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1 Aplicações das Equações de Euler-Lagrange

Tendo desenvolvido as ferramentas básicas, vamos agora aplicá-las em alguns exemplos


especı́ficos. Para tal fim, seguiremos o seguinte procedimento simples:

1. Verifique se existem vı́nculos, sejam holônomos ou integráveis, e determine o número


de graus de liberdade do sistema.

2. Escolha as coordenadas generalizadas qk consistentes com o número de graus de


liberdade.

3. Escreva a energia cinética T e a potencial V do sistema em termos das coordenadas


e velocidades generalizadas (qk , q̇k ).

4. Calcule separadamente as derivadas parciais da Lagrangeana.

5. Escreva e simplifique a equação de Euler-Lagrange.

Exemplo 1: Uma conta presa a um anel.


Vamos descrever o movimento de uma partı́cula (conta) de massa m que desliza sem atrito
ao longo de um anel fixo de raio a como mostra a figura abaixo. Suponhamos que o aro fixo
está no plano (x, y), as coordenadas do centro sejam (0, h), e as coordenadas da partı́culas
(x, y).

Este sistema possui o seguinte vı́nculo holônomo.

f (x, y) = x2 + (y − h)2 − a2 = 0. (1.1)

Por tanto, o sistema possui um só grau de liberdade, pois

• A dimensão do problema é d = 2.

• Número de partı́culas é N = 1.

• Número de vı́nculos é p = 1.

• Número de graus de liberdade é n = (d × N ) − p = 1.

1
Logo, precisamos de uma única coordenada generalizada q. A partir do gráfico vemos que
é conveniente escolhermos a coordenada angular θ ∈ [0, 2π]. Em termos desta coordenada,
temos

x(t) = a cos θ(t), −→ ẋ(t) = −a θ̇(t) sin θ(t),


y(t) = h + a sin θ(t), −→ ẏ(t) = a θ̇(t) cos θ(t). (1.2)

Agora, substituindo estas expressões na energia cinética e potencial da partı́cula, obtemos


1 1 1
T = mv̇ 2 = m(ẋ2 + ẏ 2 ) = ma2 θ̇2 ,
2 2 2
V = mgy(t) = mg(h + a sin θ(t)). (1.3)

Logo, substituindo encontramos a seguinte Lagrangeana,


1
L = ma2 θ̇2 − mg(h + a sin θ(t). (1.4)
2
Calculemos agora as derivadas parciais,
∂L ∂L
= −mga cos θ, = ma2 θ̇. (1.5)
∂θ ∂ θ̇
Substituindo na equação de Euler-Lagrange, e simplificando, obtemos
 
d ∂L ∂L
− =0
dt ∂ θ̇ ∂θ
(ma2 θ̈) − (−mga cos θ) = 0
g 
θ̈ + cos θ = 0 (1.6)
a

A equação de movimento é basicamente a do pêndulo simples, fazendo θ → θ + π/2. O


movimento da partı́cula é oscilatório ao redor do ponto de equı́librio θ0 = 3π/2. Notamos
também que a altura h não interfere na equação de movimento, portanto podemos fixar
V (h) = 0, e considerar o potencial simplesmente como V (θ) = mga sin θ.

Exemplo 2: Partı́cula presa a um anel em rotação uniforme.


Vamos supor de novo um partı́cula restrita a se mover ao longo de um anel, porém desta
vez o anel realiza uma rotação uniforme ao redor digamos do eixo z, como mostra a figura
abaixo. Veja que, além do vı́nculo (1.1), a condicional adicional de rotação uniforme impõe
um novo vı́nculo, isto é f2 = φ − ωt = 0. Analisando os graus de liberdade, temos:

• A dimensão do problema é d = 3.

• Número de partı́culas é N = 1.

• Número de vı́nculos é p = 2.

• Número de graus de liberdade é n = (d × N ) − p = 1.

2
Este sistema também possui um grau de liberdade, e portanto precisamos de uma única
coordenada generalizada q. A partir do gráfico vemos que é conveniente escolhermos as
coordenadas esféricas, onde θ será nossa coordenada generalizada,
x(t) = a cos φ(t) sin θ(t) = a cos(ωt) sin θ(t),
y(t) = a sin φ(t) sin θ(t) = a sin(ωt) sin θ(t), (1.7)
z(t) = a cos θ(t). (1.8)
Calculando as velocidades, temos
 
ẋ(t) = a −ω sin(ωt) sin θ(t) + θ̇ cos(ωt) cos θ(t) ,
 
ẏ(t) = a ω cos(ωt) sin θ(t) + θ̇ sin(ωt) cos θ(t) , (1.9)
ż(t) = −a θ̇ sin θ(t). (1.10)
Agora, substituimos os resultados anteriores para encontrar a expressão da energia cinética:
1 1
T = mv̇ 2 = m(ẋ2 + ẏ 2 + ż 2 )
2  2
1 2  2
= ma2 −ω sin(ωt) sin θ(t) + θ̇ cos(ωt) cos θ(t) + ω cos(ωt) sin θ(t) + θ̇ sin(ωt) cos θ(t)
2
 2 
+ −θ̇ sin θ(t)
1 h
= ma2 ω 2 sin2 (ωt) sin2 θ(t) + θ̇2 cos2 (ωt) cos2 θ(t) − 2ω θ̇ sin(ωt) sin θ(t) cos(ωt) cos θ(t)
2
+ω 2 cos2 (ωt) sin2 θ(t) + θ̇2 sin2 (ωt) cos2 θ(t) + 2ω θ̇ cos(ωt) sin θ(t) sin(ωt) cos θ(t)
i
+θ̇2 sin2 θ(t)
1  
= ma2 θ̇2 + ω 2 sin2 θ(t) . (1.11)
2
Para a energia potencial gravitacional, temos
V = mgz = mga cos θ(t), (1.12)
considerando o nı́vel zero de energia no plano z = 0, i.e V (z = 0) = 0. Assim, podemos
agora escrever a Lagrangeana para o sistema,
1  
L = ma2 θ̇2 + ω 2 sin2 θ(t) − mga cos θ(t). (1.13)
2

3
Figura 1. Gráfico do potencial efetivo Vef (θ) para m = 2 e a = 2. A linha continua (azul)
corresponde a ω = 0. A linha tracejada (vermelha) corresponde a ω = 2.2, que é ligeramente menor
que g/a ' 2.21. A linha pontilhada (preta) corresponden a ω = 2.8, que é maior que g/a. Note
que neste último caso, aparece um ponto estável em θ3 = 2.25.

Note que neste caso, a energia cinética possui uma contribuição que não depende das
velocidades. De fato só depende da coordenada generalizada θ, e pode ser interpretada
como uma contribuição à energia potencial, isto é
1 1
L = ma2 θ̇2 − Vef (θ), com Vef (θ) = − ma2 ω 2 sin2 θ(t) + mga cos θ(t). (1.14)
2 2
onde Vef (θ) é chamada de energia potencial efetiva. A equação de Euler-Lagrange aplicada
à “Lagrangeana efetiva” em (1.14), é dada por
 
d ∂L ∂L
− =0
dt ∂ θ̇ ∂θ
 dV 
ef
(ma2 θ̈) − =0

g 
θ̈ + sin θ + ω 2 sin θ cos θ = 0 . (1.15)
a
Podemos ver que a diferença do anel estático agora temos um termo extra na equação de
movimento. Este termo também é periódico, o que nos leva a deduzir que o movimento
será oscilátorio, porém muito mais complicado que o do pêndulo simples. O movimento
pode ser estudado de forma numérica. Aqui nos limitaremos a estudar o comportamento
das trajetórias a partir da análise do potencial. Para as trajetórias estacionárias (aquelas
para nas quais a partı́cula não se move), temos que θ̈ = θ̇ = 0. Da equação de movimento,
temos:
dVef
= −ma sin θ(g + aω 2 cos θ) = 0. (1.16)

Logo temos os seguintes pontos de equilı́brio: θ1 = 0, θ2 = π, e caso ω 2 ≥ g/a, i.e o anel
estiver girando o suficientemente rápido, θ3 = arccos(−g/aω 2 ) também será um ponto de

4
equilı́brio. Apartir da segunda derivada,

d2 Vef
= −ma g cos θ + aω 2 cos(2θ) ,

2
(1.17)

vemos que para qualquer valor de ω, o ponto θ1 é instável, correspondendo ao ponto na
cima do anel. Quando ω 2 < g/a, isto é quando somente temos dois pontos de equilı́brio, o
ponto θ2 é estável. Quando ω 2 > g/a, temos que θ2 vira um ponto instável, e θ3 o ponto
estável. Isto pode ser visto na Figura 1.

Exemplo 3: O Pêndulo Esférico


O sistema consiste de uma massa m ligada a um ponto fixo por uma corda de comprimento
l e que pode-se mover (rotar) nas três dimensões como mostra a figura abaixo.

Analisando os graus de liberdade, temos:

• A dimensão do problema é d = 3.

• Número de partı́culas é N = 1.

• Número de vı́nculos é p = 1.

• Número de graus de liberdade é n = (d × N ) − p = 2.

Trabalhando nas coordenadas esféricas, as duas coordendas generalizadas necessárias serão


naturalmente q1 = φ, e q2 = θ. Note que neste caso o ângulo θ é considerado em relação ao
polo sul. Da parametrização usual, temos:

x = l cos φ sin θ, y = l sin φ sin θ, z = −l cos θ. (1.18)

Calculando as derivadas, temos:


 
ẋ = l −φ̇ sin φ sin θ + θ̇ cos φ cos θ ,
 
ẏ = l φ̇ cos φ sin θ + θ̇ sin φ cos θ , (1.19)
ż = lθ̇ sin θ.

5
Substituindo na energia cinética, encontramos
1 1 1  
T = mv̇ 2 = m(ẋ2 + ẏ 2 + ż 2 ) = ml2 θ̇2 + φ̇2 sin2 θ . (1.20)
2 2 2
A energia potencial é simplesmente gravitacional, V = mgz = −mgl cos θ. Logo, a Lagran-
gena do sistema é:
1  
L = ml2 θ̇2 + φ̇2 sin2 θ + mgl cos θ. (1.21)
2
Para cada coordenada generalizada teremos uma equações de movimento. Vamos começar
com a equação para φ(t). Notamos que,
 
∂L d ∂L
= 0 −→ = 0. (1.22)
∂φ dt ∂ φ̇

Logo,
∂L
J= = ml2 φ̇ sin2 θ, (1.23)
∂ φ̇
é uma grandeza que se conserva durante o movimento. De fato, J corresponde à compo-
nente do momento angular na direção de φ. Agora, consideremos a equação de movimento
para θ(t),
 
d ∂L ∂L
− = (ml2 θ̈) − (ml2 φ̇2 sin θ cos θ − mgl sin θ) = 0. (1.24)
dt ∂ θ̇ ∂θ

Da equação (1.23), podemos escrever φ̇ em termos de θ, como

J
φ̇ = , (1.25)
ml2 sin2 θ
e substituindo em (1.24), obtemos

g J 2 cos θ
θ̈ = − sin θ + 2 4 3 (1.26)
l m l sin θ

Note que o primeiro termo do lado direito da equação de movimento acima corresponde
ao pêndulo simples. O segundo termo vem da contribuição da rotação ao redor do eixo z.
De fato, quando a velocidade angular de rotação é nula, φ̇ = 0, temos pela eq. (1.23) que
J = 0. Perceba que a substituição de φ̇ em termos de J e θ somente é válida no nı́vel das
equações de movimento. Se for substituido na Lagrangeana, voce obterá um resultado IN-
CORRETO, pois devem existir dois graus de liberdade, isto é, φ e θ são independentes na
Lagrangeana. A dependência vem após obtermos as equações de movimento, isto significa
que a relação é puramente dinâmica. O movimento descrito pelo sistema será também os-
cilátorio. Ele pode ser analizado qualitativamente através do estudo do potencial (efetivo),
ou quantitativamente, usando métodos numéricos.

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