Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
1
Deve-se notar que até hoje os estudos que foram empreendidos pelos antropólogos britânicos nos anos 50-60, são
rememorados como parte fundamental e genealógica de novas abordagens para ciências sociais na
contemporaneidade, especialmente, nos estudos sobre o “desenvolvimento”, “antropologia política”, “antropologia
do desenvolvimento”, ou como destaca Sardan, para uma "sócio-antropologia dos espaços públicos africanos”.
Consulte em: SARDAN, Jean-Pierre Olivier. Da nova antropologia do desenvolvimento para a
sócio-antropologia dos espaços públicos africanos. Tradução: FAURE, Xavier. Raízes, v.35, n.2, jul-dez, 2015.
Neste trabalho, procuro destacar três autores - Max Gluckman (1911-1975), Edmund
Leach (1910-1975) e Victor Turner (1920-1983) - da mesma geração, mas que construíram
diferentes trajetórias de pesquisa, sem deixarem de estar conectados por um mesmo prisma da
tradição científica: a perspectiva funcional-estruturalista. Tendo o cunho analítico, ressalto os
aportes da “antropologia social britânica” para repensar como esta clássica geração de
antropólogos, marcaram em especial os estudos etnográficos. Mais do que isso, descreveram
processos e ações simbólicas, eventos complexos, regulares e contraditórios, analisaram
situações e ritos sociais. Bem como, contemplaram como fulcros da observação
antropossociológica, o comportamento dos sujeitos e suas inter-relações envolvidas na
performance coletiva.
Buscando estruturar a discussão dos autores - por razões didáticas - o trabalho está
organizado em três partes: na primeira busco discorrer sobre a noção de “situação social” como
um subsídio para o pensamento antropológico representado por Max Gluckman; na segunda
procuro reportar as críticas do “neo-estruturalismo” de Edmund Leach para pensar o
comportamento dos sujeitos nas “mudanças sociais” entre as “estruturas” e “rituais” como
expressões da “ação simbólica”; e na terceiro destaco as contribuições de Victor Turner a
respeito das ideias de “símbolo ritual” e “drama social” na vida coletiva.
Gluckman parte do ponto que os eventos sociais são matérias primas por excelência da
investigação antropológica, na medida em que permite analisar constantes processos que
2
Vale lembrar que a primeira parte deste ensaio foi publicada como capítulo em uma coletânea sobre os Zulus, em
African political systems de 1940, logo após a realização do trabalho de campo na Zululândia entre 1936 e 1938.
Embora a monografia completa só saiu dezoito anos depois (KUPER, 1978).
3
Fundada em 1937 na Rodésia do Norte, onde na época era um protetorado colonial britânico, localizado no
centro-sul da África. A Rhodes Livingston Institute surge com uma “missão dupla”, por um lado para ser um centro
de estudos “independente” ao poder e controle do estado colonial, tendo objetivo de promover pesquisas ligados à
antropologia social, em prol do conhecimento científico relacionados ao domínio colonial, por outro, também tinha
o propósito de gerar informações para as autoridades e administradores coloniais, em busca de favorecer e operar
condições mais “harmoniosas” do domínio colonial (CREHAN, 1997). Para saber mais: CREHAN, Kate. The
Fractured Community: Landscapes of Power and Gender in Rural Zambia. Berkeley, Calif: University of
California Press, c1997 1997. http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft0779n6dt/
refletem diferentes partes, visiveis e invisiveis, da estrutura social. Em busca de fórmulas
sociológicas, Gluckman procurou associar e constituir o conjunto das relações “tribais” de
parentescos e suas instituições organizacionais, políticas, econômicas, religiosas e outros afins
culturais observados a partir das “situações possíveis". Tendo em consideração as
inter-determinações atribuídas pelo conjunto de papéis sociais vinculados e recorrentes na
sociabilidade.
Sob esta perspectiva, entende-se que as contradições do sistema social são estabelecidas
pelos diferentes valores na estrutura compartilhada na Zululândia moderna. Para tamanha
complexidade, Gluckman em Rituais de rebelião no sudeste da África (2011[1952]), trabalho
onde buscou analisar os rituais e cerimônias agrícolas não só de Zululândia, mas também dos
Bantos do Sudeste, Suazilândia e Moçambique (TARDELLI, 2019). Complementa que “todo
sistema social é um campo de tensões, cheio de ambivalências, cooperações e lutas
contrastantes” (GLUCKMAN, 2011, p.24). Deste modo, a “estrutura social” para Gluckman, não
era o grande motivo de revolta e causador do conflito instaurado na vida política africana, mas a
fórmula em si que constitui o “caráter paradoxal do conflito”. O que corresponde à busca pelas
posições de poder e a disputa de autoridade entre os próprios grupos opositores da situação
colonial (TARDELLI, 2019, p.273).
Mesmo que a “coesão social” não seja um conceito trabalhado de forma sistemática por
Gluckman em suas análises, certamente, é um pressuposto tendente em suas afirmações sobre os
processos de continuidade e descontinuidade da ordem social. De modo paradigmático,
Gluckman defendeu que os povos zulus e suas partes heterogêneas buscavam estabelecer certa
coesão social, com base no interesse comum, segundo qual se tem um “único sistema econômico
e político, onde coexistem múltiplos conflitos inconciliáveis” (GLUCKMAN, 1987, p. 290).
4
Além de DaMatta (1983), Kuper (1978), também destaca algumas influências de Lévi-Strauss na obra de Leach.
Especialmente, no modo de construir combinações e analisar seus estudos entre tantos povos. Uma vez que, o
mestre francês viveu e trabalhou em curtos períodos entre muitos povos, como os Nambiquara, Bororo, Kachin, etc.
Vale lembrar que apesar de Leach ser inglês, foi no estruturalismo francês como um
modo de pensamento da antropologia simbólica de Lévi-Strauss, que ele processou grandes
inspirações. Por outro lado, entre os rituais e mitologias - considerando as repercussões das
análises estruturalistas de Lévi-Strauss - Leach se dispõe, fundamentalmente, relacionar a visão
racional e empírica. Dando ênfase a dimensão “vivida” dos indivíduos e suas ações, enquanto
experiência social relacionada não só com as culturas particulares, mas, principalmente, com os
sentimentos nativos e as lógicas pela qual diferentes símbolos se conectam (LEACH, 1978)5.
Deste modo, o “neo-estruturalismo” de Leach consiste em recuperar a ideia da ação social e
recompor os pensamentos simbólicos dos indivíduos em coletividade, baseado, principalmente,
nos aspectos semânticos e pragmáticos da cultura e comunicação presente na ação simbólica.
5
LEACH, Edmund R. Cultura e comunicação: a lógica pela qual os símbolos estão ligados. Jorge Zahar Ed. 1978.
p. 37-42.
político de cada modelo de sociedade. Como consequência disso, Leach defende que os
indivíduos em coletividade são interdependentes entre diversas culturas e aldeias, pertencendo a
um mesmo “sistema social”. Dado que oscilavam e equiparavam em diferentes processos e
linguagens culturais, adequando-os em determinadas atividades concretas e informais,
temporariamente, de acordo com as “mudanças estruturais” (LEACH, 1996, p.73).
Sob a perspectiva de Leach (1966, 1978, 1983, 1996), a ação ritual deve ser entendida
como uma fórmula de afirmação e troca simbólica da ordem social. Em um primeiro momento,
mesmo que os “rituais” pormenores que sejam representam um incidente costumeiro, histórico e
ou simplesmente “atos técnicos” sem explicações precedentes para os indivíduos. É por meio
destes processos que a estrutura social consegue conectar suas partes, na qualidade de um
sistema total de comunicação interpessoal entre trocas simbólicas e relações sociais. Desse
modo, são estas expressões simbólicas que dão subsídios à antropologia social, pois é justamente
na tentativa de “descobrir e traduzir para o nosso próprio jargão técnico aquilo que está
simbolizado ou representado” em tal fórmula de interpretação ritualizada, que se encontra a
principal tarefa da investigação antropológica (LEACH, 1996, p.75. grifos do autor).
Por este ângulo, a antropologia de Leach não se contenta em gerar só o modelo estrutural
de uma cultura particular, mas no ato de interpretar como as estruturas particulares e suas partes,
por meio do sistema de referências simbólicas definem seus próprios modos de vida. Isto quer
6
Em um dos seus ensaios teóricos, Leach busca classificar os tipos de comportamento que foram traduzidas por mim
como “técnico racional, comunicativo e ato de fé”. Leach entende que o etnólogo poderá caracterizar e localizar em
toda espécie humana esses tipos de comportamento, levando em conta o “ritual” como um “comportamento
coletivo” que ocasionalmente se encontra de forma particular aos membros de uma cultura singular. Em Leach é
possível encontrar um diálogo forte entre a antropologia comportamental, psicologia social e/ou a psicanálise Para
mais: LEACH, Edmund R. Ritualization in Man. Philosophical Transaction of the Royal Society, series B, W 772.
Vol. 251, 1966. pp. 403-408.
dizer que, a tarefa do antropólogo para Leach consiste em traduzir as atividades dos indivíduos
enquanto atividades simbolizadas que se chocam e comunicam determinadas relações
socialmente consideradas na “ação ritual”.
Por outro ponto de vista, nas próximas linhas, procuro avançar um pouco mais na
“simbolização” das ações, enquanto um modelo de propulsão teatral, bem como, operacional da
vida pública.
7
Cavalcanti (2013) reconhece a relevância da obra de Turner para o desenvolvimento da antropologia no Brasil.
Visto que inspirou grandes nomes das ciências sociais brasileiras, como Roberto DaMatta, Yvonne Maggie, Julio
Cezar Melatti, entre outros. A autora destaca três livros que foram traduzidos para o português que representaram tal
dimensão: O processo ritual (1974); Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu (2005) e Drama, campos e
metáforas (2008). Ver: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Sinder, Valter e Lage, Giselle Carino
VICTOR TURNER E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL. DUAS VISÕES. ENTREVISTAS COM ROBERTO
DAMATTA E YVONNE MAGGIE. A revisão e a edição das duas entrevistas foi realizada por Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti. 1. Sociologia & Antropologia [online]. 2013, v. 3, n. 6 [Acessado 27 Maio 2021], pp.
339-378. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752013v361>. ISSN 2238-3875.
Assim como Edmund Leach, Victor Turner compreende os rituais como processos que
operam de maneiras bem ambíguas e contraditórias, mas que apreendem a complexidade dos
sistemas sociais observados. Visto que prevalecem seus interesses nos processos e nas formas de
intermediação, intensamente, entre os modos de vida, símbolos culturais e suas significações a
partir dos sistemas de ação ritual. Marcando assim, as críticas modernas frente a uma abordagem
antropológica estritamente estruturalista, mobilizada apenas por meio de padronizações e
totalidades (CAVALCANTI, 2013a).
Segundo Cavalcanti (2013a), Turner também ficou celebrado por empreender diversas
análises simbólicas, a partir da sua “etnografia dos rituais”, assim consagrada por ele, através de
fecundos insight teóricos acerca das simbolizações rituais expostos, especificamente, em “Os
símbolos no ritual Ndembu”, publicado em 1967 em seu livro Floresta de símbolos: aspectos do
ritual Ndembu. Para tanto, os símbolos que foram analisados por Turner, correspondiam a
"objetos, atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais” sempre localizadas em uma
“situação ritual” (TURNER, 2005, p. 49).
Na sua tese de doutorado Schism and continuity in an African society: a study of Ndembu
village life (defendida em 1957), Turner apresenta pela primeira vez os rituais dos povos
Ndembos. Neste trabalho, seu foco de interesse maior começa a sombrear entre as ideias do
conceito de “drama social”, em torno da “estrutura cultural dos rituais Ndembos” (Cavalcanti,
2013, p.411). Analisando uma série de ocasiões durante seu trabalho de campo entre brigas de
facções, violações, ações repressivas e desmembramentos nas aldeias que de forma geral, podem
ser entendidas como conflitos de interesse político na arena pública (TARDELLI, 2019). Assim,
começou a detectar que os grupos sociais operam a partir de lógicas simbólicas que serviam para
reparar e reintegrar os mesmos grupos sociais em diferentes situações rotineiras. Tendo em vista,
a constituição de “formas de processos”, designadas como erupções concebidas pelo “drama
social” (TURNER, 1972, p. 92).
De acordo com Cavalcanti (2013a, p. 416), ao longo das situações conflituosas que
Turner observou no entorno da vida social dos Ndembos, compreendeu que os sujeitos operam a
“dramatização” em quatro as etapas sequenciais: “crise” enquanto um reconhecimento do
problema manifestado no cotidiano; “ampliação da crise” processo que os atores diretamente
ligados a crise começam acionar seus pares; “regeneração” momento em que outros atores
começam a pipocar soluções e apontar possíveis caminhos para a resolução; e o “rearranjo”
como a etapa triunfal que corresponde aos esforços anteriores mobilizados pelos agentes, da
mesma forma que busca redefinir posições organizadas em torno do novos ordenamentos sociais.
Sob esta perspectiva, o "símbolo" pode ser uma coisa, ação e/ou qualquer coisa que se
pode extrair significado e referência para um ritual ou, propriamente outra coisa explorada entre
os processos observados. A partir da complexidade de fórmulas simbolizadas, Turner (2005)
procurou caracterizar seus campos semânticos no decorrer das suas estruturas e propriedades,
chamando atenção para o fato de que os aspectos significativos dos símbolos correspondem às
expressões emocionais, organizacionais e políticas do próprio campo ritual e estrutural, ao
mesmo tempo em que unificam os processos ritualizados da sociedade. Segundo o autor, os
símbolos rituais podem descrever as estruturas e as propriedades a partir de três circunstâncias
aprofundadas por ele: “condensação”, “unificação de significados díspares" e a polarização de
significados” (TURNER, 2005, p. 58-59). Nesta lógica, os processos rituais analisados por
Turner enfatizaram não só suas formas propriamente ritualísticas, mas também as razões
operatórias de acordo com o sistema de significados estruturais.
8
TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca, Londres: Cornell
Univ. Press, 1974.
9
Propositalmente em latim, para distinguir da ideia de comunidade, enquanto “vida comum ” de acordo com uma
territorialidade, já que a noção communitas destaca apenas as relações sociais propriamente ditas.
condenem vínculos circunstanciais, eminentemente, ritualizados por aqueles no processo liminar.
De modo geral, considerando um lado “anti-estrutura” das sociedades humanas, Turner
reconhece que os sujeitos se relacionam em um jogo ambivalente “dentro” e “fora” da estrutura
social. Não há como negar que este processo é fundamental para o desenvolvimento dialético da
própria estrutura, já que os sujeitos acabam sendo submetidos através de um “laço humano
essencial e genérico sem o qual não poderia haver sociedade” (TURNER, 1974, p. 119).
Turner (1974, p. 120) reconhece que o processo dialético está presente na estrutura das
sociedades humanas. Justamente marcada por indivíduos e suas diferentes gerações que
compõem os espaços sociais públicos, processos de passagem, crises, amadurecimento e
rearranjos enquanto fases de agregação, transformação e rompimento provisórios da ordem
social. Além disso, o antropólogo chega a mobilizar as noções de estrutura x communitas, para
interpretar as modernas sociedades ocidentais (TURNER, 1974). Com fundamento nisso, não
podemos deixar de considerar, conforme Turner, os “hippies”, artistas, profetas, assim como
outros movimentos e estilos de vida alternativos e também “contra-hegemônicos” que emergem
a fim de desafiar as condições estruturais e únicas da organização social.
Considerações Finais
Referências bibliográficas
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Sinder, Valter e Lage, Giselle Carino.
Victor Turner e a antropologia no Brasil. Duas visões. Entrevista com Roberto DaMatta e
Yvonne Maggie. A revisão e a edição das duas entrevistas foi realizada por Maria Laura Viveiros
de Castro Cavalcanti. 1. Sociologia & Antropologia [online]. 2013, v. 3, n. 6 [Acessado 27 Maio
2021], p. 339-378. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752013v361>. ISSN
2238-3875.
LEACH, Edmund R. Cabelo Mágico. In: Roberto DaMatta (Org.). Antropologia. São
Paulo: Editora Ática, 1983, pp. 139-169
TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society.
Ithaca, Londres: Cornell Univ. Press, 1974.
TURNER, Victor. A floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu Niterói: Ed. UFF,
2005.