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DIVERSIDADE E INCLUSÃO - DI
ENEQ Pernambuco - UFRPE/UFPE
¹Universidade Federal da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. ²Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de
Fora, Minas Gerais, Brasil; ³Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
RESUMO: Pensar o processo de ensino e aprendizagem de saberes Químicos pelo viés da semiótica
revela, entre tantos aspectos, a importância da interdependência dos diversos modos de
representação e comunicação que se estabelece nesse processo. Especialmente no que tange ao
discente surdo, que aprende e interage com o mundo sobretudo por meio da visão, ressalta-se a
relevância das modalidades visuoespaciais para que seja possível conferir sentido ao
conhecimento abordado. Em vista disso, o objetivo deste trabalho consiste em relatar uma análise
semiótica de um episódio de ensino de modelos atômicos em uma turma de estudantes surdos,
verificando como os diferentes modos semióticos - Língua de Sinais, gestos, imagens e objetos
concretos de representação - foram conjugados pela professora para a construção do sentido da
mensagem. De acordo com a análise do episódio, foi possível concluir que explorar a
multimodalidade em seus aspectos visuais no âmbito da educação de surdos potencializou a
prática docente.
INTRODUÇÃO
A semiótica pode ser considerada, de forma geral, como a ciência que estuda as
diferentes formas de linguagem e agrega contribuições importantes para o entendimento
das relações entre linguagem e aprendizagem (SILVA; SILVA, 2012). Pela necessidade
de divulgar, constituir e perpetuar as suas experiências de mundo e pensamentos, desde
a época em que habitava as cavernas, o ser humano vem desenvolvendo diferentes
modos de se expressar e utilizar artefatos visuais sonoros e espaciais - tais como a
manipulação de cores e formas, de sons, de gestos, de expressões, de cheiros e tantos
outros -, sempre na intenção de estabelecer um sistema de comunicação entre seus
pares (MELO; MELO, 2015).
A forma pela qual se estrutura a comunicação, considerando sua elaboração no
uso de diversos elementos visuais, sonoros e espaciais, configura uma linguagem.
Segundo Bronckart (2003) a linguagem pode ser definida como o sistema por meio do
qual o homem comunica suas ideias e sentimentos, seja pela fala, pela escrita, por
gestos, cores ou por outros signos convencionais, os modos semióticos.
Direcionando o olhar para a área educacional, pesquisas já apontam que a
articulação de diferentes modos semióticos potencializa a construção de significados em
sala de aula (ARAUJO NETO, 2009; SOUZA, 2012; MORTIMER et al., 2014; WHARTA,
REZENDE, 2017). Considera-se a presença dos diferentes modos semióticos em um
processo de comunicação como foco de estudos do campo da multimodalidade.
Assim, a multimodalidade se dedica a buscar compreender de que forma os
significados são produzidos, distribuídos, recebidos, interpretados e reinventados a partir
da leitura de vários modos de representação e comunicação e não apenas por meio da
linguagem falada ou escrita (MORO et al., 2015).
20º Encontro Nacional de Ensino de Química – ENEQ Pernambuco - UFRPE/UFPE
Recife – PE – 13 a 16 de julho de 2020.
20º Encontro Nacional de Ensino de Química Área do trabalho
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A proxêmica refere-se à distância física e à variação destas, que as pessoas estabelecem
espontaneamente entre si e os objetos que usam, no convívio social (QUADROS et al., 2012).
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Significa ser subjetivo e emanar de cada pessoa. É possível encontrar no site “Dicionário Informal” o
termo idiossincrático como algo que é “relativo à disposição particular de um indivíduo para reagir a
determinados agentes exteriores”.
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METODOLOGIA
Direcionamos nossa análise para a comunicação sinalizada em Libras, para o
uso de gestos, o uso de imagens projetadas em slides, no emprego de representação
concreta do átomo e da proxêmica. A filmagem da aula ocorreu no ano de 2017 em uma
turma do 1º ano do Ensino Médio com 12 alunos surdos matriculados de uma Instituição
de ensino exclusivamente de surdos. A professora de Química, que é docente na
Instituição há mais de 10 anos, era versada em Libras e regia a aula se comunicando
diretamente com os estudantes, sem a necessidade da mediação de intérpretes.
Ficava à disposição na sala de aula um computador ligado a uma televisão, onde
a professora projetava seus slides utilizados durante a aula, bem como um quadro
branco. Para o registro das observações em sala utilizamos um caderno de campo e
filmagens com videogravadora, tendo a devida permissão e a anuência dos
participantes.
Selecionamos para análise um episódio em que a professora explica as regiões
que compõem os átomos, chamando atenção para a diferença entre os modelos
propostos por Dalton e por Rutherford. Tomando como base o trabalho de Araújo Neto
(2009), a escolha para recorte do episódio foi tomada segundo o interesse de pesquisa.
Nos critérios para seleção consideramos verificar situações nas quais estavam
envolvidos múltiplos artefatos mediacionais e técnicas de representação e habilidades
espaciais.
Como metodologia para transcrição, separação e análise dos trechos de
comunicação sinalizados, nos apoiamos nas simbologias sugeridas por Buty e Mortimer
(2008). Quando durante a fala ocorre uma pausa curta, indicamos por barra dupla (//) e
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quando as pausas são mais longas, indica-se com a duração, em segundos, entre
parênteses, conforme método também explícito e utilizado em Mortimer et al. (2014).
Outras pontuações tais como interrogação, vírgulas e pontos foram inferidas a partir de
expressões faciais e corporais da professora durante sua sinalização.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para melhor entender o contexto em que o episódio selecionado ocorreu, a
professora iniciou a aula retomando os modelos atômicos a partir de Dalton, com a
proposição da esfera maciça. Ela utilizou uma pequena esfera de isopor para demonstrar
que, segundo Dalton, o átomo seria a menor parte indivisível da matéria, sendo que cada
átomo diferente era também representado por esferas diferentes (relembrando aos
alunos as representações em esferas que havia trabalhado com eles em aulas
anteriores). Em seguida, a docente introduziu as concepções da representação do
modelo atômico proposto por Rutherford chamando a atenção para a principal diferença
entre os dois modelos, que é a existência das regiões do núcleo e eletrosfera, elucidando
que o átomo passa a ter espaços vazios. A frase final, que antecedeu ao episódio
selecionado, foi “hoje já se conhecem estruturas mais complexas como propostas de
modelos atômicos, mas essas são estudadas apenas nas universidades. No Ensino
Médio o foco é até Bohr e que vamos estudar hoje”.
Com essa frase, ela finaliza uma ideia e introduz uma nova ação, que foi então
foco da tradução e da análise semiótica. Essa tradução da comunicação estabelecida
por meio da Libras, acompanhada dos modos semióticos utilizados concomitantemente
pela professora, se encontra no Quadro 1.
06 19:24 Então// duas divisões A professora adianta dois slides e chega em uma
importantes // outra figura que é uma outra representação de
átomo com núcleo e eletrosfera; a professora
aponta para a figura;
07 19:31 Núcleo pequeno no A Professora fecha uma das mãos e sobrepõe
centro // Núcleo // Muito sobre o núcleo da figura; aponta em seguida para
pequenininho a palavra NÚCLEO (Figura 20).
08 19:35 ELETROSFERA // tá A professora aponta para a região da eletrosfera na
figura e, em seguida, com uma das mãos executa
um gesto circular ao redor da outra mão fechada
(que representava o núcleo) referindo ser a
eletrosfera;
09 19:43 Aqui //NUCLEO é A professora aponta na tela da TV para o núcleo da
positivo figura (com gesto de indicação e logo em seguida
com batimento).
10 19:47 Aqui (11s) A professora aponta para a palavra eletrosfera na
televisão; a professora procura pela bolinha de
isopor e a pega; Volta novamente nos slides com
as figuras dos átomos de Dalton e Rutherford-Bohr.
11 19:58 Principal // atenção, A professora começa a sinalizar PRINCIPAL e
atenção // principal diferença interrompe para chamar a atenção dos alunos com
dos dois // Esse fala nunca estalos de dedos; aponta para o modelo de Dalton
dividir // nunca // sempre na televisão; pega a bolinha de isopor e aponta
assim para a bolinha, para dar sentido à fala “sempre
assim”.
12 20:21 Esse não // consegue Agora aponta para a figura de Rutherford no slide;
dividir // como? pega o modelo tridimensional de representação do
átomo (Figura 21).
13 20:25 Esse // Olha // Aqui é Segurando o modelo tridimensional em uma mão,
NÚCLEO aponta com a outra indicando a região do núcleo
(Figura 21a); sinaliza com apenas uma mão a
palavra NÚCLEO e volta a apontar para o núcleo.
14 20:31 ELETROSFERA Faz gestos de ação em círculos em torno do
modelo (Figura 21b) e, em seguida, faz a datilologia
ELETROSFERA.
15 20:37 A professora com uma mão segura a bolinha de
isopor e com a outra o modelo tridimensional e faz
uma expressão facial de constatação e
comparação, movimentando os braços para frente
e para trás de forma alternada que lembra o sinal
COMPARAR.
16 20:39 Esse // Esse Pega a bolinha de isopor e sobrepõe na figura do
modelo de Dalton; depois, levanta o modelo
tridimensional e sobrepõe na figura do modelo de
Rutherford-Bohr.
Por exemplo, no turno 07 quando a professora tenta localizar para o aluno onde
se encontra o núcleo do átomo, que é na região central, ela precisou empregar gestos
de apontamentos, recorreu à figura do slide e ainda elevou sua mão fechada para
sobrepor na figura, a fim de delimitar qual o lugar do centro que ela se referia, utilizando
do gesto dêitico, como pode ser visto na Figura 1.
Outro evento como esse, em que somente a sinalização em Libras feita pela
professora não se mostrou suficiente para exprimir a mensagem por completo, foi no
momento em que ela utilizou o modelo tridimensional da Figura 2 para fazer com que os
estudantes surdos identificassem a eletrosfera e o núcleo também em outro modo
representacional. Como podemos analisar por meio dos turnos 13 e 14, a professora
utilizou no primeiro momento do gesto de apontamento para se referir ao núcleo e,
posteriormente, com o dedo indicador ainda em sentido apontado, ela executa um gesto
de ação circulatória na intenção de exprimir a região da eletrosfera, como pode ser visto
na Figura 2b.
4 Ainda segundo Silva (2008), a postura do professor em relação aos objetos representacionais é
classificada em: (a) frontal; (b) lateral; e (c) manipulação.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos considerar, com relação à análise semiótica do episódio selecionado,
que a existência dos outros modos semióticos além da sinalização em Libras (o emprego
da estrutura tridimensional, a bolinha de isopor e as representações nos slides)
potencializou a presença de gestos na construção da mensagem pela professora. Ao
longo do episódio, foi possível observar que ela realizava vários tipos diferentes de
gestos com o intuito de indicar, delimitar, pontuar, dar ênfase, ou destacar aspectos de
seu enunciado, além de manter o corpo voltado ou parcialmente voltado para os surdos
em todo o tempo, mesmo enquanto apontava para a televisão.
Em consonância com a pesquisa de Piccinini e Martins (2004) que já aponta que
o uso de diferentes modos semióticos permite um fluxo integrado de comunicação que
auxilia os estudantes na elaboração conceitual e ainda, de acordo com o episódio aqui
analisado, defendemos que envolver a multimodalidade na construção de um
determinado conhecimento pode sim trazer contribuições significativas no processo de
ensino e de aprendizagem com os surdos.
A interdependência dos modos se revelou essencial no trecho analisado. Para a
professora, apenas a comunicação sinalizada não se mostrava suficiente para explicar
as ideias que envolvem os diferentes modelos atômicos e sua estrutura. Assim, ela se
apropriou de outros meios de comunicação, enfatizando o caráter multimodal da
linguagem de sala de aula.
Destacamos, dessa forma, que a língua de sinais conjugada a um raciocínio
visuoespacial são elementos importantes de comunicação no âmbito do ensino de
Química para surdos. O uso dos recursos visuais se revelou indispensável na abordagem
de ensino e a conjugação dos diferentes modos orquestrados pela professora durante a
construção do conhecimento se mostrou crucial, realçando a peremptória
interdependência dos modos na construção do sentido da mensagem.
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