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Miguel Bandeira Jerónimo

Livros Brancos,
Corpos
e Almas Negras:
A «Missão Civilizadora»
do Colonialismo Português
(c. 1870-1930)
Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais


da Universidade de Lisboa

Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9


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Instituto de Ciências Sociais – Catalogação na Publicação


JERÓNIMO, Miguel Bandeira, 1972-
Livros brancos, corpos e almas negras. A «missão civilizadora» do colonialismo
português /Miguel Bandeira Jerónimo. – Lisboa : ICS.
Imprensa de Ciências Sociais, 2009
ISBN ?
CDU ?

Capa: João Segurado


Composição e paginação: Ana Cristina Carvalho
Revisão: Levi Condinho
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra – Viseu
Depósito legal: ?
1.ª edição: ?
Índice
Agradecimentos ................................................................................... 9

Introdução ............................................................................................ 13

Parte I
O grémio da civilização: o «trabalho indígena» e o colonialismo
português

Capítulo 1
Entre a benevolência e a inevitabilidade: a «missão civilizadora» e
o colonialismo português ................................................................ 19
De Bruxelas a Berlim: a internacionalização das questões africanas 19
De Berlim a Bruxelas: civilizando a soberania colonial ................... 28
Leis, disposições, inconsistências: as colónias portuguesas e os vigi-
lantes do império ................................................................................ 36

Capítulo 2
O grémio da civilização e os engenheiros da depressão: o caso do
cacau de São Tomé ............................................................................ 57
Memórias justificativas e actos humanitários: civilizar pelo trabalho 57
Relatórios, conferências e boicotes: o cacau escravo de São Tomé 67
«Mais leis do que mosquitos»: preservando as pérolas do império 78
Livros brancos, almas negras ............................................................... 95

Capítulo 3
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto ...................... 109
Trabalhar para civilizar ou educar para colonizar? ............................ 109
Das «dificuldades de levar os indígenas a trabalhar» ....................... 122
A educação dos corpos e das almas: mitos e realidades .................. 132
Parte II
Colonialismo sem fronteiras

Capítulo 4
Bíblias, bandeiras e lealdades transnacionais: educando os im-
périos ................................................................................................... 147
Na vanguarda da civilização: exportando a filantropia educativa para
África ................................................................................................... 147
Propagando o social gospel: missionários, educadores e cientistas
sociais .................................................................................................. 161

Capítulo 5
Novos métodos, velhas conclusões: o Relatório Ross ...................... 179
O social gospel na Sociedade das Nações .......................................... 179
De novo a legislação e o trabalho redentor: a contestação do Relató-
rio Ross ............................................................................................... 194

Capítulo 6
Argumentos velhos, métodos novos: a propaganda colonial ..... 219
Coleccionar, organizar e expor os dados coloniais .......................... 219

Conclusão ............................................................................................. 237

Fontes e bibliografia ........................................................................... 241


O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

Capítulo 3

O trabalho redentor
e os missionários do alfabeto
Trabalhar para civilizar ou educar para colonizar?

Face ao carácter irregular e fluido da mão-de-obra disponível,


para o qual as doenças epidémicas contribuíam sobremaneira, a
renovação e reprodução dos serviçais tinha de ser mais intensa e os
mecanismos da sua salvaguarda reforçados sem prejudicar de modo
aberto as declarações humanitárias e civilizadoras que suportavam e
legitimavam o colonialismo português. Se a este cenário se juntarem
as pressões geradas por campanhas antiesclavagistas oriundas de
grupos humanitários ingleses, podemos enquadrar a diversificação
geográfica do recrutamento de mão-de-obra que foi ensaiada pelos
portugueses. Contudo, existiam razões bem mais prosaicas para
a implantação de um sistema de trabalho contratado pendular,
alicerçado na circulação de contingentes de mão-de-obra através
da geografia colonial, fosse ela um resultado de opções voluntárias
com o objectivo de assegurar capital para cumprir com as exigência
tributárias das administrações coloniais, ou constituísse um produto
das múltiplas modalidades de recrutamento forçado ou coagido, até
porque «a estabilidade da mão-de-obra», «condição imprescindível
das explorações coloniais» tornava-se «quase impossível de obter
com o regímen do contracto livre que o preto tão facilmente
aceita como transgride», como esclarecia Sampayo e Mello.1 Não
se tratava apenas de responder a necessidades de mão-de-obra

1
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 221.

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Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

produzidas por condições higiénicas e sanitárias adversas, ou de


satisfazer solicitações diplomáticas reorganizando os processos e
métodos de recrutamento. Tão pouco se pensava que a emigração
de contingentes de mão-de-obra indígena fosse tomada como
benéfica do ponto de vista económico e social. O emprego exclu-
sivo de mão-de-obra local era, pelo contrário, fortemente defen-
dido, porque evitava «os inconvenientes por vezes desoladores da
aclimatação dos indígenas» e permitia a diminuição das «despesas
de recrutamento, transporte, repatriação, sustento e assistência
médica» que encareciam o trabalho importado. Reconhecia-se
mesmo que a importação de mão-de-obra implicava uma «grande
desmoralização que, proveniente da desproporção numérica nos
sexos dos emigrantes, não tarda geralmente em propagar-se às
populações indígenas», originando, nos termos de uma sociologia
colonial em voga desde o início do século XX, a formação de «agru-
pamentos efémeros caracterizados por uma fictícia anormalidade de
constituição social». O mesmo problema era identificado no que
respeitava à emigração da metrópole para as colónias portuguesas,
caracterizada por um desequilíbrio entre o volume de emigração
masculina e a feminina, ao ponto de se defender o patrocínio da
emigração familiar ou de se apostar numa instrução especificamente
orientada para a emigrante.2 É precisamente nesta linha de racio-
cínio que se inscrevem as críticas do repatriamento da mão-de-obra
indígena, na medida em que só a fixação territorial das populações
emigradas poderia permitir o equilíbrio social necessário ao desen-
volvimento económico.3
A emigração europeia constituíra uma solução formulada e
defendida por inúmeros «teóricos coloniais», como então eram
designados. Uma das propostas mais consideradas no início do
século era a de Georges Poullet-Scrope (economista e especia-
lista oitocentista em questões de emigração), que defendia que o
Estado devia subvencionar a emigração europeia, num contrato
que envolvia a aplicação de uma taxa sobre os salários dos traba-
lhadores. Criticada por sujeitar os trabalhadores a uma «espécie
de escravidão», esta proposta fora aperfeiçoada deslocando o ónus

2
José Francisco da Silva, «Emigração. Assistencia aos Emigrantes», in
Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões (1901), 22.
3
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 219-220; Francisco Mantero, «Regimen
do trabalho em S. Thomé e em Angola», in Congresso Colonial Nacional. Actas
das Sessões (1901), 61.

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O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

do processo para os «capitalistas», ainda que com uma eventual


repercussão nos salários dos trabalhadores, na medida em que se a
oferta de mão-de-obra fosse abundante, a remuneração do trabalho
decairia. A identificação de «vícios de origem» nestas propostas era
acompanhada pela constatação da inadaptação do «organismo do
branco» e das «suas condições de vida» às condições climatéricas
características do continente africano. Ou seja, enquanto alternativa
à dependência de mão-de-obra nativa, a emigração europeia dirigida
era criticada. Mas mesmo que o não fosse, seria bem improvável
que os fluxos migratórios atingissem o volume necessário para
que pudessem sequer ser considerados enquanto opção séria para
transformar o problema da mão-de-obra em contexto colonial.4
No que diz respeito à emigração portuguesa para os territórios
africanos, o problema central remetia tanto para exiguidade dos
fluxos migratórios como para a diminuta qualificação técnico-
-profissional dos emigrantes. Em 1899, cerca de 17 774 portu-
gueses tinham emigrado, sendo o seu destino principal o Brasil
(13 348), secundado pela África Ocidental sob domínio portu-
guês (1193). Oito anos depois, o total de emigrantes duplicava
(41 950) mas a desproporção entre o destino brasileiro (31 483)
e o destino africano (636) acentuava-se. Os territórios africanos
sob administração portuguesa não constituíam espaços de atracção
dos «fugitivos» portugueses. Por muitos esforços que o Estado
português concentrasse na fixação dos territórios africanos como
destino privilegiado dos emigrantes portugueses, a verdade é que
essas tentativas «falharam e das suas ruínas só desabrocharam
desalentos extremamente perniciosos». Perante a constatação de
que «o nosso emigrante pertence em geral às classes indigentes»,
logo, incapaz de protagonizar a «deslocação importante de capi-
tais» indispensável para o desenvolvimento económico das coló-
nias, urgia, como consideravam alguns, elaborar um programa que
mobilizasse os potenciais emigrantes para os territórios africanos
sob o patrocínio e a tutela do Estado português.5 Mas a verdade é
que os programas de «colonização branca» dos territórios africanos
sob a jurisdição portuguesa constituíam um outro exemplo da
disparidade entre ambiciosos projectos legislativos e convincentes

4
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 219-220.
5
Luís Schwalbach Lucci, Emigração e Colonização. Tese para o Concurso de
Lente Substituto da 2.ª Cadeira da Escola Colonial (Lisboa: Typ. do Annuario
Commercial, 1914), 73-74 e 81-89.

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Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

declarações políticas e a realidade prática e material das colónias.


Como Henrique Galvão sintetizou, a abundância de legislação e
a igualmente copiosa afirmação de princípios e desideratos não
era correspondida por significativos exemplos de colonização e
implantação económica. A retórica inscrita na produção legal do
império esvaziava-se na confrontação com o falhanço da ocupação
maciça e do desenvolvimento económico extensivo do complexo
colonial português.6 As características sociais e técnicas do colono
português não esgotavam as explicações do inegável falhanço dos
sucessivos planos de ocupação da colonização portuguesa. Como
escreveu Gomes dos Santos, os portugueses não conseguiam
responder às exigências do empreendimento colonizador. Cabia ao
Estado desenvolver um metódico programa da colonização, desde
elaboração de «investigações científicas [...] nos seus jardins de
ensaio» até à «propaganda [...] dos recursos naturais das colónias
e os meios de os aproveitar». Mas estas propostas não se dirigiam
de todo ao problema laboral.7
Face a estas debilidades, o Estado português via-se obrigado a
seguir políticas de colonização dirigida de apoio e financiamento
directo aos colonos, debilitando, por consequência, a sua inter-
venção indirecta, ou seja, a canalização dos escassos fundos de
investimento para os aspectos infra-estruturais das colónias. Deste
modo, a opção mais viável, ainda que com resultados pouco palpá-
veis e inibidores da sua própria concretização, era controlar todo
o processo da emigração para África, desde o recrutamento e a
selecção dos colonos ao transporte gratuito, passando pelo forne-
cimento das matérias-primas necessárias às actividades económicas,
primordialmente agrícolas, ou pela disponibilização de alojamento.
A proporção de desempregados no contingente global de
emigrantes nos primeiros seis anos do século XX excedia os
50%. A causa mais provável da emigração residia no «desejo
de melhorar a fortuna» e o fim mais frequente para os colonos
era o «exercício da sua profissão», segundo dados veiculados
na altura. 8 Assim se justificava a necessidade de regular o
processo de emigração, sobretudo para evitar a persistência da
«precária situação da maioria dos incautos emigrantes, impelidos

6
Henrique Galvão, «Um critério do povoamento europeu nas colónias portu-
guesas», Boletim da Agência Geral das Colónias, 8 de Maio de 1932, 3-26.
7
Gomes dos Santos, As Nossas Colonias..., 5-130.
8
Lucci, Emigração e Colonização..., 76.

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O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

de olhos fechados para um âmbito adverso».9 Como recordava


Henrique Barahona da Costa em 1901, João Andrade Corvo, que
acumulava entre outras funções a de organizador das expedições
de obras públicas de Angola, São Tomé e Moçambique, dizia aos
expedicionários que o serviço mais adequado e importante que
podiam prestar à pátria era regressarem vivos das mesmas, acabando
assim com a desconfiança e o receio que as possessões coloniais
inspiravam na metrópole.10 Do conjunto das colónias portuguesas,
Angola era a que mais suscitava um conjunto de imagens forte-
mente repulsivas, associadas tanto à insalubridade do território
como à inevitável hostilidade e ao barbarismo dos indígenas.11 Era
indispensável encontrar um equilíbrio, por instável que fosse, entre
o padrão de descrição e classificação sociocultural das populações
africanas e a elaboração de uma ordem da informação colonial que
constituísse um factor de atracção dos portugueses para o projecto
colonizador.
A emigração era tomada como um factor de disrupção no equi-
líbrio social e económico do país. Uma vez que o Estado não se
podia opor à emigração, «facto de simples responsabilidade indi-
vidual firmado na liberdade do cidadão», deveria canalizá-la, inse-
rindo-a com proveito na economia nacional e no projecto colonial
português, como defendia José Francisco da Silva no Congresso
Colonial de 1901. O «problema da emigração» devia ser elevado à
«categoria de problema nacional» e ser pensado em conjunto com
o aperfeiçoamento da administração colonial portuguesa. Assim, a
feitura de estudos sobre as causas e condições da emigração devia
ser acompanhada pela emergência de uma nova ordem do conhe-
cimento colonial, baseada tanto na produção de informação sobre
a geografia social e económica das colónias como na elaboração
de manuais de instruções coloniais. A Comissão de Emigração
da Sociedade de Geografia de Lisboa deveria ocupar-se de fazer
um «inquérito às condições de recrutamento dos emigrantes»,
organizando «comissões [...] de esclarecimento e protecção aos
emigrantes» na metrópole e «brigadas de estudo» no ultramar, estas

9
Lucci, Emigração e Colonização..., 89.
10
Henrique Barahona da Costa, «O problema das obras publicas nas suas
relações com o progresso e desenvolvimento dos nossos dominios africanos»,
in Congresso Colonial Nacional. Conferências Preliminares (Lisboa: Imprensa
Nacional, 1901), 6.
11
Gerald J. Bender, Angola under Portuguese. The Myth and the Reality
(Londres: Heinemann, 1978), 87-98.

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Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

últimas destinadas a analisar os seguintes pontos: primeiro, estudar


com regularidade as regiões africanas potencialmente acolhedoras
do emigrante português, conhecer a «climatologia, a qualidade
dos terrenos, culturas apropriadas, a população e seus costumes, a
mão-de-obra indígena, meios de comunicação»; segundo, estimar
«orçamentos exactos, simples, e pelos quais o emigrante possa
avaliar o grau de probabilidade dos lucros»; terceiro, promover «a
instrução apropriada ao carácter das províncias que mais alimentam
a emigração da raça portuguesa», com especial incidência nas «rapa-
rigas», o que deveria ser acompanhado da organização de «comis-
sões de patronato de senhoras, cuja alta respeitabilidade garanta à
emigrante um meio austero, digno e carinhoso».12
Foi no interior deste programa de acção, marcadamente proposto
por vários cientistas coloniais em 1901, que se defendeu a dissemi-
nação do conhecimento dos elementos científicos da «geografia
zoológica, botânica e mineral» das colónias, do mesmo modo
que se instauraram disciplinas como «Administração e Legislação
colonial», «Agricultura Colonial» ou «Higiene Colonial».13 Ernesto
de Vasconcellos propunha ainda a fundação de um «Instituto
Colonial» que formasse o «funcionalismo ultramarino», enquanto
o conde de Penha Garcia insistia na «organização de um museu
colonial como centro de informações coloniais», formados na
conjunção de «colecções científicas» e colecções «comerciais» e
decalcado do exemplo inglês, o Imperial Institut, que englobava
uma repartição de emigração que fornecia «esclarecimentos úteis
e exactos aos emigrantes», soba forma de «pequenos livros ou
guias do emigrante».14 O objectivo era comum e radicava na obri-

12
José Francisco da Silva, «Emigração. Assistencia aos emigrantes», in
Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões (1901), 22; Intervenção de José
Francisco da Silva no debate da 1.ª Sessão do Congresso Colonial Nacional, in
Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões, 142.
13
O estudo aprofundado da emergência da ciência colonial em Portugal ainda
está por fazer. Para o caso francês, veja-se o brilhante trabalho de Emmanuelle
Sibeud, Une Science Impériale pour L’Afrique. La Construction des Savoirs Africa-
nistes en France, 1878-1930 (Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales,
2002).
14
Ernesto de Vasconcellos, «Ensino colonial nas escolas superiores. Instituto
Colonial», in Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões (1901), 42-43. Conde
de Penha Garcia, «Bases para a organisação de um museu colonial como centro de
informações coloniais», in Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões (1901),
52, 54-55; John Mackenzie, Propaganda and Empire. The Manipulation of British
Public Opinion (1880-1960) (Manchester: Manchester University Press, 1986),
121-146.

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O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

gatoriedade de o Estado «vulgarizar os conhecimentos proveitosos»


referentes às colónias, com o intuito de «preparar uma opinião
pública esclarecida e de estreitar as relações entre as forças vivas
da metrópole e o nosso império colonial».15 Para tal era necessário
produzir, coligir e organizar um espólio colonial que conferisse
visibilidade à dimensão colonial do país, baseado em «colecções de
mapas, estatísticas, gráficos, mapas das linhas de navegação, tabelas
de fretes, colecções de fotografias, dioramas» e na criação de uma
«Bibliografia Colonial», como defendia o conde de Penha Garcia.16
Contudo, não só estas intenções não se concretizaram de um modo
consistente e continuado, como a emigração portuguesa para as
colónias africanas se manteve insignificante. De qualquer modo,
o paradigma da educação para a colonização surgia a acompanhar
o dominante paradigma do trabalhar para civilizar, ainda que sem
sucesso e claramente menosprezada na prática. Como é fácil de
entender, esta relação era fundamental para o desenrolar da questão
da mão-de-obra indígena nas colónias portuguesas.
Em 1913, num relatório assinado pela direcção da Sociedade
de Geografia de Lisboa, referente aos trabalhos levados a cabo
por uma Comissão de Estudo dos Problemas Coloniais (nomeada
em 11 de Dezembro de 1911), podia ler-se que a «melhor
maneira de respondermos aos nossos detractores» residiria na
adopção de «uma série de providências que [...] demonstrassem os
nossos conhecimentos coloniais» de modo prático e «científico».
Pugnando pelo «ressurgimento ultramarino» e pela criação de uma
«opinião colonial», a Sociedade de Geografia de Lisboa atacava a
instabilidade das sucessivas administrações coloniais portuguesas e
a ausência de uma orientação «prática», ecoando a série intermi-
nável de discursos proferidos no seu interior desde a sua fundação.
A comissão identificava um conjunto de «problemas ultramarinos»
que urgia serem devidamente estudados. Elencando uma série

15
Conde de Penha Garcia, «Bases para a organisação do ensino colonial prático
nas escolas de agricultura, do commercio e nos institutos industriaes, com largo
desenvolvimento da geographia economica e estudo especial das nossas riquezas
coloniaes e suas relações com a economia nacional», in Congresso Colonial
Nacional. Actas das Sessões (1901), 45.
16
Conde de Penha Garcia, «Bases para a organisação de um Museu Colo-
nial como Centro de Informações Coloniaes», in Congresso Colonial Nacional.
Actas das Sessões (1901), 55; Conde de Penha Garcia, debate da 2.ª Sessão do
Congresso Colonial Nacional, in Congresso Colonial Nacional. Actas das Sessões
(1901), 153-154.

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Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

de estudos geográficos, geológicos, mineiros, botânicos («tendo


por fim o desenvolvimento da riqueza agrícola e florestal das
nossas colónias» e a «criação de fazendas e plantações destinadas
à exploração das plantas indígenas»), zoológicas, antropológicas e
etnográficas, o relatório abordava os aspectos relativos ao regime
económico e à administração das colónias portuguesas que consi-
derava serem mais problemáticos. No caso do regime económico,
a questão central punha-se, como não podia deixar de ser, na
necessidade de regulamentação do trabalho indígena, na definição
de um programa de obras públicas que resolvesse as deficiências
comunicacionais terrestres e fluviais, no estabelecimento de uma
política comercial «luso-colonial» coordenada e na especificação
das «leis das terras». No caso da administração colonial, a questão
essencial situava-se na «necessidade de se elaborar um vasto plano
[...] para se adoptar independentemente da orientação política
dos partidos do governo». Passados dez anos das solenes confe-
rências do primeiro congresso colonial português, renovavam-se
princípios e objectivos de ocupação e colonização científica das
colónias portuguesas mas reconhecia-se simultaneamente a sua
inconsequência, tanto na formação de uma ordem da informação
colonial como na ocupação efectiva e regulada dos seus territórios.
O problema da mão-de-obra indígena e o da escassez de recursos
humanos, materiais e financeiros eram apenas dois itens num
extenso e complexo catálogo de dificuldades que só uma sciência
colonial poderia resolver e superar.17
Regressando ao problema da emigração colonial, a emigração
asiática, o recurso aos coolies, trabalhadores indianos ou chineses,
foi outra das soluções preconizadas e utilizadas, permitindo atenuar
«os efeitos da crise que se sucedeu ao desaparecimento da escravidão
nas colónias». O reconhecimento da sua resistência ao trabalho, da
sua «sobriedade excepcional» e o facto de se contentarem com
salários reduzidos não constituíam virtudes suficientes para anular
uma característica inaceitável no interior do projecto civilizador
colonial: serem portadores dos «vícios da civilização asiática» pela
simples razão de pertencerem às «camadas mais baixas» das suas
sociedades de origem. Esta assunção levara um distinto teórico

17
Relatório ácerca do Estudo dos Problemas Coloniaes (Lisboa: Sociedade de
Geografia de Lisboa, 1913), 3, 5-8.

116
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

colonial a afirmar que a emigração em larga escala dos coolies seria


mais perigosa que a manutenção da escravidão.18
O recurso a contingentes de trabalhadores oriundos dos terri-
tórios africanos era, assim, inevitável, até porque, como escreveu
Marnoco e Souza, a escravidão revelara a «aptidão para o trabalho
e a força de resistência da raça negra».19 Como resumira anos antes
uma comissão composta por António Enes, Luís Poças Falcão,
Anselmo de Andrade, Brito Godins e Paiva Couceiro num do-
cumento intitulado Relatório sobre o Trabalho dos Indígenas de
1899, «arrotear Angola, Guiné, Moçambique com o trabalho espon-
tâneo de brancos [...] seria o mesmo que semear a ruína», sendo
que só o «negro» poderia «fertilizar a África adusta». Uma vez que
se tratava de uma «raça» que ainda não produzira «por esforço seu
espontâneo um só rudimento de civilização» seria improvável que
dela se tirassem «legiões de obreiros de progresso senão actuando
sobre ela com todos os incentivos e todas as compulsões de uma
tutela [...] enérgica e forte nos processos». Uma vez que a auto-
nomia individual de cada «ser racional» não deveria ser tomada
como «tabernáculo tão intangível que lhe não toque o Estado»,
seria absolutamente aceitável que a «compulsão» se exercesse sobre
«entes quase impensantes e impulsivos», desviando-os da ociosi-
dade, «mais ruinosa que o jogo, mais deletéria que a libertinagem
e quase tão aniquiladora como o suicídio».20 O paradigma da
obrigatoriedade do trabalho enquanto instrumento de civilização,
claramente associado a um imperialismo de obrigação e de inevi-
tabilidade, predominava e, com ligeiras adaptações (como veremos
na segunda parte deste trabalho), continuaria a predominar. Longe
de ter transformado os dados essenciais da questão, o processo
político-diplomático e económico que conduziu à questão do cacau
escravo fomentou um refinamento das modalidades de justificação
dos modelos laborais em contexto colonial, em muito devedor dos

18
Anos antes, Gomes dos Santos apreciara a disponibilidade dos «asiáticos»
para o trabalho de modo diferente, salientando a sua tendência para «explorar o
trabalho alheio». Gomes dos Santos, As Nossas Colonias..., 148, 175; Marnoco e
Souza, Administração Colonial..., 566-570.
19
A autoria desta afirmação é atribuída a Paul Leroy-Beaulieu, um dos mais
citados pensadores nos manuais de administração colonial portugueses. Marnoco
e Souza, Administração Colonial..., 571.
20
Cit. in Lucci, Emigração e Colonização, 92; Valentim Alexandre, Origens
do Colonialismo Português Moderno, 1822-1891 (Lisboa: Sá da Costa Editora,
1979), 216-217.

117
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

fundamentos da emergente sciência colonial e dos seus traços de


darwinismo social.
O modelo de recrutamento de mão-de-obra em territórios
africanos encerrava, para além do mais, uma série de vantagens
económicas, que se traduziam numa redução de custos nos em-
preendimentos de tipo capitalista, os quais emergiram nos finais do
século XIX na sequência das ocupações efectivas dos espaços coloniais.
Uma vez que a contratação tendia a ser por um período relativa-
mente curto (dois a cinco anos21), os empregadores conseguiam
reduzir os custos com os serviços de saúde ou com escolas a um
mínimo possível. Essa responsabilidade passava para a contabili-
dade do erário público. Por outro lado, o facto de os contingentes
de serviçais serem contratados (independentemente do grau de
liberdade de escolha com que tal sucedia e dos termos reais do
seu enquadramento jurídico) implicava que a regulamentação do
processo de contratação incluísse fortes penalizações ao incumpri-
mento contratual para ambas as partes. A deserção ou o absentismo
eram sujeitos a uma moldura penal e mais facilmente controláveis e
convocáveis enquanto mecanismo dissuasor ou punitivo, na medida
em que os trabalhadores, desenraizados das suas comunidades de
origem e isolados nas roças ou nas minas, não tinham propriamente
um destino atraente ao seu redor. Estas condições de trabalho
favoreciam igualmente a rentabilização do quotidiano laboral,
facilitavam a vigilância e o controlo da mão-de-obra e tornavam
os horários maleáveis. Impediam, também, o desenvolvimento de
uma consciência proletária.22
Apesar de constituir uma inevitabilidade civilizadora para os
teóricos coloniais e uma solução eficaz para os interesses comer-
ciais e capitalistas, tal como para as administrações coloniais, o
modelo do trabalho contratado baseado na emigração tinha as suas
desvantagens. O facto de os salários serem diminutos conferia um
carácter pouco atractivo às propostas de emprego. O que gerava
métodos de recrutamento pouco consentâneos com a apregoada

21
O período de duração dos contratos foi inversamente proporcional ao
volume e à intensidade das pressões externas. Se em 1875, 1878 e 1899, segundo
a legislação do trabalho indígena, a duração máxima de cada contrato era de cinco
anos, no regulamento de 1911 o limite situava-se já nos dois anos. José de Almada,
Apontamentos Históricos sôbre a Escravatura..., 42-47.
22
Leroy Vail e Landeg White, Capitalism and Colonialism in Mozambique:
A Study of Quelimane District (Londres: Heinemann, 1980), 145.

118
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

liberdade de contratação e com os preciosismos retóricos inclusos


nos regulamentos do putativo humanismo civilizador. No mesmo
processo, os curadores e os cipaios justificavam as regulamentações
de carreira na administração pública colonial e adquiriam uma
extrema importância em todo o sistema de mão-de-obra indígena
operante nas colónias portuguesas, ao ponto de Miranda Guedes ter
aconselhado que a curadoria deveria ser entregue a um magistrado
que impusesse «uma linha imparcial e absolutamente independente»
e que os «emolumentos ao Curador e pessoal da Curadoria»
fossem suprimidos.23 A regularização e a legalização do processo
de importação, forçada ou contratualizada, de mão-de-obra nativa
criava assim, em potência, condições óptimas para a continuidade e o
desenvolvimento da economia colonial, sem contudo garantir o fim
dos tradicionais abusos, condicionada que estava pelos contextos
políticos, económicos e sociais coloniais e pela ideologia colonial
metropolitana. Mas não sem alguns sobressaltos.
Dois factores acentuavam a instabilidade prática do modelo de
organização do trabalho indígena e exigiam novas estratégias. Por
um lado, os custos do recrutamento de mão-de-obra aumentaram,
na proporção dos intermediários envolvidos num mercado regulado
por uma administração pública ela própria com dificuldades de
recrutamento de funcionários e com orçamentos reduzidos. Num
documento intitulado Representação dos Agricultores e Comerciantes
de S. Tomé á Camara dos Deputados contra o Decreto de 1 de
Outubro de 1913, os seus subscritores revelavam-se «vexados» com
a publicação do referido decreto, entre outros aspectos porque este
continuava a reconhecer e a autorizar os cargos de agentes de recru-
tamento e emigração de serviçais, propondo o seu desaparecimento
na medida em que tal possibilitaria a regulação da «especulação
mercantil» que caracterizava o sistema de recrutamento de mão-
-de-obra indígena e «baratearia consideravelmente a mão-de-obra
nesta província».24 Por outro, nem todas as áreas perpassadas pelas
antenas das várias administrações coloniais tinham uma densidade
populacional elevada e eram fontes abundantes de mão-de-obra. Se
de outro modo fosse, a persistência histórica das razias não faria
sentido algum. A necessidade de mão-de-obra para o desenvolvi-

23
A Miranda Guedes, S. Thomé..., 33.
24
Representação dos Agricultores e Comerciantes de S. Tomé á Camara dos
Deputados contra o Decreto de 1 de Outubro de 1913 (São Tomé: Imprensa da
«Voz», 1913), 3, 6.

119
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

mento da esfera capitalista esbarrava nas debilidades das adminis-


trações coloniais, no carácter meramente arterial da sua projecção
territorial. A competição pelos recursos laborais indígenas aumen-
tava, envolvendo grande parte das potências coloniais. O indígena
era tão valioso como os produtos coloniais num sistema de trocas
em desenvolvimento desenfreado. O Estado e a administração
colonial deviam «garantir a necessária mão-de-obra» aos colonos,
do mesmo modo que lhes deviam «fornecer todos os meios de
protecção e de auxílio, que lhes possam facilitar a marcha dos
seus negócios e permitir lutar com vantagem com a concorrência
estrangeira», como defendia Ruy Ennes Ulrich.25
A existência de um mercado competitivo desenhado em torno
da migração laboral e as condicionantes conjunturais de tipo polí-
tico exigiam assim uma capacidade de inovação e adaptação por
parte dos empregadores, bem como uma atenção redobrada por
parte das administrações coloniais. A criação de uma companhia
denominada Empresa Agrícola de Lugella em Moçambique, em
1906, que simbolizava a reorientação geográfica no mercado de
mão-de-obra nas colónias portuguesas e em cuja formação Fran-
cisco Mantero deteve um papel crucial constituía um exemplo da
resposta dos agricultores à escassez de serviçais disponíveis para a
economia de plantação em São Tomé e Príncipe. Apropriando-se
dos prazos de Milange, Lugella e Lomwe, subalugados à Companhia
da Zambézia, que não seriam proveitosos do ponto de vista agrícola
por razões associadas à acessibilidade, à presença da tsé-tsé e à
resistência continuada dos habitantes nativos, a Empresa Agrícola
de Lugella aproveitava o isolamento desses prazos e a densidade
populacional da região para estabelecer processos de recrutamento
compulsório mais ou menos explícitos, visando o fornecimento de
mão-de-obra à colónia de São Tomé. Em 1911, o cônsul britânico
em Moçambique, R. Maugham, visitou Lugella e encontrou uma
região outrora densamente habitada com uma população reduzida
e vivendo em extremas condições de pobreza. Maugham tinha
sido destacado por Edward Grey para Lourenço Marques, com o
objectivo de avaliar o sistema de recrutamento de serviçais originá-
rios de Moçambique. A colónia de Moçambique tinha substituído
Angola como origem do fornecimento de serviçais para São Tomé,
25
Ruy Ennes Ulrich, Política Colonial. Lições feitas ao curso do 4.º anno
juridico no anno de 1908-1909 (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1909),
128-129.

120
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

após as denúncias sobre os processos de recrutamento envolvidos


no fornecimento de mão-de-obra de Angola para a referida coló-
nia.26
Perante o facto de os governadores de distritos não comuni-
carem obrigatoriamente a sua intervenção no recrutamento de
mão-de-obra ao governador-geral, sediado em Lourenço Marques,
Maugham recorreu ao testemunho do agente consular britânico em
Quelimane, Wuilleumier. Foi com base num relatório do agente
consular que Maugham enviou a Grey as suas impressões. Wuil-
leumier descrevia o processo de recrutamento de tal modo que
Grey ordenou a Maugham que se deslocasse a Quelimane. Denun-
ciando o envolvimento do responsável oficial pela Emigração para
São Tomé, o agente consular britânico salientava a intervenção
dos agentes oficiais que deveriam, pelo contrário, fiscalizar a
contratação de mão-de-obra: pagamentos ao médico responsável
pela avaliação e certificação da condição física dos indígenas e ao
seu curador. Segundo ele, o método de recrutamento assentava
na oferta de pequenas somas em dinheiro e de peças de roupa a
cada indígena que se dispusesse a ir para a colónia de São Tomé,
partindo do princípio inalienável de que cada anuência represen-
tava um contrato assinado.27 Uma vez contratados, os trabalha-
dores eram aconselhados a cantar para que qualquer suspeita se
dissipasse nas melodias. Simulando uma viagem com propósitos
lúdicos (caça), Maugham teve como destino Lugella, numa expe-
dição de três semanas. Mas o processo de recrutamento envolvia
ainda deslocações certeiras aos territórios mais esconsos da região,
protagonizadas pelos cipaios. Quem não provasse que estava
empregado era acusado de vadiagem. O decreto de 1875, bem
como as posteriores reformulações, eram aplicadas com mestria.
O relatório de Maugham foi enviado a Edward Grey e funcionou
como fundamento inquestionável das pressões várias que conti-

26
Leroy Vail e Landeg White, Capitalism and Colonialism in Mozambique...,
166. Ver ainda Eduardo do Couto Lupi, Relatório do Governador do Districto de
Quelimane, 1907-1909 (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1910), 93.
27
Alguns anos antes, como vimos, segundo o testemunho de D. R. W. Bourke
(Earl of Mayo) na sua obra De Rebus Africanis (1883), o método de recrutamento
era distinto. Uma vez reunidos perante os oficiais do governo, os indígenas eram
sujeitos a um breve interrogatório baseado em questões como «estás com fome?».
Uma resposta positiva declarava a sua vontade de ir para São Tomé nos cinco anos
seguintes. Cit. in Almada, Apontamentos Históricos sôbre a Escravatura..., 9.

121
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

nuaram a ser lançadas sobre Portugal, tendo como epicentro o


modelo de trabalho contratado que sustentava a economia colonial
portuguesa. Apesar das reclamações dos roceiros, a administração
colonial portuguesa promovia e protegia, directa ou indirectamente,
os seus interesses.28

Das «dificuldades de levar os indígenas a trabalhar»

Ao contrário do que sucedia nas populações europeias, onde o


«hábito do trabalho» existia «inveterado por uma longa heredita-
riedade» e era uma «consequência fatal das múltiplas necessidades
que acorrentam o homem civilizado», as populações de África
foram frequentemente associadas a deficientes «faculdades de
trabalho» e a uma reduzida «capacidade produtora», características
resultantes do carácter «rudimentar» das suas «necessidades».
A «fertilidade exuberante das zonas tropicais» possibilitava sem
custo a sua alimentação («bananas e as panjas de amendoim,
mapira e mandioca») e providenciava «a dose de sura indispen-
sável aos batuques e à embriaguez». Era deste modo que Sampaio
e Mello sintetizava as visões que associavam ao indígena africano
uma predisposição para a ociosidade, com as quais aliás este não
concordava. Não porque neste entrevisse o contrário, mas sim
porque face ao «estado social» da sua evolução outra coisa não
seria de esperar: «Se o trabalho é um grilhão inquebrável soldado
à existência humana pela condição civilizada; se o trabalho é um
hábito que a necessidade gera e a civilização confirma; se final-
mente como causa ou como efeito está indissoluvelmente ligado
à perfeição do estado social, como se poderá razoavelmente exigir
que o negro selvagem trabalhe à semelhança do branco civilizado?»
É no estabelecimento de uma perspectiva crítica relativamente à
defesa que Oliveira Martins ou Aspe-Fleurimont faziam do regime
de trabalho indígena obrigatório que Sampaio e Mello explanava

28
As revelações acumularam-se em títulos de jornais e incluíam relatos críticos
sobre as condições gerais das prisões portuguesas. É neste contexto que Vail e
White colocam as célebres discussões sobre uma eventual partilha das possessões
coloniais portuguesa pelos ingleses e pelos alemães, sendo Edward Grey um
dos principais apoiantes de tal ideia. Leroy Vail e Landeg White, Capitalism and
Colonialism in Mozambique..., 184-187.

122
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

e concluía o seu raciocínio: «Não queiramos impor abruptamente


hábitos que eles desconhecem», até porque se o trabalho obriga-
tório oferecia vantagens imediatas acarretava efeitos perniciosos
no «adiantamento social das suas populações». A questão passava
acima de tudo pela paciente e persistente indução do indígena
ao trabalho, baseada na criação de «necessidades» inéditas que o
pressionassem a tal. Mas a defesa do trabalho redentor não pene-
trara ainda «no cérebro rudimentar e acanhado do negro selvagem.
O negro considera todo o trabalho salariado como uma escra-
vidão», como afirmava Marnoco e Souza.29
Como vemos, a persistência de denúncias relativamente ao
regime laboral das colónias portuguesas e a urgência em ripostá-
-las gerava considerações menos científicas. Tendo como pressu-
posto inquestionável o facto de que «os pretos não são amigos
do trabalho, e a ele sem dificuldades se esquivam porque não
têm necessidades», Freire de Andrade sintetizava os esforços
dos países colonizadores no objectivo de contrariar tal suposta
predisposição para o ócio, desiderato assente numa variedade de
processos complementares rumo à «civilização»: «os impostos»,
«as leis repressivas da vagabundagem», os «contratos de prestação
de serviços», a «corvée» (o trabalho forçado) e a «escravatura».30
O que é relevante nesta tipologia ensaiada por Freire de Andrade,
claramente devedora das obras de Marnoco e Souza e de Sampaio
e Mello, e onde a «escravatura» parece surgir como uma primeira,
ainda que inaceitável, solução para a apregoada resistência nativa
a formas organizadas de trabalho, é precisamente a articulação
de uma representação sociocultural e psicológica do «indígena»,
fundada na analogia com a preguiça e a vagabundagem, com um
conjunto de modelos e programas de socialização pelo trabalho,
«directos ou indirectos», inserido numa retórica civilizadora antiga.
A abolição da escravatura colocara novos problemas e exigira novas
soluções. O trabalho, forçado ou não, transformou-se num meca-

29
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 221-223, 225; Marnoco e Souza,
Administração Colonial..., 557.
30
Carta dirigida a William Cadbury, com data de 30 de Dezembro de 1912,
em resposta ao seu relatório intitulado Os Serviçaes de S. Thomé e a uma carta
deste publicada na distinta revista inglesa Nineteenth Century. Augusto Freire de
Andrade, A Questão dos Serviçaes de S. Thomé. Carta de A. Freire D’Andrade
(Lisboa: Edição da Agência Colonial, Typografia do Anuário Comercial,
1913), 3.

123
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

nismo de punição da ociosidade e, assim sendo, um mecanismo


de civilização. E a civilização era uma obrigação e, face ao estado
social evolutivo das populações nativas, era igualmente inevitável.
Esta lógica circular, que governava os textos e os discursos colo-
niais portugueses desde finais de Oitocentos, adequava-se em pleno
às exigências político-económicas da colonização e permitia gerir
as pressões externas.
Num extenso e esclarecedor relatório de 1913, delineado como
uma resposta oficial ao conteúdo do livro do reverendo John H.
Harris, Portuguese Slavery: British Dilemma (1913), mas em rigor
centrado na contestação de um conjunto variado de acusações,
Freire de Andrade, na altura director-geral das Colónias, clarificava
esta perspectiva no capítulo intitulado «Dificuldades de levar os
indígenas a trabalhar».31 O reconhecimento de que os «interesses
comerciais e industriais» nas colónias reclamavam um incremento
da produtividade laboral dos nativos implicava que se repensassem
os modelos de recrutamento, organização e regulamentação do
«trabalho indígena». O obstáculo principal da concretização de um
novo modelo de incorporação e rentabilização da «mão-de-obra
indígena» na economia colonial residia na «duvidosa capacidade e
inclinação natural» dos indígenas para o trabalho. Hábitos seculares
como a escravidão doméstica, que teria facilitado «a introdução do
tráfico de escravos» no passado «com todos os seus efeitos desmo-
ralizadores», reforçariam as tendências «preguiçosas, pouco activas
e inertes» que caracterizariam as populações nativas, sobretudo a
de Angola: «Efectivamente o preto de Angola é selvagem e dos
mais inferiores na escala da civilização e inteligência.»
Para o relator, a questão era clara, a argumentação reincidente:
ou se deixava o «indígena seguir a sua inclinação, sem desenvolver
a possível agricultura e indústria do país, e portanto sem civilizar
o próprio indígena», ou se procurava «forçar este, empregando
processos humanos, justos e legais, a trabalhar em proveito próprio
e da civilização».32 Só assim este estaria habilitado a entrar no
«grémio da civilização».33 Nem a propaganda cristã e a educação
religiosa detinham as virtudes civilizadoras do trabalho, na medida

31
A. Freire de Andrade, Relatório Feito pelo Director-Geral das Colónias..., 4-24.
32
É a partir de uma citação de um excerto de uma obra de Paul Reinsch,
Colonial Administration, que Freire de Andrade desenvolve os seus argumentos.
Freire de Andrade, Relatório feito pelo Director-Geral das Colónias..., 4-5, 25.
33
Marnoco e Souza, Administração Colonial..., 573.

124
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

em que não estavam capacitadas para depurar hábitos que «se


enraizaram no corpo e no espírito». Freire de Andrade acrescentava
ainda que «no cafre cristão e educado de hoje não será difícil desco-
brir o selvagem sob a camada artificial com que tentarem encobri-
-lo», o que implicava que este, «mascarado pelas exterioridades»,
se julgasse «aquilo que não é» e julgasse possuir «direitos que nas
comunidades já civilizadas só foram conquistados e compreendidos
por uma evolução que levou séculos a efectuar-se».34 A resposta
a este «dilema» era dada pela «Opinião do Mr. Chamberlain»,
mediante a citação de um discurso de Maio de 1898, na Câmara
dos Comuns: «Com uma raça deste tipo, eu duvido que vocês o
possam fazê-lo >induzir os indígenas ao trabalho@ meramente com
recurso à pregação. Acho que é absolutamente necessário recorrer
à indução, ao estímulo ou à pressão se quiserem obter um resul-
tado que é desejável segundo os interesses da humanidade e da
civilização».35
Os «métodos» preconizados para obter a mão-de-obra indígena
subdividiam-se em dois tipos: os métodos directos e os métodos
indirectos. No interior do primeiro tipo, encontravam-se duas solu-
ções possíveis, uma remetia para o restabelecimento da escravatura,
a outra para o trabalho obrigatório. No cerne do segundo, estavam
as soluções do imposto indígena, da repressão da vadiagem, do
desenvolvimento das necessidades, da regulamentação do contrato
de trabalho (submetido a um enquadramento legal) e a da educação
profissional. No que diz respeito aos métodos directos, apesar do
facto de serem tomados claramente como inaceitáveis no interior
dos mais variados discursos políticos e das codificações jurídicas
nacionais e internacionais, a verdade é que, na primeira década do
século XX, existiam segmentos colonialistas que avaliavam o recurso
à reimplantação do sistema de escravatura, fruto da conjugação de
perspectivas de raiz darwinista social com as evidentes inquietações
face à escassez de mão-de-obra indígena e com a ineficácia dos
procedimentos indirectos. Face à resistência nativa ao trabalho, a

34
A. Freire de Andrade, Relatórios sobre Moçambique (Lourenço Marques
Imprensa Nacional, vol. II, 1908), 62 e segs.
35
O excerto apresentado está em itálico, ao contrário do resto da citação feita
por Freire de Andrade. Mais uma vez é interessante notar que a mesma citação
já tinha sido incluída para justificar a solução do trabalho obrigatório na obra
de Sampayo e Mello. Freire de Andrade, Relatório feito pelo Director-Geral das
Colónias..., 6; Sampayo e Mello, Política Indígena..., 243.

125
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

renúncia à introdução no continente africano das «ideias de homens


civilizados em matéria de liberdade e de igualdade» era inevitável,
como defendia Aspe-Fleurimont, teórico colonial francês, um dos
autores que representavam a tendência que preconizava restauração
das escravatura.36
Face ao carácter negativo do complexo de representações
projectadas sobre as populações nativas, governado por uma matriz
discursiva civilizacional de tipo evolucionista, que constituía um
recurso argumentativo ora ao serviço de programas filantrópicos
e humanitários, ora ao serviço de posições retrógradas e racistas,
a propagação da benfazeja civilização europeia «com o arsenal
das suas regras complicadas em matéria de direito individual e
de propriedade, sem falar das >suas@ engrenagens políticas, judi-
ciárias e administrativas» não teria justificação. Não se tratava de
propor o abandono dos territórios africanos, mas sim de, «sendo
oportunistas», se defender a utilização de uma «instituição várias
vezes secular, universal, aceite por todos e que os poderes locais
são obrigados a tolerar pelo menos entre os indígenas. É a escra-
vidão, palavra malsoante, mas que na verdade difere essencialmente
do que era a antiga instituição, com o seu cortejo de sevícias, de
horrores e crueldades.» A secular instituição indígena da escra-
vatura doméstica assegurava o sucesso do retorno à escravatura.
A escravatura doméstica, vista como altamente vantajosa para os
régulos e assente nas práticas de «mestiços, antigos degredados e
indígenas», servia, por outro lado, para justificar a persistência da
escravatura no continente africano, desviando as responsabilidades
tanto da administração colonial como dos interesses particulares.37
Em suma, em certas condições a civilização podia depender da
reintrodução da escravatura. A resistência ao instrumento por exce-
lência da missão civilizadora – o trabalho – assim o determinava.
Além de ser tomada como atentatória da moral e do humanismo
dominante (mas de outros tipos de «humanismo»), a possibilidade
da reimplantação da escravatura suscitou uma reanálise do passado,
sobretudo centrada na avaliação do seu impacto económico. Por
um lado, posicionavam-se argumentos que salientavam que o
modelo esclavagista se revelara indispensável em função da escassez

36
Tese de Aspe-Fleurimont, inscrita no seu «La colonisation française», Revue
Internationale de Sociologie, vol. X, referida em Marnoco e Souza, Administração
Colonial..., 564.
37
A. Freire de Andrade, Relatório Feito pelo Director-Geral das Colónias..., 11.

126
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

e insuficiência inicial de meios de produção e propiciara um desen-


volvimento assinalável no volume de riqueza extraído das colónias,
bem como na diversificação da produção dos géneros coloniais.
Como seria de esperar, apesar da constatação do facto de o sistema
de escravatura ser mais dispendioso, a defesa do modelo sustentava-
-se no facto de providenciar a constância da mão-de-obra indígena
disponível, inalcançável se dependente da iniciativa das populações
africanas e indispensável face à exiguidade da presença europeia nas
colónias. Por outro lado, situavam-se as perspectivas filiadas em
preocupações com o equilíbrio social das sociedades coloniais, que
denunciavam a brevidade dos benefícios económicos e sublinhavam
os efeitos perversos dessa «instituição», que formava «sociedades
anormais, não só do ponto de vista moral, como sob o ponto de
vista económico, sociedades desprovidas de todos os elementos
de estabilidade industrial, entregues inteiramente à produção de
géneros de luxo destinados à exportação», conducentes a uma
exploração intensiva e ao subsequente esgotamento dos solos.38
O sistema de trabalho obrigatório constituía uma alternativa
para os que não tinham a ousadia de propor a reimplantação da
escravatura. A finalidade era a mesma: garantir pela coacção a
mão-de-obra indígena necessária à prossecução do programa colo-
nizador, tanto no que remetia para a execução de obras públicas,
como no que dizia respeito ao fornecimento de mão-de-obra às
explorações particulares. Existiam três tipos de procedimentos que
consubstanciavam o trabalho obrigatório: a corvée, as prestações
de serviço e as requisições. A corvée baseava-se no princípio da
obrigatoriedade de prestação de um serviço comunitário, com a
duração variável de colónia para colónia e não remunerado. Em
rigor tratava-se de um imposto pago em trabalho que possibili-
tava inúmeros abusos, desde a «construção de obras inúteis para
os indígenas e até para os colonos» até à sua utilização para fins
produtivos de particulares. Procedimento análogo, as prestações e
as requisições de trabalho constituíam os procedimentos mais bana-
lizados no continente africano, sendo a requisição de carregadores
o exemplo mais frequente. Na raiz desta solução encontrava-se a
afirmação da necessidade de se obviar o abandono dos indígenas «a
uma vadiagem miserável e desenfreada, nociva à raça e ruinosa para

38
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 238. (Citação atribuída a Leroy
Beaulieu.)

127
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

a colónia». Para além disto, se os europeus eram submetidos a um


recrutamento militar obrigatório e eram «moralmente constran-
gidos a trabalhar», a aplicação do modelo de trabalho compelido aos
indígenas não permitia dúvidas quanto à sua legitimidade, sobre-
tudo se orientada para «criar nos indígenas um estado intermédio
entre a ociosidade ferrenha a que estes se entregam, e o regime de
trabalho livre adoptado na Europa».39
Contudo, os métodos indirectos recolhiam a maioria das prefe-
rências dos teóricos coloniais, na medida em que eram considerados
«suficientes para furtar o preto à inactividade» e não implicavam a
disseminação no «espírito limitado e impressionável» dos indígenas
de uma ideia do trabalho como um «fardo pesado e odioso», «uma
imposição injusta dos dominadores»40. Um dos métodos indirectos
mais apreciado era o «imposto indígena», justificado como justo na
exacta medida em que era visto como uma «compensação da paz e
segurança» que o domínio europeu trouxera ao continente africano.
A existência dessa obrigação tributária, materializada por exemplo
no imposto da palhota sob a forma de uma contribuição predial,
pressionaria o indígena ao trabalho, uma vez que era quase sempre
desproporcional com a capacidade tributável do africano. Outro
tipo de procedimento frequentemente aplicado, como temos visto,
era a repressão da vadiagem que tinha como propósito fundamental
anular a banana-patch civilization, expressão de Paul Reinsch para
sintetizar o que caracterizava, no seu entender, o quotidiano das
populações africanas.
Em 1901, Francisco Mantero reclamara a aplicação de disposi-
ções legais firmes contra a vadiagem, sugerindo a criação de «corpo-
rações de polícia urbana e rural aplicada especialmente à perseguição
dos vadios» e a «instituição de depósitos penais em cada concelho
para vadios incorrigíveis, aproveitando-se o trabalho em obras de
estradas e saneamento».41 Nos relatórios que testemunham a obra
governativa de Freire de Andrade em Moçambique, este afirmava
que a vadiagem não podia ser uma «regalia do preto», invocando
que «as necessidades da civilização nas grandes cidades obrigam
ao mais duro e terrível trabalho o homem, a mulher e até a criança
branca do que aquele que hoje é implorado e pago por elevado

39
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 239, 241 e 243; Marnoco e Souza,
Administração Colonial..., 565-566.
40
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 242-243.
41
Mantero, «Regimen do trabalho em S. Thomé e em Angola», in Congresso
Colonial Nacional. Actas das Sessões (1901), 61.

128
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

salário ao preto africano».42 Mas para Sampaio e Mello, como para


Marnoco e Souza, a repressão da vadiagem trazia inconvenientes
de monta, uma vez que constituía um hábito, assente numa «here-
ditariedade secular», das populações africanas, o que explicaria as
formas de resistência que estes adoptavam, que iam desde a compra
de uma pequena parcela de terreno (o que os resgatava da moldura
penal), até à fuga para regiões onde a vadiagem não era sujeita a
penalizações que revertessem na obrigatoriedade do trabalho.43
A necessidade de «cepilhar as protuberâncias morais do carácter
indígena, tais como a indolência inata e o rotineirismo improgres-
sivo», implicava a aplicação de «métodos lentos e graduais», que
não violassem as «instituições indígenas».44
O primeiro desses métodos residia no «desenvolvimento das
necessidades» dos indígenas, na medida em que, como já foi refe-
rido, o motivo principal que conduzia à actividade laboral radicava
no desejo de satisfação das «necessidades físicas». Uma vez que as
necessidades que afligiam as populações africanas eram escassas, a
solução encontrava-se na «complicação» das mesmas, sobretudo
por intermédio da «convivência com os brancos» e de «uma hábil
e activa propaganda comercial».45 Como argumentara Almada
Negreiros por ocasião do Congresso Colonial Internacional de
1900, o «comerciante» era o principal agente do projecto civili-
zador, figura central de um amplo movimento dominado por uma
intensificação das expedições comerciais e científicas, não militares,
com o claro propósito de apressar a diversificação de necessidades
das populações indígenas.46 A troca comercial instituía-se como
canal de miscigenação cultural e como instrumento de civilização,
chegando ao ponto de justificar o exame prévio dos agentes comer-
ciais e um controlo apertado do conteúdo das malas dos caixeiros
viajantes em territórios africanos, em muito devido à propagação
da comercialização dos espirituosos, bem como a ponderar-se o
estabelecimento de «missões comerciais» que não só formassem
e educassem os «comerciantes coloniais» como se deslocassem
aos territórios africanos para, «enquanto não forem resolvidos os

42
A. Freire de Andrade, Relatórios sobre Moçambique..., vol. II, 60 e segs.
43
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 254; Marnoco e Souza, Administração
Colonial..., 560.
44
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 253.
45
Idem, 247.
46
António Lobo de Almada Negreiros, La Main-d’Oeuvre en Afrique (Paris:
1900).

129
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

inúmeros e intrincados problemas da patologia tropical», servirem


de mecanismo de civilização com o objectivo específico de facilitar
a «coadjuvação do indígena». O comércio era tomado como «um
dos principais elementos para o alargamento da nossa influência
política e para a expansão dos nossos processos educativos», lado
a lado com as missões católicas.47
Freire de Andrade apontava numa direcção semelhante nos
propósitos, distinta nos procedimentos: «Enquanto o negro puder
circular seminu ou coberto de farrapos [...] não teremos missio-
nários nem raciocínios que convençam o indígena a abandonar
hábitos que adquiriu pela força da prática de remotos séculos».
Sampaio e Mello partilhava esta valorização do vestuário, refe-
rindo que era necessário reconhecer «o benéfico influxo que
duplamente resultou, para a expansão das transacções comerciais
e para o aumento da mão-de-obra, dos regulamentos que em
algumas localidades das colónias inglesas obrigaram os indígenas a
trajar por forma semelhante aos europeus».48 Conjuntamente com
a educação profissional, que teve um impulso fundamental, se bem
que de diminuta ressonância, nas colónias portuguesas a partir do
decreto de 18 de Janeiro de 1906, desenhado nas suas linhas gerais
pelo conselheiro Moreira Júnior, a regulamentação dos contratos
de trabalho finalizava o reportório de soluções que orientavam os
esforços oficiais de regulação do mercado da mão-de-obra indígena.
Para Freire de Andrade, a regulamentação dos contratos de trabalho
que envolviam as populações indígenas resultava da sua «falta de
educação e espírito acriançado».49
A formatação da educação colonial constituía um produto
inevitável dos projectos, das práticas e da retórica coloniais que
emergiram desde finais do século XIX. Um dos seus feixes essen-
ciais residia no grupo de intelectuais ligado à Comissão Africana
da Sociedade de Geografia de Lisboa, composto por Luciano
Cordeiro, Simões Raposo, Fernando Pedroso, Adolfo Coelho
e Jaime Moniz.50 Este grupo fixaria um discurso articulado em

47
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 248; Conde da Penha Garcia, «Bases
para a organisação do ensino colonial...», 50; Visconde de Giraud, «Missões
commerciaes no interior de Angola», in Congresso Colonial Nacional. Actas das
Sessões (1901), 71-72.
48
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 248.
49
A. Freire de Andrade, Relatório Feito pelo Director-Geral das Colónias..., 10.
50
Entre 1876 e 1880, esta comissão foi responsável por inúmeros documentos
que suportariam a urgência e a importância estratégica da educação colonial. Um
dos exemplos mais importantes reside nos Projectos de uma Escola de Disciplinas

130
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

torno dos princípios universalistas do iluminismo, dominados


por uma lógica evolucionista e modernizadora aplicada à política
colonial, onde o ensino funcionava como instrumento de civili-
zação e como veículo de conhecimento das questões africanas,
sem qualquer remissão para a educação das populações indígenas
em contexto colonial. Um outro feixe ideológico, que se afastava
de uma retórica feita de propósitos pastorais e humanistas, tinha
na obra de Oliveira Martins, especialmente no seu livro O Brasil
e as Colónias Portuguesas, de 1880, a sua principal referência.
Fortemente enquadradas pelas teorias do «darwinismo social»,
das quais Oliveira Martins se assumia como um dos principais
representantes, as ideias centrais desta linhagem estruturavam-se
em torno de um pragmatismo político que deveria governar um
renovado programa de reforma colonial. Esse pragmatismo político
implicava um aspecto essencial: a desmistificação dos discursos
que configuravam um romantismo da questão colonial portuguesa.
Como dizia António Enes, a exploração colonial deveria decorrer
«sem escrúpulos, sem preconceitos e sem quimeras» e deveria,
neste sentido, assumir que as relações coloniais tinham como
princípio essencial o desenvolvimento económico da metrópole, ou
seja, deveriam ser governadas pela exploração e rentabilização dos
produtos coloniais e, como vimos, das suas populações, se devida-
mente preparadas para o grémio da civilização. Para lá de António
Enes, a visão de Oliveira Martins ecoaria nas obras de Eduardo
da Costa, de Mouzinho de Albuquerque e de Paiva Couceiro. As
implicações deste pragmatismo colonial na esfera educativa colonial
eram evidentes: «A ideia de uma educação dos negros é absurda
não só perante a História, mas também em virtude da capacidade
mental dessas raças inferiores». Contudo, uma educação para e pelo
trabalho não era de desprezar.51

Relativas à Terra, e às Gentes e às Línguas do Ultramar Português (de 18 de Março


de 1878, exposta ao governo no dia 10 de Julho), mais conhecida pelo título de
Questões Coloniais. Ângela Guimarães, Uma Corrente do Colonialismo Português.
A Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895 (Lisboa: Livros Horizonte, 1984);
Miguel Bandeira Jerónimo, Religion, Empire, and the Diplomacy of Colonialism...,
156-159; veja-se ainda João Carlos Paulo, «Éducation Coloniale et ‘École Portu-
gais’ (1926-1946)», in António Nóvoa, Marc Depaepe e Erwin V. Johanningmeier,
The Colonial Experience in Education. Historical Issues and Perspectives, vol. I,
(Gent: Paedagogica Historica, International Journal of the History of Education,
Supplementary Series, 1995), 119-120.
51
J. P. Oliveira Martins, O Brasil e as Colónias Portuguesas (Lisboa: Guimarães
Editores, 1978), 175-179 e 255; Valentim Alexandre, «Questão nacional e questão
colonial em Oliveira Martins» e «O império colonial no século XX», ambos em

131
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

A educação dos corpos e das almas:


mitos e realidades

No interior dos discursos civilizadores a educação para e pelo


trabalho era claramente valorizada face à educação escolar. A inexis-
tência de uma rede escolar e a escassa frequência das poucas escolas
existentes não implicava que se concluísse «que sejam hoje menos
eficazes os meios empregados para promover o adiantamento
moral e civilização dos indígenas, porque a esse nobilíssimo intuito
se aplicam actualmente grande numero de estações e institutos
missionários». Mas no programa civilizador, outras prioridades
se levantavam. «O adiantamento do indígena por todos os meios
que tendem a aumentar-lhe a cultura do espírito e a modificar-lhe
os hábitos selvagens», inspirando-lhe «os princípios mais salutares
da civilização» era considerado um objectivo importante para a
administração colonial portuguesa. Contudo, a consecução desse
pretenso desiderato assentava noutros processos que não o da
criação de um sistema escolar, por débil que fosse. Apesar de não se
dirigirem para o «melhoramento moral do indígena», os «melhora-
mento materiais» concorriam «poderosamente para desbravar a sua
rudeza»: «um caminho de ferro que penetra no sertão é um facho
poderoso, cujo clarão vai como que atraindo todos esses homens
rudes e selvagens». A realização desses melhoramentos materiais,
que tinham por objectivo «abrir ao comércio novos mercados, dar
à industria novos elementos de trabalho, desentranhar do solo as
mais extraordinárias riquezas» eram «meios seguros» para a civi-
lização das populações indígenas. Paralelamente, o «adiantamento
moral» era entregue aos esforços missionários.52
As críticas dos métodos civilizadores religiosos por parte dos
responsáveis da administração colonial eram frequentes, revelando
o legado da questão religiosa de Oitocentos, sobretudo quando
pensada no contexto colonial. António Enes assinalava de um
modo cristalino as reservas quanto à eficácia dos procedimentos
missionários: «querem quase abruptamente converter um selvagem

Velho Brasil, Novas Áfricas. Portugal e o Império (1808-1975) (Porto: Edições


Afrontamento, 2000), 174-179 e 182, respectivamente.
52
Francisco Dias da Costa, «Relatório apresentado à Camara dos Deputados
pelo sr. ministro da Marinha e do Ultramar ácerca das provincias da África Occi-
dental», Portugal em África. Revista Scientifica, n.º 57, Setembro (1898), 326.

132
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

num santo, uma fera num mártir. Imaginam que basta a educação
para obliterar caracteres da raça e neutralizar influxos climatéricos
e do meio social». A possibilidade de conversão civilizacional por
intermédio de «metafísicas religiosas» era diminuta. «Religião sem
dogmas, sem mistérios, sem filosofia, sem abstracção, sem misti-
cismo [...] religião para inteligências acanhadas e para povos de
costumes naturais», o «maometanismo» representava um modelo a
seguir apenas e só na medida em que revelava uma extrema malea-
bilidade na adaptação ao estado primitivo de evolução civilizacional
das populações indígenas. A solução para tornar a missionação
cristã um poderoso auxiliar do projecto civilizador implicava a
reformulação dos conteúdos e métodos pedagógicos por si utili-
zados. «Sem perder os interesses do céu», o missionário deveria pôr
«ao serviço da civilização o zelo e a abnegação que a fé lhe inspira»,
favorecendo os «interesses sociais e nacionais». Ao contrário dos
professores, que «ensinavam a letra sem o espírito», os missionários
seriam dignos representantes da colonização portuguesa desde que
«ensinassem a adorar a cruz [...] e a bandeira portuguesa», que
utilizassem a sua «autoridade moral» para fortalecer e auxiliar a
«autoridade política» e adoptassem uma metodologia de «carácter
menos exclusivo e inflexivelmente religioso e mais praticamente
civilizador». E concluía que o missionário devia ater-se a uma
educação dirigida pela «religião e pelas ciências sociológicas, pela
Igreja e pelo Estado», exercendo o seu ministério simultaneamente
«espiritual e temporal, sagrado e profano, católico e nacional».
Eduardo da Costa, por sua vez, sintetizava a tarefa missionária
na necessária conjugação entre uma dimensão política e uma
dimensão educativa. O padre missionário deveria ser simultanea-
mente «medico, agricultor, artista mecânico e professor primário»,
até porque o «desgraçado estado de coisas» que caracterizava a
instrução pública em Moçambique exigia estratégias articuladas
entre o Estado e a Igreja. Em suma, como escreveu Enes, «a
empresa misericordiosa de salvar almas para Deus tem de se conci-
liar com a de educar corpos para o trabalho», resgatando o indígena
da tenebrosa condição moral e social à qual se entregara desde os
primórdios dos tempos e tornando-o um elemento útilno empre-
endimento colonizador. Isto porque a docilidade do negro signi-
ficava a plasticidade do seu carácter. Era preciso reforçar perma-
nentemente a educação do indígena: «se este recebe as impressões

133
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

com a brandura da cera, repele-as com a elasticidade da borracha».


A disciplina do trabalho atingiria tal desiderato.53
Um dos aspectos que eram frequentemente referidos, desde
António Enes e Mouzinho de Albuquerque até Freire de Andrade,
era o problema da competição missionária. A profusão das missões
protestantes em Angola e Moçambique era considerada como preju-
dicial e os seus efeitos nefastos para os propósitos nacionalizadores
do complexo colonial português, verificando-se uma renovação dos
argumentos mobilizados aquando dos primórdios das contendas
missionárias em África na segunda metade de Oitocentos, às quais
aludimos no início deste trabalho. Daí a preponderância atribuída
à língua portuguesa como factor crucial de civilização nacionaliza-
dora. Ao referir-se à questão das missões protestantes, Freire de
Andrade afirmava que o desejo de se impedir a sua disseminação
era inconsequente, restando à administração colonial estabelecer
com elas uma plataforma de cooperação, impondo-lhe uma série de
obrigações, fiscalizando a sua actividade de modo a limitar as possi-
bilidades de estas contribuírem para a desnacionalização da alma
dos colonizados. Em 1907, regulamentava-se o ensino indígena
ministrado pelas missões estrangeiras. Uma das cláusulas da coope-
ração residia na obrigatoriedade da utilização da língua portuguesa.
O que não significava de modo nenhum que tal implicasse a emer-
gência de uma educação ou de uma instrução puramente literária ou
que se almejasse um impulso assinalável na esfera educativa, oficial
ou religiosa, nos territórios africanos sob jurisdição portuguesa.
A educação deveria ter uma dimensão bastante prática e instru-
mental, onde o ensino da língua portuguesa deveria ser priori-
tário, a par de uma formação orientada para uma arte e um ofício.
Deveria igualmente dirigir-se para educar os corpos nativos para
o trabalho.54
Em 25 de Dezembro de 1908, um grupo de nativos moçambi-
canos ligado ao Grémio Africano de Lourenço Marques publicava
um jornal intitulado O Africano, cujo subtítulo era Numero de
Propaganda a Favor da Instrução. O Grémio Africano agregava
um grupo de mulatos e negros instruídos que decidiram contestar

53
António Enes, Moçambique..., 175-178, 181-186 e 189; Eduardo da Costa,
Estudo sobre a Administração Civil das nossas Possessões Africanas. Memória Apre-
sentada ao Congresso Colonial (Lisboa: Imprensa Nacional, 1903), 168-174.
54
A. Freire de Andrade, Relatórios sobre Moçambique..., vol. V, 304.

134
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

as políticas discriminatórias da administração colonial portuguesa.


Incluindo personalidades de formação católica (que se expressavam
em língua portuguesa) e de formação protestante (com predomínio
da língua inglesa e ronga), esta associação nativa foi responsável pela
criação de O Africano, que apenas consistiu num número, e após
um interregno de cerca de dez anos pelo Brado Africano.55 Bilingue
(português e landim), o número único de O Africano versava exclu-
sivamente sobre a indignação que assolava as populações indígenas,
fartas de um «jugo dos que julgávamos civilizadores». Em troca da
«submissão», acrescentava a redacção, nada teria sido feito. «Nem
estradas, nem fontes, nem oficinas, nem escolas!», apenas «o vinho
branco para pretos e liberdade plena, pleníssima, incontestável, de
tomarmos bebedeiras abomináveis irmãs da demência». O objec-
tivo declarado desta indignação era a construção de uma «escola
onde se ensine as crianças – os homens de amanhã – a verdade e
o horror ao vício». A «humanidade não está para rezas», acrescen-
tavam com o intuito de argumentar a insuficiência dos métodos
missionários. No centro desta consideração estava o facto de o
exercício da missionação ser executado com recurso aos dialectos
cafres e não à língua portuguesa. A criação de uma escola para
ensino do português permitiria «desviar a corrente dos adeptos das
missões». E era tomada como um auxiliar indispensável para que
as populações nativas pudessem aceder à administração pública.56
Tal como sucedia nas colónias inglesas com o inglês, o português
era a linguagem da dominação colonial e deveria ser a linguagem da
ascensão social dos nativos moçambicanos.57 Anos antes, em 1901,
em Angola fora publicado um conjunto de textos, intitulado Voz

55
Veja-se Jeanne Marie Penvenne, African Workers and Colonial Racism.
Mozambican Strategies and Struggles in Lourenço Marques, 1877-1962 (Londres:
James Currey Ltd., 1995), 12-13.
56
O Africano, 25 de Dezembro de 1908. Aurélio Rocha equivoca-se na datação
deste número, fixando-o em 28 de Dezembro. Aurélio Rocha, «Associativismo e
nativismo: os fundamentos do discurso ideológico», in Fátima Ribeiro e António
Sopa, coords., 140 Anos de Imprensa em Moçambique (Maputo: Associação
Moçambicana de Língua Portuguesa, 1996), 31-33.
57
Para o caso inglês, veja-se Andrew Porter, «Empires in the Mind», in
P. J. Marshall, org., The Cambridge Illustrated History of the British Empire
(Cambridge: Cambridge University Press, 1996), 186-189 e 202. Veja-se ainda
Miguel Bandeira Jerónimo, «Os missionários do alfabeto nas colónias portuguesas
(1880-1930)», in Diogo Ramada Curto, org., Estudos de Sociologia da Leitura em
Portugal no Século XX (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006), 29-67,
especialmente 32-34.

135
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

d’Angola clamando no deserto que atacava fortemente as políticas


de educação e formação das populações nativas, defendendo a
nobreza moral do negro e contestando as acusações de indolência
e predisposição para a ociosidade que suportavam a defesa do
trabalho redentor.58
Esta situação de desinteresse generalizado sobre a problemática
da questão educativa em África deu alguns sinais de mudança em
1910, pelo menos no corpo dos textos administrativos e legais,
quando Sampayo e Mello publica a sua obra Política Indígena. Já
em 1901, no rescaldo do I Congresso Colonial Nacional, António
Cabreira atacara o facto de o ensino colonial indígena não ter sido
debatido, o que era incompreensível na medida em que era um dos
dois eixos cruciais no progresso moral e económico nas colónias
portuguesas, sendo o outro o ensino colonial metropolitano.59
O livro de Sampayo e Mello constituía um ambicioso programa
de reforma alicerçado na transformação da acção colonial portu-
guesa. O seu principal objectivo consistia na crítica dos preceitos
evolucionistas e raciais que identificámos atrás, o que lhe permitia
recusar os argumentos que deles derivavam e que suportavam
a anulação de uma função essencial do ensino colonial indígena
no que concerne ao desenvolvimento da exploração colonial.
Paralelamente, Sampayo e Mello recusava as visões igualitárias e
equitativas que ignoravam as características sociais e culturais das
populações nativas. Na conjunção desta dupla recusa, Sampayo e
Mello defendia a relevância funcional da educação nativa no desen-
volvimento frutuoso da política colonial e propunha a elaboração
de um programa de organização do ensino, a aplicar em concomi-
tância com os planos de desenvolvimento económico próprios de
cada colónia.
A colonização resultava necessariamente da conjugação de «uma
grande multiplicidade de engrenagens influenciadoras», no interior
das quais as missões religiosas e as escolas primárias se encontravam
no mesmo plano que as facilidades de comunicação, as fiscalizações
sobre o trabalho indígena ou os desenvolvimentos materiais. Se
os factores económicos eram o «combustível da evolução social»,

58
Voz d’Angola clamando no deserto: offerecida aos amigos da verdade pelos
naturaes (Lisboa: 1901).
59
António Cabreira, O Ensino Colonial e o Congresso de Lisboa (Lisboa:
Tipografia Gutemberg, 1902), 3-4.

136
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

a «acção progressiva exercida no campo da moral» eram «células


activas do superorganismo evolucionante». A missionação, pode-
roso «lubrificante» do progresso moral da «alma indígena», era
vista como absolutamente necessária na «evolução psicológica
[...] e no apuramento das consciências» mas devia, para que a
sua articulação com o ensino leigo funcionasse, exceder o «mero
proselitismo» e estender a sua acção ao «campo temporal, orien-
tada sempre pelo móbil da expansão territorial e nacionalizadora
a que pertencem». Para Sampayo e Mello era essencial formular
uma política de selecção e formação dos missionários e dos
professores ambiciosa e racional, ajustada às características socio-
culturais e étnicas das populações nativas e às necessidades mais
prementes de cada colónia. Política essa que deveria neutralizar os
«argumentos pseudocientíficos» que postulavam a inferioridade
fisiológica e intelectual dos indígenas. Como abonação, referia uma
série de exemplos de «homens eminentes nas ciências» americanas
como Du Bois ou Booker T. Washington, como sucedera, aliás,
com Marnoco e Souza anos antes. Por outro lado, num aspecto
crucial para a compreensão do que sucederia nos anos 30 e 40,
Sampayo e Mello propunha que a actividade missionária fosse
subsidiada e patrocinada pelo Estado, numa colaboração que criasse
as condições para uma futura transição: o movimento de genera-
lização do ensino público, primário e técnico de nível secundário
assentaria nas estruturas já lançadas e testadas pela acção missio-
nária, sem que isso implicasse o desaparecimento das missões
como alguns teóricos coloniais defendiam, como era o caso de
Leroy Beaulieu. Como sintetizava Sampayo e Mello: «educando a
metrópole, tornamo-nos respeitáveis; educando os indígenas dos
territórios coloniais, tornamo-nos respeitados».60
Contudo, apesar da constante e repetida enunciação de princí-
pios e de alterações estratégicas no processo civilizador, o ensino
colonial nos territórios africanos mantinha-se, na prática, pouco
desenvolvido. Um exemplo residia na criação das missões civiliza-
doras oficiais e laicas em 1913 (Decreto n.º 233, 22 de Novembro)
que tinham como propósito promover e difundir a língua portu-
guesa, formar agricultores e operários e disseminar princípios
higiénicos e decência moral e material nos indígenas das colónias

60
Sampayo e Mello, Política Indígena..., 22-24, 27, 61, 81 e 101-102; Marnoco
e Souza, Administração Colonial..., 414-415.

137
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

portuguesas. Para que não surgissem «pretos pseudo-instruídos e


pseudocivilizados», como escreveu mais tarde Norton de Matos,
prosseguiu-se uma política de ensino indígena que tinha como fito
«criar operários e artífices, com profissões adequadas às neces-
sidades das regiões», dividindo-se entre uma formação orientada
para o sexo feminino (valorizando a economia doméstica) e outra
para o sexo masculino (valorizando a disseminação de profissões
manuais).61 Em 1917, o Colégio das Missões Ultramarinas era
convertido no Instituto das Missões Coloniais com o intuito de
fornecer recursos humanos às missões civilizadoras e quatro anos
depois, face à carência de missionários na África portuguesa, era
criado em Tomar o Colégio das Missões dos Padres Seculares.
O domínio da missionação era apenas mais um dos exemplos da
generalizada exiguidade de meios em contexto colonial.62
A Inspecção Escolar da Província de Moçambique foi criada
em 1919. Aos inspectores da instrução primária competia elaborar
anualmente um relatório sobre o estado da instrução primária geral.
O primeiro relator foi J. V. Solipa Norte. O seu relatório compro-
vava as profundas insuficiências do ensino colonial em contexto
africano. A primeira conclusão que Solipa Norte retirava da sua
inspecção dizia respeito à inexistência de um recenseamento da
população escolar e infantil da província e de uma estatística geral
do movimento de instrução. O estado caótico dos serviços adminis-
trativos da instrução era exemplificado pelo facto de o inspector não
dispor de uma «máquina de escrever [...] de teclado completo» que
lhe permitisse redigir documentos confidenciais ou de não estarem
cadastrados os funcionários da instrução. O segundo aspecto que o
relator salientava remetia para a avaliação que fizera sobre impacto
pedagógico nas escolas da província. No que concerne à leitura,
Solipa Norte era peremptório: «Esta disciplina está, em regra,
atrasadíssima.» A grande maioria dos alunos não compreendia o
significado dos trechos que lia, nem mesmo as frases mais fáceis.

61
Norton de Matos, Memórias e Trabalhos da Minha Vida, vol. III (Lisboa:
Editora Marítimo-Colonial, 1944), 302-303 e 317.
62
A instauração do regime republicano só em escassa medida foi responsável
por tal facto, do mesmo modo que a supressão das ordens religiosas em 1834
constituiu o factor decisivo para o estado de abandono religioso das colónias
portuguesas de Oitocentos. A primeira questão está ainda por estudar em profun-
didade. A segunda é objecto de análise em Miguel Bandeira Jerónimo, Religion,
Empire, and the Diplomacy of Colonialism..., 153-181.

138
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

Ainda por cima, alguns professores tinham confessado que nunca


tinham ministrado tal ensino. A ortografia, a caligrafia e o cálculo
confirmavam o caso da leitura. Incumprimentos do horário escolar,
condições higiénicas deficientes, escassez e mau estado do mobi-
liário escolar, insucesso escolar, passividade dos professores, enfim,
um rol impressionante de deficiências das instituições escolares
visitadas era referido pelo inspectores. Por fim, se o objectivo funda-
mental do ensino nas escolas primárias em Moçambique, «terra
esquadrinhada e invadida por agentes desnacionalizadores», era a
transmissão de valores patrióticos e da grandeza histórica da nação,
Solipa Norte concluía que o único elemento que concretizava essa
obrigação legal era o hastear da bandeira nacional, ainda que só
«em duas escolas».
Como resultado da sua visita só podia afirmar que em Moçam-
bique «quase não» existia «escola primária». A missão civilizadora
e educativa esbarrava na falta de condições estruturais que carac-
terizava o ensino primário. Nem as «escolas-oficinas» de ensino
primário «geral-profissional-agrícola» atenuavam o diagnóstico:
supunha-se que existiam «153 escolas com o nome pomposo de
técnicas, profissionais, agrícolas, primárias, o maior número das
quais é impossível fiscalizar ou saber com precisão onde demoram».
A avaliação da «idoneidade» e da qualidade dos professores comple-
tava um quadro negro da realidade educativa orientada para as
populações nativas. Seria necessário formar um contingente de
«professores-operários, encarregados de tratar do corpo e do espí-
rito de uma raça valorosa». Só assim se levantaria «bem alto, cheio
de luz e prestígio, o nome heróico de Portugal».63 Se os projectos
de educação colonial e os seus princípios programáticos abundavam
sob o signo da repetição exaustiva, tanto no que concerne ao ensino
dos colonos como no que remetia para o ensino indígena, a verdade
é que a realidade e os resultados da instrução pública nas colónias
portuguesas não se alteraram significativamente.
Em 1924, José Santa Rita assumia este facto afirmando que as
questões coloniais mais prementes, desde a economia à adminis-
tração pública e à educação, estavam suficientemente «versados e
debatidos por especialistas competentes» mas que «faltava passar
da teoria à prática». O consenso relativamente ao carácter inapro-

63
J. V. Solipa Norte, Relatório do Inspector da Instrução Primária da Provincia
de Moçambique (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1920), 6-13 e 17.

139
Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

priado do «ensino assimilador e puramente literário» e à neces-


sidade de se investir nas oficinas dos corpos não produzia efeitos
palpáveis no terreno.64 Em 1928, o Boletim Económico e Estatístico
de Moçambique continha um documento intitulado «Esboço histó-
rico e estatístico da instrução na colónia de Moçambique» da autoria
do tenente Mário Costa, premiado pela Comissão Permanente de
Estatística. A apresentação deste documento era levada a cabo por
António Barradas, médico escolar e professor de Geografia e de
História do Liceu 5 de Outubro de Lourenço Marques. Mesmo
sem saber se António Barradas fez parte do júri da Comissão
avaliadora ou ainda se detinha alguma função no organigrama da
Repartição Central de Estatística, não deixa de ser curioso verificar
que ele desfere algumas críticas ao trabalho que apresenta e que
consagra. Primeiro, afirma que qualquer trabalho de natureza histó-
rica sobre o estudo da instrução em Moçambique se deve resumir
a uma análise da instrução primária, uma vez que «a instrução
secundária em Moçambique não tem ainda uma dúzia de anos».
Por outro lado, tanto a «instrução especializada» (artes e ofícios,
comercial, correios e telégrafos, agrimensura) é definida como
precária e apenas a «instrução caseira» é caracterizada como útil e
persistente, tomando como exemplo o Internato João de Deus da
Namacha. Associada ao ponto anterior, o autor refere a necessidade
de se organizar o ensino e a educação na colónia de Moçambique.
Se «um clarão de esperança raiou» no ano de 1921, por ocasião
da criação da Direcção-Geral de Ensino pelo alto-comissário
Dr. Brito Camacho, desvaneceu-se em 1922.
Retomando o relatório de Solipa Norte, o tenente Mário Costa
reproduzia a afirmação de que em 1919 existiriam 153 escolas na
colónia. Barradas contestava de um modo esclarecedor: «Escolas a
valer, não chega a haver na colónia duas dúzias delas. As outras
são palhotas em que um indígena quase analfabeto ensina a outros
indígenas o Padre-Nosso e finge que os ensina a rabiscar quatro
palavras e a soletrar outras tantas.» Prosseguindo, Barradas acres-
centava que essa errónea projecção contabilizava palhotas onde
se ensinavam os «sorates do Alcorão» e escolas onde os alunos
saíam, não a falar português, mas «árabe, landim e talvez inglês.»

64
José Gonçalo Santa Rita, «Ensino nas colónias. Indigenato. Colonato», in
Congresso Colonial Nacional. Teses e Actas das Sessões (Lisboa: Tipografia América,
1924), 1-3.

140
O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

Como conclusão afirmava que «o aproveitamento dos braços e da


mentalidade do africano, a valorização do capital-homem indígena
através da Escola, é problema que ainda nem sequer está posto em
equação, em Moçambique. E não é tarefa de somenos, pois basta
pensar que são cerca de 700 000 crianças que há que educar.»
Ou seja, nem a educação para o trabalho era ainda uma realidade
palpável. Mário Costa terminava com uma frase digna de registo:
«hoje não é só preciso haver quem inspeccione as escolas. É preciso
haver quem conceba um plano de ensino aplicável à Colónia».65
Independentemente das discordâncias, Mário Costa confirmava
a leitura de Barradas, afirmando que quem reparasse nos gráficos
sobre a evolução do ensino colonial indígena chegaria à conclusão
de que este tinha «marchado», mas logo acrescentando que
«também o cágado anda». As mesmas denúncias e críticas eram
vertidas sobre o estatuto precário e pouco competente dos «missio-
nários do alfabeto», sobre a escassez de infra-estruturas escolares,
sobre a similitude dos manuais escolares na metrópole e nas coló-
nias e sobre a desorganização das instâncias administrativas oficiais
que deveriam regular o cumprimento da legislação. Tudo isto com a
agravante de em 1924 existirem cerca de 105 escolas, «palhotas ou
não», de missões estrangeiras, onde a maioria dos professores mal
pronunciava o português e não entendia «o amor por Portugal».66
Em 1926, João Belo, ministro das Colónias, extinguiu as missões
civilizadoras laicas e o Instituto das Missões Coloniais, concen-
trando nas Missões Católicas portuguesas todo o programa educa-
tivo. No mesmo ano era publicado o Estatuto Orgânico das Missões

65
Mário Barradas, «Relatório», Boletim Económico e Estatístico (Lourenço
Marques: Imprensa Nacional, série especial n.º 5, Repartição Estatística da
Colónia de Moçambique, 1928), 56-57.
66
Figura interessante, Mário Costa foi tenente de infantaria, subalterno da
1.ª bateria indígena de metralhadoras, é nomeado responsável, pelo despacho de
22 de Janeiro de 1927, pela organização de um Arquivo Histórico (a partir dos
documentos localizados no Quartel General da Colónia de Moçambique), em
virtude do seu interesse pela história da colónia e dos trabalhos que entretanto
tinha publicado. Alguns exemplos: Estatística da edificação de Lourenço Marques
em épocas sucessivas (elementos e subsídios para um estudo do desenvolvimento de
Lourenço Marques), de 1925 e também premiado pela Repartição de Estatística,
Como Fizeram os Portugueses em Moçambique, premiado no concurso de Literatura
Colonial da Agência Geral das Colónias em 1927 e a organização do Anuário de
Moçambique, nos anos de 1925 a 1929. Mário Costa, «Esboço histórico e esta-
tístico da instrução na colónia de Moçambique», Boletim Económico e Estatístico,
67 e 71-72.

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Livros Brancos, Corpos e Almas Negras

Católicas Portuguesas de África e Timor (Decreto n.º 12 485,


13 de Outubro). No preâmbulo que acompanhava a publicação do
decreto, calculava-se que cerca de 8 500 000 «almas» habitassem os
territórios coloniais portugueses. Era necessário civilizar e nacio-
nalizar esses «milhões de seres humanos», «chamá-los da barbaria
e da selvajaria em que se encontram em grande parte para um
estado social progressivo», bafejando-os com as «vantagens morais
e materiais da família bem constituída», da agricultura, do comércio
e da indústria. O alargamento da ocupação militar, a expansão da
máquina administrativa, a multiplicação das redes viárias e ferroviá-
rias, o desenvolvimento da navegação marítima e fluvial, o fomento
da colonização e do comércio e a ténue ampliação dos serviços de
instrução não eram razões suficientes para se derramar os benefí-
cios da civilização e da nacionalização nas populações nativas. Tal
tarefa só poderia ser realizada se tivesse como instância primordial
as missões católicas. Este recuo institucional do Estado face à
educação das populações coloniais não só resolvia airosamente o
evidente desinteresse ou a notória incapacidade na implantação de
um sistema de ensino oficial como permitia responder à abundância
de missões estrangeiras que penetravam nos territórios africanos
portugueses. «Sustentadas por sociedades poderosas» com capa-
cidade para mobilizar recursos incomparavelmente superiores à
nação portuguesa, as missões estrangeiras eram acusadas de servir
«desígnios desfavoráveis aos nossos direitos» e de estarem a soldo
de instituições europeias e norte-americanas, fornecendo informa-
ções para o «aparecimento sucessivo de publicações, discursos e
atoardas contra Portugal». O seu efeito desnacionalizador exigia
que se acentuasse o esforço para «dominar estrangeirismos cavi-
losos», ainda para mais na sequência do desastre que fora a Lei de
Separação do Estado e das Igrejas (1911) e a criação das missões
civilizadoras laicas, que teriam provocado o desenvolvimento das
missões estrangeiras nas possessões portuguesas.67
O programa geral das missões nacionais era «sustentar os inte-
resses do império colonial português e desenvolver o seu progresso

67
Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas de África e Timor, Decre-
to n.º 12 485 de 13 de Outubro, reproduzido em Anuário de Ensino da Colónia
de Moçambique. Ano de 1930 (Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1931),
155-157 e 159-161. Para avaliar o modo como estas questões foram apropriadas e
reproduzidas durante o Estado Novo, veja-se Augusto Castro Júnior, O Problema
do Ensino em Terras de Além-Mar (Lisboa: Editorial Império, 1953).

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O trabalho redentor e os missionários do alfabeto

moral, intelectual e material». Para tal era necessário articular três


vectores essenciais nos conteúdos programáticos da educação e da
instrução das populações africanas. O primeiro residia no ensino
obrigatório da língua portuguesa, provisoriamente coadjuvado pela
«língua indígena». O segundo remetia para o desenvolvimento
do ensino agrícola, do ensino da pecuária, do ensino técnico e
profissional e do ensino doméstico, para que o indígena melho-
rasse gradualmente «os seus rudimentares e primitivos processos
de trabalho». O terceiro dizia respeito à necessária transmissão
de conhecimentos sanitários aos nativos e respectiva assistência,
criando hospitais, asilos e creches para o efeito. Tudo sob o prin-
cípio inviolável da «dignificação pelo trabalho». A educação das
almas era formalmente entregue às missões mas a educação dos
corpos nunca deixou de ser prioritária. Este facto não passou
despercebido às inúmeras instâncias humanitárias e filantrópicas
transnacionais, de cariz religioso ou laico, que continuaram a vigiar
e a avaliar os modelos educativos e laborais operantes nas colónias
portuguesas.68

68
Artigo 21.º, Estatuto Orgânico das Missões Católicas Portuguesas de África
e Timor, 167-168.

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