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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS


Teoria Antropológica I
Professor: Luzimar Paulo Pereira

REPENSANDO A SITUAÇÃO SOCIAL, AÇÃO E SÍMBOLO RITUAL NA


ANTROPOLOGIA BRITÂNICA: OS REFORÇOS DE MAX GLUCKMAN, EDMUND
LEACH E VICTOR TURNER PARA OS ESTUDOS ETNOGRÁFICOS

Gabriel Duque Coelho Novaes

Introdução

A antropologia social britânica dos anos 1950-1960 é marcada pelas inovações


metodológicas que foram mobilizadas para analisar e acompanhar as novas realidades sociais,
especialmente, através das mudanças no contexto moderno, econômico e político ligado às
conotações coloniais nas sociedades africanas. Naquele período, a “etnologia africanista” -
ligado aos estudos empíricos de longo prazo - confronta com novas temáticas de pesquisa
cercada por atores de “mundo sociais diferentes” que estavam conectados diretamente à situação
colonial (SARDAN, 2015)1. As pesquisas etnográficas tradicionais sobre organização social,
parentesco, rituais, mitos, circulação de mercadorias e etc, também encararam os processos de
urbanização, transformações nas relações de trabalho, migrações, conflitos, diferenças tribais,
facções políticas e muitas outras questões modernizantes. Nota-se que devido aos temas
provocados, é evidente pensar que a antropologia daquele momento, está intimamente
relacionada, e, talvez, compactuada ou não, com o colonialismo (KUPER, 1978). No entanto, é
um fato que a antropologia ao acompanhar os interesses colonialistas estabelecidos por meio das
“relações de poder”, consegue engrenar inovações nas práticas de pesquisas etnográficas,
considerando a dimensão privilegiada e diferenciada do conhecimento antropológico
(FELDMAN-BIANCO, 1987; TARDELLI, 2019).

1
Deve-se notar que até hoje os estudos que foram empreendidos pelos antropólogos britânicos nos anos 50-60, são
rememorados como parte fundamental e genealógica de novas abordagens para ciências sociais na
contemporaneidade, especialmente, nos estudos sobre o “desenvolvimento”, “antropologia política”, “antropologia
do desenvolvimento”, ou como destaca Sardan, para uma "sócio-antropologia dos espaços públicos africanos”.
Consulte em: SARDAN, Jean-Pierre Olivier. Da nova antropologia do desenvolvimento para a
sócio-antropologia dos espaços públicos africanos. Tradução: FAURE, Xavier. Raízes, v.35, n.2, jul-dez, 2015.
Neste trabalho, procuro destacar três autores - Max Gluckman (1911-1975), Edmund
Leach (1910-1975) e Victor Turner (1920-1983) - da mesma geração, mas que construíram
diferentes trajetórias de pesquisa, sem deixarem de estar conectados por um mesmo prisma da
tradição científica: a perspectiva funcional-estruturalista. Tendo o cunho analítico, ressalto os
aportes da “antropologia social britânica” para repensar como esta clássica geração de
antropólogos, marcaram em especial os estudos etnográficos. Mais do que isso, descreveram
processos e ações simbólicas, eventos complexos, regulares e contraditórios, analisaram
situações e ritos sociais. Bem como, contemplaram como fulcros da observação
antropossociológica, o comportamento dos sujeitos e suas inter-relações envolvidas na
performance coletiva.

Buscando estruturar a discussão dos autores - por razões didáticas - o trabalho está
organizado em três partes: na primeira busco discorrer sobre a noção de “situação social” como
um subsídio para o pensamento antropológico representado por Max Gluckman; na segunda
procuro reportar as críticas do “neo-estruturalismo” de Edmund Leach para pensar o
comportamento dos sujeitos nas “mudanças sociais” entre as “estruturas” e “rituais” como
expressões da “ação simbólica”; e na terceiro destaco as contribuições de Victor Turner a
respeito das ideias de “símbolo ritual” e “drama social” na vida coletiva.

Sobre a situação social de Max Gluckman

Gluckman é um grande herdeiro da antropologia estrutural, principalmente, das idéias


funcionalistas-estruturais da antropologia social britânica. Estudou em Oxford, onde teve como
influência os pensamentos de Radcliffe-Brown e Evans Pritchard - que foi seu orientador de
doutorado entre 1936 a 1938 (KUPER, 1978). Além de marcar presença nos seminários
promovidos por Malinowski que eram dedicados à pesquisa de campo na London School of
Economics. Desde então, Gluckman (juntamente com Leach) tornou-se um dos intelectuais mais
ressaltados daquilo que ficou conhecido como a terceira geração da antropologia inglesa
(FELDMAN-BIANCO, 1987, p. 25).
Na obra clássica, Análise de uma situação social na Zululândia moderna - publicado pela
primeira vez em 19582 - Gluckman aprimorou um conjunto analítico de métodos que serviram
para o desenvolvimento de pesquisas que aproximam as perspectivas historiográficas e
antropológicas sobre os estudos de colonialismo e mudanças sociais (TARDELLI, 2019).
Especialmente, entre os anos de 1950 a 1960, nas chamadas “sociedades complexas” pelos seus
discípulos e parceiros na Rhodes Livingston Institute (RLI)3, assim como, no consagrado
Departamento de Antropologia de Manchester (FELDMAN-BIANCO, 1987, p.26).

Interessado em analisar os conflitos do mundo colonial e como as relações entre


colonizadores e zulus (brancos e negros) instituídas modificaram os processos da vida social,
Gluckman empregou a noção de “situação social” para compreender o fluxo das coisas
acontecendo naquele período. As “situações sociais” são entendidas por ele como eventos
interligados que envolvem os seres humanos em processos sociais, enquanto ações e interações
que fazem da realidade algo que está conectado a um sistema social. Gluckman entende que ao
descrever os processos coletivos, o observador consegue perceber e agregar “regularidades”,
reconhecidas a partir dos papéis sociais no sistema que se repetem e ainda, são capazes de serem
recorrentes no funcionamento da estrutura social.

Para reforçar esta afirmação, segundo o autor:

Uma situação social é o comportamento, em algumas ocasiões, de


indivíduos como membros de uma comunidade, analisado e comparado com seu
comportamento em outras ocasiões. Desta forma, a análise revela o sistema de
relações subjacente entre a estrutura social da comunidade, as partes da estrutura
social, o meio ambiente físico e a vida fisiológica dos membros da comunidade
(GLUCKMAN, 1987, p.238)

Gluckman parte do ponto que os eventos sociais são matérias primas por excelência da
investigação antropológica, na medida em que permite analisar constantes processos que

2
Vale lembrar que a primeira parte deste ensaio foi publicada como capítulo em uma coletânea sobre os Zulus, em
African political systems de 1940, logo após a realização do trabalho de campo na Zululândia entre 1936 e 1938.
Embora a monografia completa só saiu dezoito anos depois (KUPER, 1978).
3
Fundada em 1937 na Rodésia do Norte, onde na época era um protetorado colonial britânico, localizado no
centro-sul da África. A Rhodes Livingston Institute surge com uma “missão dupla”, por um lado para ser um centro
de estudos “independente” ao poder e controle do estado colonial, tendo objetivo de promover pesquisas ligados à
antropologia social, em prol do conhecimento científico relacionados ao domínio colonial, por outro, também tinha
o propósito de gerar informações para as autoridades e administradores coloniais, em busca de favorecer e operar
condições mais “harmoniosas” do domínio colonial (CREHAN, 1997). Para saber mais: CREHAN, Kate. The
Fractured Community: Landscapes of Power and Gender in Rural Zambia. Berkeley, Calif: University of
California Press, c1997 1997. http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft0779n6dt/
refletem diferentes partes, visiveis e invisiveis, da estrutura social. Em busca de fórmulas
sociológicas, Gluckman procurou associar e constituir o conjunto das relações “tribais” de
parentescos e suas instituições organizacionais, políticas, econômicas, religiosas e outros afins
culturais observados a partir das “situações possíveis". Tendo em consideração as
inter-determinações atribuídas pelo conjunto de papéis sociais vinculados e recorrentes na
sociabilidade.

A partir da cerimônia de inauguração de uma ponte na zona rural de Zululândia,


Gluckman toma nota das inter-relações entre os zulus e brancos envolvidos em um mesmo
sistema social (FELDMAN-BIANCO, 1987, p.31). Para ilustrar a complexidade de
acontecimentos no evento, Gluckman começa identificar uma série de personagens entre
brancos, zulus, autoridades nativas e representantes (príncipes e demais comissários-chefes),
administradores governamentais (missionários, secretários e engenheiros), policiais,
comerciantes e outros tantos trabalhadores e empregados. Além de apresentar suas características
físicas, diferenciar os trajes e demais posturas, o antropólogo detalha os lugares e as distâncias
percorridas por ele na companhia desses tantos personagens. Gluckman como antropólogo,
assume a condição de está presente entre os “dois mundos” (brancos e negros), tendo por hora,
relações amigáveis, cordiais e até de cooperação em busca de estabelecer e atuar por meio das
ordinárias normas da organização social (GLUCKMAN, 1987, p.252).

Ao descrever seu itinerário em pequenos detalhes, intermediando as pessoas e as saídas


com quem esteve, Gluckman estabelece uma proeminente análise teórica capaz de delinear o
"equilíbrio temporário”, enquanto uma “unidade funcional”, ainda que contraditória na estrutura
social moderna da Zululândia. Considerando as “dimensões tribais”, Gluckman defende que
apesar de existir o conflito inerente e simbólico entre diferentes grupos de cor, "concretamente
divididos e opostos em muitos aspectos”. A “situação presente” fez com que os indivíduos
estivessem forçados “a interatuar em esferas de interesse comum” (KUPER, 1978, p.173).

Apesar das oposições segmentares trabalhando em prol de um objetivo comum - a


inauguração da ponte - permitiram que diferentes grupos tribais e coloniais pudessem se
comunicar e interagir, em nenhum momento as relações desiguais e hierárquicas do poder dos
brancos deixaram de prevalecer (TARDELLI, 2019). No entanto, Gluckman busca em sua
análise delinear a “fórmula das relações”, isto é, o funcionamento da estrutura social em termos
de complexidade, que estão às vezes em “oposição entre si ou unidos em muitas relações de
interesse” (GLUCKMAN, 1987, p.259).

Sob esta perspectiva, entende-se que as contradições do sistema social são estabelecidas
pelos diferentes valores na estrutura compartilhada na Zululândia moderna. Para tamanha
complexidade, Gluckman em Rituais de rebelião no sudeste da África (2011[1952]), trabalho
onde buscou analisar os rituais e cerimônias agrícolas não só de Zululândia, mas também dos
Bantos do Sudeste, Suazilândia e Moçambique (TARDELLI, 2019). Complementa que “todo
sistema social é um campo de tensões, cheio de ambivalências, cooperações e lutas
contrastantes” (GLUCKMAN, 2011, p.24). Deste modo, a “estrutura social” para Gluckman, não
era o grande motivo de revolta e causador do conflito instaurado na vida política africana, mas a
fórmula em si que constitui o “caráter paradoxal do conflito”. O que corresponde à busca pelas
posições de poder e a disputa de autoridade entre os próprios grupos opositores da situação
colonial (TARDELLI, 2019, p.273).

Se podemos chegar a um argumento final de Gluckman (2011) sobre as “situações


sociais” e os “rituais de rebelião” desde uma mesma proporção, é que as análises das cerimônias
africanas não revelaram diretamente as regras homogêneas da estrutura social daquelas
sociedades humanas. Embora seja justamente a partir das inter-relações instauradas no “conflito”
que as diferentes partes tornam as instituições sociais duradouras. Neste sentido, as “situações
sociais” podem ser consideradas como rituais que compõem a estrutura social - gerada pela
própria perspectiva do antropólogo ao longo de suas análises - enquanto transparecem os
conflitos e a cooperação dos sistemas políticos (GLUCKMAN, 2011, p.30).

Mesmo que a “coesão social” não seja um conceito trabalhado de forma sistemática por
Gluckman em suas análises, certamente, é um pressuposto tendente em suas afirmações sobre os
processos de continuidade e descontinuidade da ordem social. De modo paradigmático,
Gluckman defendeu que os povos zulus e suas partes heterogêneas buscavam estabelecer certa
coesão social, com base no interesse comum, segundo qual se tem um “único sistema econômico
e político, onde coexistem múltiplos conflitos inconciliáveis” (GLUCKMAN, 1987, p. 290).

Naquele período, a abordagem funcional-estruturalista não se conteve em só apresentar as


regularidades ritualizadas e compulsivas de um eterno "equilíbrio moderno”. Visto que o campo
das narrativas antropológicas operava em profundas disputas interpretativas e intelectuais, a
partir dos antropólogos que começaram desvendar e aprofundar as problemáticas sociais,
enquanto relações simbólicas, funcionalistas e contraditórias. Nas próximas linhas busco destacar
algumas destas outras aberturas que ficaram mais fortes e iminentes à luz das abordagens
etnográficas.

Estrutura e ação ritual como estratégia política em Edmund Leach

Leach é um antropólogo de genuína originalidade, assim como Gluckman, é uma figura


fundamental na antropologia moderna e estrutural inglesa. Na primeira fase da sua vida
profissional, graduou-se como bacharel em Matemática e Ciências Mecânicas em Cambridge
(1932) e posteriormente, passou um longo período no Oriente, sobretudo, na China em missão
colonial. Ao retornar para Inglaterra, decide então mudar de área, tornando-se um antropólogo
social formado na London School of Economics (DAMATTA, 1983). Em 1939, durante a
Segunda Guerra Mundial, fez uma viagem até as montanhas do norte da Birmânia para estudar
os montanheses Kachin, e lá serviu ao Exército da Birmânia entre os anos de 1939 até 1945. Na
condição de antropólogo militar, além dos privilégios de cidadão britânico diante das grandes
explorações no mundo, ao invés de ficar em um único lugar, pode circular e situar por uma série
de lugares entre os vales e altiplanos da região (DAMATTA, 1983, p.18).

DaMatta (1983) sublinha o conjunto da bibliografia e regiões etnográficas de Leach.


Diferente dos tradicionais antropólogos que focalizam e acabam transformando-se em
“especialistas” nas determinadas culturas e sociedades onde desenvolvem seus trabalhos. Os
trabalhos de Leach se destacam em virtude do seu trânsito entre tantas sociedades e
diversificadas culturas. O que lhe fez se tornar um autor de referência para uma abordagem
etnológica e representada entre os antropólogos modernos. Já que ao se aproximar dos nativos
em diferentes situações de conflito, tratou-se em desenvolver uma “visão parcial” e ainda mais
sofisticada das sociedades humanas no dinamismo-cotidiano (DAMATTA, 1983). Assim sendo,
Leach “não tem sua sociedade”, mas sua “liberdade”, como trampolim que possibilitou-lhe
transitar e opinar em diferentes áreas da antropologia social (DAMATTA, 1983, p.19)4.

4
Além de DaMatta (1983), Kuper (1978), também destaca algumas influências de Lévi-Strauss na obra de Leach.
Especialmente, no modo de construir combinações e analisar seus estudos entre tantos povos. Uma vez que, o
mestre francês viveu e trabalhou em curtos períodos entre muitos povos, como os Nambiquara, Bororo, Kachin, etc.
Vale lembrar que apesar de Leach ser inglês, foi no estruturalismo francês como um
modo de pensamento da antropologia simbólica de Lévi-Strauss, que ele processou grandes
inspirações. Por outro lado, entre os rituais e mitologias - considerando as repercussões das
análises estruturalistas de Lévi-Strauss - Leach se dispõe, fundamentalmente, relacionar a visão
racional e empírica. Dando ênfase a dimensão “vivida” dos indivíduos e suas ações, enquanto
experiência social relacionada não só com as culturas particulares, mas, principalmente, com os
sentimentos nativos e as lógicas pela qual diferentes símbolos se conectam (LEACH, 1978)5.
Deste modo, o “neo-estruturalismo” de Leach consiste em recuperar a ideia da ação social e
recompor os pensamentos simbólicos dos indivíduos em coletividade, baseado, principalmente,
nos aspectos semânticos e pragmáticos da cultura e comunicação presente na ação simbólica.

Em 1957 publicou a sua tese de doutorado, Sistemas Políticos da Alta Birmânia: um


estudo da estrutura social Kachin que se tornou um clássico da literatura antropológica. Neste
trabalho, buscou questionar a noção ortodoxa de "equilíbrio social estrutural" presente no
imaginário antropológico/estruturalista daquele período. Leach (1996, p.69) entende que as
“sociedades reais não podem jamais estar em equilíbrio”, para ele, a realidade empírica, ou
melhor, a vida social nativa, é contraditória e bem mais ambígua do que podemos imaginar.
Assim dizendo, diferente dos modelos estruturais e inteligíveis que são criados em termos por
alguns tradicionais antropólogos com maior intensidade. Não é à toa que Kuper (1978, p.169),
ressalta os remoinhos sobre a possível “rivalidade” teórica entre Gluckman e Leach, apesar de
serem consideradas em conjunto e até complementares de acordo com o tempo.

Ao circular entre as comunidades do altiplano birmanês, classificadas entre os Kachin e


Shan, Leach defrontou-se com uma variedade linguística, cultural e política, que lhe fez construir
uma abordagem estrutural totalmente sofística (KUPER, 1978, p.185). A partir de uma
perspectiva historiográfica relacionada com diferentes “estudos de caso”, Leach (1996)
encontrou três modelos de ação política e social que flutuavam entre formas igualitárias
(anárquicas), hierárquicas (feudais) e intermediárias (talvez, diríamos socialistas). Nas regiões
por onde passou, percebeu que a vida empírica levando em conta o “comportamento” dos
nativos, se misturavam entre as diferentes culturas e regras sociais determinadas através do poder

5
LEACH, Edmund R. Cultura e comunicação: a lógica pela qual os símbolos estão ligados. Jorge Zahar Ed. 1978.
p. 37-42.
político de cada modelo de sociedade. Como consequência disso, Leach defende que os
indivíduos em coletividade são interdependentes entre diversas culturas e aldeias, pertencendo a
um mesmo “sistema social”. Dado que oscilavam e equiparavam em diferentes processos e
linguagens culturais, adequando-os em determinadas atividades concretas e informais,
temporariamente, de acordo com as “mudanças estruturais” (LEACH, 1996, p.73).

Leach (1966)6 interessado no comportamento, na comunicação e nas ações sociais,


buscou compreender conceitualmente o “ritual” como qualquer expressão cultural comunicativa
da ação humana, decorrente de atividades concretas e informais que compõem as partes do
sistema social. Acima de tudo, a partir das oscilações e papéis dos indivíduos em diferentes
lugares, concebendo a noção de ritual como algo que “serve para expressar o status do indivíduo
enquanto pessoa social no sistema estrutural em que ele se encontra temporariamente” (LEACH,
1996, p.74).

Sob a perspectiva de Leach (1966, 1978, 1983, 1996), a ação ritual deve ser entendida
como uma fórmula de afirmação e troca simbólica da ordem social. Em um primeiro momento,
mesmo que os “rituais” pormenores que sejam representam um incidente costumeiro, histórico e
ou simplesmente “atos técnicos” sem explicações precedentes para os indivíduos. É por meio
destes processos que a estrutura social consegue conectar suas partes, na qualidade de um
sistema total de comunicação interpessoal entre trocas simbólicas e relações sociais. Desse
modo, são estas expressões simbólicas que dão subsídios à antropologia social, pois é justamente
na tentativa de “descobrir e traduzir para o nosso próprio jargão técnico aquilo que está
simbolizado ou representado” em tal fórmula de interpretação ritualizada, que se encontra a
principal tarefa da investigação antropológica (LEACH, 1996, p.75. grifos do autor).

Por este ângulo, a antropologia de Leach não se contenta em gerar só o modelo estrutural
de uma cultura particular, mas no ato de interpretar como as estruturas particulares e suas partes,
por meio do sistema de referências simbólicas definem seus próprios modos de vida. Isto quer
6
Em um dos seus ensaios teóricos, Leach busca classificar os tipos de comportamento que foram traduzidas por mim
como “técnico racional, comunicativo e ato de fé”. Leach entende que o etnólogo poderá caracterizar e localizar em
toda espécie humana esses tipos de comportamento, levando em conta o “ritual” como um “comportamento
coletivo” que ocasionalmente se encontra de forma particular aos membros de uma cultura singular. Em Leach é
possível encontrar um diálogo forte entre a antropologia comportamental, psicologia social e/ou a psicanálise Para
mais: LEACH, Edmund R. Ritualization in Man. Philosophical Transaction of the Royal Society, series B, W 772.
Vol. 251, 1966. pp. 403-408.
dizer que, a tarefa do antropólogo para Leach consiste em traduzir as atividades dos indivíduos
enquanto atividades simbolizadas que se chocam e comunicam determinadas relações
socialmente consideradas na “ação ritual”.

Por outro ponto de vista, nas próximas linhas, procuro avançar um pouco mais na
“simbolização” das ações, enquanto um modelo de propulsão teatral, bem como, operacional da
vida pública.

Símbolo ritual e dramas sociais em Victor Turner

O britânico Victor Turner é um dos mais cotados discípulos e colaboradores do Instituto


Rhodes-Livingstone, dentro do grupo de antropólogos conhecidos da “Escola de Manchester”.
Turner passou entre 1950 a 1954, investigando os processos da vida ritualizada no distrito de
Mwinilunga, designado como território do povo Ndembos, localizado ao extremo noroeste na
antiga Rodésia do Norte (atual Zâmbia) (CAVALCANTI, 2013a). Sob orientação de Gluckman,
desenvolveu os métodos modernos de pesquisa de campo e procurou examinar as complexidades
in loco dos processos de mudança social.

As análises sociológicas de Turner se destacam por serem bem aprimoradas, pois


conseguem combinar dados quantitativos com a análise estrutural, procurando apresentar
regularidades e variações compostas dentro de um sistema social mais amplo, com base em suas
incursões nas aldeias investigadas (FELDMAN-BIELO, 1987, p. 84). Suas análises ficaram
consagradas entre os aventureiros etnólogos, em especial, os “africanistas”, pois conseguiram
revigorar a perspectiva estrutural-funcionalista através do conceito de “drama social”. Enfatizado
de modo criativo entre os conflitos, ritos de passagem e a simbolização cotidiana
(CAVALCANTI, 2013b)7.

7
Cavalcanti (2013) reconhece a relevância da obra de Turner para o desenvolvimento da antropologia no Brasil.
Visto que inspirou grandes nomes das ciências sociais brasileiras, como Roberto DaMatta, Yvonne Maggie, Julio
Cezar Melatti, entre outros. A autora destaca três livros que foram traduzidos para o português que representaram tal
dimensão: O processo ritual (1974); Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu (2005) e Drama, campos e
metáforas (2008). Ver: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Sinder, Valter e Lage, Giselle Carino
VICTOR TURNER E A ANTROPOLOGIA NO BRASIL. DUAS VISÕES. ENTREVISTAS COM ROBERTO
DAMATTA E YVONNE MAGGIE. A revisão e a edição das duas entrevistas foi realizada por Maria Laura
Viveiros de Castro Cavalcanti. 1. Sociologia & Antropologia [online]. 2013, v. 3, n. 6 [Acessado 27 Maio 2021], pp.
339-378. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2238-38752013v361>. ISSN 2238-3875.
Assim como Edmund Leach, Victor Turner compreende os rituais como processos que
operam de maneiras bem ambíguas e contraditórias, mas que apreendem a complexidade dos
sistemas sociais observados. Visto que prevalecem seus interesses nos processos e nas formas de
intermediação, intensamente, entre os modos de vida, símbolos culturais e suas significações a
partir dos sistemas de ação ritual. Marcando assim, as críticas modernas frente a uma abordagem
antropológica estritamente estruturalista, mobilizada apenas por meio de padronizações e
totalidades (CAVALCANTI, 2013a).

Segundo Cavalcanti (2013a), Turner também ficou celebrado por empreender diversas
análises simbólicas, a partir da sua “etnografia dos rituais”, assim consagrada por ele, através de
fecundos insight teóricos acerca das simbolizações rituais expostos, especificamente, em “Os
símbolos no ritual Ndembu”, publicado em 1967 em seu livro Floresta de símbolos: aspectos do
ritual Ndembu. Para tanto, os símbolos que foram analisados por Turner, correspondiam a
"objetos, atividades, relações, eventos, gestos e unidades espaciais” sempre localizadas em uma
“situação ritual” (TURNER, 2005, p. 49).

Na sua tese de doutorado Schism and continuity in an African society: a study of Ndembu
village life (defendida em 1957), Turner apresenta pela primeira vez os rituais dos povos
Ndembos. Neste trabalho, seu foco de interesse maior começa a sombrear entre as ideias do
conceito de “drama social”, em torno da “estrutura cultural dos rituais Ndembos” (Cavalcanti,
2013, p.411). Analisando uma série de ocasiões durante seu trabalho de campo entre brigas de
facções, violações, ações repressivas e desmembramentos nas aldeias que de forma geral, podem
ser entendidas como conflitos de interesse político na arena pública (TARDELLI, 2019). Assim,
começou a detectar que os grupos sociais operam a partir de lógicas simbólicas que serviam para
reparar e reintegrar os mesmos grupos sociais em diferentes situações rotineiras. Tendo em vista,
a constituição de “formas de processos”, designadas como erupções concebidas pelo “drama
social” (TURNER, 1972, p. 92).

Os Ndembos são povos que praticam a descendência matrilinear, vivem da agricultura e


da caça, como também de suas riquezas artesanais e cerimoniais, à qual atribuem ritos de
passagem e complexas iniciações com alto valor ritual (TURNER, 1974, p.74). O “drama social”
de Turner opera a partir da construção de molduras temporais e espaciais dentro de suas análises,
procurando considerar as narrativas sociais e ações humanas performáticas vinculadas à
produção simbólica (TURNER, 1974b)8. Considerando, principalmente, as “apreensões
existenciais do sentido vivido na experiência social” (CAVALCANTI, 2013a, p.414).

De acordo com Cavalcanti (2013a, p. 416), ao longo das situações conflituosas que
Turner observou no entorno da vida social dos Ndembos, compreendeu que os sujeitos operam a
“dramatização” em quatro as etapas sequenciais: “crise” enquanto um reconhecimento do
problema manifestado no cotidiano; “ampliação da crise” processo que os atores diretamente
ligados a crise começam acionar seus pares; “regeneração” momento em que outros atores
começam a pipocar soluções e apontar possíveis caminhos para a resolução; e o “rearranjo”
como a etapa triunfal que corresponde aos esforços anteriores mobilizados pelos agentes, da
mesma forma que busca redefinir posições organizadas em torno do novos ordenamentos sociais.

Sob esta perspectiva, o "símbolo" pode ser uma coisa, ação e/ou qualquer coisa que se
pode extrair significado e referência para um ritual ou, propriamente outra coisa explorada entre
os processos observados. A partir da complexidade de fórmulas simbolizadas, Turner (2005)
procurou caracterizar seus campos semânticos no decorrer das suas estruturas e propriedades,
chamando atenção para o fato de que os aspectos significativos dos símbolos correspondem às
expressões emocionais, organizacionais e políticas do próprio campo ritual e estrutural, ao
mesmo tempo em que unificam os processos ritualizados da sociedade. Segundo o autor, os
símbolos rituais podem descrever as estruturas e as propriedades a partir de três circunstâncias
aprofundadas por ele: “condensação”, “unificação de significados díspares" e a polarização de
significados” (TURNER, 2005, p. 58-59). Nesta lógica, os processos rituais analisados por
Turner enfatizaram não só suas formas propriamente ritualísticas, mas também as razões
operatórias de acordo com o sistema de significados estruturais.

Por último, quero destacar as contribuições refinadas de Turner para a noção de


“liminaridade”, entendida como uma condição social entre os ritos de passagem, onde os
indivíduos vivem por períodos marginalizados e de suspensão, enquanto um momento transitório
antes de se reintegrarem à estrutura social. Em torno disso, Turner mobiliza o conceito de
“communitas”9 atribuído como uma espécie de “anti-estrutura”, onde permite que os indivíduos

8
TURNER, Victor. Dramas, Fields and Metaphors: Symbolic Action in Human Society. Ithaca, Londres: Cornell
Univ. Press, 1974.
9
Propositalmente em latim, para distinguir da ideia de comunidade, enquanto “vida comum ” de acordo com uma
territorialidade, já que a noção communitas destaca apenas as relações sociais propriamente ditas.
condenem vínculos circunstanciais, eminentemente, ritualizados por aqueles no processo liminar.
De modo geral, considerando um lado “anti-estrutura” das sociedades humanas, Turner
reconhece que os sujeitos se relacionam em um jogo ambivalente “dentro” e “fora” da estrutura
social. Não há como negar que este processo é fundamental para o desenvolvimento dialético da
própria estrutura, já que os sujeitos acabam sendo submetidos através de um “laço humano
essencial e genérico sem o qual não poderia haver sociedade” (TURNER, 1974, p. 119).

Turner (1974, p. 120) reconhece que o processo dialético está presente na estrutura das
sociedades humanas. Justamente marcada por indivíduos e suas diferentes gerações que
compõem os espaços sociais públicos, processos de passagem, crises, amadurecimento e
rearranjos enquanto fases de agregação, transformação e rompimento provisórios da ordem
social. Além disso, o antropólogo chega a mobilizar as noções de estrutura x communitas, para
interpretar as modernas sociedades ocidentais (TURNER, 1974). Com fundamento nisso, não
podemos deixar de considerar, conforme Turner, os “hippies”, artistas, profetas, assim como
outros movimentos e estilos de vida alternativos e também “contra-hegemônicos” que emergem
a fim de desafiar as condições estruturais e únicas da organização social.

Acima de tudo, a extensa bibliografia de Victor Turner, trouxe à tona o desenvolvimento


de uma “teoria da ação” tendo em vista os processos simbólicos dos rituais, enfatizados como
sistemas de referência, enquanto “performances dramáticas” por excelência do processo social
humano. Não é à toa que sua obra até hoje se mantém como um modo particular e envolvente
para consultas e aventuras antropológicas em campo.

Considerações Finais

Pensando que o “ritual” é um conceito proeminente para discussão antropológica,


procurei ressaltar neste ensaio analítico algumas repercussões de três clássicos que enfatizaram
em suas trajetórias tal questionamento. Possivelmente, deixei de considerar amarrações
profundas e complexas questões que foram fundamentais para traçar suas repercutidas ideias,
substancialmente, na evolução da antropologia social modernizante constituída no século XX.
Na mesma proporção que os primeiros desdobramentos das críticas e contra-posições
desenvolvidas na antropologia simbólica começaram a presenciar o cenário da modernidade.
No entanto, podemos deixar claro que Gluckman, Leach e Turner são antropólogos
ancestrais da perspectiva estruturalista que ainda repercute nos dias de hoje, principalmente para
tratar questões envolvendo a “nova antropologia” social e política relacionada aos estudos sobre
o desenvolvimento, inovações tecnológicas e demais teorias sistêmicas. Não é por acaso que,
mais uma vez, está ligada às imersões sociológicas e pertinentes nas sociedades africanas, como
também em outras fronteiras do mundo contemporâneo.

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