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“Um apólogo”, de Machado de Assis, discute, entre outras questões, o des (valor) de
algumas profissões no contexto social do século XIX. Assim, agulha, costureira e batedores são
personagens que personificam trabalhadores depreciados, enquanto linha, baronesa e
imperador são exaltados e reconhecidos socialmente. Esse modus operandi, além de ser o
mote do texto machadiano, também, configura o jeito humano de ser e de construir das
sociedades ditas civilizadas: os trabalhadores que exercem as funções essenciais são
desvalorizados e invisibilizados pela lógica cruel do mercado neoliberal que se apropria dos
frutos desses trabalhos à revelia de quem os realiza. Desse modo, é evidente que a história dos
chamados “homo sapiens” é pródiga em negar, de forma violenta, o lugar do outro a fim de
garantir os próprios privilégios.
Para Franz Boas, considerado o Pai da Antropologia Americana, a falta de alteridade resulta
do não conhecer. Quando o outro não é enxergado, nega-se o seu direito à participação na
coletividade e, consequentemente, o respeito e a sua validação como sujeito. É o que ocorre
com os trabalhadores desvalorizados em suas funções cuja importância a sociedade, de modo
geral, desconhece. Quem se lembra de reconhecer a essencialidade de ascensoristas, diaristas,
catadores de lixo, garis, policiais, professores, enfermeiros, operários de chão de fábrica,
soldados que marcham à frente das guerras hodiernas, quando comparados com engenheiros,
médicos, advogados, juízes, grandes empresários e poderosos chefes de Estado?
Nesse contexto, então, normaliza-se a invisibilidade de trabalhadores que mantêm a base
de funcionamento das sociedades contemporâneas. Desse modo, a exemplo da agulha do
texto machadiano, esses indivíduos vão abrindo caminho para que “linhas ordinárias” – o
mercado neoliberal e suas ramificações – sejam beneficiadas e mantenham seu status quo.
Nesse sentido, no que concerne à teoria dos quatro capitais, do sociólogo francês, Pierre
Bourdieu, pode-se dizer que falta a esses sujeitos invisíveis e menosprezados, salários
robustos, relações sociais capitalizáveis, diploma e prestígio que conferem status, visibilidade e
valorização na coletividade.
É fato, portanto, que na história do “homo sapiens”, é normal e aceitável socialmente que
os batedores, ainda que à frente dos imperadores, sejam invisíveis e desvalorizados. Tal lógica
é corroborada pela negação da alteridade e do respeito aos trabalhadores essenciais aos quais
faltam os capitais necessários ao reconhecimento e à inserção no restrito mercado neoliberal.
Como bem finaliza o professor de melancolia, de Um apólogo, “não há justiça na distribuição
de recompensas”.