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RESENHA: The Organic Food Philosophy: A Qualitative Exploration of the Practices,

Values, and Beliefs of Dutch Organic Consumers Within a Cultural–Historical Frame

Gabriel Duque Coelho Novaes1

Resenha de: SCHÖSLER, Hanna, DE BOER, Joop & BOERSMA, Jan J., The Organic Food
Philosophy: A Qualitative Exploration of the Practices, Values, and Beliefs of Dutch Organic
Consumers Within a Cultural–Historical Frame, Journal of Agricultural and Environmental
Ethics vol. 26, pp. 439-460, 2013.

Introdução

A International Federation of Organic Agriculture Movements (IFOAM), ao longo de


muitas décadas, tem buscado afirmar que Agricultura Orgânica (AO) é o modelo de produção
agrícola capaz de produzir alimentos em quantidade suficiente para o consumo humano,
apresentando-se isentos de contaminantes e pesticidas agroquímicos, com base em normas
básicas que garantem a interação dinâmica e sustentável entre solos, plantas, animais, pessoas,
ecossistemas e meio-ambiente. Do ponto de vista da organização internacional, as normas
básicas apresentadas sobre a Agricultura Orgânica (AO) consideram o impacto social e ecológico
mais amplo dentro de um sistema produtivo agroalimentar, enquanto modelo de produção capaz
de ofertar alimentos produzidos de métodos sustentáveis com alto valor nutritivo e qualidades
vitais para o consumo na sociedade (IFOAM, 1998)2.

Antes da IFOAM ganhar visibilidade como organização internacional capaz de fomentar


um conjunto de regulamentos oficiais e normas básicas que buscam garantir a qualidade dos
alimentos ofertados na produção da Agricultura Orgânica (AO). Pesquisadores apontam que
muitas ideias fundamentadas historicamente no processo institucional da AO, surgem como
práticas e valores construídos por “movimentos contra-hegemônicos” em várias experimentações
e mobilizações em todo o mundo, sincronicamente e intelectualmente independentes entre si.
Além da AO, modos de agricultura natural, biológica, biodinâmica, sustentável, ecológica,

1
Mestrando em Ciências Sociais - PPGCSO/UFJF - e-mail: gabriel.d.coelho@gmail.com
2
IFOAM. General Assembly em Mar Del Plata. Argentina, Nov. 1998. Disponível em:
<https://ciorganicos.com.br/wp-content/uploads/2013/09/IFOAM_alimentosorganicos.pdf>
regenerativa, alternativa, apresentaram-se como um conjunto de respostas alternativas para o
modelo da “agricultura moderna-industrial” que se desenvolve a partir das grandes
transformações e revoluções sociais, econômicas e ambientais que aconteceram e evoluíram
principalmente na modernidade no final do século XIX (ROCHA, et. al. 2002; ALVES;
SANTOS; AZEVEDO, 2012).

É importante dizer que a origem do conceito que conhecemos atualmente como


“Agricultura Orgânica” (AO) corresponde à reunião de idéias, valores e práticas que estão
enraizadas principalmente nos mundos da língua inglesa e alemã. Em um primeiro momento,
levando em consideração as descobertas da ciência ocidental agrícola/biológica, as ascendências
de sistemas, técnicas e práticas agrícolas e culturais do Extremo Oriente3 e o conjunto de
interpretações expressas pelos “movimentos reformistas” do Ocidente no início do século XX
(VOGT, 2007)4.

Neste texto, apresento o artigo The Organic Food Philosophy: A Qualitative Exploration
of the Practices, Values, and Beliefs of Dutch Organic Consumers Within a Cultural–Historical
Frame de Schösler, De Boer e Boersma (2013)5 que reúne informações sobre o desenvolvimento
do pensamento histórico e ocidental que está enraizado ao longo do consumo de alimentos da
agricultura orgânica na sociedade. O artigo tem como ponto de partida algumas visões
defendidas pelos “movimentos reformistas”, particularmente, o Lebensreform, conhecido como
um grande movimento alemão pela “reforma da vida” que buscou reprovar em certo momento
histórico, a crescente industrialização, urbanização e o avanço tecnológico na era da
modernidade.

Os autores buscam identificar algumas convicções filosóficas dos movimentos


reformistas que permaneceram através do consumo de alimentos orgânicos na sociedade
contemporânea. Para isto, o estudo apresenta dois níveis (macrossocial e microssocial) de
análise: reflexões críticas sobre o desenvolvimento histórico e cultural de longo prazo na
3
A obra de Albert Howard (1873 - 1947), pesquisador inglês, que, escreveu sobre as técnicas agrícolas de
compostagem e adubação orgânica na Índia que estão reunidas no seu livro An Agricultural Testament (1940) é vista
como um ponto de partida para os estudos sobre a agricultura orgânica.
4
O artigo de Vogt que conta a origem da agricultura orgânica está disponível em: LOCKERETZ, W. Organic
Farming. An International History (Org.). VOGT, G. The Origins of Organic Farmings. CABI International, North
American, 2007. p. 9 - 30.
5
Preciso ressaltar que neste texto traduzi algumas frases e palavras citadas do artigo, em busca de uma melhor
compreensão para o leitor de língua portuguesa.
sociedade moderna; e perspectivas acerca dos valores, práticas e crenças de consumidores de
alimentos orgânicos nos dias de hoje em duas cidades - urbana e rural - holandesas
(SCHÖSLER; DE BOER; BOERSMA, 2013).

Antes de expor minhas observações a respeito do artigo, apresento em seguida um pouco


sobre os autores e suas respectivas áreas de pesquisa, enfatizando a interdisciplinaridade presente
no tema da produção e consumo de alimentos na agricultura orgânica.

Sobre os autores

Hanna Schösler é PhD em estudos ambientais e pesquisadora da Bayreuth of University,


localizada na Alemanha, tendo obtido seu doutorado na Vrije Universiteit (VU) em Amsterdam,
(2008 - 2013). O foco dos estudos de Schösler estão relacionados à alimentação, saúde e cultura,
investigando tendências alimentares e desenvolvendo como questão a “sustentabilidade
alimentar” a partir de uma perspectiva sociocultural, os principais temas que a autora trabalha
são: o vegetarianismo, o consumo de alimentos orgânicos e as culturas slow foods6. Vale destacar
que Schösler busca trabalhar com metodologias qualitativas e quantitativas em suas pesquisas,
além de combinar diferentes teorias de valores humanos, motivações e mudanças
comportamentais.

Joop de Boer é doutor em psicologia pela Amsterdam of University e está aposentado,


mas continua atuando como pesquisador no Institute for Environmental Studies in Amsterdam.
De Boer atuou como secretário entre 1995 a 2000 na Research School for Socio-Economic and
Natural Sciences of the Environment (SENSE), vinculado à Royal Netherlands Academy of
Sciences (KNAW). Ao longo de sua carreira coordenou equipes multidisciplinares enquanto
trabalhou em diversos temas: conservação da energia, sustentabilidade, alimentação, mudanças
climáticas e biotecnologias e boa parte das suas pesquisas buscam relacionar perspectivas de
mudanças ambientais e culturais e as implicações humanas.

Jan Boersema é biólogo, teólogo e especialista em etologia pela Groningen of University.


Desde 1994, atua como pesquisador e relaciona temas das ciências ambientais com a filosofia e

6
Movimento que atua como rede por meio de comunidades urbanas e rurais nas quais os seus participantes
mobilizam atividades, organiza eventos, circuitos de comercialização e campanhas em torno da alimentação, valores
e ideais que questionam padrões de consumo universal como fast food e junk food e defendem culturas alimentares
tradicionais, regionais e sazonais.
religiosidade na Leiden of University, além disso, também atuou como Secretary General of the
Council for the Environment in Netherlands (1999 - 2001). Em 2002, tornou-se professor na
Vrije of University (VU) em Amsterdam, sediado no Institute for Environmental Studies. De
modo geral, suas pesquisas estão ligadas com a promoção da sustentabilidade, natureza, cultura,
visões do mundo e religiões.

É importante destacar que os três autores são de diferentes áreas do conhecimento e


nenhum está diretamente ligado com uma formação acadêmica dentro das ciências sociais.
Entretanto, suas linhas de pesquisas se encontram diante de investigações culturais pertinentes ao
campo de investigação antropológica. Nota-se que a grande contribuição apresentado no artigo
está justamente em sua combinação multidisciplinar de teorias e escolas de pensamento,
colaborando no desenvolvimento de um ponto de vista “indissociável” sobre a alimentação
enquanto procura evidenciar percepções “ambientais”, “psicológicas” e “filosóficas” a partir dos
“valores espirituais” assegurados e difundidos pelo consumo de alimentos orgânicos na
sociedade contemporânea.

Sobre o artigo

O artigo The Organic Food Philosophy: A Qualitative Exploration of the Practices,


Values, and Beliefs of Dutch Organic Consumers Within a Cultural–Historical Frame de
Schösler, De Boer e Boersma (2013) é dividido em três seções: na primeira os autores buscam
arquitetar o fundo cultural dos alimentos orgânicos, considerando a perspectiva histórica e
simbólica construída pelos movimentos reformistas do ocidente; na segunda os autores retratam
o consumo de alimentos orgânicos e os respectivos valores presente na contemporaneidade, a
partir dos resultados que são identificados pelas entrevistas com consumidores holandeses de
alimentos orgânicos; e na terceira procuram discutir sobre o contexto da produção de alimentos
orgânicos, tendo em vista o debate emergente que diz respeito a transição de sistemas
alimentares mais sustentáveis em diferentes escalas no mundo.

Schölesler, De Boer e Boersema (2013, p.442-443) procuram construir uma


"significância teórica” que entende o alimento orgânico como tema propriamente filosófico. Para
isto, os autores colocam como objetivo investigar práticas sociais que refletem aquilo que eles
definem como uma tendência de “espiritualidade contemporânea", ao mesmo tempo em que
procuram compreender um conjunto de valores, prática e crenças no contexto cultural e histórico
que esteve presente no passado e que permanece nos dias de hoje numa espécie de “filosofia dos
alimentos orgânicos”.

Nesta perspectiva, os autores procuram evidenciar o consumo de alimentos orgânicos


como um processo social de “transição” e “transformação” da sociedade contemporânea em
busca de realizações e estilos de vida que procuram reproduzir sistemas alimentares mais
sustentáveis através de mudanças culturais na vida social. Dentro disso, como já destacado, o
consumo de alimentos orgânicos é um fenômeno social historicamente relacionado com algumas
“mudanças culturais” que foram constituídas em transformações na sociedade moderna no final
do século XIX e início do século XX. Para esta questão, os autores procuram destacar no artigo
que os “movimentos reformistas do ocidente” influenciaram e produziram um "espírito
coletivo”, que implicou, principalmente, na conduta moral, nos estilos de vida e,
consequentemente, nas escolhas alimentares dos indivíduos ocidentais (SCHÖLESLER; DE
BOER; BOERSEMA, 2013).

Partindo de uma perspectiva histórica e cultural sobre a formação do pensamento


ocidental na modernidade, Schölesler, De Boer e Boersema (2013) compreendem que o ato de
“consumir alimentos orgânicos” teve origem como uma construção conceitual através de
movimentos reformistas que buscaram valorizar a “alimentação natural”, enquanto uma ideia
construída a partir do desenvolvimento da racionalidade moderna-ocidental, uma vez relacionada
com a produção simbólica e o entendimento sobre as categorias de “natural” e/ou “natureza” a
partir do século XIX. Os autores procuram basear seus argumentos através das ideias do filósofo
canadense Charles Taylor, principalmente, apresentadas em sua obra Sources of the Self the
making of the Modern Identity publicada em 1989. Embora Taylor (1989) considere a cultura
ocidental pluralista e também, fragmentada em muitos aspectos na modernidade, duas
concepções divergentes se destacaram e fundamentaram ao mesmo tempo a formação do
“pensamento ocidental moderno”. Assim como, ao conjunto de ideias e constatações sociais que
compuseram questões que emergem diante do debate sobre a “sustentabilidade” na era moderna,
sendo inspiradas no Iluminismo e Romantismo. Na concepção de Taylor (1989) o Iluminismo em
maior grau de racionalização rompe com o pensamento místico da natureza, permite que os
humanos reformulam a ideia de “natureza”, assim como, os próprios “humanos”, tornando
fenômenos em objetos de utilidade. Em certo momento, a objetificação da realidade do
pensamento iluminista permitiu acreditar que a “natureza” e as “coisas naturais” podem por regra
ser manipuladas e controladas em boa medida a serviço da vida humana. De outra parte, o
pensamento elaborado pelo Romantismo como movimento intelectual, espiritual e artístico
alimentou no interior da modernidade, a busca pelo desejo de liberdade corporal. Onde o humano
busque libertar princípios éticos, morais e estéticos, a partir da absorção de conhecimento e
subjetivismo histórico, até refletir e desempenhar o sentimento de “comunhão com a natureza”,
em que a “natureza” deixa de ser apenas um ambiente externo, passando a ser em boa medida,
uma própria extensão da existência do “eu”. Nas palavras de Taylor (1989, p. 384), a ideia é de
que a natureza, habitando dentro e fora de nós, o homem reproduz uma visão sobre a
humanidade, considerando as partes de um “todo” que se integra em uma ordem maior de seres
vivos que sustenta laços de solidariedade, nutre e desenvolve a “teia da vida”, habitando seres
humanos e suas comunidades (apud SCHÖLESLER; DE BOER; BOERSEMA, 2013, p. 443).

De modo geral, como reação à instrumentalização da natureza, o naturalismo que se


reproduz na cultura ocidental-moderna, desde o início buscou abrir caminhos a partir da
“criatividade, intuição e expressividade como meio de reunificar seus laços com a natureza”
(SCHÖLESLER; DE BOER; BOERSEMA, 2013, p. 443). E foi assim que os movimentos
reformistas como Lebensreform enraizado na Alemanha surgiram de acordo com princípios
éticos e morais, buscando a reformar “hábitos da vida” e adotando um estilo de vida mais
“natural”. Trazendo aspectos como praticar movimentos físicos ao ar livre, cuidar dos membros
de suas comunidades com medicinas ancestrais, tradicionais e espirituais, realizar ritos de
abstinência de substâncias físicas e químicas, como carnes e bebidas (álcool, café, açúcar, tabaco,
especiarias e etc.) e assim promover o vegetarianismo. Além da busca por reformar metodologias
educacionais, preservar a vida dos animais, cultuar os elementos da natureza, resgatar práticas
culturais tradicionais e regionais, entre outras características dotadas de uma concepção “natural”
da vida prática.

Sem dúvida, o “alternativismo alimentar” é reconhecido como uma porta de entrada


fundamental para os movimentos reformistas, tomando como base suas idéias naturalistas e
ecologistas, assim como, seus estilos de vida sustentado por uma ética ambiental e também pela
conduta moral e prática espiritual de seus integrantes7. Schölesler, De Boer e Boersema (2013)
reconhecem que a filosofia do consumo de alimentos orgânicos também está associada de
alguma forma com uma filosofia New Age, tendo em vista expressões culturais, cosmovisões
espirituais e esotéricas influenciadas por reformistas como Rudolf Steiner (1861-1925),
conhecido por ser o fundador da Antroposofia e da pedagogia Waldorf na Alemanha e Áustria 8.

Observamos que o consumo de alimentos orgânicos enquanto uma filosofia de vida é


encarada pelos movimentos pioneiros como busca por uma forma distinta de vida, estabelecendo
uma orientação ecológica na modernidade. Para afirmar esta tese, Schölesler, De Boer e
Boersema (2013) procuram na seção seguinte comparar os princípios e valores reformistas do
início com a filosofia alimentar dos consumidores de alimentos orgânicos na contemporaneidade.
Para tanto, foram entrevistadas 33 pessoas por diferentes vias (lojas especializadas em Amsterdã
e Groningen) atribuídas em subcategorias: consumidores orgânicos; clubes de culinária (Slow
Food) e mercados regulares (convencionais)9.

Das 33 pessoas entrevistadas, os autores selecionaram falas de 9 mulheres e 4 homens


para compor o artigo. Levando em conta o nível de escolarização, boa parte dos entrevistados
eram formados em universidades, mas não eram propriamente considerados como “ricos”. Já que
cerca da metade dos entrevistados informaram serem trabalhadores autônomos, alguns
relacionados com atividades artísticas e funções criativas. Porém, apresentaram rotinas flexíveis,
visto que podiam visitar mercados de produtores de alimentos orgânicos durante o dia e ainda
preparar refeições ao meio dia.

7
Os autores destacam em menor grau, outros movimentos reformistas como o American Natural Foods Moviments,
que, por sua vez, só alcançou grandes repercussões nos anos 60, através da publicação de Silent Sprint de Rachel
Carson (1962) que tornou um ponto de virada e conexão para os movimentos de alimentos orgânicos e
ambientalistas. Trazendo um conjunto de novos argumentos científicos e morais contra a agricultura industrial
apadrinhada pela Revolução Verde no século XX.
8
Steiner, jornalista, filósofo e agricultor, impulsionou uma extensa produção de estudos em diversas áreas e saberes
da vida humana. Além de integrar uma cosmologia da agricultura - conhecida como agricultura biodinâmica - que
conectou ideias sobre a medicina e terapias curativas, pedagogia e educação, arquitetura, arte, psicologia, religião e
outras práticas de integração material e espiritual. Para saber mais: OLIVEIRA, Francine; MACHADO, Cristina;
FILHO, Ourides; SOLIANI, Valdeni. Ciência e Espiritualidade em ação: o legado de Rudolf Steiner. South
American Journal of basic education, technical and technological. SAJEBTT, Rio Branco, UFAC. v.7, n.1, 2020.
edição: jan/abril, p. 583-606.
9
Vale ressaltar que para os autores compreendem que o consumo de alimentos orgânicos na Holanda é
relativamente baixo, seguindo os dados, apenas 2,3% dos alimentos orgânicos são vendidos em lojas especializadas
no país.
As entrevistas foram conduzidas conforme a “teoria fundamentada” mobilizada pela
socióloga Kathy Charmaz (2006)10. Ou seja, os autores procuraram trabalhar com um método
baseado na “perspectiva vivida” dos entrevistados, em que, posteriormente, os entrevistadores
buscam construir uma teoria fundada nos “dados” rastreados e gerados pelos próprios
interlocutores. Desta forma, os pesquisadores renunciam a geração de hipóteses preconcebidas e
despercebidas que estão sujeitas ao formular uma questão de pesquisa, definitivamente, ao longo
de uma investigação social (apud. SCHÖLESLER; DE BOER; BOERSEMA, 2013, p.446).

Levando em consideração os sentimentos dos participantes, os dados deram origem a três


temas de discussão: “conexão com a natureza”; “noção da consciência”; e “valor da pureza”.

A “conexão com a natureza” refere-se a idéia filosófica de “fazer o que parece natural”.
Os entrevistados apresentam que têm em mente a escolha de alimentos orgânicos e sazonais,
enquanto um alimento produzido em um ambiente acolhedor e familiar, integrado com a
natureza, incluindo em si um forte vínculo simbólico e ligação corporal com o alimento
orgânico, enquanto um processo de constituição interna na vida dos próprios consumidores.
Dando por exemplo, a consumidora que prefere comer repolho no inverno, como forma de
combinar com o momento da estação climática; ou mesmo, o consumidor praticante de ioga que
dá valor aos alimentos sazonais e orgânicos produzidos naquele clima e região próximo do
ambiente que se vive, pois acredita que ao consumir o alimento orgânico preferencialmente
próximo do seu corpo “use her feeling and intuition to access this source of knowledge”
SHÖLESLER; DE BOER; BOERSEMA, 2013, p. 447). O consumo de alimentos orgânicos
enquanto uma fórmula de conexão com a natureza “interior”, estimula pensar em outro
princípio, conhecido como a “alimentação intuitiva”. Para alguns consumidores de alimentos
orgânicos, a constituição física e interior do corpo humano, é resultado tanto do clima, convívio e
ambiente, como também de certos tipos de alimentos que se consomem ao longo da vida.
Portanto, torna-se essencialmente “natural” não só comer aquilo que está próximo, mas também
se alimentar de forma intuitiva, nutrindo o corpo de forma suficiente de acordo com sensações e
comportamentos morais.

10
Charmaz, K. (2006). Constructing grounded theory: A practical guide through qualitative analysis. London:
Sage Publications Ltd.
Seguindo a percepção dos entrevistados, a “noção de consciência” tem a ver com o fato
de cozinhar e preparar o próprio alimento, incluindo principalmente ingredientes orgânicos,
enquanto um exercício de conscientização da vida, sensação de bem-estar e preenchimento de
felicidade cotidiana. A imersão na atividade de cozinhar e preparar comidas com ingredientes e
alimentos orgânicos se reflete em experiências e emoções vivenciadas pelos comedores de
orgânicos, sobretudo, através do envolvimento e de ambientes acolhedores e intensos, muitas
vezes, despertados através da memória com amigos e familiares. No caso de alguns
consumidores de alimentos orgânicos, é comum ter adotado uma dieta vegetariana, a partir de
uma experiência negativa, o que pode ser, por exemplo, uma lembrança negativa relacionado na
infância, ou mesmo, momentos testemunhados como na caça e no abatimento de animais
domesticados em seio familiar. Dessa forma, muitos escolhem comer um alimento orgânico
como modo de ajustar a consciência, ao ingerir e constituir internamente seu próprio organismo.

O “valor da pureza” está relacionado com o modo de decisão do que é “bom para comer”,
o que na maioria das vezes é convertido por meio de valores pessoais e julgamentos sobre a
alimentação. Nesta perspectiva, os consumidores holandeses de alimentos orgânicos destacaram
que é fundamental “saber que está comendo”, diferentemente, do consumo de alimentos
produzidos na agricultura industrial, que na maioria dos casos, contém produtos, comidas
superficiais e ultra processadas em múltiplas escalas de produção, chegando ao ponto de não se
saber ao certo a origem e substâncias de determinados alimentos. Os elementos de pureza
também são conhecidos tanto em um sentido material do alimento, sendo aquele simples, básico,
fresco, nutritivo e cru, como também na dimensão imaterial, ou seja, simbólica, espiritual e
transcendente que sustenta os princípios morais e éticos da filosofia de alimentos orgânicos.
Tratando-se da confluência material e imaterial sobre a pureza do alimento, os consumidores
holandeses de alimentos orgânicos também consideram características atribuídas de
“sensualidade”, considerando a constituição física de cada alimento, como na textura, aparência
e originalidade, presente no sabor e cheiro apreciados, consumidos e degustados.

Na última sessão, Schölesler, De Boer e Boersema (2013, p.453) reconhecem que a


filosofia dos alimentos orgânicos é um fenômeno cultural relevante para a construção da
“sustentabilidade”, relatando de forma histórica, processos sociais que buscam unificar
elementos da humanidade com a natureza como “transcendência” a partir da alimentação.
Principalmente, como prática alimentar e espiritual que busca manter a conexão com a natureza,
a consciência e a pureza do “corpo saudável”, em virtude de ainda ser orientado no decorrer de
valores universais, iluministas e românticos, construídos ao longo da espiritualidade moderna11.

Em boa parte do artigo, considerando o contexto dos consumidores holandeses, os


autores buscaram evidenciar que o consumo de alimentos orgânicos acontece não só como uma
reação da vida contemporânea, mas também como preocupação com questões socioambientais
entre hábitos da vida cotidiana. Nesta perspectiva, a produção e o consumo de alimentos
orgânicos reforçam moralmente valores filosóficos e estilos de vida, dando importância aos
desejos individuais que buscam harmonia e equilíbrio diante de coisas simbolicamente naturais.
Já que Schölesler, De Boer e Boersema (2013, p. 456) apontam que o “comportamento
individual” pode influenciar, em menor e/ou maior grau, processos de transições sociais e
transformações ecológicas, desenvolvendo valores, práticas e crenças que estão associados em
“sistemas alimentares sustentáveis”.

Considerações finais

De forma geral, Schölesler, De Boer e Boersema (2013) em dois níveis de análise,


considerando o desenvolvimento cultural ocidental-moderna e as perspectivas a partir de valores,
práticas e crenças de consumidores orgânicos situados em duas cidades holandesas, conseguiram
destacar quatro dimensões apresentadas no artigo: cultivar o valor a conexão com a natureza; a
consciência e bem-estar na alimentação; transparecer aspectos morais que estão mistificados nas
escolhas dos alimentos; e apoiar normas sociais que refletem valores de temperança na
atualidade.

De acordo com esta interpretação, nota-se que as ideias pioneiras dos movimentos
reformistas constituem na atualidade um conjunto de princípios éticos e estéticos que foram
incluídos, historicamente, na produção cultural e simbólica de alimentos produzidos e
fundamentados com base na Agricultura Orgânica (AO). Considerando o caso dos consumidores
holandeses, a tradição da filosofia de alimentos orgânicos, busca sustentar diferentes escalas de

11
Este argumento é baseado também em estudos sobre práticas religiosas, para saber mais: HYLAND, M. E.,
WHEELER, P., KAMBLE, S., & MASTERS, K. S. (2010). A sense of special connection, self- transcendent
values and a common factor for religious and non-religious spirituality. Archive for the Psychology of
Religion/Archiv für Religionspsychologie, 32, 293–326.
organização, desde a especificidade da produção até as escolhas individuais localmente situadas.
Nesta lógica, apesar da convencionalização e demais contradições presentes nos mercados de
alimentos orgânicos, o que tudo indica é que boa parte dos consumidores orgânicos podem
refletir hoje em dia sobre suas escolhas alimentares e adotar estilos de vida que condiz com
tendências filosóficas, ecológicas e políticas que têm suas origens no passado, mas ainda
permanecem no espírito social pulsante na história da humanidade.

Referências bibliográficas

ALVES, A. C. de O. SANTOS, A. L. dos S. AZEVEDO, R. M. M. C. Agricultura


orgânica no Brasil: sua trajetória para a certificação compulsória. Revista Brasileira de
Agroecologia. 7(2): 19-27, 2012.

Charmaz, K. Constructing grounded theory: A practical guide through qualitative


analysis. London: Sage Publications Ltd. 2006

HYLAND, M. E., WHEELER, P., KAMBLE, S., & MASTERS, K. S. (2010). A sense of
special connection, self- transcendent values and a common factor for religious and
non-religious spirituality. Archive for the Psychology of Religion/Archiv für
Religionspsychologie, 32, 293–326.

IFOAM. General Assembly em Mar Del Plata. Argentina, Nov. 1998. Disponível em:
<https://ciorganicos.com.br/wp-content/uploads/2013/09/IFOAM_alimentosorganicos.pdf>

OLIVEIRA, Francine; MACHADO, Cristina; FILHO, Ourides; SOLIANI, Valdeni.


Ciência e Espiritualidade em ação: o legado de Rudolf Steiner. South American Journal of
basic education, technical and technological. SAJEBTT, Rio Branco, UFAC. v.7, n.1, 2020.
edição: jan/abril, p. 583-606.

ROCHA, Luciana Thibau. Agricultura Orgânica: Quando o passado é futuro. BNDES


Setorial, Rio de Janeiro, n. 15, p. 3-34, mar. 2002.

SCHÖSLER, Hanna, DE BOER, Joop & BOERSMA, Jan J., The Organic Food
Philosophy: A Qualitative Exploration of the Practices, Values, and Beliefs of Dutch Organic
Consumers Within a Cultural–Historical Frame, Journal of Agricultural and Environmental
Ethics vol. 26, pp. 439-460, 2013.

LOCKERETZ, W. Organic Farming. An International History (Org.). VOGT, G. The


Origins of Organic Farmings. CABI International, North American, 2007. p. 9 - 30.

Taylor, C. Sources of the self: The making of the modern identity. Cambridge: Harvard
University. Press. 1989.

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