem cortes, sem relevos, sem nada. Pelo contrário, o furo tem
uma borda que o define como tal e o diferencia do vazio.
Para produzir um furo, não deve pensar-se que se trata de um espaço cheio que
se fura ao extrair-lhe algo, ao escavar, ao esburacar, e sim o contrário: para produzi-lo é
necessário constituir uma borda ao redor do vazio, produzindo um furo real. Para
ilustrá-lo, Lacan dá o exemplo da arquitetura: na superfície contínua do deserto,
construir paredes e uma porta para o vazio é um modo de produzir um furo. O vazio não
está delimitado, não está nem dentro nem fora, está em todos os lados. Ao passo que o
furo, para sê-lo, deve ter uma borda que o delimite como tal.
ALIENAÇÃO – SEPARAÇÃO
Esse furo entre real e simbólico deixa uma marca, que é o umbigo do sonho
freudiano, cicatriz do furo real que fica situado no inconsciente como a letra.
A LETRA E TROUMATISME
Em O Seminário: livro 21, Lacan complexifica a noção de furo real a partir dos
nós. O real só pode ser furado por meio do simbólico, e só a partir dele poderá
constituir-se o enlaçamento do nó. Deste modo, na medida em que o simbólico faz furo,
é possível uma amarração dos três registros.
Lacan, em O Seminário: livro 21: “Todos sabemos por que todos inventamos um
truque para preencher o buraco no real. Ali onde não há relação sexual, isso produz
troumatisme: um inventa. Um inventa o que pode, é claro. Quando não se é ruim, se
inventa o masoquismo. Tudo o que sabemos é que ‘um’ conota muito bem o gozo, e que
‘zero’ quer dizer ‘não há’, o que falta.”
Há dois elementos aí: lalangue e o afeto que esta traça sobre o corpo, sua marca.
Este é o passo que faltava na série: Lacan podia dizer como se escreve
selvagemente o sintoma como letra, como modo de gozo, mas faltava um ponto de
partida, que é o furo. O troumatisme inscreve o zero e o Um, produzindo a borda do
furo e a marca no corpo que é o sintoma.
Em O Seminário: livro 23, há um capítulo chamado “Do que fura o real”, onde
Lacan insiste com o que fura o real é o simbólico: “Um furo fundamental que provém
do simbólico”. Não esclarece que aspecto do simbólico, se a letra ou o significante, mas
deixa claro que é o reprimido primordialmente, isto é, novamente, o Um. Ademais,
agrega que a função que tem esse Um de furar o real não é outra que a repressão
primária.
“Em Lituraterra, Lacan ainda não fala da escritura de um erro, mas sim da
escritura de um veículo do que circula entre as linhas do dito, não pronunciado. O entre-
linhas é uma das primeiras ilustrações do que só se escreve como furo. A letra, nos diz
Lacan, é litoral [...]. Esse termo, litoral, designa a borda que separa a letra do saber.”
Deste modo, a letra como borda situa bem a função de designar o furo em si
mesmo, ao modo do furo ao qual se engancharão depois os significantes que farão
cadeia. Isso permite entender como é que a função da letra faz cadeia com o S2,
constituindo a função da linguagem. Na medida em que a letra faz borda e designa o
furo, funciona como o equívoco que permite enganchá-la ao significante. Para isso, é
necessário o esvaziamento que a letra produz, que permite fazer a passagem ao S 2, a
função do gancho contra tal como o designa Laurent.