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CURSO DE

ESTRATÉGIA SAÚDE
DA FAMÍLIA
MÓDULO - 2
CURSO DE
ESTRATÉGIA SAÚDE
DA FAMÍLIA
MÓDULO - 2
SUMÁRIO
UNIDADE 1 - GESTÃO DA CLÍNICA
INTRODUÇÃO............................................................................................................9

DIRETRIZES CLÍNICAS.......................................................................................... 10

AS DEMANDAS DA APS........................................................................................ 11

O ESTUDO DA DEMANDA E A ORGANIZAÇÃO DA AGENDA.................. 14

LIDANDO COM O HIPERUTILIZADOR............................................................. 16

ENCERRAMENTO................................................................................................... 17

BOA PRÁTICA DA UNIDADE 1............................................................................ 18

REFERÊNCIAS ........................................................................................................23

UNIDADE 2 - GESTÃO DO ACESSO


INTRODUÇÃO..........................................................................................................26

ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO................................................................... 28

BOAS PRÁTICAS!....................................................................................................29

A PRIMEIRA ESCUTA: INFORMAÇÃO AO USUÁRIO, CLASSIFICAÇÃO,


ORGANIZAÇÃO DO ACESSO..............................................................................35

ACOLHIMENTO COMO FERRAMENTA DE VÍNCULO, LONGITUDINALI-


DADE, UNIVERSALIDADE, INTEGRALIDADE, ACESSO DE PRIMEIRO
CONTATO, COMPETÊNCIA CULTURAL............................................................37

AVALIAÇÃO DE RISCO E VULNERABILIDADES.......................................... 40

ORDENE O FLUXO COM RESOLUTIVIDADE E ENCAMINHE QUANDO


NECESSÁRIO.......................................................................................................... 44

MODELAGENS DE ACOLHIMENTO................................................................. 47

MODOS DE EVITAR AS BARREIRAS DE ACESSO NA APS....................... 49

BOA PRÁTICA DA UNIDADE 2...........................................................................55


ACESSIBILIDADE GEOGRÁFICA, DISPONIBILIDADE, VIABILIDADE E
ACEITABILIDADE...................................................................................................56

METODOLOGIA PARA EQUILÍBRIO ENTRE DEMANDA ESPONTÂNEA E


PROGRAMADA.......................................................................................................57

METODOLOGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA AGENDA DE OFERTAS NA


APS, EM FUNÇÃO DAS DEMANDAS DO TERRITÓRIO.............................. 58

ENCERRAMENTO...................................................................................................62

REFERÊNCIAS.........................................................................................................63

UNIDADE 3 - GESTÃO DO CUIDADO


INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 68

CLÍNICA AMPLIADA: UM OLHAR PARA O CUIDADO................................ 70

CONVERSANDO SOBRE ALGUMAS ESTRATÉGIAS DA E NA EQUIPE DE


SAÚDE DA FAMÍLIA QUE FORTALECEM A GESTÃO DO CUIDADO.......76

O PRONTUÁRIO INDIVIDUAL E DA FAMÍLIA................................................76

VIGILÂNCIA DE EXAMES COMPLEMENTARES.............................................77

EXPANSÃO DAS ATRIBUIÇÕES CLÍNICAS DO(A) ENFERMEIRO(A)..... 78

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM EXEMPLO DE BOAS PRÁTICAS!...................... 80

O PAPEL ESTRATÉGICO DO AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE......... 82

MATRICIAMENTO.................................................................................................. 82

ESTRATÉGIAS DE MATRICIAMENTO............................................................... 85

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM BREVE RELATO DE BOAS PRÁTICAS!!!......... 90

TERRITÓRIO............................................................................................................. 91

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM BREVE RELATO DE BOAS PRÁTICAS!............92

PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS)....................................................93

PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES (PICS)/PRÁTICAS IN-


TEGRATIVAS EM SAÚDE (PIS)........................................................................... 99

SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA..................................................100

GRUPOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE..............................................100


EXEMPLOS DE BOAS PRÁTICAS!.................................................................... 103

EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE E TRANSTORNOS MENTAIS..104

INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM


SAÚDE.....................................................................................................................104

REATRIBUIÇÃO DE SINTOMAS SOMÁTICOS SEM EXPLICAÇÃO


MÉDICA...................................................................................................................106

TERAPIA DE SOLUÇÃO DE PROBLEMAS (TSP).........................................107

TERAPIA INTERPESSOAL BREVE (TIP).........................................................108

TERAPIA COMUNITÁRIA (TC)............................................................................110

INTERVENÇÃO BREVE PARA DEPENDÊNCIAS QUÍMICAS......................111

OUTRAS TERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS: TERAPIA DE


ATIVAÇÃO................................................................................................................ 113

ABORDAGEM FAMILIAR..................................................................................... 113

AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL ....................................................................118

TRANSTORNOS MAIS COMUNS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA..................... 123

IDEAÇÃO SUICIDA E TENTATIVA DE SUICÍDIO.......................................... 123

PROBLEMAS COM O SONO.............................................................................. 129

APNEIA OBSTRUTIVA DO SONO.....................................................................130

INSÔNIA..................................................................................................................130

DICAS DE HIGIENE DO SONO .........................................................................130

ANSIEDADE........................................................................................................... 133

DEFINIÇÃO DO TRANSTORNO ANSIOSO ................................................... 133

BOA PRÁTICA!....................................................................................................... 136

BOA PRÁTICA DA UNIDADE 3..........................................................................141

BOA PRÁTICA – UM OUTRO NOVEMBRO AZUL........................................145

ENCERRAMENTO................................................................................................. 147

REFERÊNCIAS.......................................................................................................148
UNIDADE 4 - RELAÇÕES EM EQUIPE
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 153

O TRABALHO EM EQUIPE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE......... 153

BOAS PRÁTICAS!!!................................................................................................ 157

COMUNICAÇÃO É UMA TÉCNICA................................................................... 159

PLANEJAMENTO EM EQUIPE COMO PROMOTOR DE QUALIDADE NAS


RELAÇÕES INTERPESSOAIS............................................................................. 163

REUNIÕES DE EQUIPE: UM ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DAS RELAÇÕES


INTERPESSOAIS................................................................................................... 165

MEDIAÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS................................................166

MATRIZ DE ANÁLISE DE CONFLITOS DA EQUIPE SUSILÂNDIA..........168

ESTRATÉGIAS DE PRESERVAÇÃO DO TRABALHADOR DA EQUIPE DE


ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA...................................................................168

BOA PRÁTICA: APLICANDO TÉCNICAS DE COMUNICAÇÃO!.................171

BOA PRÁTICA DA UNIDADE 4......................................................................... 176

ENCERRAMENTO.................................................................................................180

REFERÊNCIAS........................................................................................................181
UNIDADE 1
Gestão da clínica
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Objetivos da unidade

• Reconhecer a gestão da clínica e do cuidado e suas formas, a classifica-


ção do risco, determinantes sociais e características epidemiológicas.

• Descrever a programação das ações de saúde na sua área de abran-


gência e os profissionais que dela participam.

• Identificar normas e protocolos utilizados para a gestão das condições


de saúde, gestão da clínica, do cuidado e dos riscos.

INTRODUÇÃO

O termo “gestão da clínica” é trazido por Eugênio Vilaça Mendes, autor bastan-
te conhecido das discussões em organização dos serviços de saúde. Em suas pu-
blicações, em 2001, “Os grandes dilemas do SUS”, mostra o conceito de gestão da
clínica como um sistema de tecnologias de microgestão dos sistemas de atenção
à saúde aplicáveis ao SUS. A gestão da clínica sugerida por Mendes é inspirada em
dois movimentos:

• Atenção gerencial – desenvolvido no sistema de atenção à saúde dos


Estados Unidos.

• Governança clínica – estabelecido no sistema público de atenção à


saúde do Reino Unido.

A gestão da clínica é um arranjo de tecnologias de microgestão da clínica, com


o objetivo de propor uma atenção à saúde de qualidade:

• centrada nas pessoas;

• efetiva, estruturada com base em evidências científicas;

• segura, que não cause danos às pessoas e aos profissionais de saúde;

• eficiente, provida com os custos ótimos;

• oportuna, prestada no tempo certo;

• equitativa, de forma a reduzir as desigualdades e injustiças; e

• ofertada de forma humanizada.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Por meio das diretrizes clínicas, com aplicação de protocolos e evidências cien-
tíficas atualizadas, a condução das condições clínicas dos usuários ocorre de forma
objetiva e eficiente. Logo, a gestão da clínica atua nos processos internos, princi-
palmente da Atenção Primária à Saúde e na sistematização da organização dos
serviços de saúde na atuação em rede.

DIRETRIZES CLÍNICAS

São recomendações organizadas de forma sistemática, com a finalidade de in-


tervir nas decisões dos profissionais de saúde e no cuidado dos usuários. Segundo
Mendes (2011), as diretrizes clínicas possuem quatro funções:

• função gerencial;

• função educacional;

• função comunicacional;

• função legal.

As diretrizes clínicas são organizadas por dois tipos de ferramentas denominadas:

• linhas guias (guidelines);

• protocolos clínicos.

As tecnologias da gestão da clínica são fundamentadas em quatro itens, os


quais possuem a função de aumentar a eficiência econômica do sistema de aten-
ção à saúde. São estas as tecnologias sugeridas por Mendes (2011):

• gestão da condição de saúde;

• gestão de caso;

• auditoria clínica;

• lista de espera.

Nesta unidade, abordaremos como utilizar essa ferramenta de trabalho nas


discussões e os desafios encontrados na unidade básica de saúde, com enfoque na
organização da demanda da comunidade.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

AS DEMANDAS DA APS

Até aqui discutimos conteúdos que envolvem o conhecimento da Política Na-


cional da Atenção Básica, assim como os serviços internos das unidades básicas de
saúde a partir da carteira de serviços, o rol de atividades das UBSs e as atribuições
dos componentes de cada equipe de saúde da família, seja de saúde bucal seja da
estratégia de saúde da família e/ou Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Aten-
ção Básica (NASF-AB).

Agora aprofundaremos nos conteúdos que são peças fundamentais para a


qualificação do serviço e sua organização. Iniciaremos nossa discussão abordando
o território.

Você sabia?

Um estudo publicado por Green et al., em 2001, intitulado de “The eco-


logy of medical care revisited”, traz uma figura importante para nortear
nossos primeiros passos na organização da agenda das equipes.

1.000 pessoas em um mês

800 apresentam sintomas

217 procuram a APS


8 vão ao hospital geral e 9 vão aos
especialistas
1 é internada em hospital de ensino

Fonte: Green LA et al. The ecology of medical care revisited. New Engl.J.Med, 344: 2021-2025, 2001

Conhecer o território e entender a forma como a comunidade acessa a


unidade de saúde são pilares para o conhecimento da demanda
exigida à unidade básica de saúde.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A demanda da APS pode envolver um amplo espectro de condi-


ções de saúde, concentrado em condições de saúde variáveis e
voltado no acompanhamento das condições crônicas. Além disso,
também, é concentrado nas pessoas hiperutilizadoras, nas condi-
ções gerais e inespecíficas e em enfermidades. Possui variações
temporais com um componente significativo de demanda adminis-
trativa e de cuidados preventivos. É uma demanda diversificada
que exige diferentes padrões de oferta para a sua resposta e alto
grau de resolubilidade.

Nesse sentido, é possível descrever a complexidade da APS base-


ada na atenção aos eventos agudos; atenção às condições crôni-
cas não agudizadas, às enfermidades e às pessoas hiperutilizado-
ras; atenção às demandas administrativas; atenção preventiva;
atenção domiciliar; atenção para o autocuidado apoiado.

Para refletir!

Você já realizou um estudo de demanda das principais “queixas”


que chegam ao acolhimento da sua unidade de saúde? Quantas
pessoas procuram a unidade buscando as ações programáticas?
Quantas pessoas procuram com queixas inespecíficas?

Pesquisa realizada em Florianópolis, Brasil, mostrou que, em mé-


dia, foram identificados 1.475 problemas de saúde nas unidades
de APS, mas 28 deles responderam por 50,4% da demanda total,
10 diferentes perfis de demanda podem ser articulados em 6 perfis
de oferta.

Fonte: Gusso, 2019. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponi-


veis/5/5159/tde-08032010-164025/pt-br.php

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Mendes (2015) nos traz ainda a necessidade de discutir a construção social da


APS a partir do conceito de macroprocessos que, juntos, formam o modelo ilustra-
tivo a seguir de organização da APS.

Fonte: Mendes EV.A construção social da atenção primária à saúde. Brasília, CONASS, 2012.

Seguindo a discussão sobre o entendimento do território e das demandas mais


pertinentes na APS, avançamos para a necessidade do conhecimento do uso de
protocolos de diretrizes clínicas na busca de uma racionalidade dos recursos da
APS e aumento da sua resolubilidade. O cuidado não resolutivo implica na presta-
ção dos serviços de saúde da APS, o que pode caracterizar pela sobreutilização e/ou
pela subutilização dos serviços de saúde.

Nesse sentido, está a importância da classificação de risco para a organização


do cuidado, não só abordando o tema de ajuste da agenda, a fim de proporcionar
atendimento em tempo oportuno, mas também norteando as ações do cuidado
aos pacientes com condições crônicas de saúde.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O ESTUDO DA DEMANDA E A ORGANIZAÇÃO DA AGENDA

Para entender a demanda, é preciso, também, ter um sistema de registro mí-


nimo. Um bom prontuário eletrônico pode ajudar nessa tarefa, não descartando
os registros manuais. Com o intuito de compreender quais informações devem ser
registradas, é necessário conhecer os seguintes conceitos:

• Pressão assistencial: número de consultas em um período de número


de dias trabalhados em um mesmo período (por exemplo: 247 dias de
trabalho em um ano).

• Frequência: número de consultas em um período (normalmente uma


consulta por ano) /número de habitantes.

Dessa forma, é possível descrever algumas situações comuns no dia a dia de


uma unidade básica de saúde. Vejamos.

Quadro 1 – Análise quantitativa da demanda.

Quadro 1 – Análise quantitativa da demanda.

Alta “frequência” Baixa “frequência”


Alta pressão assistencial SITUAÇÃO A SITUAÇÃO B
Baixa pressão assistencial SITUAÇÃO C SITUAÇÃO D

Fonte: Casajuana; Saameño, 2003.

Situação A: situação mais comum no meio urbano. Um excesso de “frequên-


cia” é geralmente devido a certo déficit organizativo.

Situação B: o excesso de pressão assistencial é acompanhado de uma baixa


“frequência”. Isso pode indicar que não há muita margem de manobra organi-
zativa para poder diminuir a utilização, sendo a única opção um incremento nos
recursos para adequar a pressão assistencial.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Situação C: essa situação é observada em áreas rurais com pouca população


adscrita (baixa pressão). Existe uma alta “frequência” aprimorável com medidas
organizativas. Na teoria, sobram recursos, mas isso não pode ser aplicável, pois, em
áreas rurais, há grande rotatividade de profissionais impedindo o planejamento
das ações.

Situação D: essa situação é encontrada em zonas urbanas de classe alta, nas


quais as pessoas podem usar outros recursos sanitários.

Após a apresentação ampla dos elementos básicos da gestão da clínica, vamos


intensificar os conhecimentos na carteira de serviços da APS e a importância desse
conhecimento entre os profissionais de saúde e os usuários.

Para refletir!!!

Na unidade de saúde em que você trabalha, ou faz gestão, há a


publicização dos serviços ofertados naquela unidade? Existe atu-
alização diária para a comunidade dos serviços que estão sendo
ofertados na unidade? A comunicação com a comunidade é es-
sencial para interação com qualidade entre os dois principais com-
ponentes do SUS, o usuário e o serviço de saúde.

A carteira de serviços apresentada na Unidade 1 descreveu os serviços oferta-


dos pela APS, assim como a Carta de Serviços do Distrito Federal. Conhecer o ser-
viço a ser ofertado é imprescindível para a organização de agenda e planejamento
do tempo de atuação nas unidades de saúde. Além disso, a utilização dos proto-
colos clínicos, como já descrito também naquela unidade, torna o cuidado mais
racional e resolutivo.

Relembre... Os protocolos poderão ser acessados neste link:

https://www.saude.df.gov.br/protocolos-aprovados/.

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

LIDANDO COM O HIPERUTILIZADOR

Não existe um critério bem definido para os pacientes que utilizam o serviço
muitas vezes. Alguns estudos, como o produzido por Casajuana e Saameño (2003),
sustentam que “[...] a maioria dos pacientes difíceis (aqueles que provocam incô-
modo no profissional) são hiperutilizadores, mas nem todos os pacientes hiperuti-
lizadores são difíceis”.

Outro estudo, de Hildebrandt et al. (2004), mostrou que esses pacientes deman-
dam cerca de três vezes mais consultas que a média, oito vezes mais internações hos-
pitalares, os principais diagnósticos envolvem questões de saúde mental (36%), dor
(21%), doença crônica (16%), gestação (13%) ou problemas frequentes em crianças (9%).

É importante conhecer a população hiperutilizadora em cada realidade, por


meio dos dados do prontuário eletrônico ou de pesquisas específicas. Não há uma
forma única de se lidar com o hiperutilizador, entretanto, uma estratégia que não
funciona é a limitação do acesso. Pelo contrário, muitas vezes, o esgotamento da
demanda, agendando um horário fixo semanal ou diário, é a melhor estratégia.
Além disso, é fundamental a abordagem centrada no indivíduo e integral, com o
objetivo de que a escuta possa ser uma das estratégias para lidar com a situação.

Uma das principais tarefas da gestão da clínica é convencer quem utiliza mui-

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

to a unidade (e é de baixo risco) a ir menos e quem utiliza muito a unidade (e tem


algum risco) a comparecer.

ENCERRAMENTO

Esta unidade teve o propósito de mostrar os principais elementos da gestão da


clínica e do cuidado, evidenciando a origem do conceito e suas ferramentas. Apre-
sentamos a importância do conhecimento das características do território para a
compreensão do acesso da comunidade, assim como a organização da agenda
dos profissionais de saúde. Recuperamos, ainda, o conteúdo apresentado no mó-
dulo introdutório sobre a carteira de serviços da APS e os protocolos clínicos utili-
zados no Distrito Federal como essenciais para cumprimento da resolutividade e
qualidade da APS. Por fim, discutimos com maior cuidado como lidar com o usuário
hiperutilizador, fator que pode ser importante na organização do acesso e de serviços.

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BOA
BOAPRÁTICA
PRÁTICADA
DA UNIDADE
UNIDADE I1

Dona Margarida

Uma das pacientes que a médica Joana atendeu em domicílio logo em sua primeira semana de
trabalho foi Dona Margarida, de 75 anos. Viúva de Seu Quinzinho, que morreu de derrame aos 85
anos, continuava apaixonada pelo marido. Como diz sua filha Jandira, “a mamãe vive no passado”.
Margarida teve três filhos com o finado Quinzinho e mora agora na companhia de sua filha
mais nova, Jandira, de 54 anos, e de sua neta Inês, de 32. Jandira é divorciada de João e trabalha
como diarista; Inês é manicure em um “salão chique”, e, como diz Jandira, “vive para o trabalho”.

Em seu primeiro atendimento domiciliar, Joana foi


chamada às pressas para ver Margarida, que apre-
sentava quadro de disúria, algúria e dor suprapúbica
com sete dias de evolução, sem febre. A princípio,
achou estranho ter de fazer atendimentos domiciliares
de “urgência”, pois não havia essa prática na equipe
em que trabalhava antes de ir para a UBS Vila Santo
Antônio. Iniciou o tratamento empírico com Sulfame-
toxazol + Trimetoprim 800/160 BID por sete dias, e
resolveu levar o caso para a reunião, de forma a
facilitar a discussão que queria levantar sobre a
organização da atenção domiciliar na equipe.

Na reunião, Joana pôde perceber


que a atenção domiciliar em casos
agudos era uma prática comum.
Além disso, identificou que a equipe
não dispunha de instrumentos para
organizar as visitas aos pacientes
com agravos crônicos (por exemplo,
os atendimentos eram marcados “só
quando a família entrava em contato
com a equipe”). O caso em estudo
foi decisivo para que, durante a
discussão, a equipe fizesse, sob a
supervisão de Joana e da enfermeira
Ana Lígia, um plano terapêutico para
Margarida. O ACS Marcos seria
responsável por agendar os atendi-
mentos na frequência e na periodici-
dade decididas, e Ana Lígia iria fazer
um atendimento inicial de Avaliação
Global do Idoso.
Na semana seguinte, Ana Lígia trouxe as suas impressões:
– Pessoal, após o meu atendimento, encontrei os seguintes problemas: baixa
acuidade visual, má higiene bucal, lesões nos lábios e comissura labial,
incontinência urinária, teste de minimental alterado (20 pontos, avaliação
funcional de grau B para atividades básicas de vida diária e Escala de Lawton
para atividades instrumentais de 14/27).
E continuou:
– Sugiro que façamos um acompanhamento da Jandira, ensinando a ela
algumas técnicas para lidar com a dependência parcial da mãe. Também gostaria
que a Joana fosse até a casa dela para um novo atendimento, a fim de avaliar
melhor a possível demência e a incontinência. Seria importante uma visita do
Érico ou da Mariane para avaliar a questão da saúde bucal.

A seguir, houve uma


acalorada discussão sobre o
papel do cuidador no caso,
considerando que Marcos
relatou sua impressão de que
Jandira estava “muito cansada”
e que “precisava de um
psicólogo”. Joana e Ana Lígia
pareciam preocupadas com a
visão do ACS de que os
pacientes com algum tipo de
sofrimento psíquico tivessem
obrigatoriamente de passar por
um psicólogo. Por fim, a equipe
decidiu em conjunto que, antes
Dona Margarida, Jandira, Joana e Ana Lígia, sentadas à mesa
de “encaminhar a cuidadora” ao
da cozinha, conversando. Inês e Marcos em pé, também na
serviço de saúde mental, cozinha, observando a conversa. Marcos com um copo de água na
convidariam Jandira para um mão. Na mesa, há xícaras de café. Assim, Joana iniciou o
atendimento individual. acompanhamento rotineiro de Margarida.
Na sua segunda visita, no fim da tarde, encontrou a filha Jandira e a neta Inês em casa.
– Boa tarde! – cumprimenta Joana.
– Boa tarde! – respondem as três.
– E aí, pessoal, tudo bem? – pergunta Joana.
– Tudo – respondem.
– E a senhora, Dona Margarida, tudo bem? – continua Joana.
– Estamos aí, minha filha. Essa casquinha... – responde, sem muito ânimo.
– A senhora está lembrada de mim? Vim aqui há uns vinte dias. (Silêncio)
Jandira toma, então, a palavra:
– Ó, doutora, de memória a mamãe não lembra muito bem não, né, mãe? (Silêncio) Joana se sente um
pouco incomodada e ansiosa com esses silêncios profundos. Decide, então, explorar melhor os sintomas da
paciente:
– Mas, Dona Margarida, há quanto tempo a senhora tem esses “problemas de memória”?
– Olha, minha filha, eu não sei, não. Quem sabe dessas coisas é a minha filha, que me acompanha e
ajuda aqui em casa.
– Hummmm... – responde Joana.

Jandira novamente intervém:


– Doutora, deve ter uns cinco anos que a mamãe começou a caducar. No começo, ela se esquecia de
coisas que tinha feito há pouco tempo, de onde pôs as chaves, se deu ou não comida para os cachorros.
Com o tempo foi piorando, esquecendo-se do nome dos netos e filhos, das coisas...
– E hoje? –pergunta Joana
– Ah – diz Jandira – hoje está a mesma coisa. Mas uma coisa é impressionante: ela lembra de coisas da
sua infância e adolescência com uma nitidez, né, mamãe? Fala para gente como é que foi o seu noivado.
– Minha filha, foi uma coisa linda... – começa a descrever Dona Margarida.
Dona Margarida conta uma longa história de amor e aventuras vividas por ela e seu finado marido. Ao
final do relato, Joana se sente emocionada com a oportunidade de conhecer tão grande história de amor.
– Muito bem, Dona Margarida, que história, hein? A senhora é sortuda... Teve um bom marido, carinhoso
com você e suas filhas. E os netos e netas?
– Ah, minha filha, são muitos...
– E essa neta que mora aqui com a senhora? Como é o nome dela, mesmo?
– Ah... a Jandira.
– Mas a Jandira é sua neta?
– Não, não... a Marlene?
– A senhora lembra o nome dela?
– Não é Marlene?
– Não, essa daqui é a Inês, não é mesmo?
– É, Inês.
Jandira aproveita para expor um pouco de sua expectativa sobre o tratamento:
– Está vendo, doutora. Não tem um remédio para a memória da mamãe, não?
– Existem alguns, Jandira. Mas é necessário que eu conheça mais algumas coisas sobre o problema,
antes de pensar no tratamento. Você me disse que a evolução da perda de memória foi lenta, não é?
– Sim, foi devagar.
– Teve algum momento em que foi mais rápido ou houve uma mudança rápida para pior?
– Não que eu lembre.
– E como é o comportamento dela dentro de casa?
– Bom, ela não é muito de sair, não. Se deixarmos, fica só dentro de casa. Temos de dizer: “Vamos, mãe,
dar uma volta, ficar dentro de casa faz mal”.
– E em casa?
– Fica escutando um radinho, ela gosta muito de música. Bolero, então...

A anamnese continua. Dona Margarida não apresenta sintomas cardiovasculares nem pulmonares, tem
incontinência urinária de longa evolução (geralmente ligada a esforços e tosse). Já teve vários episódios de
infecção de urina. Não está em uso de medicações contínuas. Joana então decide examiná-la:
– Vamos dar uma olhadinha na senhora? Dona Margarida encontra-se corada, hidratada, sem edemas.
P.A. 130X80, FC: 88 bpm. Sem sinais neurológicos focais. Bulhas normorrítmicas e normofonéticas em dois
tempos. Murmúrio vesicular fisiológico, com ruídos descontínuos inspiratórios em bases pulmonares
(crepitações). Desconforto à palpação suprapúbica. Antes de passar as suas impressões à família, a médica
faz uma rápida revisão do prontuário orientado ao problema (POP) de Margarida. Sua lista de problemas
anteriores era: demência, varizes e osteoartrose (problemas crônicos), pneumonia e ITU (problemas
agudos). Os últimos exames realizados foram mamografia (há cinco anos) e um exame de colesterol,
glicemia e triglicérides (há um ano).
– Vou pedir também para o Érico, dentista, dar um pulinho aqui, tá bom? – diz Joana.
– Ótimo, doutora, pois ela se queixa de dores nos dentes, que
tem dificuldade de se alimentar, principalmente alimentos
sólidos e muito duros, comendo sopa e alimentação mais
pastosa e mole – responde Jandira. Seus dentes estão
muito moles, sangram e parece que vão cair a qualquer
momento. Além disso, queixa-se de feridas no canto da
boca e sente gosto ruim e forte mau hálito. Às vezes
quero ajudar a limpar a boca, mas ela rejeita ajuda de
outras pessoas, pois diz que “não está incapacitada”.
A médica observa que a paciente apresenta lesões nas comissuras labiais (queilites) devido à perda da
dimensão vertical, mas há lesões suspeitas no lábio superior que devem ser avaliadas quanto à
possibilidade de neoplasia. Tanto Jandira quanto a neta Inês acreditam que Margarida deve estar com
problemas dentários bem graves e acham que ela deveria extrair todos os dentes e colocar dentadura para
eliminar o problema de vez. Joana orientou que extrair todos os dentes remanescentes para colocar uma
prótese nem sempre é a melhor solução, que elas poderiam ajudar a mãe na higiene bucal. Passadas duas
semanas, Érico chega para a visita domiciliar e constata alto índice de placa bacteriana, cálculo, gengivite e
periodontite, com perda óssea generalizada, com médio ou alto grau de mobilidade em vários elementos
dentais. Margarida apresenta halitose, higiene deficiente, queilite angular nas comissuras labiais pela perda
de dimensão vertical relacionada à perda de vários elementos dentários anteriores e posteriores.

– É fundamental que vocês possam motivar a Dona


Margarida para realizar a sua higiene bucal – diz Érico.
– Isso não é apenas pela sua idade, mas também
pelas suas condições de memória, percepção e
aprendizado. Eu e Mariane vamos cuidar de maneira
muito especial da senhora, Dona Margarida. Podemos
combinar assim? Filha e neta fazem sinal positivo com
a cabeça, mas a paciente não responde ao
questionamento do dentista.
– Jandira, serão necessários alguns exames, como
raios X – informa Érico.

– Você acha que consegue levar sua mãe à Unidade de Saúde? Será que
ela aceita o tratamento odontológico? Ela me parece um pouco confusa...
Além disso, precisamos avaliar o protocolo de encaminhamento para a
atenção secundária…
– Jandira, é importante avaliar essas lesões do lábio – completa Érico.
– Acho que o exame, o diagnóstico e, se necessário, o tratamento devem
ser feitos pelo estomatologista, devido à possibilidade de lesões
cancerizáveis. A ideia é garantir que Dona Margarida seja cuidada da melhor
maneira possível.
– Doutor, eu posso até levar ela, mas acho que vamos ter de dar um
remédio para ela acalmar – avalia Jandira.

O caso descreve,
de forma minuciosa,
a gestão de uma
situação complexa
iniciada em uma
visita domiciliar
questionada pela
médica. Ao envolver
todos da equipe de
saúde e saúde bucal,
mostra a integrali-
dade do cuidado.
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

REFERÊNCIAS

CASAJUANA, J. B.; SAAMEÑO, J. A. B. Gestión de la consulta en atención primaria.


In: ZURRO, A. M.; PÉREZ, J. F. C. Atención primaria: conceptos, organización y prác-
tica clínica. 5. ed. Madrid: Elsevier, 2003. pp. 84-109.

DISTRITO FEDERAL (Estado). Secretaria de Estado de Saúde. Carta de Serviços


ao Cidadão. Brasília: SES/DF, 2018. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/wp-
-conteudo/uploads/2018/10/Carta-Servicos-da-Saude_Cidadao-1.pdf. Acesso em: 23
mar. 2022.

GREEN, L. A. et al. The ecology of medical care revisited. New England Journal of
Medicine, v. 344, n. 26, pp. 2021-2025, 2001.

GUSSO, G. D. F. Diagnóstico de demanda em Florianópolis utilizando a Classi-


ficação Internacional de Atenção Primária: 2ª edição (CIAP-2). 2009. 212 f. Tese
(Doutorado em Ciências) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.

GUSSO, G.; LOPES, J. M. C. Tratado de medicina de família e comunidade: princí-


pios, formação e prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 2018.

HILDEBRANDT, D. E. et al. Are frequent callers to family physicians high utilizers?


The Annals of Family Medicine, v. 2, n. 6, pp. 546-548, 2004.

MENDES, E. V. Os grandes dilemas do SUS. Salvador: Casa da Qualidade, 2001.

MENDES, E. V. As redes de atenção à saúde. 2. ed. Brasília: Organização Pan-Ame-


ricana da Saúde; Organização Mundial da Saúde; Conselho Nacional de Secretários
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MENDES, E. V. et al. A construção social da atenção primária à saúde. Brasília:


Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2015.

ZUCOLOTO, S. B. P. Redes de atendimento no CISAMUSEP. Maringá: CISAMUSEP,


2017.

23
UNIDADE 2
Gestão do acesso
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Objetivos da unidade

• Relatar estratégias de acolhimento e como evitar barreiras de acesso.

• Diferenciar o conceito de risco e sua estratificação.

• Indicar as metodologias de equilíbrio entre demanda espontânea e


programada e metodologias para a construção de agenda de ofertas
na APS/UBS.

INTRODUÇÃO

O Distrito Federal tem passado por mudanças profundas na Rede de Atenção


à Saúde, as quais chamam à reflexão todos os trabalhadores, visto que colocam a
Estratégia de Saúde da Família (ESF) como modelo único de atenção na Atenção
Básica do Distrito Federal. Isso quer dizer que os processos de trabalho passam a
seguir os Princípios do SUS e as Diretrizes dispostas na Política Nacional de Aten-
ção Básica (PNAB), com destaque aos princípios da universalidade, integralidade
e equidade.

O Programa Saúde da Família (PSF) foi criado pelo Ministério da Saúde em


1994 e tinha como um de seus principais fundamentos o acesso universal e contí-
nuo a serviços de qualidade. Em 2011, a Portaria GM nº 2.488 estabeleceu a revisão
das diretrizes e normas para a reorganização da atenção básica na ESF, apresen-
tando, entre outras características, a realização do acolhimento com escuta quali-
ficada, classificação de risco e avaliação da necessidade de saúde.

Ao longo deste estudo, consideraremos


os termos Atenção Primária à Saúde (APS) e
Atenção Básica (AB) como sinônimos, mas,
para fins didáticos, utilizaremos o primeiro.

Dessa forma, a Atenção Primária à Saúde,


como porta de entrada preferencial do SUS, re-
quer metodologias de acesso que garantam o
estabelecimento de vínculo, a resolutividade e
a ordenação do cuidado.

26
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Para que possamos coordenar o cuidado, tanto na UBS quanto numa rede am-
pliada de cuidados, e ser resolutivos, precisamos assumir o papel de referência,
direcionando, junto ao usuário, o percurso inicial dele em busca de respostas às
suas necessidades. Tais necessidades se apresentam de forma rotineira nos servi-
ços de saúde, de tal modo que não podemos controlar – assim como muitas vezes
o próprio usuário – como, onde e quando elas chegam, mas podemos direcionar,
de maneira mais responsável possível, os itinerários.

Na Atenção Básica, nos defrontamos com uma variedade muito maior de for-
mas de apresentação da doença do que nos serviços especializados, que, geral-
mente, veem os pacientes em estágios posteriores e mais diferenciados da doen-
ça, além de estarmos mais próximos de seus contextos sociais do que a atenção
especializada.

Soma-se a essa equação considerar cada indivíduo em sua singularidade,


complexidade, integralidade e inserção sociocultural e sua experiência pessoal e
única com a doença, respeitando seus valores e suas representações sociais na
comunidade em que está inserido, buscando produzir a autonomia possível para
efetivação do seu cuidado.

Mentalmente, podemos construir de imediato, na maioria das situações, esses


itinerários, considerando a lógica e o conhecimento de como funcionam as ofertas
de cuidado em nosso local de trabalho.

Quanto mais articulado e informado o trabalhador, mais resolutividade e op-


ções de cuidado ele terá à sua disposição para oferecer a uma demanda que lhe
seja apresentada. Para acolher bem as demandas, qualquer trabalhador, em qual-
quer setor de trabalho, necessita adotar uma postura proativa e verdadeiramente
interessada na resolução de um problema, seja ele muito simples seja bastante
complexo.

Trata-se, portanto, de estabelecermos tecnologias de resposta eficientes a essa


expectativa de “porta de entrada” que a sociedade tem e sempre terá, quando se tra-
ta de necessidades de saúde. Cada um de nós é potencial ponto de partida para cons-
trução do vínculo, para busca da resolutividade e para coordenação de um cuidado.

27
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO

• Ambiência como recurso para acolher

Um recurso muito potente, e muitas vezes negligenciado, para melhor acolher


é o da ambiência. Um ambiente que dispõe de informações fáceis que guiem o
usuário na direção de uma resposta a uma demanda reduz drasticamente o tem-
po e a quantidade de recursos para mobilizar.

28
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

BOAS PRÁTICAS!

Uma equipe de uma UBS da Asa Sul se reuniu para tratar da sobrecarga do ser-
viço, pois, após a mudança no DF do modelo de processo de trabalho tradicional
para o modelo da Estratégia Saúde da Família, além da agenda programada, pas-
sou a lidar com queixas corriqueiras e imprevistos que se apresentavam na “porta”.
Os serviços de urgência já não aceitavam pacientes para renovar prescrições, para
mostrar resultados de exames ou para atestados e relatórios.

Adicionalmente, passaram a trabalhar no modelo multiprofissional de aten-


dimento, todos poderiam acolher qualquer usuário na UBS, inclusive aqueles que
buscavam informações do serviço, marcação de consultas e exames oferecidos na
unidade, pois o serviço de recepção, antes realizado por “pessoal do administrati-
vo”, deixou de existir.

Para lidar com essas novas “rotinas”, a equipe listou as informações que po-
deriam ser fornecidas por meio de cartazes, folhetos e WhatsApp, como local do
banheiro, gerência, sala da vacina e laboratório, sala de acolhimento de sua equipe,
sala de marcação de exames e consultas, além de seus horários de funcionamento.

Um quadro de avisos informava quando encontrar certos profissionais na uni-


dade ou informações de como funcionam os principais serviços oferecidos na uni-
dade ou fora dela, assim como endereços e contatos de certos equipamentos mais
comumente referenciados. No chão, fixaram-se faixas coloridas que levavam para
os principais setores da UBS.

Os usuários começaram a utilizar os avisos e os sinais dispostos sem necessa-


riamente passar por uma sala ou profissional específicos para serem orientados
e encaminhados, reduzindo a quantidade de recursos humanos mobilizados e o
tempo de permanência e espera de pessoas na unidade.

Com o apoio da gerência e o fornecimento de um celular, além da marcação


de consulta e renovação de receitas on-line, passaram a utilizar WhatsApp, e-mail
e telefone para incentivar o maior comprometimento do Nasf da UBS e do CAPS
da região, por meio do uso da tecnologia, com trocas de informações em tempo
real entre os profissionais e com a comunidade.

29
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A equipe inferiu que havia outras estratégias de acolhimento ao usuário utili-


zando a ambiência da UBS para reduzir a demanda espontânea e ocupar mais seu
tempo na qualificação dos atendimentos dos profissionais. Constatou também o
aumento da resolutividade, especialmente nas demandas que exigiam conhecimen-
tos aprofundados em saúde mental, nutrição, fisioterapia e terapia ocupacional com o
matriciamento on-line mais direcionado às necessidades da equipe e da comunidade.

30
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Saiba mais!!!

Conforme a Portaria de Consolidação nº 2/2017, do Ministério da


Saúde, toda UBS deve monitorar a satisfação de seus usuários,
oferecendo o registro de elogios, críticas ou reclamações, por meio
de livros, caixas de sugestões ou canais eletrônicos. As UBSs de-
verão assegurar o acolhimento e a escuta ativa e qualificada das
pessoas, mesmo que não sejam da área de abrangência da unida-
de, com classificação de risco e encaminhamento responsável de
acordo com as necessidades apresentadas, articulando-se com
outros serviços de forma resolutiva, em conformidade com as li-
nhas de cuidado estabelecidas.

Ainda nesse sentido, de acordo com o art. 26 da Portaria nº


77/2017, da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal:

[...]
Art. 26. A GSAP* deverá afixar em local visível, próximo à
entrada da unidade:
I - Identificação da unidade e horário de atendimento;
II - Mapa de abrangência da unidade, com a cobertura de
cada equipe;
III - Identificação do Gerente da GSAP e dos componentes de
cada equipe da UBS;
IV - Carteira de serviços disponíveis na unidade;
V - Detalhamento das escalas de atendimento de cada equipe;
VI - Telefone da ouvidoria responsável.
[...]
*GSAP – Gerência de Serviços da Atenção Primária

• Sala de Acolhimento

Em alguns locais que contam com muitas equipes, é comum encontrarmos


uma Sala de Acolhimento, que são espaços específicos com pessoas escaladas
para acolher as diversas situações de imprevistos. Podem funcionar por todo o ho-
rário de funcionamento da unidade, por turnos ou apenas algumas horas específi-

31
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

cas do dia, assim como podem contar com profissionais de qualquer categoria
profissional de nível médio ou superior.

No entanto, é preciso diferenciar a Sala


de Acolhimento, como recurso físico, do pro-
cesso de acolhimento, como atitude profis-
sional, que deve ocorrer em todo o horário
de funcionamento da UBS.

Assim, a depender dos recursos huma-


nos e materiais disponíveis na Sala de Aco-
lhimento, ela pode dispor de maior ou me-
nor resolutividade antes de necessitar bater
em outras portas para pedir ajuda. Cabe à
equipe reconhecer, a partir de sua realidade,
a melhor forma de organizar o acolhimento
dos usuários.

Você sabia?

O ato de acolher, geralmente utilizado como meio para se conse-


guir uma atividade-fim, pode ser realizado após a consulta ou
atendimento na unidade, como, por exemplo, para pegar a medi-
cação, marcar um retorno, realizar um outro atendimento ou cole-
tar um exame.

Saiba mais!

Acolhimento: prática de receber, escutar, dar acolhida, admitir, aceitar,


dar ouvidos, dar crédito às pessoas, atitude de inclusão, que deve estar
presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre tra-
balhadores e usuários dos serviços de saúde (BRASIL, 2017).

Assim, depreende-se as dimensões constitutivas do acolhimento, utilizan-


do como referência o CAB 28, volume 1:

32
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• O acolhimento como mecanismo de ampliação/facilitação do acesso

O acolhimento é inclusivo, uma vez que não privilegia apenas grupos de


portadores de agravos mais prevalentes (hipertensos, diabéticos, ges-
tantes, puericultura, prevenção, tabagismo, planejamento familiar etc.),
mas considera todos os agravos presentes na sua população, incluídos
os mais raros, pois a prioridade advém de uma boa escuta do sujeito em
sua singularidade, além da enfermidade ou condição, ofertando o cuidado
oportuno, no tempo oportuno, ou seja, conforme a necessidade de cada
um.

• O acolhimento como postura, atitude e tecnologia de cuidado

O processo de acolhimento ocorre nas relações entre pessoas, e não em


um lugar especial ou com uso de materiais especiais ou com trabalha-
dores específicos, mas se serve da escuta, da filtragem do conteúdo, da
sensibilidade do trabalhador, do convívio com o não previsto, da ética, da
construção de vínculo e do uso judicioso dos recursos disponíveis, consti-
tuindo, assim, uma tecnologia leve, embora muitas vezes complexa.

Facilita a continuidade e redefinição dos projetos terapêuticos dos usu-


ários quando eles procuram a unidade de saúde fora das consultas ou
atividades agendadas.

Como exemplo, podemos pensar na atitude da equipe quando uma mu-


lher que não leva o filho às consultas programadas de puericultura resolve
levá-lo com diarreia ao serviço, num dia não previsto.

Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=PaUp-8vgZto.

• O acolhimento como dispositivo de (re)organização do processo de


trabalho em equipe

Pressupõe mudanças nos modos de organização das equipes, nas rela-


ções entre os trabalhadores e nos modos de cuidar.

33
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Não se trata de distribuir senhas e organizar filas de espera na madruga-


da, tampouco é uma triagem para atendimento médico.

Exige que a equipe reflita, discuta e defina sobre o total do conjun-


to de ofertas que devem estar à disposição para serem agenciadas,
quando necessário.

Responder às seguintes perguntas:

• De que modo os diferentes profissionais participarão do acolhimento?

• Quem vai receber o usuário que chega?

• Como avaliar o risco e a vulnerabilidade desse usuário?

• O que fazer de imediato?

• Quando encaminhar/agendar uma consulta médica?

• Como organizar a agenda dos profissionais?

• Que outras ofertas de cuidado (além da consulta) podem ser necessá-


rias?

Como se pode ver, é fundamental:

1. ampliar a capacidade clínica da equipe de saúde, para escutar de forma


ampliada;

2. reconhecer riscos e vulnerabilidades;

3. realizar/acionar intervenções.

Partindo do conceito de acolhimento como postura do profissional, diante de


um imprevisto, que pode ser adotado universalmente, cabe destacar que chamar
para si a responsabilidade (capacidade de dar uma resposta) compreende o poder
de ampliar possibilidades articulando com os demais profissionais.

34
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Enquanto o usuário desconhece as possibilidades de solução, o trabalhador,


sozinho, conta com sua competência técnica específica, enquanto, como equipe,
diversifica exponencialmente a assistência e as ofertas de cuidado. Nesse propó-
sito, torna-se necessário o conhecimento por todos os profissionais da carteira de
serviços da unidade em que atuam para que consigam os melhores resultados.

A pessoa que acolhe precisa, portanto, se ver como agente que dispõe dos re-
cursos humanos e materiais na unidade em que atua, enquanto os demais traba-
lhadores precisam “acolher quem acolhe”, ou seja, estarem abertos a acatar o pe-
dido do colega que, já tendo realizado a primeira escuta do caso, julgou o melhor
caminho a seguir naquele momento.

A pessoa que acolhe se torna uma “autoridade”, visto que se transforma na-
quela que precisa decidir e “regular” o acesso aos serviços, após uma avaliação
consciente e responsável do problema e do cenário. Por responsável, entende-se
também por compreender as limitações dos serviços e dos colegas de trabalho.

A PRIMEIRA ESCUTA: INFORMAÇÃO AO USUÁRIO, CLASSI-


FICAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DO ACESSO

No primeiro contato, os pacientes devem ser informados sobre a proposta do


acolhimento com classificação de risco, de forma a entender como são estabele-
cidas as prioridades nesse processo e como isso pode afetar o tempo para o seu
atendimento.

Uma vez classificado, o profissional pode resolver o problema no ato ou alocará


o paciente no serviço adequado, seja na sala de espera, na vacinação, seja no cura-
tivo, consultório médico, isolamento, etc. conforme a necessidade do usuário.

Dessa forma, faz parte do processo de trabalho da equipe “na primeira escuta
do usuário”:

1. Avaliar a necessidade de cuidados imediatos.

2. Prestar ou facilitar os primeiros cuidados.

3. Identificar as vulnerabilidades individuais ou coletivas.

4. Classificar o risco para definir as prioridades de cuidado.

35
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

5. Organizar a disposição dos pacientes no serviço, de modo a acomodar os


que necessitam de observação, ou administração de medicação, ou que estejam
esperando remoção para outro serviço, ou que sejam suspeitos de portar doenças
infectocontagiosas de transmissão aérea (meningite, por exemplo).

6. Encaminhar o usuário para o cuidado de acordo com sua classificação.

Papel da ESB

Os profissionais da Equipe de Saúde Bucal (ESB) devem ser envolvidos no pro-


cesso de primeira escuta não somente no que diz respeito ao núcleo da odonto-
logia, assim como os demais profissionais da Atenção Básica devem estar atentos
também às necessidades de saúde bucal do usuário, conhecendo tanto da classifi-
cação de risco das urgências odontológicas quanto do fluxo de encaminhamento
desse usuário para a equipe de retaguarda para necessidades odontológicas.

A partir daí, a ESB faz a escuta mais específica do usuário (segunda escuta),
discute seu plano terapêutico, faz os encaminhamentos, se necessário, para os ser-
viços especializados e garante o acesso para a continuidade de seu cuidado na
UBS. Enquanto parte essencial da Atenção Básica, a ESB compartilha ações de seu
núcleo nas reuniões, avaliações e educação permanente da equipe.

Papel do Nasf

As equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf) deverão dar apoio
matricial às equipes de atenção básica a que estão vinculadas, tanto na educação
permanente de abordagem e no manejo dos casos, na consolidação de um pro-
cesso de trabalho que acolha as demandas espontâneas, no cuidado das pessoas,
quanto auxiliando na constituição da rede de atenção à saúde relacionada àquela
unidade, apoiando a articulação com os serviços de referência, por exemplo, o Cen-
tro de Atenção Psicossocial (CAPS).

Outras estratégias de apoio e educação permanente são fundamentais no


aperfeiçoamento do acolhimento de uma UBS. Transformar as situações do coti-
diano como fonte de demandas pedagógicas para as equipes ajuda a aumentar
a resolutividade e é bastante mobilizador. Dentro da própria rede, é possível en-
contrar pessoas dispostas a dividir seus conhecimentos, sejam para a abordagem
clínica dos casos ou nos fluxos da rede.

36
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Importante!

O uso de protocolos clínicos locais, quando disponíveis, confere


ao trabalhador maior segurança em acionar os melhores recursos
para situações mais corriqueiras ou para situações mais comple-
xas que representem maior risco de gravidade e que, portanto,
exigem respostas mais eficientes dos serviços.

Conheça os Protocolos Clínicos e as Notas Técnicas da SES-DF:

Protocolos Clínicos:

https://www.saude.df.gov.br/protocolos-da-ses-cppas/

Notas Técnicas:

https://www.saude.df.gov.br/notas-tecnicas/

ACOLHIMENTO COMO FERRAMENTA DE VÍNCULO, LONGI-


TUDINALIDADE, UNIVERSALIDADE, INTEGRALIDADE, ACES-
SO DE PRIMEIRO CONTATO, COMPETÊNCIA CULTURAL

Como ferramenta de construção de vínculo e de garantia de continuidade do


cuidado em cada encontro, constata-se que serviços e trabalhadores que não de-
senvolvem processos de trabalho que incluam o acolhimento em suas rotinas têm
prejudicado o acesso universal e com equidade na sua prática, contrariando frontal-
mente esses princípios fundamentais do SUS, alicerces do funcionamento da APS.

37
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Saiba mais!

Universalidade: possibilitar o acesso universal e contínuo a ser-


viços de saúde de qualidade e resolutivos, caracterizados como
a porta de entrada aberta e preferencial da Rede de Atenção à
Saúde (RAS) (primeiro contato), acolhendo as pessoas e promo-
vendo a vinculação e corresponsabilização pela atenção às suas
necessidades de saúde.

O estabelecimento de mecanismos que assegurem acessibilidade


e acolhimento pressupõe uma lógica de organização e funciona-
mento do serviço de saúde que parte do princípio de que as equi-
pes que atuam na Atenção Básica nas UBSs devem receber e
ouvir todas as pessoas que procuram seus serviços, de modo uni-
versal, de fácil acesso e sem diferenciações excludentes, e a partir
daí construir respostas para suas demandas e necessidades
(BRASIL, 2017).

Ademais, o ato de acolher, ao incorporar a integralidade do cuidado em sua lógica


de funcionamento, permite que cada profissional se desloque de sua prática voltada
para a doença, biologicista e, por vezes, hospitalocêntrica, para incluir o contexto psi-
cossocial, cultural e o saber popular na formação do seu raciocínio clínico.

Por exemplo, um dentista que trabalha no modelo convencional de demanda


programada e que tem prejudicado o vínculo com sua comunidade e território pode
se deparar com mais casos clínicos que não retornam ao serviço ou se perdem no ca-
minho, sem saber para onde eles estão indo. Isso porque funcionamos bem quando
conhecemos o sistema e o nosso fazer, mas a maioria das pessoas, na verdade, vai para
casa e logo encontrará barreiras e não saberá como lidar com elas.

38
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Saiba mais!

São atribuições comuns a todos os membros das equipes que atu-


am na Atenção Básica:

[...] VI. Participar do acolhimento dos usuários, proporcionan-


do atendimento humanizado, realizando classificação de ris-
co, identificando as necessidades de intervenções de cuida-
do, responsabilizando-se pela continuidade da atenção e
viabilizando o estabelecimento do vínculo. (BRASIL, 2017).

Vídeo:

Acolhimento com Classificação de Risco na Atenção Primária


à Saúde APS. In: Curso EaD de Qualificação dos Processos de
Trabalho e Gestão da APS: acolhimento com classificação de
risco (Telessaúde Redes, 2017).

Este vídeo integra o curso EaD de Qualificação dos Processos


de Trabalho e Gestão da APS, desenvolvido pelo TelessaúdeRS/
UFRGS. O acolhimento com classificação de risco é uma estraté-
gia para organizar o acesso à saúde, de forma a garantir que os
usuários que têm mais urgência sejam atendidos em menor tempo
de espera. No vídeo, é apresentada a experiência de uma equipe
de saúde do Rio Grande do Sul que implantou a classificação de
risco na APS. Profissionais da equipe falam sobre os critérios utili-
zados na priorização do atendimento.

Disponível em: Link 1 ou Link 2.

39
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

AVALIAÇÃO DE RISCO E VULNERABILIDADES

A classificação de risco é procedimento fundamental no atendimento a de-


mandas agudas. Inicialmente, foi concebida para uso em serviços de urgência, a
fim de ser utilizada em casos em que a capacidade de resposta às demandas fora
ultrapassada. Nesse sentido, considerando que a capacidade de oferta dos serviços
de saúde sofre suas limitações próprias, a classificação de risco foi adaptada para
outros pontos de atenção, como para exames e consultas especializadas (SISREG)
e para APS, como porta de entrada e componente da Rede de Urgência e Emer-
gência da Rede de Saúde.

Há evidências robustas da redução da mortalidade e satisfação dos usuários e


trabalhadores nos serviços de urgência que implantaram o protocolo de Manches-
ter, que é o modelo de classificação de risco de referência utilizado nos serviços de
urgência no país, tanto no setor público quanto no privado.

A adaptação da classificação de risco para APS ocorre respeitando os princí-


pios dispostos na PNAB, especialmente ao incluir a avaliação da vulnerabilidade e
a busca da equidade na avaliação do risco.

De fato, o fator biológico terá sempre prioridade, porém nunca suficiente, pois,
diferentemente de outros pontos de atenção à saúde, a AB exige um olhar am-
pliado, atento à realidade e ao contexto de sua população, sabendo identificar as
particularidades e singularidades a fim de adotar a conduta necessária e adequa-
da a cada caso específico. Se forem considerados apenas os fatores biológicos no
acolhimento, não será possível garantir a saúde em sua complexidade e o acesso
de acordo com a real necessidade do sujeito.

É necessário que o profissional tenha tato, bom senso, competência técnica e


sensibilidade para reconhecer situações que exijam uma abordagem para além
daquelas ações determinadas nos protocolos estabelecidos, com vistas à garan-
tia do princípio da equidade, às noções de vinculação, responsabilização, clínica
ampliada e gestão do cuidado, pois o acesso de indivíduos e grupos aos serviços
de saúde pode ser dificultado devido a contexto social, vulnerabilidades e riscos
sociais, que compõem parte dos determinantes sociais de saúde (DISTRITO FEDE-
RAL, 2018).

Abaixo, citamos exemplos de perguntas para avaliação da experiência/vivência


do problema de saúde e vulnerabilidade:

40
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

1) O que você acha que está acontecendo?

2) Por que essa situação incomoda você?

3) Como essa situação interfere na sua vida?

4) Como você acha que a equipe pode ajudar hoje?

No entanto, o grau de vulnerabilidade pode ser verbalizado ou não, e a sua iden-


tificação pode requerer, portanto, escuta ativa e percepção ampliadas (BRASIL, 2011).

Em outra perspectiva, não apenas trabalhadores de saúde, mas os próprios


usuários precisam compreender o que significa o acolhimento e se envolver com
ele, seja para promover sua qualificação, ou mesmo para que se evitem eventuais
desentendimentos no cotidiano do serviço.

O acolhimento também é espaço para educação do paciente quanto ao uso


racional dos recursos de saúde, que são finitos e podem, até mesmo, produzir
eventos adversos. Se a existência do acolhimento for produtora de cuidado e in-
clusão para os usuários, com o tempo, provavelmente, eles defenderão mais esse
dispositivo, aumentando suas chances de sustentabilidade.

A estratificação de risco e a avaliação de vulnerabilidades orientarão não só o


tipo de intervenção (ou oferta de cuidado) necessário, como também o tempo em
que isso deve ocorrer. Na Atenção Básica, diferentemente de um pronto-socorro,
não é necessário adotar limites rígidos de tempo para atendimento após a primei-
ra escuta, a não ser em situações de alto risco, nas quais a intervenção imediata se
faz necessária.

No entanto, o tempo pode ser parâmetro norteador quando a avaliação dos fa-
tores clínicos estiver dificultada no momento da classificação do risco, ou a classi-
ficação de risco envolver a vulnerabilidade como determinante, sempre com pac-
tuação prévia da equipe.

Por exemplo, uma pessoa em situação de rua que solicita marcar uma con-
sulta pode ser classificada como verde por um ACS, para atendimento no mesmo
dia, de forma a reduzir o tempo de espera, com vistas à construção do vínculo e à
garantia do acesso, pois, do contrário, ela terá dificuldade para permanecer na uni-
dade ou no local por muito tempo ou para retornar à UBS no tempo proposto por
uma classificação azul, se considerado apenas o risco biológico.

41
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Igualmente, uma criança desnutrida que não é levada às consultas de pueri-


cultura há oito meses, um homem de 50 anos que vai a um serviço de saúde pela
primeira vez depois de muitos anos, uma mulher em idade fértil (sem realizar pa-
panicolau há quatro anos) que trabalha como diarista (sem carteira assinada) e
cuida sozinha de três filhos menores de idade. Se eles procuram a unidade com
um problema clinicamente simples e de baixo risco, esse momento é oportuno
também para ofertar ou programar outras possibilidades de cuidado.

Ressalte-se que a classificação de risco é dinâmica, e um usuário antes classifi-


cado como amarelo pode ser reclassificado como verde, vice-versa.

O CAB 28 divide didaticamente a classificação de risco em condições não agu-


das e três tipos de atendimento de situações agudas ou crônicas agudizadas, com-
pondo quatro cores, respectivamente, azul e verde, amarelo e vermelho.

A cor azul representa condições não agudas, enquanto as outras cores se refe-
rem às condições classificadas como agudas, sendo a vermelha com necessidade
de atendimento imediato.

A seguir, veremos a divisão proposta no CAB 28:

Situação não aguda (azul)

Condutas possíveis:

• Orientação específica e/ou sobre as ofertas da unidade.

• Adiantamento de ações previstas em protocolos (ex.: teste de


gravidez, imunização).

• Agendamento/programação de intervenções.

Contudo, vale salientar que o tempo para o agendamento deve


levar em consideração a história, a vulnerabilidade e o quadro
clínico da queixa.

42
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Situação aguda ou crônica agudizada (vermelho, amarelo e verde)

Condutas possíveis:

Vermelho – atendimento imediato (alto risco de vida): necessita


de intervenção da equipe no mesmo momento, obrigatoriamente
com a presença do médico. Ex.: parada cardiorrespiratória, dificulda-
de respiratória grave, convulsão, rebaixamento do nível de consciên-
cia, dor severa.

Amarelo – atendimento prioritário (risco moderado): necessita


de intervenção breve da equipe, podendo ser ofertadas, inicialmen-
te, medidas de conforto pela enfermagem até a nova avaliação do
profissional mais indicado para o caso. Influencia na ordem de aten-
dimento. Ex.: crise asmática leve e moderada, febre sem complica-
ção, gestante com dor abdominal, usuários com suspeita de doenças
transmissíveis, pessoas com ansiedade significativa, infecções orofa-
ciais disseminadas, hemorragias bucais espontâneas ou decorrentes
de trauma, suspeita de violência. Sugere-se estabelecer tempo má-
ximo de espera de duas horas, garantindo-se reavaliações do quadro
enquanto espera o atendimento.

Verde – atendimento no dia (risco baixo ou ausência de risco com


vulnerabilidade importante): situação que precisa ser manejada no
mesmo dia pela equipe levando em conta a estratificação de risco
biológico e a vulnerabilidade psicossocial. O manejo poderá ser feito
pelo enfermeiro e/ou médico e/ou odontólogo ou profissionais do Nú-
cleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) dependendo da situação e
dos protocolos locais. Ex.: disúria, tosse sem sinais de risco, dor lombar
leve, renovação de medicamento de uso contínuo, conflito familiar,
usuário que não conseguirá acessar o serviço em outro momento. Su-
gere-se estabelecer tempo máximo de espera até o próximo turno de
atendimento do profissional, que pode ocorrer no dia seguinte, levan-
do também em conta a conveniência e disponibilidade do usuário.

43
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

ORDENE O FLUXO COM RESOLUTIVIDADE E ENCAMINHE


QUANDO NECESSÁRIO

Uma vez realizado o acolhimento, de imediato e sem necessidade de classificar


o risco, podemos direcionar usuários que vêm para procedimentos de rotina da
unidade, tais como: vacinação, atividade coletiva, realização de exame, curativos,
consulta agendada e atividades administrativas (agendamento de consulta, reno-
vação de receitas, coleta de medicamentos na farmácia ou resultado de exames).

Os demais casos são situações imprevistas que requerem uma escuta quali-
ficada, e o direcionamento adequado ocorrerá após avaliação do profissional que
acolhe. Nessas situações de imprevisto, podemos nos deparar com um problema
agudo ou eletivo para lidar.

No caso de problemas eletivos, caso o paciente seja da área de cobertura da


UBS, o usuário será vinculado à sua equipe de referência e orientado quanto aos
serviços da unidade. Caso o usuário não seja da área de abrangência da UBS, de-
verá ser orientado a buscar sua UBS de referência, de preferência com encaminha-
mento responsável por escrito constando o motivo da demanda.

No caso de problemas agudos que requeiram atendimento, independente-


mente de ser da área de abrangência da UBS ou não, o usuário se submeterá ao
procedimento de classificação de risco.

Para melhor entendimento, segue fluxograma constante no Protocolo de Aces-


so da SES, baseado no CAB 28:

44
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Figura 1. Fluxo do usuário na UBS.

Usuário tem atividade


agendada?
Sim
Usuário Encaminhar usuário
chega à UBS para atividade
agendada
Não

Sim
Precisa de atendimento
específico da rotina da Encaminhar usuário
unidade? para setor regulador

Não
Coleta de exame Sala de Vacina
Encaminhar ou
conduzir usuário a
um espaço adequado
Farmácia Sala de Procedimento
para escuta

Inalação / Nebulização

- Escuta da demanda do usuário;


- Avaliação do risco biológico e da vulnerabilidade
subjetivo social;
- Discusão com equipe, se necessário;
- Definição da(s) oferta(s) de cuidado com base nas
necessidades do usuário e no tempo adequado.

Ofertas possíveis:
- Atendimento (médico, enfermagem, odontológico, outros)
Atedimento imediato
Sim num tempo que considere riscos, desconfortos,
Problema é vulnerabilidade e oportunidade de cuidado;
Atedimento Prioritário
agudo? - Permanência em observação, se necessário;
Atedimento no Dia - Renovação ou encaminhamento para outro serviço,
atentando para a necessidade de coordenação do cuidado.

Não

Não - Orientação; Não


Usuário é de Usuário é de área de
- Encaminhamento seguro
área de Abrangência da UBS?
com responsabilização
Abrangência
da UBS?

Sim
Sim

- Avaliação da necessidade de continuação do


Ofertas possíveis: cuidado, com programação oportuna de ações;
- Orientação específica e/ou sobre as ofertas da unidade; - Discusão do caso com a equipe de referência do
- Adiantamento das ações prevista em protocolos; usuário, se pertinente.
- Inclusão em ações programáticas;
- Agendamento de consulta (enfermagem, médica,
odontológica e outras) conforme necessidade e em
tempo oportuno;
- Discussão do caso com a equipe referência do usuário;
- Encaminhamento/orientações para ações programa
intersetoriais;
- Encaminhamento para outros pontos de atenção
conforme necessidade do usuário.

Fonte: Brasil, 2013.

45
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Após a classificação de risco e a realização dos procedimentos necessários à


demanda aguda, o paciente da área de abrangência será novamente orientado e
vinculado à sua equipe de referência, enquanto o usuário “fora da área” será devi-
damente orientado e direcionado responsavelmente à sua UBS de referência.

Vale destacar que o encaminhamento responsável pressupõe a garantia de


acesso ao serviço que recebe em tempo oportuno, de acordo com a situação.

Por exemplo, uma gestante de outra UBS que não iniciou seu pré-natal e que
se apresenta com disúria, deverá, após atendimento da demanda aguda, ser orien-
tada a retornar à mesma unidade para reavaliação ou para sua primeira consulta
de pré-natal se não conseguir acessar sua equipe ou a sua UBS, até que tenha a
garantia da continuidade do cuidado.

Saiba mais!

CONTATO PRÉVIO

É prudente e responsável que o encaminhamento ocorra mediante


contato prévio, sendo essencial nas seguintes situações:

1. sempre que a situação exigir a garantia de acesso breve;

2. o serviço que recebe necessitar de informações complementares;

3. quando não se sabe ainda qual o local mais adequado a ser


encaminhada a demanda do usuário.

Esse contato pode acontecer por telefone (por exemplo, SAMU


192), e-mail (marcação de exame), SEI (ofícios), SISREG (consul-
ta especializada ambulatorial), ficha de encaminhamento (CAPS,
equipe ESF) ou pelo próprio prontuário eletrônico (equipe ESF),
contendo os dados do atendimento conforme a situação exigir. O
importante é a garantia da continuidade do cuidado e o acompa-
nhamento do percurso do usuário na rede.

Independentemente da situação, todo e qualquer contato com o usu-


ário deve ser registrado no e-SUS. Como prontuário eletrônico, o

46
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

e-SUS traz no seu DNA os princípios do SUS, os preceitos de acolhi-


mento e classificação de risco e permite que qualquer tipo de visita
do usuário à UBS possa ter seu registro tipificado no sistema.

MODELAGENS DE ACOLHIMENTO

Como vimos, o acolhimento pode ser realizado por qualquer profissional. De-
pendendo do formato, ele pode funcionar da forma tradicional com enfermeiro. O
enfermeiro coordena, realiza a classificação de risco e pode resolver grande parte
das demandas administrativas e clínicas, de acordo com suas competências pro-
fissionais e protocolos em vigor.

Uma outra forma de funcionamento seria com profissionais de nível médio


que realizam a escuta qualificada e possuem capacidade de orientar sobre os ser-
viços, responder a demandas administrativas e acionar outros profissionais na uni-
dade. No e-SUS, está prevista a realização da classificação de risco/vulnerabilidade.
na ocasião da escuta inicial pelo técnico de enfermagem, que deve estar orientado
quanto ao uso adequado dessa funcionalidade no sistema.

Em unidades maiores, com cinco ou mais equipes de Estratégia Saúde da Fa-


mília, o acolhimento pode contar com profissionais de nível médio e superior, in-
clusive profissional médico, dentista e especialistas, revezando o dia da semana,
com as demais equipes, a Sala de Acolhimento. Nesse caso, a equipe multiprofis-
sional dispõe de alta resolutividade para os casos que se apresentam, enquanto as
demais equipes seguem com atividades programadas e administrativas de rotina.

Algumas unidades com apenas uma equipe podem oferecer uma escuta ini-
cial na entrada da unidade, nos primeiros horários de funcionamento, realizando
um levantamento das demandas no início do turno de trabalho e direcionando os
usuários, assim programam melhor o restante do dia de cada profissional.

Conforme o Protocolo de Acesso de 2018 da SES, podemos listar ainda as se-


guintes possibilidades:

1) O enfermeiro de cada equipe realiza a primeira escuta, atendendo à deman-


da espontânea da população residente na sua área de abrangência e também aos
seus usuários agendados. Nessa situação, ele faz acolhimento e classificação de

47
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

risco no mesmo momento; o médico faz a retaguarda para os casos agudos da sua
área e também atende aos usuários agendados.

2) Mais de um profissional está simultaneamente realizando a primeira escuta


dos usuários de sua área de abrangência, organizando o acesso deles em um de-
terminado momento e, posteriormente, assumindo suas demais atribuições.

3) O enfermeiro realiza a primeira escuta do acolhimento até determinada hora,


momento em que também acolhe e classifica risco, a partir da qual desempenha
outras atribuições, passando a primeira escuta do acolhimento a ser realizada pelo
técnico de enfermagem, estando o enfermeiro e o médico na retaguarda.

4) Em unidades com mais de uma equipe, o enfermeiro e/ou técnico de enfer-


magem de determinada equipe ficam na linha de frente do acolhimento, duran-
te um turno ou o dia inteiro, atendendo aos usuários que chegam por demanda
espontânea de todas as áreas/equipes da unidade. O médico da equipe respon-
sável pelo acolhimento do dia ou turno fica na retaguarda. Todos os profissionais
da equipe de acolhimento ficam com suas agendas voltadas exclusivamente para
isso. Os profissionais das outras equipes da unidade atendem aos casos agudos
em situações excepcionais em que a quantidade de pessoas com tal necessidade
exceder a capacidade de atendimento da equipe do acolhimento do dia ou do
turno.

5) Em unidades com mais de uma equipe, também é possível o enfermeiro


acolher todos os usuários, independentemente da área, e encaminhá-los ao médi-
co da equipe correspondente.

6) Em unidades com mais de uma equipe, também é possível a equipe de aco-


lhimento ser composta de profissionais das diversas equipes, por exemplo: técnico
de enfermagem da equipe A, enfermeiro da equipe B e médico na retaguarda da
equipe C. Essa escala pode ser alterada a cada turno ou dia.

7) Cada enfermeiro acolhe os usuários de sua área adscrita em horário prede-


terminado. No momento seguinte, um dos enfermeiros continua fazendo acolhi-
mento de todos os usuários que chegam à UBS, e os demais enfermeiros assu-
mem outras atividades junto à sua equipe. Assim, cada dia um dos enfermeiros da
UBS ficará sem atendimento agendado. Haverá na retaguarda um médico para
atender aos casos agudos, independentemente da área de abrangência da equipe.
Essa forma de organização exige uma comunicação mais intensa entre os mem-

48
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

bros da equipe e incorporação de ferramentas para facilitar a gestão das agendas.

8) Em unidades com quatro ou mais equipes, podem-se formar “duplas” de


equipes, em que uma apoia a outra. Alternam-se os horários dos profissionais de
modo a uma dar cobertura para a outra. Por exemplo: o médico da equipe A pode
ser escalado no mesmo horário do enfermeiro da equipe B e vice-versa. Esse mo-
delo possibilita a preservação do vínculo do usuário com algum profissional da sua
equipe de referência.

O importante é que o serviço considere sempre as necessidades locais, a capa-


cidade de resposta da equipe ou profissional que acolhe, a estrutura e a ambiência
no local para oferecer a melhor estratégia de se encontrar com as pessoas que
venham à UBS.

Enquanto as equipes definem a forma de organizar o acolhimento, a gestão


monitora pactuações e indicadores da Carteira da APS, capacita e qualifica o aco-
lhimento.

MODOS DE EVITAR AS BARREIRAS DE ACESSO NA APS

O acesso avançado

Uma APS forte e resolutiva depende, principalmente, de um acesso facilitado,


em que a pessoa vinculada àquela equipe consiga um atendimento oportuno, ou
seja, quando precisa.

No modelo tradicional de atendimento, as equipes utilizam as suas agendas


para marcação de consultas programadas, sendo estas, na maioria das vezes, para
grupos específicos no mesmo turno, como manhã do hipertenso, da gestante e
da criança. Nesse modelo, há uma forte demanda assistencial para a realização de
encaixes, e a equipe e os pacientes frequentemente se mostram insatisfeitos.

Não há, portanto, espaço para imprevistos, que, na saúde, sempre vão existir.
Sem essa previsão, a demanda se acumula com o tempo até estabilizar-se no mo-
mento em que se percebe o tempo de espera médio para uma consulta, não rara-
mente, de dois a três meses.

49
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Uma vez estabilizado o acúmulo de demanda, percebe-se que a capacidade de


oferta equivale ao tamanho da demanda, pois, se esse equilíbrio de oferta e demanda
não se estabilizasse, a fila da demanda cresceria indefinidamente com o tempo.

A teoria das filas demonstra formalmente como longas esperas podem existir
mesmo quando a oferta adequada existe (MURRAY; BERWICK, 2003).

No entanto, nesse modelo, do “fazer o trabalho do passado hoje”, há muitas


desvantagens e prejuízo na continuidade do cuidado, na longitudinalidade, na
construção do vínculo com a equipe.

A clientela que mais usa o serviço é de pessoas que se encaixam nesse per-
fil de agendamento, enquanto são desconsiderados grupos mais vulneráveis que
possuem mais dificuldade de se encaixar numa agenda extensiva e programada,
negligenciando a necessidade de demandas que não podem esperar. Esses gru-
pos mais vulneráveis geralmente têm seu vínculo perdido com a equipe e acabam
por procurar outros caminhos para resolver seus problemas, não raro buscando
serviços de urgência quando o problema já se agravou, ou simplesmente se acu-
mulando em salas de espera do pronto-socorro, que trabalha na lógica da classifi-
cação de risco e não responde às necessidades de agudizações menos graves que
poderiam ser resolvidas na Atenção Primária.

Mesmo nos serviços de urgência onde são atendidos, os pacientes comumen-


te se deparam com a orientação “não deixe de procurar o seu médico para ser rea-
valiado após a saída do hospital”, gerando um círculo vicioso de demandas.

No modelo de acesso avançado, do “fazer hoje o trabalho de hoje”, a equipe traba-


lha com a demanda atual e não do passado, podendo ser mais resolutiva, criando vín-
culos com seus usuários e trabalhando com “demora permitida” (watchful waiting).

Saiba mais!

Demora permitida – consiste na ideia de que, se um paciente e


o profissional sabem que conseguem se reencontrar em até uma
semana, coisa que não ocorre numa UPA, por exemplo, permite-
-se aguardar o resultado de uma intervenção menos invasiva ou

50
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

o diagnóstico mais preciso de uma doença em fase muito inicial,


evitando-se exames ou tratamentos desnecessários muitas vezes
prescritos pela insegurança de ambos (profissional e paciente) de
agravamento do quadro e perda do seguimento a longo prazo.

A demora permitida reduz significativamente o tempo de consulta


e revela que várias condições de saúde se resolvem sozinhas sem
necessidade de ocupar vagas na agenda de um profissional, redu-
zindo o absenteísmo de casos que já se resolveram.

Para isso, existem, segundo Boing, Zonta e Manzini (2016), alguns


requisitos:

• que você esteja convencido(a) de que não se encontra diante


de uma urgência;

• que você tenha uma ideia formada sobre o tempo que pode
esperar sem risco para o paciente.

Na lógica do atendimento ambulatorial, com a existência de demanda repri-


mida para atendimento médico, existe um gargalo/limite para esse atendimento.
Tal limite pode e deve ser enfrentado pela equipe multiprofissional da ESF, bem
como pelas equipes de Nasf-AB. O modelo de acesso avançado tenta maximizar
a eficiência de transferência de tarefas dos médicos que podem ser feitas por ou-
tra pessoa. Isso significa dar maiores níveis de responsabilidade, sob bem conce-
bidas diretrizes, para os profissionais de outras categorias profissionais (MURRAY;
BERWICK, 2003).

Nesse modelo de acesso, a equipe deixa de trabalhar com agendas individuais


e isoladas e passa a interagir de forma multiprofissional, em que os trabalhadores
podem ampliar, ainda durante o seu atendimento, a capacidade de resolução de
problemas simples, mas que não fazem parte de sua competência profissional.

51
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Saiba mais!

Dificuldades de implementação desse modelo em territórios


superdimensionados

Os limites ao acesso aos serviços de APS estão vinculados, além


de a fatores socioeconômicos e barreiras geográficas, a crescen-
tes necessidades de saúde da população. (Granja et al, 2022)

Países desenvolvidos vêm propondo modelos de organização do


acesso diversos tais como: Acesso Aberto (Open Access), Book
On The Day, Supesaturate, Carve-out e Acesso Avançado (AA).

O AA, também descrito como Advanced Access ou Same-Day


Appointment, tem seu modelo de organização descrito como o
equilíbrio entre a demanda e a capacidade de oferta para atender
essa demanda.

A implementação deste modelo tem em sua raiz acabar com o “back-


log” (acúmulo) e adequar a capacidade do serviço à demanda diária.

A ideia nos remete à discussão das dificuldades deste modelo na


realidade brasileira, com equipes com recursos limitados e deman-
da demasiada.

Segundo Vidal (2013) o elevado número de pessoas por ESF pre-


conizado pela PNAB já praticamente inviabiliza a realização de um
trabalho de qualidade em APS.

Assim, quando o profissional percebe que a disponibilidade da


agenda e a demanda estão em equilíbrio, é, de fato, possível fazer
o trabalho do dia no mesmo dia, ou seja, o AA. Mas se a demanda
aumenta indefinidamente em relação às vagas disponibilizadas,
a demanda reprimida se acumula e as consultas são agendadas
para datas cada vez mais distantes (backlog).

52
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Para Vidal (2013), as variáveis que podem afetar o número de pes-


soas por profissional são:

• número de pacientes atendidos por dia;

• número de dias disponibilizados para consulta médica ambulato-


rial por ano;

• número de consultas médicas por pessoa por ano;

• idade e sexo (mulheres, crianças e idosos consultam mais;

• carga de doença da população assistida (pessoas doentes con-


sultam mais que pessoas hígidas).

Por outro lado, conforme Granja et al (2022), para que a implan-


tação desse modelo se torne uma melhoria é preciso investir na:

• utilização de prontuários eletrônicos e de protocolos clínicos mais


resolutivos para os enfermeiros;

• incorporação de estratégias para assistência remota;

• mudança dos paradigmas dos profissionais de saúde e dos usu-


ários sobre a relação entre agenda e continuidade da assistência;

• atender a população em suas necessidades, quando eles preci-


sam (e não quando profissionais de saúde ou a burocracia, achar
que eles precisam;

• levar os profissionais de saúde a refletir quem naquele momento


se beneficiaria mais de seu atendimento;

• interconsulta como estratégia para utilização de toda potenciali-


dade clínica de enfermeiro;

• protocolos de enfermagem resolutivos;

53
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• capacitação profissional (em tese, quanto maior for o grau de re-


solutividade das consultas, menor será́ a necessidade do número
de consultas por pessoa);

• sólida compreensão do tamanho de sua população de pacientes;

• minimizar a rotatividade profissional;

• promover aprimoramentos de vínculos, segurança e estratégias


que possibilitem a compreensão da efetividade e dos resultados
positivos da implementação do acesso avançado à saúde.

A implementação do modelo de Acesso Avançado no mundo real


foca no agendamento para o mesmo dia e num maior número de
consultas médicas em detrimento de outros princípios, tais como o
método centrado na pessoa, por exemplo, ou seja, é importante se
ter uma expectativa realista de seus benefícios.

Vidal, T. B. (2013). O acesso avançado e sua relação com o número de atendimentos médicos em
atenção primária à saúde [Dissertação]. Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul. Pós-graduação em epidemiologia.

54
BOA
BOA PRÁTICA DA UNIDADE
PRÁTICA DA UNIDADE2 2

Já passava das 17h quando o enfermeiro Rodrigo acolheu Dona Fernanda, que queria
renovar uma prescrição de psicotrópicos. Rodrigo sabia que Eurípedes, médico da equipe,
estava realizando capacitação com os residentes de medicina de família e comunidade
naquele horário.

Para evitar a ocupação de uma vaga na agenda no dia seguinte e


reduzir a inquietação de Dona Fernanda, Rodrigo resolveu expor a
Eurípedes a situação, que compreendeu de imediato que valia a
pena sair por alguns minutos para renovar a prescrição da paciente,
que estava aflita e insegura se conseguiria resolver seu problema.

Eurípedes e Rodrigo, numa


interconsulta e sem ocupar uma
outra sala, acordaram com Dona
Fernanda renovar a prescrição
suficiente para 7 dias, quando
teria oportunidade de melhor
avaliá-la. Ela havia perdido a
prescrição para o fornecimento
da medicação para o mês e teria
seu quadro descompensado
sem a proatividade de Rodrigo
e a parceria de Eurípedes.
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Pense nisso!

Você já percebeu que muitas consultas são para mostrar resultados de


exames convencionais anuais sem evidências de seu efeito sobre os resulta-
dos clínicos?

Assume-se que um profissional sozinho nunca será suficiente para lidar com a
integralidade de uma pessoa, seja em seu contexto psicossocial, biológico ou cul-
tural, por mais competente que seja.

A equipe “aceita”, portanto, a realidade, ou seja, permite-se se constituir como


porta de entrada do sistema de saúde e se adéqua ao perfil atual de demanda da
população.

ACESSIBILIDADE GEOGRÁFICA, DISPONIBILIDADE, VIABI-


LIDADE E ACEITABILIDADE

De acordo com a Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010, o acesso pres-


supõe ausência de barreiras geográficas, financeiras, organizacionais, sociocultu-
rais, étnicas e de gênero ao cuidado. Ele pode ser analisado por meio da disponibi-
lidade, comodidade e aceitabilidade do serviço pelos usuários (BRASIL, 2010).

Segundo Oliveira et al. (2019), podemos identificar as seguintes barreiras de


acesso na perspectiva da oferta e da demanda:

• Acessibilidade geográfica: trata-se da experiência do usuário para che-


gar ao serviço de saúde considerando barreiras geográficas. Ex.: dis-
tância, meios de transporte, tempo de deslocamento.

• Comodidade: está relacionada ao tempo de espera para o atendimen-


to, a conveniência de horários, a forma de agendamento, a facilidade
de contato com os profissionais, o conforto dos ambientes para aten-
dimento, entre outros.

• Disponibilidade: consiste na existência dos serviços e recursos de saúde

56
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

suficientes tanto em quantidade quanto em qualidade para respon-


der às necessidades dos usuários. Diz respeito à obtenção da atenção
necessária ao usuário e à sua família, tanto nas situações de urgência/
emergência quanto de eletividade.

• Viabilidade: é o grau de adequação entre o custo da utilização dos ser-


viços de saúde e a capacidade de pagamento dos indivíduos.

• Aceitabilidade: diz respeito a percepções e atitudes dos usuários em


relação a profissionais e práticas e, no sentido inverso, à percepção e
atitudes dos profissionais e provedores a respeito das características
pessoais dos usuários.

Na prática, avaliam-se a satisfação dos usuários quanto à localização e à apa-


rência do serviço e a aceitação deles quanto ao tipo de atendimento prestado e aos
profissionais responsáveis por esse atendimento.

Para refletir!

Quais dessas barreiras acontecem no cotidiano da APS, conside-


rando o processo de trabalho?

Como a minha postura, atitude e tecnologia de cuidado não pro-


move acesso?

METODOLOGIA PARA EQUILÍBRIO ENTRE DEMANDA ES-


PONTÂNEA E PROGRAMADA

É importante que a equipe saiba que toda mudança no processo de trabalho


exige apoio e compreensão da gestão, dos trabalhadores e da população. Um diá-
logo franco e honesto deve ser realizado com planejamento e de forma cuidadosa.

Também é necessário um diagnóstico da demanda atual previamente à mu-


dança do processo de trabalho, de modo a levantar o perfil e a dinâmica da deman-

57
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

da, no decorrer do dia ou da semana. Esse diagnóstico não pode ser retrospectivo,
ou seja, olhando o passado, pois os registros do passado revelam apenas o que
foi ofertado. Por sua vez, o diagnóstico levantado a partir dos dados prospectivos,
ou seja, coletados durante um determinado tempo, permite enxergar a demanda
como um todo, inclusive aqueles que não conseguiram atendimento no dia ou na
semana da solicitação.

A delimitação do território e da população adscrita consiste em ferramenta po-


tente de garantia de acesso, uma vez que uma população bem delimitada por si ga-
rante a resposta satisfatória de uma equipe a um número razoável de pessoas, que
terão seu atendimento com a mesma equipe de forma longitudinal e não terão de
competir pelas vagas ofertadas em sua região. Para esse levantamento, a equipe pre-
cisa se instrumentalizar das ferramentas de cadastramento de sua população para
definir a territorialização adequada.

Outras estratégias para a eliminação de um backlog (acúmulo) incluem: uso


de telefone ou e-mail em vez de consultas para responder às perguntas simples
dos pacientes; realização do seguimento do cuidado desenvolvendo atendimentos
médicos em grupo, aumentando os intervalos entre as visitas de retorno para pa-
cientes com doenças crônicas; orientação de assistência domiciliar e materiais de
referência a pacientes e famílias. Tais estratégias podem ajudar a reduzir o número
de solicitações desnecessárias para o cuidado de forma segura e eficaz (MURRAY;
BERWICK, 2003).

METODOLOGIAS PARA A CONSTRUÇÃO DA AGENDA DE OFER-


TAS NA APS, EM FUNÇÃO DAS DEMANDAS DO TERRITÓRIO

Em média, uma equipe com 4.000 pessoas atende a 1/3 da sua população em
12 meses e 60% (2/3 em 18 meses, que corresponde ao painel de demanda de um
território que realmente usa o serviço). O cálculo de demanda em 24 meses supe-
restima a demanda (MURRAY; BERWICK, 2003).

Exemplo: 1 equipe = 4.000 pessoas

• Realmente usa o serviço = 60% ou 2/3 (2.400 pessoas).

• Período = 12 meses = 1/3 (1.200 pessoas).

58
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Período = 18 meses = 2/3 (2.400 pessoas).

• Período > 18 meses = 4.000 pessoas (as equipes não acompanham to-
das as pessoas de seu território, embora cadastrem 100% delas).
Em laranja, painel de pessoas que realmente usam o serviço,
após 18 meses (MURRAY; BERWICK, 2003)

2/3 ou 60%
da população
(2.400 de
4.000
pessoas)

Assim, segundo esse gráfico, uma equipe responsável por 4.000 pessoas tem a
média de solicitação de consultas diárias de 0,7 a 0,8%, resultando em 32 consultas
por dia.

Essa média de solicitação inclui o número de pedidos de pacientes para con-


sultas durante um dia (independentemente de quando serão agendadas), mais o
número de interrupções no consultório, mais o número de consultas de acompa-
nhamento geradas por equipe no local de prática.

No entanto, se estudos demonstram que, para uma população de 4.000 pesso-


as num dado território, em torno de 60% delas consultam com alguma regularida-
de (pelo menos uma vez em 18 meses), para uma população de 4.000, na prática, a
equipe (eSF) presta atenção regular para algo em torno de 2.420 pessoas.

Considerando uma frequentação esperada de três atendimentos ou consultas


por pessoa por ano, o resultado será de 7.260 consultas por ano (ou 247 dias de tra-
balho por ano), correspondendo a aproximadamente 29 consultas/dia, que serão
divididas, no caso de equipe mínima, entre o médico e o enfermeiro (15 para cada
por dia), sendo reservadas 80% dessas consultas em aberto (WOLLMANN et al., 2014).
Em um primeiro momento, segue-se, após redução do tempo de espera para no

59
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

máximo duas semanas, a demanda acumulada para o modelo de 50% de consul-


tas em aberto e 50% para consultas pré-agendadas, conforme recomendação da
Portaria nº 77/2017.

Faça você mesmo!

Acesse a planilha de cálculo, ponha o número de pessoas cadastradas


na sua equipe que consta no e-SUS e veja um modelo de organização de
agenda.

Acesse aqui.

Não se esqueça de que, para poder editar a planilha, primeiro você tem
de baixá-la em seu computador.

Modelo de agenda para as equipes que consta no Manual GSAP:


https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/63767/MANUAL_DE_GEREN-
CIAMENTO_LOCAL_DA_APS_DF.pdf

Vale ressaltar que a meta de 50% de consultas abertas pode não ser viável para
médicos/enfermeiros com muitos pacientes idosos ou muitos pacientes com do-
enças a longo prazo que necessitam de consultas pré-agendadas. Por outro lado,
para regiões com pacientes de alto risco, a demanda aumenta consideravelmente,
requerendo aumento da meta de consultas abertas.

A redução de backlog (acúmulo) não é uma característica permanente de


acesso avançado, é o primeiro tempo, o passo inicial para limpar as agendas para o
novo sistema (MURRAY; BERWICK, 2003).

Na prática, programa-se, portanto, a agenda para consultas breves (alguma


necessidade específica que demanda pouco tempo de atendimento), consultas
agendadas no dia e/ou pré-agendadas e retornos.

60
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Figura 2 - Novas possibilidades de organizar o acesso e a


agenda na Atenção Primária à Saúde.

Proposta de mudança
da agenda

Agendamento superior há 30 dias


com poucas vagas para
atendimento no dia

Reavaliar agenda já existente


visando a pertinência da consulta,
uma vez que esta foi agendada há
muito tempo

Os pacientes devem ser avaliados


diariamente de forma resolutiva
2420 29
pela própria equipe 4000 pessoas consultas
pessoas (60%) /dia
Preferencialmente atender o
usuário no mesmo dia

Evitar agendamento para mais


que duas semanas

Reservar no mímimo 50% da


agenda do médico e do enfermeiro
para atendimento no dia

Fonte: Wollmann et al., 2014.

Resultados adversos estão associados a tempos de espera mais longos para


consultas na atenção primária, e muitas vezes deixam os indivíduos dependentes
de cuidados de urgência, pois, quando a espera é muito longa, os pacientes po-
dem ter agravamento de seu estado de saúde e apoiarem-se em recursos da Rede
de Urgência e Emergência (RUE) (ANSELL et al., 2017).

Apesar das crenças largamente difundidas, do contrário, filas, demoras e aces-


so restrito raramente são sintomas de recursos inadequados.

As maiores barreiras são o medo da mudança e a falta de confiança de que os


recursos existentes podem atender à demanda de atendimento. Muitas vezes, os
médicos pensam que eles precisam de seus sistemas de agendamento para pro-
tegê-los da iminente demanda e que ficarão sobrecarregados se tentarem aten-
der à demanda de cada dia em um dia. Apontam para as suas pendências e longas
jornadas de trabalho como prova.

61
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Muito embora seja apenas aparente uma demanda excessiva de consultas e


procedimentos desordenados para agendas lotadas, conforme Murray e Berwick
(2003), o acesso avançado, assim como o modelo tradicional, necessita, para atingir
o equilíbrio, delimitação adequada da demanda em função da oferta, sem a qual
qualquer modelo de acesso será insuficiente para atender à sua população. Se a
procura excede a capacidade permanentemente, nenhum sistema vai funcionar,
nem o modelo tradicional, nem o modelo de acesso avançado.

ENCERRAMENTO

Para que seja possível realizar a gestão do acesso, é necessário discutir as estra-
tégias de acolhimento que a Unidade de Saúde e as equipes de Estratégia Saúde
da Família têm utilizado, além de conhecer os protocolos clínicos nacionais e locais
existentes.

Os profissionais das equipes de Estratégia Saúde da Família devem conhecer


os fluxos de atendimento da sua Unidade e sua equipe, os conceitos de estratifi-
cação de risco e aplicar escalas de estratificação que se adequem às realidades de
seu território ou as orientadas pela gestão local.

O espaço da reunião geral da unidade e o espaço de reuniões de equipe são


importantes espaços de discussão e avaliação das barreiras impressas à população
adscrita no que se refere ao acesso do cuidado, bem como fundamentais para a
discussão da organização da agenda dos profissionais, de modo a atender às de-
mandas espontânea e programática de seu território.

Realizar a gestão do acesso trará às equipes contribuições importantes para


concretizar a gestão do cuidado.

62
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

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ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

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64
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

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65
UNIDADE 3
Gestão do cuidado
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Objetivos de aprendizagem

• Descrever o plano de cuidado e as estratégias para a coordenação na


UBS/Região de Saúde.

• Identificar, na região de saúde, os projetos terapêuticos singulares e as


práticas integrativas.

• Relatar, como acontece em sua UBS, a utilização do matriciamento e


a clínica ampliada.

• Descrever as práticas de saúde mental e suas respectivas inter-rela-


ções e protocolos.

• Enumerar as funções das diretrizes clínicas e as estratégias para sua


implantação.

INTRODUÇÃO

Esta unidade pretende discutir a gestão do cuidado, construindo com os alu-


nos(as) reflexões que possam garantir que os objetivos de aprendizagem sejam
alcançados.

Para que seja possível realizar uma boa gestão do cuidado, seja de uma equipe
de Estratégia Saúde da Família, de uma Unidade Básica de Saúde ou de uma Re-
gião de Saúde, é fundamental entender como ocorre a coordenação desse cuida-
do e, consequentemente, conhecer estratégias de coordenação, a fim de promo-
ver melhoria na qualidade do cuidado prestado, reduzindo barreiras de acesso aos
diversos serviços e equipes e integrando os mais diferentes serviços e atores de um
mesmo território ou de outro território para atuação compartilhada.

Coordenar significa estabelecer conexões de modo a alcançar o objetivo maior


de prover e atender às necessidades dos usuários na oferta de cuidados com eleva-
do valor e qualidade. O ato de coordenar implica a organização deliberada de ativi-
dades que envolvam duas ou mais pessoas, incluindo o usuário do serviço de saú-
de, e o manejo de recursos comunitários, assistenciais, farmacêuticos, entre outros.

Quanto maior a multiplicidade de pessoas e serviços envolvidos na provisão


do cuidado e mais complexa a intervenção para a resolução de determinado pro-
blema, maior o nível de coordenação requerido para que se alcance o resultado

68
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

desejado. Coordenar um cuidado em saúde exige que tenhamos clareza de que


esse processo não será estático, exigirá acionamentos de variados profissionais e
serviços ao longo do processo, deve ser concebido em uma perspectiva dinâmica
e ajustada às especificidades locais, regionais e às dinâmicas das redes envolvidas.

A literatura parte da proposição de que somente uma atenção primária fortale-


cida como parte de uma rede estruturada e conectada é capaz de mobilizar apoio,
recursos políticos, econômicos, financeiros, humanos, poderá ser responsável pela
coordenação do cuidado entre níveis assistenciais (ALMEIDA et al., 2018).

A Estratégia Saúde da Família ocupa esse lugar de fortalecimento da Atenção


Básica. Existem estudos que apontam um desempenho superior quanto aos atri-
butos da APS em Unidades de Saúde da Família em relação às unidades que não
possuem tal estratégia. Para o seu fortalecimento, foram adotadas medidas, no
nível nacional, tais como:

• ampliação de cobertura;

• desenvolvimento de estratégias de acolhimento;

• definição de porta de entrada e de filtro para a atenção especializada;

• construção de agendas para acolhimento de demanda espontânea e


programática;

• articulação com os serviços de pronto atendimento e urgência e emergência;

• adoção das estratégias de matriciamento entre os serviços;

• fortalecimento de práticas de promoção e cuidados em saúde mental


dentro das equipes;

• integração entre as atividades de assistência e vigilância;

• fortalecimento de práticas integrativas dentro das equipes;

• construção de projetos terapêuticos de cuidados de forma compartilhada;

• formação de trabalhadores para o desenvolvimento dessas práticas,


fomentando o reconhecimento profissional e social dos trabalhadores,
entre outras.

Ao longo deste estudo, tentaremos discutir parte dessas estratégias, sendo ou-
tras já abordadas em outras unidades.

69
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

CLÍNICA AMPLIADA: UM OLHAR PARA O CUIDADO

A clínica ampliada é um conceito


que prevê uma prática de cuidado volta-
da para o indivíduo e para a comunidade,
uma prática que não esteja voltada para a
doença. Não estamos dizendo aqui que o
conhecimento de determinado diagnós-
tico e o melhor tratamento para tal não
sejam assuntos da clínica ampliada, po-
rém é certo que tratar a hipertensão de
uma mulher negra, que atualmente está
desempregada, com cinco filhos, sendo
um deles com poucos meses, que sofre
violência doméstica, é bastante diferente de tratar a hipertensão de um homem
branco, obeso, solteiro e dependente de álcool.

Assim, tratar o sujeito significa conhecer o que ele possui de singular, no con-
junto de sinais e sintomas, mas também de sua história de vida, de relações sociais
atuais e pregressas, sua rede de apoio, entre outros.

Segundo a Política Nacional de Humanização, de 2007, a clínica ampliada exige:

• Um COMPROMISSO radical com o sujeito doente, visto de modo singular.

• Assumir a RESPONSABILIDADE sobre os usuários dos serviços de saúde.

• Buscar ajuda em outros setores, ao que se dá nome de INTERSETORIA-


LIDADE.

• Reconhecer os LIMITES DOS CONHECIMENTOS dos profissionais de


saúde e das TECNOLOGIAS por eles empregadas e buscar outros co-
nhecimentos em diferentes setores.

• Assumir um compromisso ÉTICO profundo.

A clínica ampliada exige, portanto, dos profissionais de saúde um exame per-


manente dos próprios valores e dos valores em jogo na sociedade. O compromisso
ético com o usuário deve levar o serviço a ajudá-lo a enfrentar, ou ao menos a per-
ceber, essas causalidades externas.

70
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Por vezes, o próprio diagnóstico traz uma situação de discriminação social que
aumenta o sofrimento e dificulta o tratamento (exemplos são as doenças que pro-
duzem discriminação social e os “diagnósticos” que paralisam a ação de saúde, em
vez de desencadeá-la). Cabe à clínica ampliada não assumir como normal essas
situações, principalmente quando comprometem o tratamento.

Um exemplo importante que trata do referido assunto é o diagnóstico de tu-


berculose, ainda estigmatizado, associado à pobreza, condições sanitárias inade-
quadas, aglomerações, entre outras características que culpabilizam o sujeito, tra-
zendo muitas vezes o isolamento social e físico (geográfico e territorial) do doente
como condição para o tratamento. É fundamental abordar no cuidado em saúde
de pessoas com tuberculose esse estigma, a construção social da doença, orientar
a família, discutir questões de biossegurança no espaço de trabalho do(a) paciente,
questões fundamentais na busca pela cura.

Outro aspecto fundamental da clínica ampliada, além da busca de autonomia


para os usuários, é a capacidade de equilibrar o combate à doença com a PRODU-
ÇÃO DE VIDA. Os atendimentos individuais devem abordar a potência da vida, va-
lorizar as buscas pelos cuidados, enfatizar potências no cuidado, movimentos de
busca por qualidade de vida, muito além da ênfase do diagnóstico médico e do
tratamento medicamentoso. Para além de um olhar ampliado do profissional mé-
dico nessa condução, o cuidado da equipe multiprofissional é fundamental para o
desenvolvimento da clínica da produção de vida.

A ESCUTA é uma importante ferramenta para aco-


lher toda queixa ou relato do usuário mesmo quando
possa parecer não interessar diretamente para o diag-
nóstico e tratamento. Mais do que isso, é preciso ajudá-lo
a reconstruir (e respeitar) os motivos que ocasionaram
o seu adoecimento e as correlações que ele estabelece
entre o que sente e a vida (BRASIL, 2007).

É importante que o paciente possa dizer o que acre-


dita que o adoeceu, ou como aquele sintoma/sinal se
iniciou, compreender como ele entende a doença nesse
momento de sua vida, comprometendo-o assim com os
seus cuidados, esclarecendo situações, tornando-o sujeito de suas ações nos cui-
dados em saúde e evitando infantilizações e atitude passiva do sujeito.

71
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O cuidado em saúde envolve relações entre sujeitos, que são atravessadas por
histórias de vidas, por experiências pessoais e familiares dos profissionais de saú-
de, sendo fundamental que a equipe esteja atenta em relação a esses fluxos de
AFETOS para melhor compreensão do outro e maior potência para que o indiví-
duo possa ganhar mais autonomia e lide de forma mais saudável com a doença/
problema instalada/o.

A clínica ampliada também prevê cautela na oferta de tratamentos e interven-


ções que não sejam realmente necessárias. Cabe aos profissionais de saúde pro-
blematizar com os pacientes o uso excessivo e inadequado de medicações, como
antidepressivos e benzodiazepínicos, criando estratégias com estes para utilização
de técnicas não medicamentosas, como bons encontros e diálogos, técnicas de
enfrentamentos de problemas, atividade física, ampliação da rede de apoio co-
munitário, participação de grupos comunitários e sociais que podem apresentar
melhores resultados do que algumas ofertas medicamentosas.

É fundamental que o paciente possa participar das escolhas de intervenções


e cardápio dos cuidados em saúde, que ele possa falar mais sobre as expectativas
do seu tratamento, que ele não receba apenas prescrições do que fazer, de como
comer, de como se comportar, apontamento sobre como o “único” jeito de viver,
mas que de fato possa construir isso com sua equipe de saúde.

As ofertas de cuidado devem ser individualizadas, de acordo com as histórias


de vidas e preferências de cada indivíduo ou coletivo, as ofertas não podem ser
massificadas, o “deu certo” para determinada situação poderá não dar certo para
outra pessoa em situação semelhante, pois cada sujeito possui uma dinâmica
singular e particular, que ocorrerá em outra família, em outro contexto, em outra
rede de apoio.

Dicas!

Atentar para os encontros com o usuário/cidadão (BRASIL, 2007):

EVITAR INICIAR CONSULTAS QUESTIONANDO AFERIÇÕES E COM-


PORTAMENTOS. VALORIZAR QUALIDADE DE VIDA – Ao lidar com pes-
soas com doenças crônicas, pode ser muito eficiente não começar todos
os encontros com perguntas sobre a doença (comeu, não comeu, tomou

72
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

remédio ou não etc.) ou infantilizantes (“comportou-se?”). Isso mostra ao


usuário o que queremos: ajudá-lo a viver melhor e não o tornar submisso às
nossas propostas.

PERGUNTAR O QUE O USUÁRIO ENTENDEU DO QUE FOI DITO SO-


BRE SUA DOENÇA E MEDICAÇÃO – A linguagem dos profissionais de
saúde nem sempre é compreensível. Portanto, habituar-se a perguntar
o que foi ouvido do que dissemos ajuda muito. Além disso, é importante
ouvir quais as causas da doença na opinião dos usuários. Em doenças
crônicas, é muito comum que a doença apareça após um estresse, como
falecimentos, desemprego ou prisões na família. Ao ouvir as associações
causais, a equipe pode saber em que situações similares o usuário pode
piorar e o quanto o tratamento pode depender do desenvolvimento da ca-
pacidade do usuário de lidar com essas situações.

LEMBRAR QUE DOENÇA CRÔNICA NÃO PODE SER A ÚNICA PREO-


CUPAÇÃO DA VIDA. EQUILIBRAR COMBATE À DOENÇA COM PRO-
DUÇÃO DE VIDA – “Medicalização da vida” é quando a doença se torna
preocupação central na vida do usuário. Isso é muito comum em doenças
crônicas. A autonomia diminui e procurar médicos e fazer exames torna-se
uma atividade central e quase única. Na verdade, as mesmas atitudes que
podem produzir resistência ao tratamento podem facilitar a medicalização.
Resistência ou dependência são duas faces da mesma moeda. A equipe
deve saber adequar as propostas terapêuticas aos investimentos afetivos
do usuário (ou seja, o que gosta ou o que não gosta) para que a doença
e o tratamento não se tornem o seu objeto de investimento central. Isso é
equilibrar as preocupações e ações de combate à doença com as preocu-
pações de produção de vida.

ATUAR NOS EVENTOS MÓRBIDOS COM O MÁXIMO DE APOIO E O


MÍNIMO DE MEDICAÇÃO. PREFERIR FITOTERÁPICOS A DIAZEPÍNI-
COS – Muitos usuários iniciam uma doença durante processos de luto
ou situações difíceis, como desemprego, prisão de parente etc. A repe-
tição ou persistência dessas situações também pode agravar a doença.
A capacidade de escuta da equipe é uma grande ferramenta e é preciso

73
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

saber que parte da cura depende de o sujeito aprender a lidar com essas
situações agressivas de uma forma menos danosa. A ideia de que toda
dor ou estresse requer um ansiolítico é extremamente difundida, mas não
pode seduzir a equipe de saúde, que deve apostar num conceito de saúde
ampliado que inclui também a capacidade de lidar com os limites e reve-
zes da vida da forma mais produtiva possível. O ansiolítico deve ser de
preferência inicialmente fitoterápico, por não gerar dependência, e deve
ser encarado como se fosse um pedido de tempo numa partida esportiva:
permite uma respirada e uma reflexão para continuar o jogo. Mas o essen-
cial é o jogo, e não sua interrupção.

Para transtornos mentais já instalados e com indicação de terapia medica-


mentosa, além de não-medicamentosa, delimitar bem o uso e papéis de
cada medicação, observando possíveis interações, podendo os fitoterápi-
cos seguirem compondo o tratamento.

Saiba mais!

O Ministério da Saúde realiza diversas ações para a implantação da Política


e do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e para a in-
serção de plantas medicinais e da fitoterapia no SUS, de forma a contribuir
com o desenvolvimento do setor. Desse modo, está previsto na Portaria
GM/MS nº 1.555, de 30 de julho de 2013, o uso de plantas medicinais, dro-
gas vegetais e derivados vegetais para manipulação das preparações dos
fitoterápicos em Farmácias Vivas e em farmácias de manipulação do SUS.

A Portaria GM/MS nº 886, de 20 de abril de 2010, institui a Farmácia Viva


no âmbito do SUS, sob gestão estadual, municipal ou do Distrito Federal,
que é responsável por realizar todas as etapas, desde o cultivo até a coleta,
o que compreende o processamento, o armazenamento, a manipulação e
a dispensação de preparações magistrais e oficinais de plantas medicinais
e fitoterápicos.

74
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

No Distrito Federal, a Farmácia Viva localizada no Riacho Fundo I é respon-


sável pelo cultivo e produção de fitoterápicos, além da distribuição para a rede
pública. Também temos o Núcleo de Farmácia de Manipulação de Planaltina
(NUFAR) e Hortos de plantas medicinais.

Atualmente, a linha de produção da Farmácia Viva conta com 12 apresen-


tações de fitoterápicos (quadro abaixo), além do chá medicinal de guaco
(Mikania laevigata).

Quadro 2 – Lista de fitoterápicos produzidos pela Farmácia Viva do Riacho Fundo I.

Fonte: https://www.saude.df.gov.br/documents/37101/571046/Guia+Fitoter%C3%A1picos+O-
ficinais+do+N%C3%BAcleo+de+Farm%C3%A1cia+Viva+%E2%80%93+9%C2%AA+edi%-
C3%A7%C3%A3o+%E2%80%93+2021.pdf/68f43bfc-4813-7f79-8907-71411f445631
?t=1649018265115.

75
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Saiba mais!!!

Para saber mais sobre a prescrição de fitoterápicos pelos (as) en-


fermeiros (as) da SES-DF, leia na íntegra o parecer do COREN-DF
nº 006/2010.

[...] Diante do exposto, concluímos que a prescrição de fitoterá-


picos é uma atribuição, dentro da equipe de enfermagem, priva-
tiva do Enfermeiro, quando qualificado e possuidor de conheci-
mento científico e técnico para exercer a autonomia profissional
e prescrever fitoterápicos.

DIREITO À DIFERENÇA – Uma outra possibilidade, importante no caso de aten-


ção à população étnica ou culturalmente diferenciada, como indígenas, negros
ou ciganos, é considerar a provável existência de recursos e de atores sociais que
atuam como terapeutas tradicionais, que compõem o universo sociocultural des-
ses segmentos da população. A procura paralela e autônoma desses recursos deve
ser considerada. O diálogo respeitoso sobre essa possibilidade configura condição
indispensável tanto da aproximação à lógica das concepções e práticas sobre o
processo saúde-doença afeitas ao sujeito doente e à sua rede social quanto de pos-
síveis negociações terapêuticas no objetivo de atingir resultados que combinem
maiores chances de eficácia biomédica com aceitabilidade cultural (BRASIL, 2007).

CONVERSANDO SOBRE ALGUMAS ESTRATÉGIAS DA E NA


EQUIPE DE SAÚDE DA FAMÍLIA QUE FORTALECEM A GES-
TÃO DO CUIDADO

O PRONTUÁRIO INDIVIDUAL E DA FAMÍLIA

O prontuário do paciente constitui um importante instrumento para a coorde-


nação do cuidado da equipe, uma vez que permite um estudo e olhar atento sobre
as principais demandas dos usuários e, consequentemente, do território. Permite

76
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

que a equipe possa identificar os pacientes que mais procuram a unidade e os que
precisam de busca ativa no território, definindo a frequência de tal ação, além de
possibilitar a reflexão sobre as estratégias para identificar famílias que apresen-
tam maiores situações de vulnerabilidade, definir quais casos/famílias precisam
ter maior frequência de discussão em reuniões de equipe e/ou a rede intersetorial,
em reuniões de matriciamento, entre outros. No prontuário eletrônico e-SUS APS,
utilizado na SES DF, existem os prontuários individuais, e é possível relacionar a
pessoa a sua família e/ou moradores do mesmo domicílio, por meio do cadastro
domiciliar.

Um olhar atento dos prontuários, de forma regular pela equipe (para além da
comissão de avaliação de prontuários da Unidade ou Supervisão de Saúde), pode
aprimorar a identificação de demandas e de pontos que precisam ser explorados
ou discutidos em rede e a organização do trabalho, sendo instrumento de avalia-
ção de qualidade do trabalho de uma equipe.

VIGILÂNCIA DE EXAMES COMPLEMENTARES

A realização da vigilância de exames laboratoriais, em especial exames altera-


dos, constitui importante ferramenta de cuidado da equipe de Estratégia Saúde
da Família. É fundamental que a equipe tenha uma organização interna e a defi-
nição de papéis e tarefas entre os profissionais que estarão envolvidos nessa ati-
vidade. Ela precisa pensar em mecanismos ágeis e sistematizados para realizar a
vigilância dos exames solicitados. Tão importante quanto a garantia do acesso ao
serviço de saúde é a garantia de acesso aos exames laboratoriais que assegurem
rastreamento precoce de alterações que possam significar importantes lesões de
órgão-alvo, alterações que indiquem a necessidade de encaminhamentos para os
níveis secundários ou terciários de atendimento.

A vigilância da região de saúde deverá trabalhar de forma alinhada com as


equipes de Estratégia Saúde da Família, subsidiando-as com relatórios acerca da
condição epidemiológica de cada uma delas. As equipes também poderão criar
listas de controle de pacientes com exames alterados que requeiram investigações
em menores intervalos para que possam organizar e garantir a coleta, seja na Uni-
dade seja no domicílio ou no território rua em tempo oportuno. Ademais, as equi-
pes precisam garantir controle adequado de exames de colpocitologia oncótica

77
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

que necessite de novas coletas em intervalos menores do que o anual, deve haver
incorporação dos cadernos de controle de sintomáticos respiratórios em sua rotina
de trabalho, a fim de identificar a prevalência de sintomáticos em seu território,
definir necessidade de busca ativa de casos, entre outros.

Definir quem olha os exames da equipe, definir estratégias de identificação de


equipes (como, por exemplo, cores e números) no formulário de pedido de exame
para facilitar a visualização e separação deles no momento da entrega, garantir
horário sistematizado de membros da equipe para checagem de exames nos sis-
temas laboratoriais, definir estratégias rápidas de comunicação entre laboratório e
profissional de saúde para aviso de resultados de exames graves são tarefas impor-
tantes para o processo de cuidado da equipe.

EXPANSÃO DAS ATRIBUIÇÕES CLÍNICAS DO(A)


ENFERMEIRO(A)

O fortalecimento do papel do(a) enfermeiro(a) dentro de uma equipe de Es-


tratégia Saúde da Família deverá representar uma ampliação do olhar para os cui-
dados integrais em saúde de um território/comunidade. Esse profissional poderá
ocupar um lugar na assistência, na gestão e coordenação de ações dentro da pró-
pria equipe, na educação e em processos formativos na equipe e unidade.

78
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

No que se refere à gestão do cuidado dentro da equipe de ESF, o enfermei-


ro(a) poderá assumir papel central no acolhimento e atendimento da demanda
espontânea de sua equipe, realizar a classificação de vulnerabilidades, organizar
agendas de atendimentos de pessoas com doenças crônicas, gestantes, puericul-
tura, pessoas com sofrimento mental, idosos, adolescentes, acompanhamento de
pessoas com tuberculose, hanseníase, feridas crônicas, entre outras. Esse profissio-
nal poderá qualificar e determinar a frequência dos atendimentos da população
adscrita para os atendimentos individuais com o profissional médico, por exemplo,
de acordo com os protocolos regionais ou nacionais.

O enfermeiro(a) deverá organizar uma agenda de atividades coletivas de edu-


cação em saúde, com temáticas que abordem a promoção em saúde, prevenção
de doenças, prevenção quaternária, que tratará de questões relacionadas a efeitos
colaterais de medicamentos em pessoas que fazem uso de múltiplas drogas; os
grupos poderão ser desenvolvidos de forma compartilhada com o farmacêutico da
unidade, com profissionais da equipe multiprofissional do Nasf-AB ou com o CAPS
do território.

O(A) enfermeiro(a) da equipe também possui papel determinante na realiza-


ção de ações de vigilância, que nunca deverão estar desconectadas da assistência
direta ao paciente/comunidade, devendo conhecer o perfil epidemiológico sani-
tário de seu território, com realização de busca ativa no território para controle de
comunicantes de pacientes com tuberculose, hanseníase, entre outros agravos,
busca ativa de faltosos em vacinação, busca ativa de sintomáticos respiratórios e
de pessoas com lesões de pele sugestivas de hanseníase, entre outros.

79
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM EXEMPLO DE BOAS PRÁTICAS!

O enfermeiro de uma Equipe de Estratégia Saúde da Família, Rodrigo, recém-che-


gado, tentava entender como acontecia o processo de trabalho do enfermeiro na-
quela equipe. Soube que o colega anterior realizava visitas sistemáticas aos pa-
cientes acamados de seu território, fazendo avaliação de risco de quedas, avaliação
de risco de úlcera por pressão, entre outras, consultas de puericultura e pré-natal,
atividades coletivas de orientação em saúde e atividades de vigilância epidemioló-
gica, além de ser o enfermeiro responsável pela sala de curativos da unidade.

Durante uma reunião, o enfermeiro novato propôs como pauta discutir com a
equipe a consulta de enfermagem como dispositivo de cuidado, questionou aos
membros da equipe se conheciam a consulta de enfermagem, se já haviam vi-
venciado uma consulta de enfermagem em suas vidas pessoais e/ou profissionais.
Uma agente de saúde relatou que fez seu pré-natal com a enfermeira de sua equi-
pe em consultas intercaladas com o médico, disse que adorava as consultas da en-
fermeira, pois tinham tempo para falar da alimentação dela, do trabalho, do medo
da chegada de um bebê em casa, além de sempre poder ouvir o coração de seu
bebê no atendimento.

Um agente de saúde, também recém-chegado na equipe e na área da saúde,


se assustou e disse não saber que o enfermeiro poderia examinar “a barriga” de
uma gestante. Um auxiliar de enfermagem conta que na outra equipe em que
trabalhava, em outro território, a enfermeira fazia atendimentos individuais aos pa-
cientes hipertensos e diabéticos e transcrevia medicações, fazia solicitação e ava-
liação de exames laboratoriais, orientações de atividade física e alimentação, e que
os pacientes gostavam muito dos atendimentos.

Nesse momento, foi possível apresentar a consulta de enfermagem como dis-


positivo de cuidado, ainda desconhecido por alguns membros da equipe. Rodrigo
sugeriu que ele passasse a realizar atendimentos individuais para os pacientes de
tuberculose, de forma intercalada com o médico. A equipe vivia um momento de
aumento do número de casos na microárea 1, território de uma grande ocupação,
em que as pessoas viviam em condições de extrema vulnerabilidade, em ambien-
tes muito pequenos, sem ventilação, sem entrada de luz natural, sem o mínimo de
condições para realização de isolamento respiratório para os pacientes com diag-
nóstico recente de tuberculose.

80
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A equipe recebe a proposta bastante apreensiva e discute que o tratamento


de tuberculose é uma atribuição do profissional médico. Rodrigo fala sobre esse
entendimento e aponta que, segundo o Protocolo de Manejo de Tuberculose do
Município, ele podia ter papel importante no acompanhamento dos casos, com
solicitação de exame de escarro de controle, solicitação de exames de escarro para
sintomáticos, solicitação de raio-X de tórax para contatos, avaliação de exames de
função renal e hepática, intervenções e abordagem breve para pessoas com uso
problemático de álcool com diagnóstico de tuberculose, exame físico com auscul-
ta pulmonar, controle de peso, orientações sobre efeitos colaterais da medicação,
orientações sobre alimentação, além de apoio para os pacientes que optassem por
realizar uma internação “social” para os seis meses de tratamento.

A equipe foi aos poucos se sentindo mais segura em agendar pacientes com
tuberculose para o enfermeiro Rodrigo, conforme tinham os relatos verbais dos pa-
cientes sobre o atendimento realizado e conforme o médico trazia o quanto esse
cuidado compartilhado vinha trazendo aumento na adesão medicamentosa e di-
minuição significativa da taxa de abandono da equipe.

81
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O PAPEL ESTRATÉGICO DO AGENTE COMUNITÁRIO


DE SAÚDE

O agente comunitário de saúde dentro de uma equipe de Estratégia Saúde da


Família desenvolve papel fundamental no que se refere à construção de vínculo
do usuário com os demais membros da equipe, com a Unidade de Saúde e com
a rede de saúde local. O agente de saúde, no desenvolvimento de seu trabalho
com as visitas regulares às famílias, será capaz de compreender com os pacientes
suas buscas por cuidados, entender seus itinerários terapêuticos, os cuidados que
fazem sentido para o indivíduo, pessoas e serviços formais e informais que possam
apoiar a equipe de saúde na oferta de cuidados.

O agente de saúde, ao entrar nas casas de indivíduos e famílias, desenvolverá


relações próximas e de confiança, identificará situações de vulnerabilidade e forta-
leza das famílias, que serão subsídios para o cuidado em saúde a ser oferecido pelos
demais profissionais da equipe. Esse é um dos profissionais com maior potencial
para realizar a aplicação de escalas1 de vulnerabilidade de famílias, conhecer toda
a sua constituição, a rede de apoio que a família aciona, é agente fundamental
para informar a família sobre os serviços de saúde e intersetoriais disponíveis em
seu território, bem como a forma de acesso a eles.

Deverá ser garantida ao agente de saúde a participação nas reuniões de equi-


pe, nas reuniões gerais da unidade e nos processos de educação permanente dis-
poníveis para a equipe/rede. A equipe deverá refletir cotidianamente o trabalho do
ACS, sob o risco de ele tornar-se um “entregador” de consultas, dessa forma desca-
racterizando seu trabalho, minando sua potência na construção do cuidado de sua
comunidade de referência/abrangência.

MATRICIAMENTO

O matriciamento, além de uma ação/atividade entre equipes, é uma lógica


para operar dentro da APS. É um compartilhamento do cuidado entre equipes e,
inclusive, com outros atores sociais, como igrejas, escolas, restaurantes, entidades
sociais do território e até mesmo de outros territórios que possam auxiliar o cuidado.

1
Escala de Risco Coelho-Savassi: criada no governo de Minas Gerais, é baseada na ficha A do SIAB. O objetivo
dessa escala é determinar o risco social e de saúde das famílias de sua área, definindo o risco de adoecimento
de cada núcleo familiar.
82
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A partir dele, é possível pensarmos com o usuário e seu núcleo familiar qual a me-
lhor forma de cuidado para esses sujeitos.

Segundo Chiaverini (2011), no “Guia prático de matriciamento em saúde men-


tal”, matriciamento ou apoio matricial:

[...] é um novo modo de produzir saúde, em que duas ou mais equipes, num
processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção
pedagógico-terapêutica.

Tradicionalmente, os sistemas de saúde se organizam de uma forma verti-


cal (hierárquica), com uma diferença de autoridade entre quem encaminha
um caso e quem o recebe, havendo uma transferência de responsabilidade
ao encaminhar. A comunicação entre os dois ou mais níveis hierárquicos
ocorre, muitas vezes, de forma precária e irregular, geralmente por meio de
informes escritos, como pedidos de parecer e formulários de contrarreferên-
cia que não oferecem uma boa resolubilidade.

A nova proposta integradora visa transformar a lógica tradicional dos siste-


mas de saúde: encaminhamentos, referências e contrarreferências, protoco-
los e centros de regulação. Os efeitos burocráticos e pouco dinâmicos dessa
lógica tradicional podem vir a ser atenuados por ações horizontais que in-
tegrem os componentes e seus saberes nos diferentes níveis assistenciais
(CHIAVERINI, 2011, p. 13).

O apoio matricial entre equipes de Saúde da Família, entre profissionais que


possuem conhecimentos e desenvolvem práticas de cuidado diversas, entre as
equipes de Estratégia de Saúde da Família e os Núcleos Ampliados de Saúde da
Família, entre outros especialistas da rede de saúde, como especialistas de ambu-
latórios de IST/AIDS, rede de urgência e emergência, equipes de saúde mental dos
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou apoio matricial com a rede intersetorial
de cuidado é importante estratégia de qualificação do cuidado a ser oferecido.

Garantir espaços de matriciamento significa garantir uma agenda flexível e


fluida, com espaços para atendimentos individuais e coletivos, atendimentos den-
tro e fora da Unidade de Saúde e espaços em que a reflexão, a discussão de caso
e a troca de saberes sejam garantidas, por meio de reuniões presenciais, virtuais,
atendimentos compartilhados, visitas compartilhadas, etc.

83
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O matriciamento deverá ser sempre uma construção entre profissionais de


saúde e entre estes e outros serviços intersetoriais. São espaços de troca entre dife-
rentes e importantes saberes, com foco na construção de novos conhecimentos, a
fim de aumentar a resolutividade de ações e cuidados e fortalecer os profissionais
para que se sintam seguros em manejos futuros para situações similares. O matri-
ciamento também tem como atribuição tirar os profissionais do isolamento do dia
a dia de cuidado, incentivar o trabalho interdisciplinar no alcance do cuidado inte-
gral, sendo uma ferramenta de qualificação do acesso e arranjo organizacional das
redes e dos territórios, que fortalece os pontos de conexão entre múltiplos atores.

Todo profissional de saúde de uma equipe de ESF poderá estar em espaços


de matriciamento, não sendo essa atividade exclusiva dos profissionais de nível
superior.

Vejamos um roteiro para discussão de casos em apoio matricial de saúde men-


tal (extraído de CHIAVERINI, 2011):

• Motivo do matriciamento.

• Informações sobre a pessoa, a família e o ambiente.

• Problema apresentado no atendimento:

9 nas palavras da pessoa;

9 visão familiar;

9 opinião de outros.

• História do problema atual:

9 início;

9 fator desencadeante;

9 manifestações sintomáticas;

9 evolução;

9 intervenções biológicas ou psicossociais realizadas;

9 compartilhamento do caso (referência e contrarreferência).

• Configuração familiar (genograma).

84
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Vida social:

9 participação em grupos;

9 participação em instituições;

9 rede de apoio social;

9 situação econômica.

• Efeitos do caso na equipe interdisciplinar.

• Formulação diagnóstica multiaxial:

9 sintomas mentais e transtornos mentais;

9 estilo de personalidade e transtornos de personalidade e do desen-


volvimento;

9 problemas de saúde em geral;

9 avaliação de incapacidade;

9 problemas sociais.

ESTRATÉGIAS DE MATRICIAMENTO

Os encontros com mais equipes podem ocorrer de algumas formas para além
das reuniões tradicionais.

Discussão de casos clínicos: a escolha de casos que são levados à discussão


de equipe em geral segue alguns critérios como dificuldade de ou no manejo es-
pecífico do caso ou mesmo quando as possibilidades de cuidado já se esgotaram
e a equipe necessita de outros olhares. Também pode ser escolhido um ou mais
casos que são similares no território para que se possa pensar em estratégias co-
letivas de cuidado no território, como quadros específicos de saúde mental ou até
mesmo de repetições de casos de câncer de pele, por exemplo.

85
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Relato de caso

Na UBS Donato Petri, na cidade de Massaranduba/SC, percebeu-


-se um aumento na incidência de câncer de pele em homens que
trabalhavam com agricultura familiar. Essa constatação fez com que
a equipe do Nasf-AB e a da ESF planejassem estratégias para que
esses homens começassem a fazer uso de proteções solares duran-
te seu horário de trabalho ou a quaisquer outras exposições solares.

O psicólogo do Nasf-AB, Jean, realizou atendimentos individuais


com alguns dos homens da região e percebeu que fatores cultu-
rais os impediam de usar protetores labiais, pois se sentiram en-
vergonhados. “O que meu vizinho vai falar de eu usar batom?”.
Após vários atendimentos foi possível introduzir o uso de chapéus
com abas largas como forma de proteção para os agricultores.
(informação verbal, SILVA, 2021)2

Atendimento conjunto / compartilhado entre profissionais: o atendimento


conjunto a um usuário ou mesmo a sua família pode ser um recurso muito interes-
sante para que os profissionais possam perceber amplamente os aspectos do caso.
Em uma mesma consulta, os profissionais de áreas e até mesmo de serviços dife-
rentes podem entender melhor tanto as dificuldades do profissional como am-
pliar o escopo do diagnóstico desse usuário. Esse atendimento pode ser utilizado
para que, após a discussão de caso, fique mais claro para todos. É um recurso que
tanto pode ser utilizado antes de uma reunião de matriciamento quanto ser uma
das definições do matriciamento.

2
Relato realizado pelo psicólogo Jean Paulo da Silva. Palestra: “O fazer da psicologia na atenção básica a saúde:
da fundamentação teórico-científica à prática no território”. In: III Semana da psicologia, Católica, Joinville/SC,
25 de novembro de 2021.

86
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Para refletir!!!

No caso de um paciente com transtorno mental moderado, que


deixa dúvidas sobre o melhor local de acompanhamento dele (UBS
ou CAPS), é possível fazer uso da consulta compartilhada, a fim
de que o profissional do serviço especializado (CAPS) possa com-
partilhar seus conhecimentos com o profissional da UBS, realizan-
do apoio matricial e orientando esse trabalhador sobre como con-
duzir o caso, o que possibilita maior segurança do profissional em
avaliações futuras.

Capacitação sobre temas relevantes para as equipes (demanda explícita ou


percebida/pactuada): pode ser percebido ao longo de algumas reuniões de ma-
triciamento que algumas questões se repetem e podem ser mais bem compreen-
didas com uma capacitação específica. Nessa capacitação, o profissional especiali-
zado pode trazer detalhes teóricos acerca do assunto, protocolos já utilizados tanto
regional quanto nacionalmente, roteiros de entrevistas e sugestões de condutas
padronizadas. Essas formações podem abordar temáticas de outros serviços/se-
cretarias, como da assistência social, que, em geral, temos menor contato.

Construção de protocolos com as equipes: pode ser um desdobramento das


capacitações e até mesmo do monitoramento dos matriciamentos. Construir for-
mas de encaminhamento, condutas do que deve ser priorizado ou não, do que
será avaliado pelo Nasf-AB ou conduzido para um grupo já constituído na unidade
que pode ser de profissionais do Nasf-AB ou até mesmo de profissionais da equipe
como caso de grupos de hipertensos.

Suporte na implantação/incorporação de novas práticas: com a realização


dos matriciamentos, com a identificação das demandas do território e monitora-
mento dos casos, devemos olhar para o território de forma ampliada e compre-
ender do que e porque as pessoas adoecem. Asssim, é possível promover ações
e cuidados coletivos e redes de apoio entre os próprios usuários. Profissionais do
Nasf-AB ou da rede especializada podem auxiliar equipes de Estratégia Saúde da
Família a implantarem grupos terapêuticos, grupos educativos, grupos de escuta,
entre outros.

87
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Suporte na construção de projetos terapêuticos singulares (PTS): a constru-


ção de PTS, se possível, deve ter a participação do usuário no momento da constru-
ção, mas, se não for possível, é necessário que um profissional de referência pactue
e monitore o projeto junto ao usuário. Não faz sentido pensarmos em um projeto
terapêutico perfeito se o usuário não aceitar ou não conseguir executá-lo.

Suporte no manejo de questões do território: é necessária a utilização de


ferramentas de cuidado territoriais, como as visitas domiciliares, visitas de rua, ati-
vidades coletivas terapêuticas e educativas na rede da saúde e intersetorial, entre
outras ofertas já sinalizadas.

Telessaúde e/ou consultorias: esse suporte pode ser fornecido presencial-


mente, requerendo a avaliação de um profissional especializado ou por meio de
estratégias como o Telessaúde, do Ministério da Saúde, em que o recurso de con-
sultoria especializada nas mais diversas especialidades médicas, dermatologia, en-
docrinologia, psiquiatria, entre outras especialidades, além de consultoria de en-
fermagem e odontologia, pode ser feita por ligação telefônica.

Número telessaúde RS: 0800-6446543

Site: ufrgs.br/telessauders/

Além da teleconsultoria, pelo site é possível acessar cursos, perguntas da se-


mana, protocolos clínicos e de regulação e recurso de telediagnóstico.

88
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Para fixar:

• Elencar os casos que necessitam de matriciamento.

• Identificar parceiros na rede de saúde, assistência, ONGs e ou-


tros setores.

• Levantar a história do usuário e clínica.

• Identificar possibilidades.

• Identificar responsáveis por cada etapa do cuidado.

• Estar aberto para escutar novas possibilidades de cuidado e ou-


tras estratégias.

• Reavaliar e reformular o PTS sempre que necessário.

Construção de
protocolos com
as equipes

Suporte na
construção de
Telessaúde e/ou projetos
consultorias terapêuticos
singulares
Matriciamento
(PTS)

Suporte na Suporte no
implantação/ manejo de
incorporação questões do
de novas território
práticas

89
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM BREVE RELATO DE BOAS PRÁTICAS!!!

Em uma região no município de São Paulo, são realizados encontros mensais


para discutir as questões relacionadas aos cuidados da população em situação de
rua, espaço conhecido como REDE RUA. Os encontros atualmente acontecem de
forma virtual, com a participação de Unidades Básicas de Saúde, equipes de Con-
sultório na Rua, equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), equipe do
pronto-socorro da região, equipes dos centros de acolhida, equipes de abordagem
social de rua, supervisão de saúde, supervisão de assistência social.

Nesse espaço, são discutidos casos complexos de pessoas em situação de rua


que exijam trabalho compartilhado de forma permanente, organização de fluxos
de acolhimento e cuidado entre os serviços. Além disso, representa um espaço de
educação permanente, com apresentação de pesquisas e trabalhos que represen-
tem boas práticas de cuidados no município, além de representar importante es-
paço de organização de pautas para serem discutidas entre os gestores do territó-
rios ou demandas para outros níveis de atenção, enquanto demanda de cuidados
da rede.

Adicionalmente aos encontros mensais, a REDE RUA possui um grupo de


WhatsApp que é usado para divulgar eventos, confirmar reuniões, realizar busca
de paciente em situação de rua que tenha “desaparecido” do serviço, marcar reu-
niões de rede, visitas de rua compartilhadas, entre outros.

90
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

TERRITÓRIO

Conhecer o território de referência e abrangência da sua Equipe de Estraté-


gia Saúde da Família é importante estratégia de cuidado a uma população/comu-
nidade. Podemos iniciar com a identificação dos serviços de saúde formais nele
disponíveis, como UBS, CAPS, policlínicas, centros especializados, ambulatórios,
pronto-socorro, farmácias, e informais, como as benzedeiras, as parteiras, os líde-
res religiosos, entre outros. Também significa conhecer as ofertas de cuidados in-
tersetoriais, como o Conselho Tutelar, Centro de Referência de Assistência Social
(CRAS), Centro Especializado em Assistência Social (CREAS), Centro Especializado
em Assistência Social voltado à População em Situação de Rua (Centro Pop), Dele-
gacias de Polícia de atendimento do Idoso, às Mulheres, Defensoria Públicas e seus
núcleos de atuação, Escolas Estaduais e Municipais, Universidades e Faculdades,
Centros Esportivos, Parques, Academias instaladas em Praças, Igrejas, Bibliotecas
Públicas, Teatros, entre outros

91
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

JÁ FOI FEITO ASSIM: UM BREVE RELATO DE BOAS PRÁTICAS!

Uma equipe de Consultório na Rua responsável pela abrangência de seis uni-


dades de saúde solicitou à Supervisão Técnica de Saúde, área de gestão de infor-
mações, um mapa geográfico impresso em tamanho grande, que fora afixado na
sala da equipe. No mapa, a equipe começou a identificar com “tachinhas” coloridas
os serviços de saúde no território, serviços da assistência social ou outros pontos
importantes de cuidado para a população de rua. Além disso, usando etiquetas co-
loridas, identificou cidadãos/pacientes que exigiam ações de constante vigilância,
para que, de forma rápida, pudesse, a partir de uma representação visual, identifi-
car os locais e microterritórios de pessoas com diagnóstico de tuberculose, hiper-
tensão, diabetes, transtornos mentais, gestantes, entre outros.

Com esse dispositivo, a equipe passou a olhar para o seu território de outra ma-
neira, para além das listas nominais de agravos, identificar microáreas com maiores
vulnerabilidades, realizando mudanças na frequência de visitas dos profissionais
médico e enfermeiro ao território, organizar encontros de rede para discussão de
determinados territórios com repetições de situação, como formação de “cenas de
uso de drogas” em determinado ponto, entre outras ações de cuidado no território.

92
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A multiplicidade de problemas e situações que exigem cuidados integrais em


saúde faz com que a equipe de Estratégia Saúde da Família tenha um olhar cui-
dadoso às questões que se apresentam, muitas vezes as demandas são trazidas
de forma espontânea pelo indivíduo e família, por vezes são trazidas pela comuni-
dade, por tratar de segredos e situações que envolvam violência, tráfico ou outras
questões que envolvam violações legais. Assim, a equipe precisa conhecer as ofer-
tas dos serviços, os fluxos de encaminhamentos, as formas de comunicação entre
os profissionais. Convidar esses atores e serviços para discussões em rede, discus-
sões de casos, consiste em estratégia importante de ofertas integrais em saúde.

Para além do território geográfico, é fundamental que a equipe entenda o ter-


ritório das relações, um território vivo e dinâmico, de práticas tradicionais, de re-
lações violentas e de afeto, um território de políticas públicas ausentes, que viola
direitos humanos, mas que também possui potência em suas ofertas, um território
onde relações sociais se estabelecem e são produtoras de saúde e doença.

Outra questão ao pensarmos no território é pensar sobre a cartografia das pes-


soas que o ocupam, como elas circulam e como utilizam os equipamentos e quais
os serviços nele disponíveis. Pensar no território é avaliar se existem os serviços
necessários, se os moradores precisam deslocar-se para outros a fim de ir a banco,
comprar no mercado, se crianças e adolescentes possuem escolas e áreas de lazer
nesses bairros e como os utilizam. Por exemplo, se um território é muito violento,
pode ser que as pessoas tenham limites de circulação impostas por essa violência,
como horários de circular em determinados locais ou até mesmo de permanecer
na rua em alguns horários. E, a partir desse dado, qual seria o impacto para a saúde
dessas pessoas?

PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS)

O projeto terapêutico singular (PTS) consiste em um conjunto de propostas


de condutas terapêuticas articuladas para um sujeito individual ou coletivo, resul-
tado da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, com apoio matricial, se
necessário. Geralmente é dedicado a situações mais complexas. No fundo, é uma
variação da discussão de “caso clínico” (BRASIL, 2007).

A construção do PTS deverá ser feita por toda a equipe de Estratégia Saúde
da Família, devendo contar com apoio do Núcleo Ampliado de Saúde da Família

93
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

(Nasf-AB) e, se for necessário, dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), além dos
serviços da rede intersetorial de cuidados integrais. Neste momento, a opinião de
todos os participantes é importante para compreender o sujeito nas suas mais va-
riadas demandas de cuidados em saúde e para propor ações. O projeto poderá ser
pensado e direcionado para coletividades, não apenas para indivíduos, buscando
a singularidade (a diferença) como elemento central de articulação, já que muitas
vezes os diagnósticos médicos tendem a igualar sujeitos e minimizar as diferenças.

O núcleo de humanização do Ministério da Saúde propõe quatro momentos


para o PTS:

1) Diagnóstico: deverá conter uma avaliação orgânica, psicológica e social que


possibilite uma conclusão a respeito dos riscos e da vulnerabilidade do usuário.
Deve tentar captar como o sujeito singular se produz diante de forças, como as
doenças, os desejos e os interesses, assim como também o trabalho, a cultura, a
família e a rede social. Ou seja, tentar entender o que o sujeito faz de tudo que fi-
zeram dele.

2) Definição de metas: uma vez que a equipe fez os diagnósticos, ela faz pro-
postas de curto, médio e longo prazo, que serão negociadas com o sujeito doente
pelo membro da equipe que tiver um vínculo melhor.

3) Divisão de responsabilidades: é importante definir as tarefas de cada um


com clareza.

4) Reavaliação: momento em que se discutirá a evolução e serão feitas as de-


vidas correções de rumo. Esse momento é importante para que o instrumento seja
testado em suas potencialidades e fragilidades. Escutar o usuário e/ou sua família
pode ser o elemento crucial para compreender o que foi possível executar e quais
as dificuldades para não conseguirem outros pontos.

94
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Sabemos que é um grande desafio que uma equipe de Estratégia Saúde da


Família possa desenvolver projetos terapêuticos singulares para todos os seus ca-
dastrados ou para todos os indivíduos/famílias de seu território de referência/abran-
gência, assim é sugerido que sejam escolhidos usuários ou famílias em situações
mais graves ou difíceis a partir de opiniões e justificativas de quaisquer membros
da equipe, ou a partir da utilização de escalas de identificação de vulnerabilidades
(2007).

A definição dos casos que serão submetidos à construção do PTS também po-
derá ser sugerida pela rede intersetorial, a partir da procura desses serviços, ou
pela rede de urgência e emergência, sendo necessário que esses atores possam
estabelecer relações e encontros para tal definição.

Para que seja possível a construção de um PTS, é necessário que a equipe co-
nheça o indivíduo ou a família, que tenha informações suficientes de aspectos va-
riados da vida destes, que tenha vínculo suficiente com o(s) sujeito(s) para que essa
construção aconteça de forma compartilhada, já que os caminhos do indivíduo
ou coletivo serão escolhidos por eles, que poderão aceitar ou rejeitar as propostas
elaboradas pela equipe, reorganizando os projetos de cuidado para eles a todo
momento.

Como prática, o usuário e/ou sua família deverá participar da construção do


seu plano terapêutico singular, pois ele é quem está vivendo a situação, conhece
“de perto” as dificuldades e as potencialidades. Discutir com o usuário sobre a me-
lhor forma de conduzir seu caso é o ponto crucial para o sucesso do PTS. Na impos-
sibilidade da participação do usuário durante a discussão do PTS, é fundamental e
indispensável que, posteriormente, um profissional de referência apresente o PTS
para ele e/ou sua família, discuta com ele cada reflexão, os motivos para tal ação,
e avalie em conjunto se ele concorda, se acredita ser viável, se deseja algo, e assim
por diante, até fazer a avaliação da melhor forma de execução do PTS.

Cada equipe deverá definir em que momento de seu trabalho fará a constru-
ção do PTS, como, por exemplo, em um espaço de reunião de equipe ou um es-
paço específico para construção de PTS. Deverá, ainda, definir qual a regularida-
de desses encontros, se semanais, quinzenais, mensais, e como os registros serão
feitos, se em instrumental específico criado e padronizado pela equipe, pela UBS,
pela regional de saúde, entre outros.

95
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A equipe também precisará definir se o PTS ficará disponível de forma impres-


sa, para que ela possa acessar a qualquer tempo, ou se será mantido em formato
eletrônico.

Checklist do PTS:

• Levantar as necessidades.

• Avaliar as potencialidades do serviço e do usuário.

• Avaliar e refletir sobre as dificuldades.

• Pautar, em bases reais, cuidando para não cair em idealizações.

• Reavaliar periodicamente, ou quando atingidos os objetivos, ou quan-


do se tornar impossível a continuidade.

Dica de leitura!!!

Segundo o “Guia rápido para reunião de matriciamento”, de Machado (2021), a


reunião de matriciamento tem no projeto terapêutico singular (PTS) seu fio condutor.

[...] De um modo geral, podemos pensar em duas situações para que um


caso seja elegível à construção de um PTS:

1. Casos muito complexos e singulares que vão envolver necessariamente


um maior conjunto de saberes, profissionais, parcerias e arranjos institucio-
nais para conseguir aumentar a resolutividade das equipes envolvidas (ESF,
CAPS, CRAS, CREAS, Centro Pop, Nasf-AB, abrigos, Conselho Tutelar, Minis-
tério Público, etc.), na construção de um plano de cuidado.

2. Casos mais prevalentes no dia a dia das equipes. Casos que aconteçam
com frequência e que ocupem a agenda das equipes sem que orientações
mais gerais tenham sido construídas para o seu manejo.

Para as duas situações, o objetivo é acumular, numa construção coletiva de


conhecimento, novos elementos de análise dos casos e novas ferramentas
para utilizar em casos semelhantes no futuro, além, certamente, é claro, de
construir propostas terapêuticas eficazes e resolutivas para a melhoria da
qualidade de vida dos usuários.

96
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

[...]

Dentre os pontos importantes na construção de uma reunião de matricia-


mento, destacamos os elementos destacados abaixo:

• Sugerimos que as reuniões de matriciamento tenham frequência quinze-


nal, com duração de duas horas;

• A participação na reunião de matriciamento fica condicionada ao traba-


lho com a população, isso significa que quem fizer parte da reunião tem
interesse direto em qualificar suas intervenções junto à população local e,
por consequência, se envolver na construção e no compartilhamento das
propostas de trabalho;

• A equipe de saúde assume, inicialmente, o protagonismo de “puxar” essas


reuniões (enviar os e- mails de convite, articular o local da reunião, telefonar
para confirmar a participação dos parceiros e ter função ativa na condução
da reunião). Posteriormente, esse protagonismo pode ser compartilhado
com os demais parceiros (demais equipes de saúde como a ESF, CAPS, CTA,
ou mesmo com os demais serviços do território, como os CRAS, CREAS, Cen-
tro Pop, etc.);

Dentre as diversas estratégias de estruturar uma reunião de matriciamento,


sugerimos alguns temas/processos, tais como:

• Discussão de casos:

- Apresentação de casos novos pelas equipes de saúde, CRAS, CREAS, Centro


Pop, abordagem social dos CREAS, dos CAPS, abrigamentos institucionais e
demais instituições locais. Para o período de duas horas é indicado discutir,
no máximo, dois casos novos.

- Devolutivas das ações e intervenções combinadas na reunião de matricia-


mento anterior. Cabe salientar que as devolutivas devem ser breves, tendo
por objetivo o monitoramento das ações e possíveis correções e ajustes nas
propostas. Para o período de duas horas é indicado discutir, no máximo, três
devolutivas de casos.

• Diagnóstico das necessidades e demandas, assim como e possíveis ofertas


da equipe de saúde:

97
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

- Apresentação e discussão de dados referentes à população do território,


com o intuito de oferecer informações de fácil comunicação e que possam
ser compartilhadas entre todos os participantes da reunião. Estes dados po-
dem informar e orientar as agendas das equipes e as agendas coletivas do
território.

- Situações observadas pela equipe de saúde na atuação das demais equi-


pes e serviços do território, as quais possam ser trazidas para a reunião como
estratégia de ilustrar necessidades da rede em ser qualificada, como, por
exemplo, no que se refere à condução compartilhada de casos de TB, HIV/
AIDS, álcool e outras drogas, assim como à concessão de benefícios sociais,
entre outros). Salientamos que essas observações sobre o funcionamento
das demais ofertas locais para a população no território devem ser aborda-
das pela equipe de saúde de forma propositiva, ou seja, a equipe de saúde
pode trazer as questões por ela percebidas e que podem contribuir para o
debate no grupo. Exemplo: “temos observado que o cuidado à TB tem sido
difícil. Podemos ajudar trazendo características deste cuidado na próxima
reunião. O que o grupo acha?”).

• Elaboração de propostas conjuntas entre as equipes e serviços:

- Construção de planos de ação conjuntos entre as equipes do território para


lidar com as necessidades e os problemas percebidos.

- Propostas de atividades coletivas específicas da equipe de saúde com as


demais equipes locais.

- Propostas de outras ações de educação permanente (por exemplo: temas


surgidos a partir das discussões de caso).

• Ações de monitoramento:

- Registro das atividades (memória das reuniões de matriciamento), dos par-


ticipantes e das pactuações realizadas, permitindo monitorar e avaliar o pro-
cesso de trabalho entre as equipes.

- Discussão e avaliação sobre a evolução dos casos discutidos e acompanha-


dos pela equipe de saúde e pelas demais equipes locais.

98
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

- De todos os elementos listados como estruturantes da reunião de matri-


ciamento, a discussão de casos, por incorporar fortemente o elemento pe-
dagógico, e as ações de monitoramento, além de por sua relevância em dar
“consequência” e continuidade ao trabalho do grupo, devem ter um espaço
privilegiado na agenda da reunião de matriciamento. (MACHADO, 2021, p. 2-5).

PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES (PICS)/


PRÁTICAS INTEGRATIVAS EM SAÚDE (PIS)

As Práticas Integrativas em Saúde (PIS) são tecnologias eficazes e seguras, que


abordam a saúde do Ser Humano na sua multidimensionalidade - física, mental,
psíquica, afetiva e espiritual, com ênfase na escuta acolhedora, no autocuidado, no
desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio
ambiente e a sociedade, com o objetivo de promover, manter e recuperar a saúde.

As práticas integrativas oferecidas na UBS devem estar contidas na Política


Distrital de Práticas Integrativas em Saúde (PDPIS) e nas normativas vigentes. São
elas: Acupuntura, Arteterapia, Automassagem, Ayurveda, Fitoterapia, Homeopatia,
Lian Gong, Medicina e Terapias Antroposóficas, Meditação, Musicoterapia, Reiki,
Shantala, Tai Chi Chuan, Terapia Comunitária Integrativa, Terapia de Redução de
Estresse - T.R.E e Yoga. A oferta de PIS é um importante recurso terapêutico no
exercício da clínica ampliada pelas equipes de saúde.

De acordo com a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares


no SUS, de 2015, elas contribuem para o fortalecimento dos princípios fundamen-
tais do SUS, com a manutenção e recuperação de modelos de atenção humaniza-
dos e centrados na integralidade do indivíduo.

É fundamental que os profissionais de saúde reconheçam nas PIS ofertas va-


riadas de cuidados, baseadas em evidências científicas, que estimulam espaços
de cuidados coletivos e cuidados não medicalizantes e com foco biológico apenas.
As ofertas das PIS devem acontecer cada vez mais dentro da equipe de Estratégia
Saúde da Família, ou dentro da Unidade de Saúde, não devendo funcionar em
uma lógica de oferta em serviço ambulatorial.

Os profissionais de saúde devem participar de espaços de capacitação e de


educação permanente que lhes forem ofertados, visando qualificação para a prá-

99
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

tica que mais for de seu interesse e ao mesmo tempo garantir oferta de serviços
para as necessidades do território, a partir de suas especificidades, grupos popula-
cionais, agravos mais prevalentes, entre outros.

No caso de ambulatórios específicos que ofereçam as práticas integrativas e


complementares, deve-se garantir apoio matricial entre as equipes, comunicação
entre as equipes que estão encaminhando os indivíduos e os profissionais que vão
indicar e realizar tais práticas.

O espaço de oferta de práticas são garantidos de capacitação à rede de saúde


e à rede intersetorial, além de discussão com os conselhos de classe sobre o desen-
volvimento de tais práticas.

SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA

GRUPOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE

Atividades coletivas

A realização de atividades educativas coletivas, para além das intervenções


individuais em consultório ou visita domiciliar, representa importante dispositivo
no cuidado, porém exige que os profissionais saiam da lógica terapeuta-cliente. O
grupo facilita a vinculação com o usuário, pode representar um importante espaço
de pertencimento comunitário. É um espaço em que a circulação da palavra faz
com que haja trocas de experiências de cuidado na comunidade, representa espa-
ço de garantia de orientação em saúde, checagem de exames, discussão sobre o
sistema de saúde e seus mais diversos níveis de atenção, construção de espaço de
confiança entre profissional e usuário.

Nesse contexto, as atividades em grupo na Atenção Básica não devem con-


sistir em espaço unicamente para “transmissão de informações”, já que isso não
favorece a participação e a adesão dos usuários no espaço nem funciona como um
recurso terapêutico efetivo. Outro ponto importante ressaltado na literatura é que
grupos centrados na doença têm menor eficácia que grupos que trazem os temas
de forma transversal.

Para que sejam definidos o objetivo de determinada atividade coletiva, o públi-


co-alvo a ser alcançado, o local para a realização dela, que pode ser ou não dentro

100
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

do serviço de saúde, o número de pessoas que participarão, as estratégias que


serão desenvolvidas para esse convite, é necessário garantir o espaço para essa
atividade na agenda dos profissionais da equipe. Deve haver uma discussão sobre
a necessidade desses espaços e a frequência deles na agenda do(a) médico(a) e
do(a) enfermeiro(a) da equipe, por exemplo.

Essa discussão é importante ser feita dentro da equipe de ESF, com as demais
equipes da UBS e com a gerência da UBS, a fim de garantir a ausência dos traba-
lhadores da UBS em determinado período e a continuidade da agenda de acolhi-
mento da demanda espontânea daquela equipe que estará ausente da UBS pelo
período estipulado.

Existem vantagens na realização de intervenções em grupo regulares, para


além da ação dos processos terapêuticos em geral, pois os grupos têm mecanis-
mos terapêuticos próprios, que valorizam sua utilização na rede, como nos cuida-
dos em saúde mental. Uma das vantagens para o usuário é que torna o contato
mais horizontal, o que favorece uma vinculação entre usuário-profissional.

Além disso, segundo Nogueira et al. (2016), o grupo na APS é uma forma de
monitorar os usuários e de racionalizar os recursos financeiros e o trabalho dos
profissionais.

No período de 06/01/2022 a 31/01/2022, estava em consulta pública no DF o Ins-


trutivo de Atividades Coletivas (disponível no bit.ly/instrutivo-atividades-coletivas-df),
cujo objetivo é instrumentalizar as equipes de Saúde da Atenção Primária em Saú-
de para o manejo das atividades coletivas.

Fique atento quando estiver pensando em um grupo:

• Identifique a demanda a partir do diagnóstico do seu território.

• Se tiver dificuldade no manejo inicial do grupo, recorra a profissionais


do Nasf-AB ou da rede especializada. Contar com a participação de
outros profissionais em alguns encontros pode ser um recurso interes-
sante para tornar o grupo mais dinâmico.

• Observe e identifique os usuários que podem se beneficiar desse grupo.

• Converse com eles, sensibilize para participação e deixe claro que pode
somente observar. Alguns usuários ficam com receio de ter de se ex-
por diante de um grupo, mas podem ser beneficiados ao observar a
experiência dos demais.

101
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Fique atento ao horário que o grupo será realizado, por vezes o horário
torna-se um impeditivo para que o usuário participe, seja devido ao
trabalho, a atividades extras ou mesmo a sua própria rotina diária.

• Pactue o sigilo entre os integrantes em cada encontro. Para que todos


possam sentir-se mais acolhidos, é preciso que tenham confiança em
expor-se.

Mecanismos Terapêuticos da Atividade Coletiva (extraído do


“Guia prático de matriciamento em saúde mental”, de 2011)

✓ Estabelecimento de identificações, reforçando a possibilidade


de estruturação de comportamentos imitativos positivos: se deu
certo para o outro, pode dar para mim também. Esse processo
reforça a percepção da universalidade humana, que é fonte de
instilação de esperança.

✓ Reprodução de conflitos, por se tratar de um verdadeiro micro-


cosmo social, permitindo a elaboração de uma forma mais direta e
rápida de conflitos e o desenvolvimento de novas formas de rela-
cionamento e socialização.

✓ Possibilidade de a transferência também ocorrer de um modo la-


teralizado (ou seja, entre todos os membros do grupo), reeditando
de forma corretiva o grupo familiar primário, porém com mudança
de posições enrijecidas.

✓ Catarse e realização de experiências emocionais corretivas.

✓ Espaços importantes de apoio social, em que a troca de infor-


mações, a participação e a discussão das dificuldades de todos
e de cada um levam a uma aprendizagem interpessoal em um
ambiente coeso.

✓ Apoio ao estabelecimento de uma verdadeira “mente grupal”,


que reforça fatores existenciais humanistas e altruístas.

102
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

EXEMPLOS DE BOAS PRÁTICAS!

Os grupos podem ser conduzidos por quaisquer profissionais da unidade e


acompanhados pelos demais de forma a possibilitar supervisão ou monitoramen-
to do cuidado.

Em um bairro distante do Centro, local de grandes vulnerabilidades, as ACSs


com habilidades para atividades artesanais criaram um grupo de saúde mental
para as mulheres. Todas tinham algum acompanhamento de saúde mental, po-
rém não apresentavam quadro grave. As ACSs conseguiram negociar com o CRAS
do território a utilização de uma sala. Todas as semanas as mulheres encontra-
vam-se no CRAS, produziam bolsas, produtos de crochê e tricô e, com a produção
desses produtos, conseguiam gerar uma renda mínima.

Com o passar do tempo, a terapeuta ocupacional do CRAS conseguiu organi-


zar sua agenda e acompanhar o grupo. Em alguns momentos, a assistente social
e a psicóloga do mesmo equipamento também participavam do grupo. Tal ini-
ciativa, que viabilizou o trabalho intersetorial, possibilitou que algumas mulheres
deixassem o uso de medicação psiquiátrica, representando importante e potente
espaço de promoção e cuidado em saúde mental.

Em outro relato, o psicólogo de uma UBS, que não possuía habilidade manual,
criou um grupo no qual se teciam fios. Mulheres do território encontravam-se para
tecer com utilização da técnica de tricô e crochê. Ele relatava que tentava, mas não
tinha muita habilidade, apesar disso, sua iniciativa possibilitou a criação de um
grupo de ajuda mútua entre as mulheres de determinado território.

103
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE E TRANSTORNOS


MENTAIS

O trabalho dentro de uma equipe de ESF traz uma demanda constante por
parte dos pacientes com sofrimento psíquico, seja dos pacientes com transtornos
mentais severos, seja dos dependentes de medicações, seja dos pacientes com
transtornos mentais comuns que trazem queixas inespecíficas nos atendimentos
de consultas não programática (CHIAVERINI, 2011).

É fundamental que a equipe tenha espaço de educação permanente para que


possa discutir o que entende por saúde mental, discutir a importância de disso-
ciar o conceito de saúde mental e doença/transtorno mental. É importante que os
profissionais da ESF tenham clareza de que, ao realizar um grupo de caminhada,
uma roda de conversa entre os idosos do território, um grupo de artesanato ou
uma festa com a comunidade em comemoração a determinada agenda da saúde
(como, por exemplo, o “Setembro Amarelo” ou “Outubro Rosa”), estão realizando
uma ação de promoção em saúde mental.

Como citamos anteriormente, esses espaços podem ocorrer nas reuniões de


matriciamento. As necessidades das equipes devem ser sinalizadas e levantadas
ou pelas próprias equipes ou percebidas pelos profissionais especializados. Com-
preender fenômenos novos ou específicos pode auxiliar a equipe a conduzir para
maior resolutividade no cuidado.

O espaço de acolhimento deve ser entendido como espaço de cuidado para o


sofrimento psíquico, pacientes com transtornos mentais devem ser apoiados pelas
equipes de ESF na sua inserção social na sua comunidade, na adesão à terapêutica
medicamentosa, nos cuidados clínicos, entre outros.

INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA


EM SAÚDE

Os profissionais da Atenção Primária, pela própria característica de seu traba-


lho, como espaço de cuidado longitudinal de usuários, desenvolvimento de traba-
lho territorial que favorece o acesso e o vínculo da população, possuem grandes
possibilidades de desenvolvimento de vínculo com a população adscrita. A cons-
trução dessa relação de uma maneira forte e estruturada por si só é terapêutica.

104
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

De fato, as intervenções terapêuticas na APS reduzem o sofrimento emocional,


aumentam a capacidade de enfrentamento das situações estressoras, aumentam
a autoestima e resiliência (CHIAVERINI, 2011).

Pilares da Ação Terapêutica do Vínculo (extraído do “Guia prático de


matriciamento em saúde mental”, de 2011)

O acolhimento – estabelece o vínculo e permite o cuidado.

A escuta – permite o desabafo (denominado catarse em termos psicológi-


cos) e cria espaços para o paciente refletir sobre seu sofrimento e suas causas.

O suporte – representa o continente para os sentimentos envolvidos,


reforçando a segurança daquele que sofre, empoderando-o na busca de so-
luções para seus problemas.

O esclarecimento – desfaz fantasias e aumenta informação, reduzindo a


ansiedade e a depressão. Facilita a reflexão e permite uma reestruturação do
pensamento com repercussões nos sintomas emocionais e até mesmo físicos.

Como acolher o paciente que chega às unidades da ESF? (extraído do


“Guia prático de matriciamento em saúde mental”, de 2011)

• Ouvir as queixas apresentadas sem menosprezá-las, nem considerar


que o paciente está inventando esses sintomas. Os sintomas existem, ape-
nas são causados por mecanismos fisiopatológicos de origem emocional.

• Examinar o paciente para verificar possível patologia orgânica e tran-


quilizá-lo sobre esse aspecto.

• Conversar com o paciente sobre sua vida naquele momento.

• Perguntar o que o paciente acha que está causando seus sintomas e


se ele relaciona esses sintomas com o que está ocorrendo em sua vida.

• Examinar psiquicamente o paciente para confirmar o grau de gravida-


de de seu sofrimento emocional.

• Conversar com ele sobre como poderia ser apoiado para superar seus
problemas na vida.

105
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

REATRIBUIÇÃO DE SINTOMAS SOMÁTICOS SEM EXPLICA-


ÇÃO MÉDICA

Reatribuição refere-se ao processo de abordagem de pacientes com sofrimen-


to psíquico ou transtornos mentais que procuram o serviço, no caso a ESF, com
sintomas físicos que geralmente não são explicados pelos resultados de exames
ou intervenções medicamentosas.

Essas queixas desviam o foco do atendimento para solicitação de exames com


vistas à investigação de doenças clínicas, quando, na verdade, representam uma
forma de apresentar o sofrimento psíquico de uma maneira difusa, com sintomas
mistos de ansiedade e depressão. Podem representar, assim, uma barreira para o
cuidado do sofrimento psíquico.

Nesse sentido, o primeiro passo é a construção de uma conexão entre as quei-


xas somáticas e o sofrimento psíquico, o que chamamos de reatribuição, uma vez
que o paciente entenda essa conexão, a abordagem, a elaboração e a resolução de
seus problemas psicossociais tornam-se o objetivo de seu tratamento e cuidado,
em vez das queixas “sem explicação”. É importante sinalizar que o processo de rea-
tribuição não ocorrerá em um único atendimento, mas sim ao longo dos encontros
com aquele sujeito.

Etapas da terapia de reatribuição (extraído do “Guia prático de matri-


ciamento em saúde mental”, de 2011)

Sentindo-se compreendido – fazer anamnese ampliada e exame físico


focado na queixa, com valorização das crenças da pessoa.

Ampliando a agenda – dar feedback à pessoa, com recodificação dos


sintomas e vinculação desses com eventos vitais e/ou psicológicos.

Fazendo o vínculo – construir modelos explicativos que façam sentido


para a pessoa.

Negociando o tratamento – pactuar, em conjunto com a pessoa, um


projeto terapêutico ampliado.

106
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

TERAPIA DE SOLUÇÃO DE PROBLEMAS (TSP)

É uma técnica psicoterápica do grupo das terapias cognitivo-comportamen-


tais para estresse da vida cotidiana, sendo de fácil e rápida aplicação, sem efei-
tos colaterais. Não está indicada para ser utilizada com pacientes com transtornos
mentais severos. Poderá acontecer em encontros semanais (de 4 a 6 encontros),
podendo ocorrer de forma individual ou em grupos, sendo este último com bons
resultados, por permitir a troca de experiência sobre experiências comuns entre as
pessoas, com possibilidade de formação de rede de apoio entre os membros do
grupo.

A terapia de solução de problemas tem como objetivos principais (CHIAVERINI, 2011):

• ajudar o paciente a identificar problemas ou conflitos como uma cau-


sa de sofrimento emocional;

• ensiná-lo a reconhecer os recursos que possui para resolver as suas di-


ficuldades, aumentando a sensação de controle com as circunstâncias
negativas;

• ensinar às pessoas um método para apoiá-las na resolução de proble-


mas futuros.

É uma terapia indicada para as seguintes situações associadas a transtornos


mentais comuns:

9 perda real ou temida (propriedade, status, relacionamentos etc.);

9 adoecimento físico;

9 dificuldades nas relações conjugais ou interpessoais;

9 problemas de trabalho ou estudo;

9 adaptação às situações de transtorno mental ou problema psicológico.

107
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Etapas da metodologia de terapia de solução de problemas (extraído


do “Guia prático de matriciamento em saúde mental”, de 2011)

1. Identificar a necessidade de aplicabilidade – diagnóstico do trans-


torno mental e proposta de tratamento.

2. Explicar o tratamento – contrato terapêutico e sua metodologia.

3. Listar e eleger problemas – o paciente aponta problemas, que são


agrupados por categorias, como pessoal, interpessoal, familiar, saúde, finan-
ceiro, profissional. Elege-se o problema prioritário, que então passa a ser di-
vidido em problemas “menores”.

4. Pensar em metas alcançáveis – discussão da exequibilidade das me-


tas trazidas pela pessoa, relacionadas ao problema eleito.

5. Gerar soluções – identificação de meios para alcançar as metas, com


base na realidade da pessoa. Quanto mais soluções, melhor.

6. Eleger uma solução – reflexão sobre prós e contras das soluções le-
vantadas.

7. Colocar solução em prática – criação de plano de ação para efetivar


a solução eleita.

8. Avaliar e repetir o ciclo – avaliar o progresso obtido, evitando-se vi-


sões negativas com crítica a soluções do tipo “tudo ou nada”.

TERAPIA INTERPESSOAL BREVE (TIP)

A terapia interpessoal breve (TIP) baseia-se num modelo biopsicossocial para


a compreensão do sofrimento emocional, tendo como objetivo a diminuição dos
sintomas psíquicos que interferem na socialização da pessoa, reestruturando o
funcionamento interpessoal por meio do trabalho em focos determinados nos pri-
meiros encontros da terapia (CHIAVERINI, 2011).

108
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Os focos da terapia interpessoal breve são determinados junto ao indivíduo e


encontram-se em quatro áreas de problemas interpessoais:

9 luto: associado a perdas;

9 disputas interpessoais: acentuam as dificuldades em desenvolver vín-


culos de confiança;

9 transição de papéis: envolve situações de mudança que podem ter


sido ocasionadas por situações de rompimento dos papéis após um
trauma;

9 sensibilidade interpessoal: os sintomas intrusivos ou de evitação rom-


pem o funcionamento interpessoal, levam a interações problemáticas
ligadas a uma vulnerabilidade interpessoal anterior ao adoecimento.

Fases da terapia interpessoal breve (extraído do “Guia prático de matri-


ciamento em saúde mental”, de 2011)

Fase inicial – um ou dois encontros para levantar a história do sofrimen-


to psíquico/emocional, realizar um inventário interpessoal, fazer uma psico-
educação e determinar o foco da intervenção.

Fase intermediária – cinco a oito encontros em que o indivíduo e o pro-


fissional mantêm foco na área interpessoal e nos quais se detectam proble-
mas com a finalidade de melhorar o funcionamento interpessoal que de-
sencadeia ou mantém o sofrimento.

Fase final – um ou dois encontros destinados ao término da interven-


ção, em que é feito um levantamento dos progressos e mudanças ocorridos.
É um momento de consolidação de ganhos, em que se discutem estraté-
gias e cuidados de prevenção contra problemas futuros.

109
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

TERAPIA COMUNITÁRIA (TC)

É um espaço comunitário em que se procura compartilhar experiências de


vida e sabedorias de forma horizontal e circular. Cada um torna-se terapeuta de
si mesmo, com base na escuta das histórias de vida que ali são relatadas. Todos
tornam-se corresponsáveis na busca de soluções e superação dos desafios do coti-
diano, em um ambiente acolhedor e caloroso (BARRETO, 2005).

A terapia comunitária (TC) pode ocorrer em qualquer espaço físico em que as


pessoas tenham condições de se reunir e conversar: UBS, escolas, praças, casas dos
usuários etc. Para tanto, é necessária apenas a presença de um ou mais terapeutas
comunitários com formação. Trata-se de um grupo aberto, no qual cada partici-
pante terá seu aproveitamento pessoal e poderá estabelecer ou fortalecer sua rede
de apoio. É fundamental que você, profissional de saúde, saiba onde estão esses
profissionais com formação para que possam trocar experiências, vivenciar esse
espaço e solicitar formação para a gestão.

Poderá estar nesse espaço qualquer usuário/cidadão com algum sofrimento e/ou
transtorno mental.

Os objetivos da terapia comunitária são (CHIAVERINI, 2011):

9 reforçar a dinâmica interna de cada um, para que possa descobrir seus
valores, suas potencialidades, de tornar-se mais autônomo e menos
dependente;

9 reforçar a autoestima individual e coletiva;

9 valorizar o papel da família e da rede de relações;

9 valorizar todas as práticas culturais;

9 suscitar, em cada pessoa, família e grupo social, o sentimento de união;

9 identificar-se com seus valores culturais e tornar possível a comunica-


ção entre as diferentes formas do “saber popular” e “saber científico”.

110
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Etapas da terapia comunitária (extraído do “Guia prático de matricia-


mento em saúde mental”, de 2011)

1. Acolhimento – momento de apresentação individual e das cinco regras.

 Fazer silêncio para ouvir quem está falando.

 Falar da própria experiência, utilizando a primeira pessoa do singular.

 Evitar dar conselhos, fazer discursos ou sermões.

 Cantar músicas conhecidas, contar piadas e histórias ou citar pro-


vérbios relativos ao tema do dia.

 Guardar segredo (comum em comunidades violentas).

2. Escolha do tema – as pessoas apresentam as questões e os temas so-


bre os quais querem falar. Vota-se o tema a ser abordado no dia.

3. Contextualização – momento em que o participante, com o tema es-


colhido, conta sua história. O grupo faz perguntas.

4. Problematização – o mote (questão-chave para reflexão) do dia, rela-


cionado ao tema, é jogado para o grupo.

5. Rituais de agregação e conotação positiva – com o grupo unido,


cada integrante verbaliza o que mais o tocou em relação às histórias contadas.

6. Avaliação – feita entre os terapeutas comunitários, no caso de haver


mais um terapeuta comunitário na roda.

INTERVENÇÃO BREVE PARA DEPENDÊNCIAS QUÍMICAS

A intervenção breve tem a característica de ser objetiva, com tempo determina-


do e focada na autonomia das pessoas. Pode ser realizada por profissionais, como
médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes sociais, psicólogos e
até agentes de saúde que tenham formação específica para tal.

111
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Seus objetivos principais são a prevenção primária (impedir ou retardar o início


do consumo de álcool e outras drogas) e a prevenção secundária (avaliar o padrão
de consumo e evitar sua progressão, bem como minimizar os prejuízos relaciona-
dos ao seu uso).

Passos do processo da intervenção breve (extraído do “Guia prático de


matriciamento em saúde mental”, de 2011)

1. Avaliação do uso de substâncias e devolutiva – aplicação de instru-


mentos padronizados (CAGE, ASSIST e teste de Fagerström), após identificar
a exposição ao álcool e a outras drogas nas pessoas que buscam os serviços
de saúde.

2. Responsabilidades e metas – devolutiva e negociação conforme pa-


drão de uso encontrado no primeiro passo. Com isso, faz-se a responsabiliza-
ção pelas escolhas e suas possíveis consequências.

3. Aconselhamento – informações claras e sem preconceito sobre os ris-


cos do uso das substâncias, além da vinculação dos problemas atuais viven-
ciados e o padrão de uso.

4. Estratégias para mudança de comportamento – identificação das


situações de uso, fatores motivacionais que favorecem o consumo, pensan-
do-se em mudanças de práticas e rotinas.

5. Empatia – disposição para ouvir e disponibilidade para continuar a


discutir o assunto, ainda que em outro momento, evitando comportamento
de confrontamento ou agressivo em relação à pessoa e ao uso da substân-
cia, de modo a fortalecer o vínculo, que é peça-chave na abordagem.

6. Autoeficácia – encorajamento da pessoa para que se sinta no autocon-


trole, com confiança nos recursos de que dispõe (inclusive a equipe de saúde).

112
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

OUTRAS TERAPIAS COGNITIVO-COMPORTAMENTAIS:


TERAPIA DE ATIVAÇÃO

Na prática de cuidados às pessoas em sofrimento psíquico ou transtorno men-


tal, os profissionais de saúde da atenção primária devem incentivá-los à prática de
atividades prazerosas. É muito comum uma pessoa em sofrimento abandonar ro-
tinas que costumavam trazer-lhe satisfação, prazer e tranquilidade, como ativida-
des simples de jardinagem, cozinha, leitura, prática religiosa e esportes, por exem-
plo. A essa metodologia de incentivo e apoio à retomada de atividades prazerosas
dá-se o nome de terapia de ativação.

Durante os atendimentos individuais ou as atividades coletivas, é importante


que as pessoas sejam questionadas sobre o que costumavam fazer e o que lhes
trazia prazer. Daí o incentivo à retomada dessas práticas, por meio de planejamen-
to e compromisso consigo mesmo. Essa atividade deve ser feita considerando o
estado motivacional da pessoa e a sua realidade, para não gerar muita expectativa
e possível frustração (CHIAVERINI, 2011).

ABORDAGEM FAMILIAR

Todas as pessoas de uma família, por


exemplo, se influenciam mutuamente
e, ao mesmo tempo, têm certo grau de
autonomia. O que acontece com um in-
fluencia todos e, dependendo do grau de
mudança desse indivíduo, é possível que
as funções familiares sejam modificadas,
tanto para a saúde quanto para a doença.

Nesse contexto, família pode ser defi-


nida como um sistema de indivíduos que
mantém consigo alguma relação de vín-
culo e compromissos necessários à sobrevivência, como alimentação, abrigo, pro-
teção, afeto e socialização, no todo ou em parte, sendo parentes consanguíneos ou
não (CHIAVERINI, 2011).

113
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O Ministério da Saúde (2017) preconiza que se considere família e o seu espaço


social como núcleo básico de abordagem no atendimento à saúde. Se tivermos
em conta que, na proposta da ESF, deve-se trabalhar nos níveis de prevenção, pro-
moção, tratamento e reabilitação, será necessário considerar que nenhum desses
níveis será plenamente atingido sem a abordagem familiar.

No livro “Terapia Familiar Médica”, McDaniel, Hepworth e Doherty (1999) des-


crevem cinco níveis de crescente complexidade no trabalho com as famílias. O
“Guia de matriciamento em saúde mental” (2011) faz a descrição deles, com pe-
quenas adaptações, e aponta ser possível instrumentalizar as ESF para atender às
famílias até o Nível 4.

Nível 1 – Ênfase mínima sobre a família

Este nível básico de envolvimento consiste em lidar com famílias apenas o ne-
cessário, por razões práticas ou legais, mas sem ver a comunicação com elas como
parte integrante do papel do profissional de saúde.

É o nível mais comum, resultado do foco predominante no modelo biomédico.

Nível 2 – Informações e aconselhamento contínuo

Base de conhecimentos

Exige, além da ênfase mínima sobre a família, o reconhecimento dos aspectos


psicossociais do relacionamento profissional de saúde-paciente, em especial a di-
mensão triangular dos relacionamentos humanos.

Desenvolvimento pessoal

Interesse e dedicação para trabalhar cooperativamente com os pacientes e


suas famílias.

Habilidades

1. Comunicar-se de forma clara e regular sobre as questões de saúde.

2. Estabelecer diálogo indagativo que permita identificar informações diag-


nósticas e de tratamento relevantes.

114
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

3. Fazer escuta atenta e participativa das dúvidas e preocupações dos mem-


bros da família.

4. Aconselhar sobre o modo de lidar com as necessidades médicas e de reabi-


litação dos pacientes.

5. Saber como canalizar a comunicação por meio de um ou dois membros-chave,


nos casos de famílias grandes ou que exigem muita atenção.

6. Diagnosticar disfunção familiar que interfira no tratamento e discutir com


o matriciador em saúde mental para definir a necessidade de encaminhamento
para terapia na atenção secundária.

Nível 3 – Sentimentos e apoio

Base de conhecimento

O ciclo de vida familiar e as reações ao estresse.

Desenvolvimento pessoal

Conscientização dos próprios sentimentos (contratransferência) no relaciona-


mento com o paciente e a família.

Habilidades

1. Estabelecer diálogo empático que permita clarificar os sentimentos e as


emoções relacionados ao quadro clínico do paciente e esclarecer sua adequação.
Por exemplo, sentir tristeza ou raiva é uma reação esperada e adequada em certos
casos.

2. Diagnosticar o nível de funcionalidade da família.

3. Estimular e valorizar a rede de suporte familiar na sua organização e funcio-


namento.

4. Adaptar a orientação clínica às necessidades, preocupações e aos sentimen-


tos da família.

5. Ter clareza sobre o diagnóstico da disfuncionalidade e da necessidade ou


não de encaminhamento para a atenção secundária.

115
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Nível 4 – Avaliação sistemática e intervenção planejada

Base de conhecimentos

Teoria dos sistemas e sistema familiar.

Desenvolvimento pessoal

Consciência da rede organizada sistemicamente, incluindo a própria participa-


ção, o triângulo terapêutico, o sistema de saúde, o sistema familiar e os sistemas
comunitários.

Habilidades

1. Envolver os membros da família em reuniões e/ou atividades planejadas,


mesmo aqueles com maiores dificuldades em participar.

2. Estruturar uma reunião com uma família com baixo fluxo de comunicação,
de tal modo que todos os membros tenham uma oportunidade de expressão.

3. Acompanhar continuamente o nível de funcionamento familiar, para avaliar


as intervenções efetuadas.

4. Apoiar os membros da família individualmente, sem menosprezar o conjun-


to familiar, evitando conluios.

5. Redefinir participativamente o que a família entende como o “seu” proble-


ma, de forma a contribuir para uma administração resolutiva.

6. Ajudar os membros da família a ver suas dificuldades e a desenvolver novas


formas de esforço cooperativo.

7. Ajudar os membros da família a gerar modos alternativos e mutuamente


aceitáveis de lidar com as dificuldades.

8. Ajudar a família a equilibrar seus esforços, calibrando seus vários papéis, per-
mitindo o apoio com o mínimo sacrifício da autonomia de qualquer um de seus
membros.

9. Identificar a disfunção familiar grave que exija um encaminhamento, escla-


recer a família sobre a proposta terapêutica e ser capaz de trabalhar em conjunto
com o terapeuta familiar.

116
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Nível 5 – Terapia familiar

Base de conhecimento

Sistema familiar e padrões pelos quais as famílias disfuncionais interagem com


profissionais e outros sistemas de cuidado à saúde.

Desenvolvimento pessoal

Capacidade de lidar com intensas emoções nas famílias e consigo mesmo e


de, com isso, manter (ou sendo ágil na recuperação) o equilíbrio no manejo tera-
pêutico.

Habilidades

A lista a seguir relaciona algumas habilidades fundamentais que diferenciam o


nível 5 de envolvimento da proposta de atendimento em nível primário.

1. Entrevistar famílias ou membros da família que são bastante difíceis de se


engajar.

2. Gerar e testar hipóteses sobre as dificuldades e os padrões interacionais da


família.

3. Ampliar o conflito na família para desvelar e lidar com impasses e conflitos


subjacentes.

4. Aliar-se estrategicamente a um membro da família contra outro, visando a


ampliar a funcionalidade familiar.

5. Lidar com a forte resistência da família a mudanças.

6. Negociar relacionamentos cooperativos com outros profissionais e outros


sistemas que estão trabalhando com a família, mesmo quando esses grupos man-
têm hostilidade uns com os outros.

117
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

AVALIAÇÃO EM SAÚDE MENTAL

Vamos iniciar este tópico problematizando o diagnóstico psiquiátrico. Nem to-


dos os conflitos e problemas são causados por um transtorno psiquiátrico. Escu-
tar, acolher o que o usuário está trazendo, dar tempo para fechar um diagnóstico
podem ser os melhores cuidados a ofertar aos usuários. Um diagnóstico pode ser
“um tiro no pé”, pois pode tornar-se uma forma de não lidar efetivamente com os
conflitos da vida cotidiana, como conflitos geracionais, problemas financeiros e so-
ciais. Lembre-se, por exemplo, de que nem todo choro é uma depressão!

Frances (2015), na introdução de seu livro sobre diagnósticos psiquiátricos, si-


naliza algumas dicas aos profissionais médicos, as quais podem ser aplicadas a
todos os profissionais que estão realizando uma escuta de uma pessoa que apre-
sente queixas de sofrimento mental. Fizemos uma adaptação que acreditamos ser
útil para uma primeira avaliação.

Quando um usuário chega a falar sobre seu sofrimento, pode estar


O relacionamento vem antes com medo maior de dividir isso com alguém que permanecer no
sofrimento. Mantenha a calma, escute. Acolha o sofrimento.

Torne o diagnóstico como


O diagnóstico tem de emergir da parceria entre profissional e usuário.
um trabalho de equipe

Equilibre perguntas abertas Alguns roteiros preexistentes podem auxiliar no diagnóstico, mas
com checklist podem ser cansativos, e até mesmo assustadores para o usuário.

A maioria das pessoas tem um ou mais sintomas de transtornos


psiquiátricos. Lembre-se de que um sintoma isolado não define
Importância da clínica um diagnóstico. E, depois, os sintomas devem causar sofrimento,
mesmo com um grupo de sintomas, o que se deve avaliar são os
sofrimentos grave e persistente.

Analise riscos e benefícios Pergunte-se o impacto desse diagnóstico, se tem maior ou menor
do diagnóstico benefício. E o tratamento? Qual o impacto na vida dessa pessoa?

O DSM “divide” o adoecimento ou sujeito em diversos pedaços, mas


o objetivo é facilitar o diagnóstico. A pessoa enquadrar-se em vários
Não interprete mal uma
diagnósticos não exige que ela tenha vários tratamentos diferentes,
comorbidade
mas é preciso compreender o núcleo do adoecimento: o que une
esses diagnósticos? E é esse o caminho a ser percorrido?

118
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Alguns diagnósticos demoram para ser conclusivos. Não tenha


pressa. Recorra ao matriciamento, a consultas compartilhadas,
Seja paciente
estudos de casos... utilize todos os recursos das equipes multidisci-
plinares e da intersetorialidade. Escute o seu usuário.

Reavalie seu diagnóstico, sua avaliação, amplie as informações


sobre o caso, lembre-se de que você faz parte de uma equipe e o
Teste constantemente seu usuário divide a sua história com todos os profissionais. As ACSs
julgamento podem ser fortes aliadas com informações que o usuário tenha
medo de falar ao médico(a) ou enfermeiro(a), ou até mesmo acredi-
te que não faz parte do diagnóstico.

Registre em prontuário o seu raciocínio para fechar o diagnóstico ou


Documente seu raciocínio
as hipóteses que levantou, em sigilo, se for necessário.

Lembre-se da importância Um diagnóstico psiquiátrico pode conduzir a vida do usuário para


do que está fazendo outros caminhos, estigmatizá-lo ou libertá-lo de um sofrimento.

Fonte: adaptação e complementação dos autores com base em Frances (2015).

Essas dicas são importantes para que possamos estar atentos ao receber nos-
sos usuários. É muito comum sintomas de transtornos mentais aparecerem em
consultas ou visitas domiciliares. Isso é observado por qualquer profissional da
equipe. É preciso estar atento, o tempo é nosso aliado. Ao longo do tempo, por
meio do acompanhamento longitudinal, os profissionais de saúde terão mais in-
formações para que encontrem as melhores condutas e modos de cuidar. Lembre-
-se de que o usuário precisa ser acolhido em seu sofrimento, e a escuta é a nossa
principal ferramenta.

Um recurso que pode auxiliar, mas não deve engessar a avaliação, é o cartão
Babel. Nesse cartão, temos um roteiro de avaliação para várias questões, como an-
siedade, risco de suicídio, depressão. Sugerimos que o imprima e deixe em local
acessível para que facilmente possa ser acessado durante uma consulta de avaliação.

E não se esqueça do que vimos até aqui: a discussão de casos pode nos ajudar
a ampliar as possibilidades de condução e acompanhamento deles. Muitas vezes,
podemos optar por não medicar e incluir o usuário em grupos de convivência e
lazer disponíveis na UBS, mas também no território, como grupo em centros co-
munitários, atividades na escola do bairro, grupos de convivência no CRAS ou em
outros equipamentos públicos ou do terceiro setor espalhados pela cidade.

119
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Algo que pode auxiliar o profissional é ter um roteiro pré-organizado para uma
avaliação diagnóstica.

Sugestão de roteiro de avaliação:

1. Queixa principal: aqui você sinaliza o que seu usuário relata inicialmente.
Essa queixa principal, ao longo da avaliação, poderá não ser o seu foco no planeja-
mento do cuidado, apesar disso, deverá estar incluída no roteiro, já que é o motivo
da busca do usuário ao serviço de saúde, sendo o que o traz importante sofrimen-
to. Por exemplo: o usuário pode queixar-se de irritabilidade ou insônia, não sendo
possível concluir um diagnóstico com essas informações, mas são sintomas impor-
tantes para compor o diagnóstico.

2. História da doença atual: questione, de forma detalhada, como os fatos


ocorreram, quantas vezes e com qual frequência. Se uma mãe se queixa de enu-
rese noturna por parte de seu filho, questione como é a rotina antes de ir para a
cama, se come, se bebe líquidos, se a criança é lembrada de urinar antes de dormir,
como ela se sente, como avalia que as outras pessoas percebem seu adoecimento,
entre outros.

3. História pessoal: dedique um tempo de qualidade para esse relato. Questio-


ne como estão as relações atuais com família, trabalho, escola, amigos. Quais ativi-
dades laborais e quais atividades de lazer são realizadas, com quem mora, como as
relações em casa estão, como está a questão financeira, etc.

4. História familiar: questione sobre a constituição familiar, presença ou au-


sência de filhos, de irmãs ou irmãos, presença ou não dos pais, informações sobre
as relações familiares.

5. História patológica pregressa: neste ponto, apenas relate doenças que o


usuário já teve ou está acompanhando, questione medicamentos usados atual-
mente ou que fez uso por algum tempo. Por exemplo: um paciente que tenha tra-
tado hipotireoidismo há algum tempo e abandonou tratamento pode estar com
sintomas depressivos, mas que a causa seja o agravo do quadro de hipotireoidis-
mo.

6. Exame psíquico: você vai observar durante todo o atendimento. O relato do


exame psíquico é algo único composto das observações realizadas ou questiona-
das. Os pontos a serem observados são:

120
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Apresentação: avaliação geral do usuário, a primeira impressão. Con-


siste em avaliar: aparência, atividade psicomotora, comportamento,
atitude diante do entrevistador e atividade verbal.

• Consciência: estados alterados de consciência podem indicar compro-


metimento neurológico. Avaliar se usuário é capaz ou não de integrar
acontecimentos, sustentação, coerência, pertinência das respostas do
entrevistado. Existência ou não de delirium, apresenta ou não rebaixa-
mento da consciência.

• Orientação: tempo, espaço, deslocamento, localização em estados


mais graves, desorientação do próprio corpo, autopsíquica e alopsíquica.

• Atenção: capacidade de manter atenção, avaliar hiper e hipovigilância.


Divide-se em vigilância (consciência sem foco, difusa, com atenção em
tudo ao redor) e tenacidade (capacidade de se concentrar num foco).

• Memória: relação com a vida do usuário presente, passado e futuro.


Avaliar memória abrange avaliar cinco fatores: percepção (como o usu-
ário percebe o ambiente), fixação, conservação (memória de curto e
longo prazo), evocação e reconhecimento.

• Inteligência: aqui não nos cabe fazer uma avaliação profunda e com
testes, se o usuário está dentro de um quadro de normalidade, é im-
portante compreender como a sua capacidade cognitiva interfere no
seu autocuidado e na realização das atividades práticas e instrumen-
tais de vida diária.

• Sensopercepção: o eu sensorialmente projetado, avaliar se as experi-


ências são reais, ilusórias ou alucinatórias. Alucinações podem ser au-
ditivas, auditivo-verbais, visuais, olfativas, gustativas, cenestésicas ou
cinestésicas.

• Pensamento: avalia-se o curso do pensamento se há ou não fuga de


ideias, intercepção ou bloqueio, prolixidade, descarrilamento ou pre-
servação do pensamento. Além de avaliarmos a forma, ou seja, como
o pensamento é expresso, pois ele liga as ideias às emoções. Conteúdo
do pensamento: as perturbações no conteúdo do pensamento estão
associadas a determinadas alterações, como obsessões, hipocondrias
e delírios. Delírio: alteração do pensamento (uma alteração do juízo), os
mais comuns são delírios persecutórios, sexuais, de grandeza e religiosos.

121
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Consciência do Eu: sentimento de unidade; sentimento de atividade:


consciência da própria ação; consciência da identidade: cisão sujeito-
-objeto; consciência do eu em relação ao meio e ao outro.

• Afetividade: preocupa-se como a relação entre o usuário e o que está


ocorrendo em sua vida e com seus sentimentos.

• Humor: mais superficial que a afetividade, como o usuário apresenta


seu humor em seu momento atual, pode-se dividir em: normotímico
(normal), hipertímico (exaltado), hipotímico (rebaixado), distímico (al-
terna o humor subitamente durante a entrevista).

• Psicomotricidade: avalia-se como o usuário apresenta-se em relação à


psicomotricidade durante a entrevista: normal, agitada, posturas este-
reotipadas, ecopraxia, automatismo, entre outras.

• Consciência do quadro apresentado: quanto o usuário consegue per-


ceber seu quadro atual.

Esses itens compõem uma só avaliação do paciente e não devem ser separa-
dos; compõem uma percepção geral dele. Foram separados aqui apenas como
apoio didático.

Abaixo, vejamos um quadro sobre uma avaliação geral.

Quadro 3 - Alterações comuns de exame psíquico.

Síndrome Maníaca/
Orgânica Demencial Depressiva Ansiosa Psicótica
Função Hipomaníaca
consciência Rebaixada Preservada Preservada Preservada Preservada Preservada
atenção
Reduzida Prejudicada Reduzida Reduzida Prejudicada Variável
voluntária
atenção
Reduzida Prejudicada Reduzida Aumentada Aumentada Variável
espontânea
Prejudicada/
memória Prejudicada Prejudicada Prejudicada Prejudicada Preservada
confabulações
orientação Desorientada Desorientada Preservada Variável Preservada Variável
pensamento
Negativo e Exaltado e ace- Desorganiza-
(conteúdo/ Confuso Empobrecido Acelerado
lento lerado do e delirante
forma)
linguagem Logorréia/
Negativa e Logorréia/ pres- Desorganiza-
(conteúdo/ Empobrecida Empobrecida preocupa-
lenta são de discurso da e delirante
forma) ções

122
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Síndrome Maníaca/
Orgânica Demencial Depressiva Ansiosa Psicótica
Função Hipomaníaca
Alegria ou Ansiedade, Variável ou
Afeto e Tristeza e de-
Variável Variável irritabilidade e medo, preo- humor deli-
humor pressão
exaltação cupações rante
Sensoper- Possíveis Possíveis alu- alucinações em alucinações em Sem altera- alucinações
cepção alucinações cinações casos graves casos graves ções variadas
Preservado
Juízo e Preservado (delí-
Prejudicado Variável (delírios se Preservado Delirante
crítica rios se grave)
grave)
psicomotrici-
Variável Variável Lentificação Aceleração Inquietação Variável
dade

Fonte: https://www.medicinanet.com.br.

7. Hipótese ou hipóteses diagnósticas: descrever sua hipótese inicial que de-


verá ou não ser confirmada ao longo do acompanhamento do usuário.

8. Conduta ou planejamento do cuidado: descrever quais condutas foram de-


finidas e quais condutas estarão incorporadas ao cuidado. Por exemplo: levar caso
para discussão em matriciamento, ligar para o CAPS, encaminhar usuário para
uma avaliação hospitalar, entre outras.

TRANSTORNOS MAIS COMUNS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA

IDEAÇÃO SUICIDA E TENTATIVA DE SUICÍDIO

Pensamentos, ideação suicida e tentativa de suicídio são eventos que tendem


a provocar conflitos e tensão nos profissionais de saúde, mas, para acolher usuários
que chegam com esses relatos, precisamos ficar atentos para não colocarmos nos-
sos juízos morais e de valor à frente da avaliação do sofrimento humano.

Alguns dados do Distrito Federal nos mostram o quão preocupantes são os


números de suicídio. Entre os anos de 2009 e 2021, ocorreram 1.869 óbitos, sendo
1.405 do sexo masculino e 464 do sexo feminino, destas 1.181 eram identificadas no
critério raça/cor como negras (pretas e pardas).

A APS tem um papel fundamental na prevenção do suicídio. Lembrando que


transtornos mentais tratamos, mas suicídio prevenimos. Estudos internacionais

123
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

indicam que 2/3 das pessoas que tentaram suicídio comunicaram a um amigo
ou familiar uma semana antes do ocorrido. Em alguns casos, é comum que outro
usuário traga a informação como um pedido de socorro a um amigo ou familiar.

Relato de caso

Uma adolescente de 16 anos chegou à unidade de saúde com queixa de


sintomas depressivos, como choro, desânimo, inapetência, insônia e perda
de interesse das atividades habituais, relatava também bastante dificuldade
em ir à escola. Sua mãe não entendia o motivo para estar dessa maneira.
Após avaliação da adolescente, observou-se comportamento de autolesão
provocada e sintomas depressivos intensos, além de ideação suicida.

A adolescente foi avaliada pela psicóloga do Nasf-AB em consulta com-


partilhada com a médica. Nessa consulta, foi pactuado com a usuária e fa-
mília que seria acompanhada pela ESF e Nasf-AB na unidade próxima à sua
casa. Com a continuidade dos atendimentos e estabelecimento de vínculo
entre a usuária e a psicóloga, a adolescente informa que outra amiga, resi-
dente em outro território, estava planejando suicídio e havia lhe comunica-
do, porém ela não sabia como ajudar e solicita à psicóloga que a auxilie.

Ficou acertado que a profissional entraria em contato com a equipe do


território para realizar busca ativa. Mas a adolescente solicita que não digam
que foi ela quem contou. Visando manter o vínculo, ficou acertado que a
psicóloga combinaria com a equipe de referência que o contato seria uma
avaliação geral.

E foi isso que ocorreu. A adolescente que havia comunicado à amiga o


planejamento suicida respondeu prontamente ao contato da equipe de re-
ferência e seguiu em atendimento.

Esse poderia ser um caso isolado, mas não é. O pedido de apoio de nos-
sos usuários pode vir de várias fontes de informação, e não podemos des-
considerar a importância da APS no contato direto com as pessoas que vi-
vem em nossos territórios.

Segundo documento publicado pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de


Janeiro (2016), 45% das pessoas que tentaram suicídio tiveram consulta com pro-

124
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

fissional da APS 1 mês antes da tentativa. Isso nos coloca em alerta e vigilantes aos
usuários que possam estar em risco.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em publicação de 2016, os


sinais a que devemos ficar atentos são:

1. Comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com família e amigos.

2. Doença psiquiátrica.

3. Alcoolismo.

4. Ansiedade ou pânico.

5. Mudança na personalidade, irritabilidade, pessimismo, depressão ou apatia.

6. Mudança no hábito alimentar e de sono.

7. Tentativa de suicídio anterior.

8. Odiar-se, sentimento de culpa, de se sentir sem valor ou com vergonha.

9. Uma perda recente importante – morte, divórcio, separação, etc.

10. História familiar de suicídio.

11. Desejo súbito de concluir os afazeres pessoais, organizar documentos, escre-


ver um testamento, etc.

12. Sentimentos de solidão, impotência, desesperança.

13. Cartas de despedida.

14. Doença física.

15. Menção repetida de morte ou suicídio.

Outras questões presentes nos questionamentos dos profissionais são como


abordar o assunto e quando abordar. A primeira dica é criar um clima de acolhi-
mento com garantia de proteção ao usuário, deixá-lo à vontade pode favorecer
que ele consiga expressar seus pensamentos. Faça perguntas claras e objetivas,
mas obedecendo a uma graduação de agravos.

A seguir, colocaremos uma lista de sugestão com sequência de perguntas dis-


ponibilizada no guia da OMS sobre suicídio. Caso você fique com dúvidas ou a
suspeita ainda se mantenha presente, agende outro atendimento, para poder criar
gradativamente uma relação de confiança.

125
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A OMS (2016) sugere:

Quando a equipe de saúde primária suspeita que exista a possibilidade de


um comportamento suicida, os seguintes aspectos necessitam ser avaliados:

• Estado mental atual e pensamentos sobre morte e suicídio.

• Plano suicida atual – quão preparada a pessoa está e quão cedo o ato está
para ser realizado.

• Sistema de apoio social da pessoa (família, amigos, etc.).

Como perguntar?

É comum o profissional ter dúvidas de como perguntar sobre o suicídio, mui-


tas vezes a dúvida não está nem tanto em como perguntar, mas o que deve ser
feito caso confirme-se a suspeita. Lembre-se de que o trabalho na APS não é soli-
tário, mas composto de vários profissionais, inclusive os profissionais do Nasf-AB.
Todos podem auxiliar no cuidado de todas as formas de adoecimento, e não seria
diferente nos casos de ideação suicida e/ou tentativa de suicídio.

• Você deve obedecer a um critério de agravamento de sinais e sintomas:

Como você se sente?

Você se sente triste?

Você sente que ninguém se preocupa com você?

Você sente que a vida não vale mais a pena ser vivida?

Você sente como se estivesse cometendo suicídio?

Você tem desejo, pensamentos ou intenção de tirar a sua vida?

• Se sim, faça um rastreio de risco:

No cartão Babel, temos o seguinte roteiro para avaliação do risco de suicídio:

1. Você pensou que seria melhor estar morto? (1)

2. Você quer fazer mal a si mesmo? (2)

126
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

3. Você tem pensado em se suicidar? (6)

4. Você tem planejado uma maneira de se suicidar? (10)

5. Você tentou o suicídio (recentemente)? (10)

6. Você já fez alguma tentativa de suicídio (em sua vida)? (4)

Risco de suicídio (somar os pontos)

1-5: leve; 6-9: moderado; 10-33: elevado

Casos com planejamento devem ser aprofundados se tem forma, data, local.

Os usuários com ideações suicidas necessitarão de apoio e suporte familiar ou


de amigos próximos. Deve-se chamar um familiar ou, na ausência deste, algum
amigo, que ficará responsável por esse usuário em sua casa ou o auxiliará a procu-
rar ajuda em outro serviço, como o CAPS, pronto-socorro ou hospital com referên-
cia para urgências e emergências psiquiátricas.

Casos leves a moderados podem ser acompanhados na Unidade de Saúde,


mas devemos intensificar os atendimentos, e a recomendação é reagendar aten-
dimento semanal ou até mesmo com menor intervalo de atendimento, a ser ava-
liado conforme gravidade e intensidade dos pensamentos. É um usuário que a
equipe precisa ficar atenta e monitorar por meio de visitas domiciliares, contatos
telefônicos e atendimentos individuais frequentes.
Mitos sobre comportamento suicida.

FALSO. Simplesmente perguntar aos pacientes se estes pensam


MITO 1. Se um profissional em fazer-se mal não causa comportamento suicida, ao contrário,
falar com o paciente sobre protege. Na verdade, reconhecer que o estado emocional do indi-
suicídio, o profissional está víduo é real e conversar sobre a situação induzida pelo estresse
dando a ideia de suicídio à são componentes necessários à redução da ideação suicida. Uma
pessoa. entrevista de avaliação na suspeita de risco costuma produzir alívio
emocional transitório e aumento da confiança na equipe.

MITO 2. As pessoas que falam


FALSO. Ao contrário do que se pensa, quando um indivíduo falar
sobre o suicídio não farão
de ideação, de intenção ou de um plano suicida, deve ser levado a
mal a si próprias, pois querem
sério.
apenas chamar a atenção.

127
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

FALSO. A maioria dos casos acontece de modo premeditado, e as


pessoas deram avisos de suas intenções anteriormente. A impul-
MITO 3. O suicídio é sempre
sividade pode e deve ser adequadamente avaliada por escalas
impulsivo e acontece sem
clinicas e ocorre em adolescentes em sofrimento psíquico, abuso
aviso.
de álcool e estimulantes, transtorno de personalidade e transtorno
bipolar do humor.

FALSO. A maioria das pessoas nessa situação experimenta sen-


MITO 4. Os indivíduos suici- timentos ambivalentes sobre o suicídio e fica em dúvida se deve
das querem mesmo morrer ou fazê-lo, considerando motivos para morrer e para viver. Muitas
estão decididos a matar-se. vezes já relataram ou deram pistas desses pensamentos a uma ou
mais pessoas.

FALSO. Na verdade, um dos períodos mais perigosos é logo após


MITO 5. Quando um indivíduo
a crise, ou quando a pessoa está no hospital, na sequência de uma
mostra sinais de melhoria ou
tentativa. Deve-se atentar para a semana (e o mês) que se segue
sobrevive a uma tentativa de
à alta do hospital, pois há perigo de o paciente tentar novamente o
suicídio, está fora de perigo.
autoextermínio ou fazer mal a si.

FALSO. Nem todos os suicídios podem ser associados à heredi-


MITO 6. O suicídio é sempre tariedade, no entanto a história familiar de suicídio é um fator de
hereditário. risco importante para o comportamento suicida, particularmente em
famílias em que a depressão é comum.

FALSO. O comportamento suicida indica que a pessoa enfrenta


algum sofrimento emocional ou dificuldade. A presença do risco
MITO 7. Os indivíduos que de suicídio não implica a existência de um agravo à saúde mental.
tentam ou cometem suicídio Apesar de frequente, essa associação não deve ser sobrestimada.
têm sempre algum agravo à A proporção relativa dessas perturbações varia de lugar para lugar
saúde mental. e há casos em que nenhuma perturbação mental foi detectada, e
sim situações outras de vulnerabilidade pessoal, econômica e/ou
social.

FALSO. O suicídio pode acontecer a qualquer pessoas e encontra-


MITO 8. O suicídio só acon-
-se em todos os tipos de sistemas sociais e de famílias. Por isso, é
tece “àqueles outros tipos de
fundamental investir em prevenção e identificar situações possíveis
pessoas”, não a nós.
de vulnerabilidade, investindo em tratamentos precoces.

FALSO. As tentativas de suicídio são mais prevalentes quan-


Mito 9. Após uma pessoa do há tentativas de suicídio anteriores, por isso as pessoas que
tentar cometer suicídio uma efetuaram essas tentativas necessitam de avaliação cuidadora,
vez, nunca voltará a tentar juntamente ao tratamento e acompanhamento regular por meio
novamente. de contato telefônico, visita domiciliar ou estratégias de cuidado
permanente.

Fonte: Rio de Janeiro, 2016, p. 15-16.

128
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Para saber mais (disponíveis na biblioteca do curso):

Nota Informativa 1271/2014


Guia suicídio OMS
Guia suicídio cidade Rio de Janeiro

PROBLEMAS COM O SONO

As queixas acerca da dificuldade de iniciar o sono, despertar na madrugada


ou sono fragmentado (popularmente conhecido como sono do ansioso) em vários
momentos são comuns na APS, em pacientes com ou sem outros sintomas de
transtornos psiquiátricos. Estudos indicam que o número de pessoas que recorre
a serviços de saúde e relata tal dificuldade é relativamente pequeno, e, com isso,
temos subnotificação desses dados.

No Brasil, temos uma prevalência entre 15% e 27% da população que relatam
tal agravo. Em Brasília, 10% das queixas atendidas pela APS no último ano foram
sobre problemas com o sono, é a terceira queixa de saúde mental segundo dados
disponíveis no SISAB do DF, dados referentes a outubro de 2020 e novembro 2021.

Para Müller e Guimarães (2007), os problemas de sono podem atingir três ní-
veis de consequências: no primeiro nível (curto prazo), são prejuízos biológicos e
agravos de saúde preexistentes; no segundo nível (médio prazo), as consequências
atingem as atividades da vida diária, como trabalho, dirigir, acidentes de trânsito
e estudo; no terceiro nível (longo prazo), são consequências como sequelas de aci-
dentes, rompimento de relacionamento, perda de emprego, mas esse nível tem
poucos estudos comprovados.

Segundo informações disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), do Mi-


nistério da Saúde, as principais queixas relacionadas ao sono são: insônia, apneia
obstrutiva do sono e síndrome das pernas inquietas.

129
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

APNEIA OBSTRUTIVA DO SONO

A apneia obstrutiva do sono caracteriza-se pela obstrução da via aérea no nível


da garganta durante o sono, levando a uma parada da respiração, que dura, em
média, 20 segundos.

INSÔNIA

A insônia é a dificuldade de iniciar o sono, mantê-lo continuamente durante a


noite ou o despertar antes do horário desejado.

Dica!

As equipes de ESF juntamente com as equipes do Nasf-AB podem


avaliar atividades de acompanhamento, avaliação e monitoramen-
to dos casos de usuários com problemas relacionados ao sono,
realizando atividades coletivas, como grupos de convivência com
atividades de relaxamento, atividades físicas, orientações alimen-
tares, objetivando a educação em saúde e evitando a medicaliza-
ção do sintoma.

DICAS DE HIGIENE DO SONO

Vejamos dicas do material produzido pela equipe multidisciplinar de Saúde


Mental do município de Joinville/SC, UBS Edla Jordan, ano de 2019, de distribuição
interna:

1. Mantenha uma rotina de sono

É importante criar uma rotina de sono. Procure deitar-se e levantar-se sem-


pre no mesmo horário todos os dias, incluindo finais de semana, feriados
e férias, criar esse hábito permite que seu organismo reconheça o relógio
interno e espere pelo momento de dormir.

130
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

2. Evite o consumo de bebidas com cafeína

Bebidas com cafeína, tal como café, chás ou refrigerantes à base de cola são
estimulantes e, por isso, podem mantê-lo acordado, evite consumir esse tipo
de produto por pelo menos quatro horas antes de se deitar.

3. Evite o consumo de bebidas alcoólicas

Logo após consumidas, as bebidas alcóolicas podem ajudá-lo a dormir; no


entanto, algumas horas depois, agem como estimulantes, aumentando a
frequência de despertares durante a noite e piorando a qualidade do sono
em geral.

4. Não vá para cama a não ser que esteja com sono

Espere estar com sono para deitar-se. Se você não adormecer após 20 minu-
tos deitado, saia da cama, vá até a sala, leia um livro e ocupe-se até sentir-se
sonolento o suficiente para dormir.

5. Crie no seu quarto um ambiente que induza ao sono

Faça do seu quarto um ambiente relaxante e adequado ao sono: mante-


nha-o escuro, em silêncio, com temperatura agradável e roupas de cama
confortáveis. Para isso, faça uso de cortinas escuras, tampões de ouvido e
mantenha uma boa ventilação.

É importante também que o quarto seja um ambiente destinado apenas ao


descanso; sendo assim, deixe fora dele TV, computador e materiais relacio-
nados ao trabalho.

6. Não fique monitorando o relógio

O hábito de checar as horas a todo momento pode influenciar negativa-


mente na sua tentativa de adormecer, aumentando o estresse, mantenha
os relógios longe de você e de sua cama.

7. Evite tirar sonecas

Evitar as sonecas ao longo do dia permitirá que esteja cansado e durma me-
lhor durante a noite.

131
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

8. Reduza o consumo de alimentos pesados à noite

Comer alimentos gordurosos e pesados antes de se deitar pode ser indiges-


to e ocasionar insônia. Tente jantar algumas horas antes de dormir e dê pre-
ferência a alimentos leves. Ficar sem se alimentar antes de dormir também
pode ser prejudicial para o sono.

9. Crie uma rotina antes de dormir

Atividades relaxantes que precedem o momento de dormir podem ser be-


néficas para a qualidade do sono. Tente tomar um banho, ler um livro, as-
sistir à sua série favorita ou praticar exercícios relaxantes antes de se deitar.
Mas permaneça longe de aparelhos eletrônicos por pelo menos 30 minutos
antes de se deitar.

10. Controle a ingestão de líquido

O consumo adequado de líquido evitará que você desperte por sede ou para
ir ao banheiro.

11. Evite praticar atividades físicas intensas antes de dormir

A prática de atividades físicas é importante para manter o corpo e a mente


em alerta, porém, quando realizada antes de dormir, pode atrapalhar o pro-
cesso de adormecimento.

Tente praticar atividades físicas pelo menos 3 horas antes de se deitar ou


pela manhã. Essa rotina te ajudará a adormecer e a melhorar a qualidade
do sono.

12. Tente dormir no mínimo 7 horas

Permita-se dormir pelo menos 7 horas por noite todos os dias, adquirir o
costume de dormir bem levará a um sono melhor.

13. Abuse da luz natural

A luz natural é um aliado do seu relógio biológico, por isso deixe que a luz
da manhã entre no seu quarto, faça pequenas pausas no trabalho para se

132
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

expor a ela. Em contrapartida, evite se expor a ambientes muito iluminados


à noite.

ANSIEDADE

A ansiedade é a queixa de saúde mental mais comum na APS no DF, no último


ano, segundo o SISAB. Sabemos que ela pode ser um sintoma para várias situa-
ções de sofrimento mental e/ou físico, ou pode compor sintomas de um transtorno
mental (transtorno de ansiedade generalizada, transtorno obsessivo compulsivo,
entre outros). Para pacientes com doenças crônicas, a ansiedade pode representar
um fator de risco para o agravamento do quadro crônico.

Ansiedade pode ser um evento natural do corpo ocasionado por mudanças


boas ou ruins, definido como sentimentos ligados a preocupações, medos, irritabi-
lidade, nervosismo e angústia. Pode tornar-se uma patologia a partir do momento
que causa prejuízo no dia a dia do usuário que relata os sintomas ansiosos. Lem-
bre-se: Nem tudo é patológico.

A ansiedade pode ser um sentimento esperado em momentos da vida, como


processos de luto recentes, perda de emprego, separações, mudanças de etapas
da vida, como a passagem da infância para adolescência ou da vida adulta para a
terceira idade. Alguns eventos podem ser geradores de ansiedade, como o proces-
so de gestação e as expectativas relacionadas ao bebê, à sua condição de saúde ao
nascimento, ao conhecimento sobre o sexo dele, os resultados dos exames do pré-
-natal, entre outros, ou um processo de adoecimento, ou processo de diagnóstico
de uma doença crônica, ou infectocontagiosa, etc.

DEFINIÇÃO DO TRANSTORNO ANSIOSO

Segundo Frances (2015), ansiedade e preocupação excessivas (expectativa


apreensiva) ocorrem na maioria dos dias pelo período mínimo de seis meses. O
indivíduo considera difícil controlar a preocupação.

A ansiedade e a preocupação estão associadas a três ou mais dos seguintes


sintomas:

1. inquietação;

133
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

2. fatigabilidade;

3. dificuldade em concentrar-se ou sensações de branco na mente;

4. irritabilidade;

5. tensão muscular;

6. alteração no sono;

7. o foco da ansiedade ou preocupação não está restrito a aspectos específicos


de um outro transtorno mental.

Proposta de intervenção:

Primeiras reflexões:

• Todas as atividades propostas no tópico de matriciamento podem ser


aliadas eficazes para o trabalho com os usuários que tenham queixa
de ansiedade.

• As primeiras intervenções devem ser atividades envolvendo a psico-


educação, e não o foco na medicação, por esse fato é fundamental
ficarmos atentos a quadros leves de ansiedade.

Segundo documento publicado pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de


Janeiro (2016), divide-se em quatro etapas as intervenções para quadros de ansiedade:

A primeira intervenção ocorre logo após o diagnóstico, devendo ser sugeridas


atividades de psicoeducação, com envolvimento dos profissionais do Nasf-AB que
podem auxiliar com atividades físicas, relaxamento, alimentação, além do acom-
panhamento e monitoramento longitudinal dos usuários que apresentem quadro
de ansiedade leves.

O acompanhamento e o monitoramento dos casos são importantes, pois, se


não obtivermos resultado com redução do sofrimento do usuário com processos
de psicoeducação e orientações, será preciso avançar na proposta terapêutica com
oferta de outros recursos, como intervenção psicossocial direta ao usuário. Nesse
momento, podemos pensar em grupos operacionais visando ao trabalho direto
sobre ansiedade. Sugerimos grupos estruturados com encontros planejados e tér-
mino predefinido.

134
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Em casos sem resposta satisfatória, o terceiro passo seria a escolha de psico-


terapia ou de tratamento farmacológico. E, em casos com maior complexidade e
sem resposta para as intervenções propostas inicialmente, sugere-se o encami-
nhamento para profissionais especializados, acompanhamento com psicotera-
peuta e psiquiatras, com a utilização de outros recursos farmacológicos.

135
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

BOA PRÁTICA!

Um caso de saúde mental em acompanhamento compartilhado

Senhora Luiza, 42 anos, chega à Unidade de Saúde acompanhada pelo compa-


nheiro, senhor Geraldo. Ele relata que a esposa não está bem, que só chora e não
consegue sair de casa. Ele pede que a esposa faça uma consulta com a médica,
pois estava muito assustado e preocupado com a situação dela.

A técnica de enfermagem Paula recebeu a usuária, escutou um breve relato


do esposo e a encaminhou para acolhimento com a enfermeira Patrícia. Nessa
consulta, a senhora Luiza só chora, não consegue conversar com a profissional,
apresenta olhar distante e triste, sendo esse o relato da enfermeira em prontuário.

Patrícia, com o consentimento da paciente, chamou o companheiro da se-


nhora Luiza para consulta a fim de obter maiores informações sobre o que estava
acontecendo. Ele relatou que a esposa está assim há um mês, que ela só chora,
que não consegue dormir e não consegue trabalhar. Relata que a esposa nunca foi
assim, que ela era feliz, que eles têm uma família boa e unida, informa que moram
há dez anos na cidade e que os demais familiares moram em outros municípios.
Relata que moravam na Bahia e vieram “tentar a vida” aqui. Há pouco mais de qua-
tro anos a mãe da senhora Luiza viera morar com eles, pois havia descoberto um
câncer muito agressivo, ela faleceu em pouco tempo que estava sob cuidado deles.

A esposa tem falado da mãe algumas vezes ainda de forma bem melancólica,
mas, como já tinha passado quatro anos da morte da sogra, o esposo não sabe se
isso tem alguma relação. Ele demonstra muita preocupação com a esposa e não
sabe o que fazer para ajudá-la. É descrito pela enfermeira como um homem pre-
ocupado com a esposa, atencioso, que parece ter muito afeto pela família, mas se
mostra muito assustado com tudo.

Patrícia explica para dona Luiza que irá encaminhá-la para atendimento com
a médica Andréia da área dela para que juntas possam definir quais as melhores
formas de cuidado. Dona Luiza sempre sinaliza com a cabeça que sim e não, ra-
ramente respondendo aos questionamentos de forma verbal. A enfermeira ques-
tiona se ela compreendia o que estava sendo planejado para o seu cuidado, ela
concorda e acena que sim.

136
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

A enfermeira, antes de encaminhar para consulta médica, repassa informa-


ções sobre o caso para a médica, fala que ficou preocupada com a usuária, que ela
chora, que não consegue falar o que está acontecendo e que tem um companhei-
ro que pode auxiliá-la.

Na consulta com a médica, a primeira conduta foi acolher a senhora Luiza e


explicar que outras pessoas também sentem-se tristes, que a vontade de chorar
não é algo que só ocorre com ela, mas que os motivos são sempre muito pessoais e
que, por isso, precisaria fazer algumas perguntas para ver como poderia ajudá-la. Se-
nhora Luiza escuta atentamente, chora em alguns momentos, mas sinaliza que sim.

Andréia (Médica): – A enfermeira Patrícia me falou que a senhora está muito


triste e o seu companheiro também. Ele também falou que a senhora está assim
há mais ou menos um mês. A senhora consegue me contar como está se sentindo
nesse tempo?

A usuária chora e começa a contar que sua mãe faleceu há quatro anos e que,
nos últimos tempos, ela não está mais “dando conta” da tristeza, que se sente triste
demais.

Com a continuidade do atendimento, fala para a médica que tem vontade de


morrer, mas que a família é a única coisa que a impede. A médica questiona se
neste momento ela estaria planejando alguma forma de tirar sua vida. Ela fala que
pensa muito sobre morrer, mas que não está planejando, apesar de ter medo do
que possa vir a fazer contra ela. Após avaliar melhor a senhora Luiza, Andréia (mé-
dica) entra em contato com profissional do CAPS para receber orientações e dis-
cutir o caso.

As orientações foram para observar melhor as questões da ideação suicida e


iniciar a medicação antidepressiva, manter atendimento frequente na unidade
e, caso tenha agravamento do caso, encaminhá-la ao CAPS para acolhimento. A
equipe do CAPS sugere uma avaliação da equipe do Nasf-AB e coloca o serviço à
disposição para acompanhar o caso.

O marido foi orientado com os cuidados necessários para pessoas com ideação
suicida, foi prescrita medicação para Luiza e agendado acolhimento para o dia se-
guinte com a psicóloga do Nasf-AB.

No dia seguinte, durante a consulta com a psicóloga do Nasf-AB, a senhora


Luiza apresentou comportamento parecido com os apresentados nas consultas

137
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

com a enfermeira e a médica. Ela chorou muito e relatou a morte da mãe, mas fa-
lou que seu pai também havia falecido há mais ou menos três meses. Ela não o via
desde os cinco anos e, após a morte de sua mãe, começou a procurá-lo; quando o
encontrou, ele já havia falecido. Luiza diz que gostaria de ter tido a oportunidade
de falar com ele e entender sobre a violência sexual que havia sofrido. Sentia-se
culpada, relatou alucinações visuais e auditivas com o pai, falou que o via na janela
do quarto todas as noites e, por isso, não conseguia dormir. Assim, acreditava que
ele vinha fazer o que havia prometido caso ela contasse para alguém sobre o abu-
so sexual. Tinha medo dele, mas acreditava que a morte dela seria a única forma de
acabar com esse sofrimento. Falava que os pensamentos de morte eram constan-
tes, principalmente à noite, quando tinha as “visões”. Relatou que nunca tinha tido
algo parecido, nunca tinha feito tratamento para agravos de saúde mental e que
ninguém jamais soube das violências sexuais que sofrera.

A psicóloga do Nasf-AB entrou em contato com o CAPS, que orientou encami-


nhar a usuária ao acolhimento no serviço. O marido foi orientado, confirmou que
a levaria, já que estava muito preocupado, mas disse que, em razão de questões
financeiras, avalia que ficaria difícil acompanhar sua esposa em um serviço de saú-
de em outro bairro da cidade.

A psicóloga combina com equipe do CAPS para fazerem a avaliação compar-


tilhada e, depois, pensarem junto com a usuária melhores estratégias de cuidado.
Conforme solicitação da usuária, o atendimento seria mantido na UBS, com retor-
no agendado para dois dias.

No retorno da usuária à unidade, Geraldo pede para falar com a psicóloga. Re-
lata que, quando chegou em casa após o trabalho, encontrou a mulher no quintal
e que, ao perguntar o que havia acontecido, ela o abraçou e chorou dizendo que
estava indo para uma árvore no quintal, que tinha um balanço dos filhos e iria se
enforcar. A psicóloga faz o apoio, conversa com a médica de referência e as duas
decidem entrar em contato com o CAPS novamente, pois entendiam que teria in-
dicação para hospitalidade noturna.

Novamente é solicitado que a usuária vá até o serviço para reavaliação. O mari-


do a acompanhou até o CAPS II, sendo encaminhada para o CAPS III Saúde Mental
para hospitalidade noturna. A paciente permaneceu quatro dias em hospitalidade
integral para estabilização do quadro. Retornou à UBS com quadro estável, mas
muito assustada com o que havia visto no CAPS.

138
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Foi agendado matriciamento com a equipe de referência do CAPS e, após a


escuta da usuária e da família, ficou evidente que seria inviável manter o atendi-
mento longe de casa devido aos custos e ao trabalho do companheiro. O marido
abandonou o trabalho atual e começou a vender pão para poder ficar mais tempo
com a esposa, ele acompanhava a medicação dela. A assistente social do Nasf-AB
realizou as orientações para o encaminhamento ao auxílio-doença. E o serviço do
CAPS ficou como apoio para a equipe da UBS e Nasf-AB.

Os atendimentos iniciais ocorreram de forma individual, e, conforme a estabi-


lização do quadro, a usuária foi sendo inserida nos grupos de convivência promo-
vidos pela equipe de ESF e suporte da terapeuta ocupacional do Nasf-AB. Após
um ano de acompanhamento na UBS, a usuária voltou a trabalhar e ficou sendo
monitorada por mais um ano, quando foi possível retirar gradativamente sua me-
dicação antidepressiva.

Sempre que possível, a equipe fornecia um acolhimento ao companheiro para


sanar dúvidas e dar suporte psicossocial para que ele pudesse acompanhar a es-
posa. A equipe respondia às perguntas, explicava cada situação e, principalmente,
deixava a unidade aberta para que ele a procurasse todas as vezes que sentisse
necessidade. Poucas vezes ele procurou, mas o fato de saber que poderia quando
precisasse o deixava mais tranquilo.

Esse é um caso de transtorno mental moderado com tendência e potencial


para agravamento, algumas ações foram essenciais para a condução do caso. O
acolhimento inicial da usuária e do familiar possibilitou um estabelecimento de
vínculo entre os profissionais do serviço e usuários, o que garantiu que as orienta-
ções dadas à família fossem seguidas. Incluindo aqui os combinados feitos com o
serviço do CAPS, que pactuou com as profissionais da UBS e Nasf-AB o acompa-
nhamento conjunto do caso.

Quanto às questões financeiras, mesmo com o fato de a usuária ter parado de


trabalhar, foi possível encaminhá-la para o auxílio-doença, que possibilitou a ma-
nutenção da renda familiar. O suporte familiar, principalmente do companheiro,
foi fundamental para o apoio da equipe, pois ele confiava na equipe e seguia a
orientação dela. Para isso, a equipe sempre foi clara diante do agravo, sem revelar
fatos particulares da história de Luiza, mas explicando o que poderiam ser os agra-
vos, escutando ambos em suas angústias e estando disponível mais intensamente
no primeiro momento e gradativamente, com a estabilização do caso, podendo
propor outras ações de cuidado dos atendimentos individuais.

139
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O apoio e o suporte efetivos do CAPS, por meio de ligações e reuniões de apoio


matricial, com manutenção de retaguarda regular, possibilitaram que a equipe se
sentisse segura para conduzir o caso na unidade. Os quatro dias de hospitalidade
noturna garantiram uma estabilização rápida do caso e que pudesse ser cuidado
no território, sem a necessidade de encaminhamento para acompanhamento no
CAPS ou internação hospitalar. Destaque-se a importância de se fazer uma ava-
liação das questões financeiras da família e de garantir a avaliação e o suporte
da rede de apoio, assegurando oferta de cuidados mais possíveis e direcionadas
àquela família/usuária.

140
BOABOA
PRÁTICA DA DA
PRÁTICA UNIDADE 3 3
UNIDADE

A construção de uma TV popular

Muitas formas de cuidado em saúde


estão além do diagnóstico, prognósticos,
medicamentos e exames laboratoriais.
As equipes de saúde devem criar estratégias
É necessário pensar em variadas formas
para desenvolver as potencialidades das pessoas,
de cuidado em saúde, seja para questões
construir novos laços de confiança, fortalecer as
ligadas à saúde mental ou não, e que
redes de apoio e os laços comunitários.
tenham impacto direto no cotidiano das
pessoas em sofrimento ou adoecimento.

A arte pode ser um recurso com potencialidade para essa finalidade. Vamos ver esse relato de
experiência que surgiu na UBS Claudemir José Witkoski do Bairro Tiffa Martins, da cidade de
Jaraguá do Sul/SC, com a parceria de outras instituições e serviços.
Tudo se inicia com a equipe do
Nasf-AB que realizava apoio matri-
cial com uma equipe da UBS do
território; em um primeiro momen-
to, planejavam um espaço de inter-
ação comunitária que possibilitasse
a troca de experiências geracionais,
informação sobre alimentação e
sobre ervas fitoterápicas, para isso
desenvolveram em um terreno ao
lado da unidade um espaço para a
horta comunitária.

Nesse espaço, os profissionais serviam de mediadores na horta, articulando


para que as pessoas tivessem um local de encontro, com rotina de horários e
dias e, o mais importante, de trocas de experiência.

A região da unidade tinha muitas pessoas que possuíam conhecimento no cultivo de


leguminosas, ervas para temperos e chás, assim como muitos conhecimentos sobre a
utilização de plantas como tratamentos caseiros, não alopáticos.

Outra ideia que


surgiu mediante o apoio
matricial em saúde
mental com o CAPS foi a
de realizar atividades
com os adolescentes,
construir espaços de
convivência e integração,
com o objetivo de
realizar o reconhecimen-
to do bairro e a aproxi-
mação entre os jovens.
Houve um momento de aproximação entre a UBS e a escola da região; nesse tempo, os adolescentes
estavam montando um grêmio estudantil, e o Sr. Nelson de Faria Campos (Nelson Curica), educador
físico da saúde, que compunha o grupo de apoio matricial e tinha vasta experiência na utilização de
recursos audiovisuais como mediadores dos processos relacionais, propôs um projeto com esse enfoque.

Houve a proposta de construir vídeos com os adolescentes, sendo essa construção o instrumento
para que os adolescentes interagissem com o bairro, com outros grupos geracionais, com a Associação
de Moradores, fortalecendo uma rede de apoio. Surgiu, assim, a TV TIFFA - “Uma forma de fazer as
pessoas contarem suas vidas é uma espécie de revisão antropológica da existência” (CAMPOS, 2022).
A TV TIFFA tornou-se um canal do YouTube que divulga eventos ocorridos no bairro e conta a história
de pessoas que moram ali.

Essa construção ocorria de forma coletiva, em reuniões na Associação de Moradores do bairro e


com apoio dos serviços do território, como o CRAS e a UBS, mas contava com apoio de profissionais
que trabalham com audiovisual da cidade e que trabalhavam voluntariamente no projeto.
Você pode conhecer melhor a experiência no canal do YouTube: https://youtube.com/c/TvTifa.
O que podemos pensar sobre essa forma de cuidado?
Podemos pensar sobre as possibilidades de construção de espaços coletivos de cuidado que
podem se tornar espaços de apoio mútuo, sobre a construção de pontes que liguem as redes de saúde,
educação, assistência social, associação de moradores, entidades religiosas, grupos de voluntários,
lideranças comunitárias e outras instituições e serviços disponíveis no território. O cenário de acompan-
hamento de pacientes, nas suas mais variadas condições de saúde e ciclos de vida, não precisa ser o
consultório da UBS, e esse caso nos aponta para a direção.

É fundamental acompanharmos o exame de hemoglobina glicosilada de pessoas com diabetes,


mas tão fundamental quanto esse acompanhamento é o espaço de trocas entre usuários com diag-
nóstico de diabetes, espaço para que possam conversar sobre dificuldades em ter um diagnóstico
de diabetes, dificuldades para adequar alimentação saudável e gostosa, estratégias para diminuir o
consumo de açúcar, trocar informações sobre espaços no bairro para realização de atividade físicas,
um espaço para que possam chorar e sorrir juntos, que possam se fortalecer enquanto comunidade
e coletividades.
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

BOA PRÁTICA – UM OUTRO NOVEMBRO AZUL

Esta experiência traz uma questão que tem preocupado os profissionais da


atenção primária: como trazer os homens para as unidades de saúde? Como en-
volvê-los nos tratamentos? No mês de novembro, várias ONGs fazem ampla cam-
panha para prevenção do câncer de próstata, porém sabemos que o INCA não
recomenda o rastreamento, pois não possui comprovação científica que traga
mais benefícios que riscos. Podemos, porém, enquanto trabalhadores, aproveitar
a grande divulgação para que os homens compareçam às unidades de saúde, e
propondo estratégias de cuidado e promoção à saúde do homem.

Na cidade de Joinville/SC, ocorreu uma ação no ano de 2021 nas Unidades Bá-
sicas de Saúde para trazer homens que estavam afastados da unidade durante
toda a pandemia. Alguns ACS identificaram esses homens ou foram informados
por outros moradores da casa que ali moravam homens que necessitavam de ava-
liação de saúde. Foram divulgadas as ações pelo território e feito amplo convite
aos homens que tivessem interesse em alguma avaliação e/ou orientações ou até
mesmo apenas interesse em conhecer a unidade de seu território.

As equipes das Unidades Básicas de Saúde do Município se mobilizaram du-


rante todo o mês de novembro, identificando os usuários que estavam muito tem-
po afastados das unidades, tentando localizá-los, sensibilizando para o retorno, as-
sim como divulgando que haveria um dia em que a unidade estaria aberta para
atendimento apenas aos homens.

Segundo a Política Nacional de Atenção à Saúde do Homem, é necessário:

Reorganizar as ações de saúde, através de uma proposta inclusiva, na qual


os homens considerem os serviços de saúde também como espaços mas-
culinos e, por sua vez, os serviços de saúde reconheçam os homens como
sujeitos que necessitem de cuidados;” (BRASIL, 2009).

Alguns detalhes foram cuidadosamente pensados, tentando deixar as unida-


des sem muitos enfeites ou infantilizações para que eles pudessem se sentir mais
acolhidos dentro de suas particularidades. O dia de abertura das unidades ocorreu
em um sábado do mês de novembro, foram abertas agendas para horário de con-

145
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

sultas com profissional médico e enfermagem. Outros profissionais permanece-


ram na unidade para ofertas de avaliação da carteira de vacinação, alguma orien-
tação específica e verificação de PA, peso e altura, entre outras ofertas de cuidado.

Orientações sobre o câncer de próstata também foram realizadas em grupos


de conversa, explicando sobre quando existia a necessidade do rastreamento e
quais sintomas a que os homens deveriam ficar atentos. Algumas unidades opta-
ram por realizar as orientações com a utilização de um panfleto produzido pelos
próprios profissionais e impresso na unidade.

Foi possível um bom contato com os homens que vieram até as unidades, no-
vos usuários conheceram os serviços ofertados e desconstruíram as fantasias a res-
peito do trabalho, sendo possível o estabelecimento de um vínculo inicial com os
profissionais e contato com importantes conteúdos sobre o autocuidado. Esses
momentos de “start” para públicos específicos podem tanto mobilizar a popula-
ção para utilização do serviço quanto os profissionais no sentido de ampliar o olhar
para públicos que não acessam o serviço rotineiramente e que, em consequência,
não conseguimos realizar o cuidado em saúde necessário.

Fonte: https://aps.bvs.br/aps/qual-e-a-orientacao-atualizada-do-ministerio-
da-saude-pa​ra-rastreamento-e-prevencao-do-cancer-da-prostata/.

146
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

ENCERRAMENTO

Realizar a gestão do cuidado em uma Unidade de Saúde ou em uma equipe


de Estratégia Saúde da Família exige o conhecimento de muitas diretrizes, técni-
cas e trocas de experiências entre a equipe multiprofissional e a da unidade, além
dos demais serviços da rede de saúde.

Com efeito, a apropriação de conceitos, como clínica ampliada, escuta ativa, es-
tratégias de cuidado em saúde mental na APS, abordagem familiar, é fundamen-
tal para o desenvolvimento de uma clínica de qualidade, responsável e direcionada
às necessidades do território.

147
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

REFERÊNCIAS

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de 2014. Define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos

148
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

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território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Brasília: Ministé-
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Atenção Básica. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares
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150
UNIDADE 4
Relações em equipe
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Objetivos da unidade

• Empregar as técnicas de comunicação interpessoal, identificando os


ruídos que afetam as ações de cuidado de trabalho em equipe.

• Discutir os principais elementos de conflito no ambiente de trabalho e


estratégias para superá-lo.

• Relacionar estratégias que ajudam no desenvolvimento da escuta ativa.

INTRODUÇÃO

Nesta unidade, nos debruçaremos sobre um tema muito sensível em nossos


trabalhos, as relações interpessoais nas equipes.

Partiremos da visão de que conflitos, divergências e contrapontos ocorrem em


toda equipe. O objetivo aqui é trabalharmos para que os conflitos não gerem rup-
turas nas relações entre os membros da equipe, mas que possibilitem aos inte-
grantes momentos de reflexão e ampliação dos olhares para os pontos de conflito.
Ao mesmo tempo, nos atentaremos a aspectos que possam gerar sofrimento aos
colegas e que resultem em dificuldade de execução do trabalho.

Adicionalmente, outra proposta é que a organização do trabalho possa ser um


eixo central para amenizar os conflitos.

O TRABALHO EM EQUIPE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM


SAÚDE

Como vimos anteriormente, a clínica da Atenção Primária em Saúde (APS) é a


clínica ampliada, ou seja, um olhar amplo sobre o indivíduo em acompanhamen-
to na Unidade Básica de Saúde, envolvendo questões para além do diagnóstico
de doença, como a sua relação com as queixas e situações de saúde, as relações
com o trabalho, relações sociais em sua comunidade de pertencimento, projetos
de vida e muitas outras questões que possam ser importantes para esse sujeito.

153
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Um olhar aprimorado e ampliado do trabalhador da saúde se faz necessário


para os múltiplos saberes exigidos, e isso exige uma equipe e/ou profissionais de
referência comprometidos, alinhados tecnicamente e entrosados nas suas rela-
ções, com o objetivo de garantir esses cuidados.

Para os profissionais que compõem as equipes de Estratégia Saúde da Família,


são esperados constante diálogo e interação com outras equipes da APS, como
as equipes dos Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf-
-AB), Equipes de Consultório na Rua (eCR), Núcleo de Atenção Domiciliar (NRAD),
além de Equipes dos Serviços Especializados em Saúde Mental, como os Centros
de Atenção Psicossocial (CAPS), e com os serviços da rede intersetorial, como os
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especia-
lizado em Assistência Social (CREAS), Conselhos Tutelares, Escolas, organizações
não governamentais, religiosas e outras equipes que possam contribuir para o cui-
dado do usuário e/ou sua família.

Conforme visto anteriormente, a equipe mínima da Equipe de Estratégia Saú-


de da Família é composta de médico(a), enfermeiro(a), técnico(a) de enfermagem
e agente comunitário de saúde, porém outros profissionais da equipe Nasf-AB,
equipe de saúde bucal e trabalhadores de apoio (recepção, limpeza e técnicos ad-
ministrativos) podem e devem contribuir para qualificar o acolhimento e acompa-
nhamento dos(as) usuários(as) na unidade de saúde e podem, também, a depen-
der da abordagem e do manejo afastar esse usuário da unidade, dificultando o seu
vínculo e cuidado pela equipe/serviço.

O trabalho com o usuário exige que uma equipe funcione como elos de uma
corrente, que os profissionais construam um cuidado em uma única direção e de
forma integral, o trabalho não pode ser fragmentado. E, no caso de cuidados com-
partilhados entre equipes, profissionais das mais diversas especialidades e níveis
de atenção, deverá haver diálogo e variadas formas de comunicação entre os ato-
res envolvidos.

Podemos apontar como grande desafio do trabalho em saúde o estabeleci-


mento de relações interpessoais que sejam eficientes, saudáveis, seguras e ade-
quadas em seu formato, frequência e proposta de cuidado; essas relações devem
ser construídas cotidianamente e (re)avaliadas e reconstruídas.

154
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

As relações humanas são interações entre duas


ou mais pessoas, que exigem competências inter-
pessoais e intrapessoais. A primeira nos apresenta
a capacidade de entender, interpretar e agir do ou-
tro; a segunda fala da capacidade pessoal de nos
conhecermos e utilizarmos nossas competências.
Portanto, as interações entre os membros de uma
equipe, ou entre uma rede, podem interferir direta-
mente no atendimento e cuidado oferecido à po-
pulação, bem como na satisfação do profissional.
Deve fazer parte do trabalho de todas as equipes
de saúde se dedicar com reflexão e avaliação sobre
essas relações de equipe, entender como ocorrem,
propondo estratégias de enfrentamento dos con-
tratempos, dificuldades de comunicação, relações verticais de poder entre os
membros das equipes, situações comuns que tencionam e desgastam as relações
interpessoais no trabalho.

A Política Nacional de Humanização (2007), ao trazer a proposta da clínica am-


pliada, aponta que não se pode pensar em humanização da clínica sem pensar-
mos em uma maior equidade das equipes em relação ao poder de gerir esse cui-
dado. Uma equipe que trabalha junto deverá discutir condutas clínicas, propostas
terapêuticas aos usuários, estratégias de cuidados individuais ou coletivas para seu
território, necessidades de articulações, dividir tarefas entre seus membros, organi-
zar cronograma de atividades, entre outras.

Cada equipe traz características de constituição e de inter-relação. Podemos


classificá-las conforme seu funcionamento como equipes multidisciplinares/
profissionais, interdisciplinares e transdisciplinares; sendo as equipes multidisci-
plinares ou interdisciplinares ligadas às disciplinas e/ou núcleos de saberes, com
alguma ou muita separação entre esses núcleos de conhecimento. Enquanto as
equipes transdisciplinares rompem com algumas barreiras e trabalham na lógica
dos saberes não fragmentados, desconstruindo as especificidades de cada profis-
são, construindo propostas terapêuticas e trabalhando de maneira mais comparti-
lhada (DOMINGUES, 2003).

155
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Peduzzi (2001) problematiza a questão das relações das equipes de saúde as-
sociando a teoria do agir-comunicativo de Habermas e coloca a comunicação para
o centro da avaliação dos conflitos das equipes de saúde. “Por meio da comunica-
ção, ou seja, da mediação simbólica da linguagem, dá-se a articulação das ações
multiprofissionais e a cooperação (PEDUZZI, 2001, p. 108)". Para ela, pode-se enten-
der as relações das equipes em duas categorias: equipes agrupamentos e equipes
integração. A primeira diz respeito a equipes mais fragmentadas, e a segunda, a
equipes que possuem uma maior consonância nas ações de saúde.

Propomos colocar a comunicação em destaque como elemento central do tra-


balho em saúde ao nos referirmos às relações de comunicação interpessoal entre
os membros de uma equipe como elemento-chave na relação de prazer desse
trabalhador e sua satisfação com o trabalho, como na eficiência do trabalho junto
com o usuário do serviço de saúde.

Os conflitos interpessoais gerados no ambiente de trabalho podem ser pen-


sados a partir do fato de que nesses locais não escolhemos nossos colegas de tra-
balho, chefias tampouco usuários, mas ainda assim estaremos juntos por muitas
horas de nosso dia. Dentro de uma equipe se apresentam e convivem diferentes
culturas, crenças, condições sociais, diferentes comportamentos, bem como varia-
das formas de relações com o trabalho e compromissos ético-político-sociais, que
podem gerar conflitos e desgastes nas relações interpessoais. O trabalho em equi-
pe exige um esforço coletivo na busca de compreensão dessas diferenças, com o
objetivo de busca de maior satisfação no trabalho pelo trabalho.

Apesar desse esforço que se faz necessário, os conflitos existirão, e as equipes


precisarão lidar com eles. É desejado, porém, que os conflitos existentes não sejam
paralisadores, que não inviabilizem as relações de trabalho entre os membros das
equipes e que não tragam prejuízos no cuidado da população. Da mesma forma, é
desejado e esperado que as equipes possam se debruçar na resolução de tais con-
flitos, no horário de reunião de equipe ou em outros espaços construídos por ela,
olhar para as situações de conflitos que se apresentam naquele momento, bus-
cando caminhos para sua resolução, conversando abertamente sobre situações de
“mal-estar”, aborrecimentos, de tal forma a caminhar para a harmonização dessas
relações.

156
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

BOAS PRÁTICAS!!!

Vamos contar a história da equipe de ESF de uma cidade fictícia, SUSilândia.


A equipe estava completa e era composta de 1 enfermeira, 1 médica, 2 técnicos de
enfermagem e 6 agentes comunitários de saúde. O território dessa equipe vinha
recebendo muitas pessoas de fora da cidade que migraram para SUSilândia em
busca de trabalho e melhor qualidade de vida. Isso trazia para a equipe um sofri-
mento em relação a conhecer a população atendida, pois todos os dias novos mo-
radores chegavam naquele bairro, referência da equipe.

A angústia geral era de não conseguir dar conta da demanda que só crescia, e
a equipe que está completa tinha a sensação de que precisaria de mais trabalha-
dores para poder acompanhar os usuários.

As reuniões dessa equipe, que aconteciam semanalmente, sempre acabavam


em brigas e acusações entre seus membros, um apontando ao outro que poderia
“trabalhar mais” para ajudar no acompanhamento da população adscrita. A re-
cém-chegada gerente da unidade participou da última reunião e se preocupou
bastante com o que vira, tentou fazer algumas intervenções pontuais na fala dos
colegas de trabalho, mas sem muito sucesso, saiu da reunião com o pensamento
de que talvez aquela equipe precisasse ser trocada, talvez uma troca entre mem-
bros de outras equipes, teria de convidar alguns profissionais para conversar in-
dividualmente a fim de entender falas agressivas entre eles. Ao mesmo tempo,
percebeu que o sofrimento de todos é por desejarem realizar um bom trabalho,
mas têm muitas dificuldades em expor aos seus colegas esse sofrimento e inquie-
tações, conseguindo apenas apontar as dificuldades e fragilidades do outro.

A enfermeira da equipe já havia sinalizado que iria pedir exoneração e deixaria


o serviço público, pois estava cansada e sobrecarregada. Os ACSs relatavam esta-
rem cansados, pois, apesar de estarem sempre realizando visitas domiciliares, não
encontravam os usuários nas casas; a médica já sinalizava que não estava “dando
conta” de avaliar todo mundo que precisava, pois tinha muitos “pacientes de saúde
mental na área” que necessitavam de consultas mais longas.

Algumas reclamações recaem sobre a gerência da UBS, e os profissionais fa-


laram que antes era mais fácil, pois a equipe de ESF não precisava fazer o acolhi-
mento da demanda espontânea da sua área, e conseguiram organizar melhor as

157
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

suas agendas. A equipe também reclamava que não tinha sala para atender todos
os dias e que havia uma pressão muito grande para o cumprimento de metas e
indicadores. Os profissionais trouxeram falas do tipo,

“Atendemos todos os dias sem parar, mas, quando olhamos os indicadores, pa-
rece que não fizemos nada. Parece que não trabalhamos. A gestão vem com este
negócio de indicadores e não olha para nosso trabalho, só para os indicadores.”

Ao lermos esse relato, destacamos situações de conflitos bastante comuns


nas equipes, como a crescente demanda de atendimento e complexidades que
se apresentam no território, como os deslocamentos urbanos e migrações popu-
lacionais entre os municípios, o desafio da organização das visitas domiciliares
do agente comunitário de saúde, a discussão sobre o lugar que os indicadores de
avaliação e metas ocupam no processo de trabalho das equipes, a organização
das agendas para o atendimento das demandas espontânea e programática das
equipes, a organização de uso e distribuição de salas para atendimento dentro do
espaço da Unidade Básica.

Seguiremos nossa unidade discutindo estratégias para solucionar os conflitos


que apareceram neste relato, com o objetivo de tornar o espaço de reunião mais
resolutivo, eficiente e menos hostil.

A gerência da UBS entendeu que poderia ocupar um lugar importante nesse


espaço e organizou a sua participação em outros espaços de reunião dessa equi-
pe, tentando refletir sobre as situações coletivas do território e individuais, entre os
membros das equipes.

158
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

COMUNICAÇÃO É UMA TÉCNICA

A comunicação e a comunicação terapêutica, apesar de amplamente discu-


tidas nas relações entre usuário e profissional, podem e devem ser discutidas nas
relações entre trabalhadores. Alguns de seus princípios norteadores (SILVA, 2002)
devem ser conhecidos e usados na comunicação da equipe, como:

• Manter canal aberto de comunicação: é importante que todos os


membros de uma equipe de saúde da família tenham a possibilidade
de dialogar a qualquer tempo entre si, que as relações interpessoais
não sejam assimétricas a ponto de não permitir que um agente co-
munitário de saúde não se sinta confortável e seguro em questionar
uma fala de um profissional de nível superior, que não permita que o
técnico de enfermagem possa questionar o trabalho do profissional
enfermeiro, e assim com outras categorias que se inter-relacionam no
trabalho cotidiano.

• Olhar para o outro: como todo e qualquer espaço de troca, é funda-


mental que os trabalhadores possam se olhar em um processo de di-
álogo, mostrando que se preocupam verdadeiramente com a opinião
do outro, com pontos de vista diferentes do seu, que possam olhar suas
expressões de face e corpo que apresentar seus incômodos e inquieta-
ções com determinados assuntos/pautas.

• Escutar atentamente: apesar de óbvio, nem sempre se constitui tarefa


simples escutar o outro, em especial falas que muitas vezes se repetem.

[...] O ato de escutar atentamente implica em compartilhar um momento, e


buscar significados não só à mensagem recebida, mas à pessoa que trans-
mite seu conteúdo fundamentado na relação de ajuda e interesse pelas suas
necessidades [...] (BERTACHINI, 2012, p. 516).

159
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Respeitar pausas silenciosas: respeitar os momentos de pausas em


uma discussão em equipe, ou de choro durante determinada fala, é
fundamental para que o indivíduo sinta-se acolhido, ouvido, e que te-
nha seus sentimentos validados pelo grupo.

Para uma comunicação eficaz, também deve-se evitar a comunicação ante-


cipada que conclui as ideias e intenções do interlocutor “atropelando” a finaliza-
ção da mensagem e gerando erros de interpretação do discurso. Outra forma de
comunicação que deve ser evitada é a comunicação confrontativa, que invade as
motivações emocionais do interlocutor com comparações piores do que está sen-
do dito, causando distanciamento e antipatia (BERTACHINI, 2012, p. 518).

Para Soares (2015), a comunicação possui quatro fatores: controle, motivação,


expressão emocional e informação. Para ela, bem como para Rosenberg (2006),
a comunicação entre os trabalhadores deve ser clara, a fim de que consigam com-
preender as instruções, reportar os problemas aos superiores ou adaptar-se às exi-
gências do serviço. Também é por meio da comunicação que podemos motivar os
trabalhadores e os colegas, deixar claro o desempenho do colega ou receber um
elogio sobre o trabalho.

Quanto à expressão emocional, precisamos pensar que passamos muitas horas


juntos em ambiente de trabalho e que, inevitavelmente, temos momentos emo-
cionalmente melhores e outros piores. O velho dito popular que “devemos deixar
os problemas de casa em casa e os do trabalho no trabalho” nem sempre é possí-
vel, devendo a equipe olhar para essas situações pessoais que possam intervir nas
relações do trabalho de forma madura, sensível e empática. Termos informações
sobre a situação e conhecimento sobre “ocorridos” é fundamental para a tomada
de decisão e resolução de conflito.

Para refletir: um momento difícil…

Em uma determinada equipe, um colega que sempre foi colabo-


rativo, considerado o grande amigo do pessoal, que trabalhava
“direitinho” e sempre estava feliz, começou a apresentar irritação,
desmotivação para o trabalho, cansaço. Alguns colegas começa-
ram a criticá-lo duramente nas reuniões de equipe. E outros su-
geriram que, se ele não estivesse feliz, “pedisse a conta”, afinal
“reclamar não adianta”.

160
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Algum tempo passou e ele passou em uma consulta com a médica


de outra equipe que o diagnosticou com um quadro depressivo,
apresentava ideação suicida, seu sofrimento tinha muita relação
com o trabalho. A médica o afastou, fato que piorou muito os co-
mentários sobre ele pelos colegas de trabalho. Falavam que era
mentira, uma colega comentou que o viu andando de bicicleta,
“mas para trabalhar não estava disposto”. Passado algum tem-
po, o quadro piorou muito e esse profissional fez uma tentativa de
suicídio, ficando internado por 15 dias, dois deles na Unidade de
Terapia Intensiva.

No seu retorno ao trabalho, que ocorreu dois meses após a inter-


nação, alguns colegas o receberam com abraços e o acolheram,
outros continuaram a criticá-lo. Mas ninguém sabia ao certo o que
estava ocorrendo. Depois de alguns meses, com a continuidade
do tratamento, souberam que o profissional passava por proble-
mas financeiros importantes, pois seu pai, bastante idoso, não tinha
mais condições de trabalhar e ele teve de assumir as questões fi-
nanceiras dos pais. Concomitantemente a essa questão, o agente de
saúde recebeu diagnóstico de transtorno afetivo bipolar, com condi-
ção de depressão grave na atualidade. Apenas com a gravidade dos
sintomas ele resolveu procurar ajuda e foi possível rever seu histórico
de saúde mental prévio, identificando situações prévias de mania.

Alguns problemas são difíceis de “deixar em casa”, pois situações


de saúde ou questões que nos exijam alguma tomada de decisão
podem ocupar nossos pensamentos. Algumas pessoas possuem
maior facilidade para separar as situações pessoais das profis-
sionais, outras não. Assim, da mesma forma como olhamos para
nossos usuários de maneira individualizada, observando suas his-
tórias e as formas como se relacionam com sua vida, precisamos
olhar para os nossos colegas de trabalho. Alguns profissionais,
mesmo com muitos problemas, não “deixarão” que a equipe saiba
ou perceba suas dificuldade no contexto pessoal, ou atribuirão sua
tristeza, desânimo a outras questões; alguns profissionais se sen-

161
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

tirão mais à vontade para falar de seus problemas e o quanto eles


estão interferindo no seu processo de trabalho.

A teoria da comunicação não violenta pode ser um recurso para


nos auxiliar nas resoluções de conflitos. Nela são propostas for-
mas de relacionamentos interpessoais baseadas na empatia, ou
seja, na tentativa de compreender o que o outro sente, a forma
como pensa o mundo e compreender seu desejo, assim podendo
estabelecer melhores relações interpessoais e, consequentemen-
te, um melhor funcionamento da equipe.

Segundo Rosemberg (2006), que escreve sobre a comunicação não violenta,


existe a ideia de não eliminar o conflito, mas trabalhar deixando a autenticidade
vir à tona. Isto é, deixar que o conflito venha à tona de modo claro e que todos pos-
sam falar o que pensam e sentem sem ataques ao outro, mas com o objetivo de
solucionar o problema. Para isso, quatro fatores são importantes: observação, sen-
timento, pedido e necessidade. Toda fala traz consigo uma necessidade pessoal
que o interlocutor não consegue deixar claro no processo de comunicar-se. Assim
como por trás de todo comportamento existe uma necessidade e por trás de toda
agressão existe uma necessidade não atendida.

Portanto, qual a necessidade que está por trás de uma queixa?

Voltando para o relato de caso, a equipe possui muitas queixas sobre a dinâ-
mica da unidade, a participação dos colegas do cuidado, a falta de sala para aten-
dimento dos usuários, a sobrecarga que é atribuída às mudanças nos indicadores,
entre outros. Podemos pensar que essa equipe pode estar perdida em meio a tan-
tas atribuições que não conseguem organizar o seu processo de trabalho e, de fato,
conseguir “ver e perceber” o que está acontecendo.

É importante que possamos ouvir a fala do outro sem realizar julgamentos,


sem imprimir juízos de valor a partir de crenças pessoais, experiências prévias e
expectativas também pessoais. Precisamos observar, escutar de maneira tran-
quila, com tempo para essa observação e escuta, permitindo que os sentimentos
emerjam. As relações devem ser construídas ao longo do tempo, e, para tanto, tem
como essência uma necessidade de conexão.

162
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Antoniassi, Pessotto e Luciane (2019) propõe o uso do processo circular com


base na comunicação não violenta para resolução de conflitos de uma equipe de
APS. Em sua descrição de atividade, a equipe apresentava queixas na execução
de uma atividade de grupo de caminhada que era promovida juntamente com
a equipe do Nasf-AB. Inicialmente, foi proposto o processo circular, com todos os
profissionais colocados em círculo, com a utilização de um bastão “em mãos” para
dar voz à pessoa que iria expressar-se. Dessa forma, as pessoas prestavam atenção
na pessoa que estava falando, sem já tentar construir uma resposta de defesa, com
objetivo de fato e “prestar” atenção e compreender como cada profissional se sen-
tia diante daquela situação-problema. “Utilizar o processo circular e a comunica-
ção não violenta para ouvir, motivar e estimular a cooperação da equipe foi funda-
mental para desenvolver o grupo.” (ANTONIASSI; PESSOTTO; LUCIANE, 2019, p. 152).

PLANEJAMENTO EM EQUIPE COMO PROMOTOR DE QUA-


LIDADE NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS

O planejamento da equipe é algo fundamental para que possamos organizar


os processos de trabalho. Pensar nas necessidades da equipe e dos usuários, reser-
var e organizar os dias e horários para visitas domiciliares, dias e horários para a rea-
lização de grupos e outras atividades coletivas, espaços para reuniões de matricia-
mentos, reuniões de equipe e intersetoriais, organizar as agendas dos profissionais
para atendimento da demanda espontânea e programáticas são fundamentais
para organização do processo de trabalho, otimização dos usos de espaços físicos
da UBS ou fora dela, apoio à circulação dos usuários no serviço e no território na
busca de cuidados em saúde, e pode ser fator redutor de conflitos dentro da equipe.

Planejar as ações em saúde é pensar amplamente nas ações que precisam ser
realizadas, olhar para a demanda da equipe/território (condição epidemiológica,
de agravos, condições sociais, oferta de serviços, entre outras), para a dinâmica do
território, para as situações e casos de maior gravidade que precisarão de maior
tempo e intensidade de atuação. Olhar para os indicadores de desempenho e me-
tas, de forma cuidadosa e significativa, auxilia a equipe a ampliar a discussão e o
objetivo de seu uso, saindo do lugar de simples cumprimento de tarefas para de
fato tornar-se um indicador que apoie a equipe no seu processo de trabalho e pla-
nejamento, trazendo sentido no seu uso e estudo.

163
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Mas como olhar para esses indicadores? Como esse olhar dialoga com as ques-
tões interpessoais da equipe?

Primeiramente, é importante que a equipe tenha tempo e dedicação para


olhar os resultados qualitativos e quantitativos de seu trabalho, sendo os indicado-
res alguns desses analisadores, a partir daí a equipe poderá avaliar o seu proces-
so de trabalho, refletir sobre possibilidades e necessidades de mudança na busca
de melhores resultados e, consequentemente, melhorar a satisfação no espaço de
trabalho. Afinal, verificar o que conseguimos avançar em nossos trabalhos nos pos-
sibilita encontrar um sentido nele.

A equipe precisa discutir quais são os objetivos a serem atingidos para aque-
le território/população, para além das metas que necessitam ser atingidas e que
também configuram objetos dessa discussão. Estabelecer objetivos comuns da
equipe propicia um senso de coletividade e maior união nela, além de facilitar a
comunicação dos integrantes, buscando os objetivos definidos.

A boa comunicação na equipe é algo fundamental para que possamos realizar


bons planejamentos.

164
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

REUNIÕES DE EQUIPE: UM ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DAS


RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Grando e Dall’agnol (2015) analisaram reuniões de equipes de ESF, refletindo


tanto as construções das reuniões, objetivos e formas de funcionamento. Para elas,
“[...] as reuniões de equipe podem ser importantes dispositivos para o redeline-
amento do trabalho, por meio de discussão de casos em uma perspectiva inter-
disciplinar, desenvolvimento de atividades em educação permanente e avaliação
sistemática do cotidiano da equipe” (GRANDO; DALL’AGNOL, 2010, p. 505).

Deve-se alinhar as reuniões de equipe necessariamente ao uso da comunica-


ção não violenta. Primeiramente, as autoras identificaram que os membros das
equipes possuem uma ilusão de uma harmonia natural que deveria existir nas
equipes, isso pode fazer com que os membros das equipes evitem assuntos e te-
mas conflituosos para que não sejam geradores de confrontos.

Grando e Dall’agnol (2015) apontam, ainda, que os conflitos devem ser enfren-
tados com elementos da comunicação não violenta, já que existem ou existirão em
qualquer trabalho em equipe. Alguns desses elementos são a comunicação clara e
objetiva, que contribui para que todos possam compreender o entendimento dos
integrantes das equipes, incluindo seus sentimentos e emoções que se apresen-
tam nos discursos.

Voltando à reunião da equipe de ESF de SUSilândia, pudemos apreender que


os trabalhadores da equipe tinham dificuldades para escutar os sentimentos e
percepções do outro, focando apenas nos seus problemas e nos conflitos do traba-
lho e acusando o outro colega pelo seu próprio sofrimento.

Mas o que tem por trás das queixas da equipe? Seria um pedido de ajuda? To-
dos os membros pareciam estar perdidos em suas próprias atribuições e deman-
das, sentindo-se responsáveis individualmente pelo trabalho, sem refletir sobre a
existência de uma responsabilidade coletiva que uma equipe possui diante de um
território, coletivo e/ou usuário.

Algumas questões norteadoras podem ajudar as equipes a organizarem e pla-


nejarem seu trabalho, nos mais diversos espaços de encontro e atendimento de
seus trabalhadores.

165
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

1. Quais as características (emocionais, sociais, políticas, entre outras) de cada


membro da equipe?

2. Qual é a atribuição de cada trabalhador (individuais) dentro da equipe?

3. Quais as atribuições coletivas dos membros da equipe?

4. Quais são o quantitativo e o perfil da população do território atendido pela


equipe?

5. Quais são os principais problemas, demandas e necessidades do território da


equipe? Quais as fontes de informações para esse levantamento?

6. Quais são nossas principais necessidades enquanto equipe para o desen-


volvimento de um bom trabalho? Educação permanente e formação? Espaços de
organização do processo de trabalho? Recursos materiais? Recursos humanos?

Organizar a reunião de equipe também é fundamental para garantir circula-


ção de informações, circulação de vozes entre todos os trabalhadores que com-
põem a equipe, garantir que pautas prioritárias e urgentes possam ser discutidas,
assegurar espaços para discussão de casos, espaços para planejar atividades da
semana ou do mês, avaliar atividades que tenham acontecido, construir projetos
terapêuticos singulares, apontar conflitos existentes na equipe (atuais ou que se
arrastam ao longo do tempo) e propor estratégias para a resolução deles.

MEDIAÇÃO E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

A Unidade Básica de Saúde ou uma Equipe de Estratégia Saúde da Família


estará repleta de conflitos. Segundo Parisi e Silva (2018), em estudo realizado sobre
mediação de conflitos no SUS:

[...] Os conflitos interacionais no trabalho se assemelham a qualquer confli-


to, em qualquer contexto, apresentando fatores desencadeantes, pontos de
gatilho que os deflagram, causalidade complexa dinâmica e circular. (...) A
mediação de conflito, que pode acontecer com a presença de um media-
dor externo ao trabalho, é um instrumento válido para conduzir conflitos do
trabalho, mesmo considerando que ocorrem em espaços como as relações
de subordinação e com o privilégio das narrativas da gestão. A intervenção

166
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

dos mediadores possibilitou equilibrar poderes, restabelecer o diálogo en-


tre trabalhadores e entre trabalhadores e gestores. Os espaços de mediação
constituem-se em espaços deliberativos que auxiliam a compreensão dos
significados, possibilitando contextualizar os conflitos, elucidar sua causali-
dade e dar sentido ao trabalho. (PARISI; SILVA, 2018, p. 40).

Na ausência de um mediador externo à equipe, os próprios membros das equi-


pes deverão realizar essa mediação, entendendo as possíveis relações de subordi-
nação que se apresentam nas equipes, como entre o profissional enfermeiro e téc-
nicos de enfermagem, ou entre o profissional médico e o agente comunitário de
saúde, em decorrência da divisão social do trabalho na enfermagem, ou as diferen-
tes relações de poder e status social que se estabelecem entre profissionais com
diferentes escolaridades. A equipe precisa desenvolver olhar atento ao conteúdo
de falas preconceituosas, estigmas relacionados à cor, à raça ou à orientação sexu-
al trazidos no contexto de trabalho da equipe, que poderão ser grandes pontos de
tensão e conflitos. Ela também deverá fazer um esforço por entender a origem de
determinada situação conflituosa, elucidar a sua construção, a fim de que possa
caminhar na sua desconstrução.

Cecílio (2005) aponta que os conflitos podem ser de dois tipos: abertos, algo
que incomoda e chega até as agendas dos gerentes, exigindo providências, ou en-
cobertos, que ficam circulando pela unidade, mas não chegam até a agenda dos
gestores.

Esse mesmo autor propõe uma técnica de construção de “matriz de análise


dos conflitos”, realizada por trabalhadores e gestores com o objetivo de identificar
e priorizar os conflitos de determinado grupo/equipe. Na construção dessa matriz,
são propostas quatro colunas: a primeira contém o conflito que será analisado; se-
gunda, as informações sobre os atores envolvidos nesse conflito específico; a ter-
ceira, a descrição sobre como o conflito tem sido visto pela gerência; e a quarta, as
formas de trabalhar com o conflito.

A matriz de análise de conflitos poderá ser inserida no dia a dia de trabalho das
equipes, como uma das ferramentas de análise e resolução de conflitos.

Será que nossa equipe da SUSilândia toparia usá-la? E a sua equipe? Como
gerenciam os conflitos?

167
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

MATRIZ DE ANÁLISE DE CONFLITOS DA EQUIPE SUSILÂNDIA

1. Conflito a ser analisado: equipe sente-se sobrecarregada no seu trabalho


pela constante cobrança pela gestão dos indicadores de desempenho e metas.

2. Informações sobre os atores envolvidos no conflito: trabalhadores da equi-


pe de ESF e gestão local.

3. Descrição sobre como o conflito tem sido visto pela gerência: gerência
avalia que os trabalhadores não compreendem a importância da avaliação dos in-
dicadores de desempenho e metas, não vendo sentido na sua análise enquanto
instrumento de planejamento.

4. Formas de trabalhar o conflito: ouvir de cada um dos trabalhadores como


os indicadores impactam o seu dia a dia de trabalho, realizar uma discussão sobre
os indicadores de desempenho e resultado com a equipe de ESF, apresentar a
legislação e justificativa sobre os indicadores, discutir cada um dos indicadores a
serem alcançados pela equipe e sua relação com o dia a dia de trabalho, apresen-
tar série histórica dos indicadores da equipe a fim de que possa discutir os dados
a partir das características de seu território, incorporar ao conteúdo da reunião de
equipe a avaliação de relatórios mensais de produção da equipe, utilizar os relató-
rios de produção para organizar seus processos de trabalhos e as atividades ofe-
recidas à população, discutir com os trabalhadores indicadores importantes e não
contemplados nas normativas locais que poderiam ser inseridos, propor a discus-
são sobre os indicadores em reunião geral da unidade, convidando profissionais
das regionais de saúde a compor esse espaço de encontro.

ESTRATÉGIAS DE PRESERVAÇÃO DO TRABALHADOR DA


EQUIPE DE ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

Atuar em uma equipe de Atenção Básica no SUS constitui grande desafio


diante das iniquidades sociais, que presenciamos cotidianamente em nosso país.
A equipe de ESF no seu dia a dia de trabalho atuará em situações de violência
doméstica, violência sexual, situações de fome, perda de moradia por enchentes,
tráfico, entre outros, todas essas situações interferem na condição psíquica e, con-
sequentemente, relacional desse trabalhador e equipe.

168
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Segundo Santana e Rosa (2016), existem três situações de sofrimento e ado-


ecimento comuns em profissionais que trabalham com populações de alta vul-
nerabilidade, a saber: a síndrome de burnout, trauma secundário e fadiga da
compaixão.

Como podemos cuidar da equipe que se depara com frequentes e intensas


situações de sofrimento? É importante que o trabalhador possa ter um espaço na
reunião de equipe ou crie outros espaços para falar sobre esse sofrimento, outro
espaço importante para poder compartilhar essas situações são espaços com a
rede intersetorial, que também se depara com situações de violações de direitos e
vulnerabilidades.

Convidar e convocar a gestão para essa discussão por vezes torna-se funda-
mental, a fim de juntos pensarem em estratégias de cuidado com a equipe, como
supervisão institucional, ampliação de espaços de educação permanente, reforço
da garantia na agenda de espaços de reunião de equipe.

Para refletir!

Será que sua equipe não está precisando de um café da manhã ou


um picnic no parque para relaxar e falar sobre o sofrimento e des-
gaste de trabalhar em uma equipe de atenção básica?

Para saber mais!!

Sugestão de leitura:

SANTANA, C. L. A.; ROSA, A. S. (org.). Saúde mental das pesso-


as em situação de rua: conceitos e práticas para profissionais da
assistência social. São Paulo: Epidaurus Medicina e Arte, 2016.
Capítulo 14. Saúde Mental de quem trabalha com a População em
Situação de Rua. pp. 291-301.

169
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

• Síndrome de burnout – recorrente em situações de trabalho que acar-


retam alta demanda emocional e se apresenta como um esgotamen-
to relacionado ao trabalho, com sintomas como esgotamento físico ou
emocional pelo trabalho, atitudes negativas e cínicas, agressividade e
irritabilidade, sensação de incompetência e falta de sucesso no traba-
lho entre outras.

• Trauma secundário – acontece em pessoas que não vivenciaram uma


situação traumática “na pele”, não são vítimas propriamente ditas,
porém entram em contato com histórias (ou imagens) de trauma e
violência diversas. Ouvir e ver tantas situações de violência e entrar
em contato com o sofrimento das vítimas faz com que o profissional
também se traumatize e, com isso, passe a manifestar sintomas que
podem ser muito semelhantes aos da vítima inicial.

• Fadiga da compaixão – estado em que há exaustão e disfunção, como


na síndrome de burnout, com a diferença de que se entende que isso
seria resultante da exposição prolongada a situações que despertam
compaixão, mas também causam ou passam a causar estresse. A com-
paixão surge a partir de um encontro em que há sofrimento do outro.
E, para trabalhar com pessoas em sofrimento, o profissional deve em-
patizar e se vincular trazendo por vezes “um custo” para este cuidar
(SANTANA; ROSA, 2016).

170
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

BOA PRÁTICA: APLICANDO TÉCNICAS DE COMUNICAÇÃO!

Aqui vamos apresentar um relato de uma equipe da ESF que pertencia a uma
UBS composta de mais cinco equipes ESF. Uma unidade com mais equipes ne-
cessita de outras organizações gerais e precisa negociar conflitos, desejos, neces-
sidades entre todas as equipes, além de organizar o uso de sala, carro, escala de
acolhimento e tudo o que estamos estudando com a gestão de cuidado.

A Unidade de Saúde possuía seis equipes de ESF, quatro equipes de saúde bu-
cal e era a “base” da equipe do Nasf-AB, possuía boa estrutura física, com 14 salas
de atendimento, sala de vacinação, sala de procedimentos, sala de grupo, farmácia,
uma sala que comporta as equipes de saúde bucal, ampla área de recepção, além
da área administrativa, bastante organizada do ponto de vista estrutural para que
o trabalho funcionasse bem. No entanto, sempre existiam dificuldades em relação
ao uso das salas, pois quatro das seis equipes de ESF possuíam graduandos de
medicina e duas equipes possuíam médicas residentes de medicina de família e
comunidade, que usavam as salas com bastante frequência, e as salas dos profis-
sionais do Nasf.

Partimos da organização geral dessa unidade, que possuía a fama de que ne-
nhuma coordenação “dava conta dessa equipe”, uma unidade que carregava a
marca de ser muito difícil realizar a gestão, pois todos eram muito “sabedores da
razão”. Depois da troca de quatro coordenações, chegou uma nova coordenado-
ra que optou por uma coordenação mais na lógica da autogestão apoiada, com
maior autonomia das equipes. A gestora se ocupava grande parte do tempo com
as análises da produção das equipes, reflexão sobre os indicadores de desempe-
nho, discutindo com elas os pontos de fragilidade, sendo possível, assim, aos pou-
cos, compreender seus processos de trabalho. Essas discussões aconteciam nas
reuniões de equipe da unidade, uma vez ao mês. Com a apresentação dos indica-
dores, era visível a preocupação das equipes em construir estratégias de cuidado
para avançar na qualidade dos dados.

Um indicador que gerava muito debate e preocupação era a consulta odonto-


lógica de gestantes. Algo que aparentemente era simples, tornava-se muito difícil,
pois as gestantes faltavam às consultas odontológicas e pareciam não associá-las
aos cuidados do pré-natal. O debate franco apontando as possíveis dificuldades de
as gestantes virem até a unidade várias vezes, o fato de não conseguirem identifi-

171
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

car que essa consulta era importante para o pré-natal e o medo das consultas com
esse profissional eram temáticas discutidas nos encontros. Optou-se por reservar
duas consultas odontológicas durante os períodos em que as equipes atendiam às
gestantes e elas passavam pela consulta com médico(a) ou com enfermeiro(a) e
no mesmo dia passavam pela avaliação com dentista.

Outro ponto do qual a gestora se ocupou foi apresentar as diretrizes técnicas


propostas pela secretaria, sempre valorizando a fala dos profissionais, reconhecen-
do as dificuldades e estando aberta para construir as possibilidades para que as
“coisas acontecessem”, viabilizando e agilizando questões administrativas e orga-
nizacionais, como carros para visitas domiciliares, espaços para atendimentos, en-
tre outros.

Com a maior autonomia das equipes na organização de suas agendas e pro-


cessos de trabalho, foi definido o cronograma de visitas domiciliares de cada equi-
pe, escala de profissionais na sala de procedimentos, recepção de usuários e aco-
lhimentos para verificação de sinais vitais.

Podemos observar que uma escuta das equipes, garantia de espaço para dis-
cutir problemas que envolvem todos os membros e a Unidade e o acolhimento da
gestora possibilitaram um alívio na tensão e um avanço na construção do trabalho
em equipe.

Optamos por apresentar as estratégias de uma das equipes de ESF na resolu-


ção de conflitos do dia a dia de trabalho. Ela era composta de 1 médico especialista
em saúde da família, 1 enfermeira especialista em saúde da família, 1 médica resi-
dente, 2 técnicos de enfermagem e 6 agentes comunitárias de saúde, a população
cadastrada era de, aproximadamente, 5 mil pessoas.

A principal característica dessa equipe é a parceria estabelecida entre o médi-


co e a enfermeira. E tinha como marca a frase: “Onde um for, o outro vai, a trans-
parência sempre deve prevalecer”. O médico apontava que a enfermeira geria a
equipe e, de fato, assim o era, de forma compartilhada, negociada, discutida entre
todos da equipe e não apenas os dois profissionais de nível superior, a regra era
deixar tudo o mais claro possível no processo de comunicação.

A equipe tinha uma agenda semanal, e esta era seguida de maneira bem sis-
temática.

172
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

Segunda Terça Quarta Quinta Sexta


Demanda Demanda Demanda Demanda Demanda
espontânea espontânea espontânea espontânea espontânea

Agenda programada:
Saúde integral
Agenda - puericultura, puerpério e
programada: Agenda pré-natal.
Primeira quarta
programada:
do mês: matri-
- puericultura, Terceira sexta do mês: grupo
ciamento Nasf
puerpério e - puericultura, puer- HAS/DM
Visita
pré-natal pério e pré-natal
domiciliar Bimestralmente:
1x por mês reunião de enfer-
matriciamento
1x por mês 1x por mês reunião meiros e técnicos
com os CAPS
reunião com entre médicos e
enfermeiros enfermeiros - supervisão dos ACS
Reunião da
da unidade
equipe
- 1x mês reunião geral da
UBS

Obs.: Hipertensos e diabéticos são avaliados na demanda livre, bem como exames, queixas crôni-
cas, agudas, casos de saúde mental, entre outras. Durante a pandemia, essa escala sofre modifica-
ções, com profissionais deslocados para as ações específicas.

E como se organizavam as reuniões de equipe? Tudo sempre tranquilo e har-


monioso? Não, como vimos, as relações interpessoais são repletas de conflitos e
isso é natural, não sendo possível evitá-los. Contudo, é imprescindível que possa-
mos refletir nas melhores formas de gerenciá-los, sendo o diálogo a principal for-
ma de buscar essa resolução e harmonização. Participavam da reunião todos os
integrantes da equipe, sendo organizada da seguinte forma:

• Assuntos administrativos e outras demandas que precisam ser levadas


para discussão com a chefia imediata, para outras equipes ou serviços
da rede de saúde ou rede intersetorial.

• Reorganização da escala da agenda conforme novas demandas apre-


sentadas.

• Estudos de caso – discutir os casos, condução deles, definição de casos


para visitas domiciliares, casos para matriciamento com a equipe do
Nasf e dos CAPS.

Os conflitos emergiram nas discussões de assuntos administrativos que preci-


sam ser levados à gerência e nos estudos de caso. A discussão sobre o número de

173
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

visitas domiciliares dos agentes de saúde, o acompanhamento de casos crônicos,


de famílias de alta vulnerabilidade eram bastante frequentes, e os agentes diziam
que essas famílias “não colaboravam”.

Sempre que necessário, discutia-se mais de uma vez os casos para que todos
pudessem compreender a importância de cada profissional na gestão de cuidado
da família e/ou do indivíduo e na construção e desenvolvimento de seu projeto de
cuidado. A construção do PTS exigia mais de um encontro da equipe, para alinhar
conceitos, avaliar propostas variadas, discutir diferentes estratégias de cuidado. As
estratégias utilizadas eram a conversa e a explicação das questões de saúde, com
busca de exemplos de outras práticas para a condução dos cuidados.

Garantir o espaço para falar sobre os incômodos e as dificuldades, construir


formas para lidar com elas, o respeito entre os membros da equipe são ações im-
portantes para a construção de boas relações em equipe.

As definições e a organização das visitas domiciliares eram feitas durante as


reuniões de equipe partindo de alguns pontos: complexidade e prioridade dos ca-
sos, como as visitas domiciliares de recém-nascidos até sete dias de vida, famílias
com dinâmicas disfuncionais, casos de saúde mental de maior complexidade, fa-
mílias com maior vulnerabilidade social, entre outros.

Um fato importante, que gerou algum conflito, mas foi solucionado nessa equi-
pe, foi quando a Secretaria de Saúde suspendeu a contratação de motoristas para
as Unidades Básicas de Saúde, sugerindo que os profissionais com interesse em
dirigir teriam de assinar documento específico e regularizador, com apresentação
de suas carteiras de motorista. Depois de muita discussão entre toda a Unidade de
Saúde e internamente à equipe, com tentativa de recontratação de motorista, a
enfermeira e o médico decidiram que deveriam voltar-se mais para visitas domici-
liares e para conhecer melhor o território. Ambos conversaram com a equipe sobre
a questão, discutiram a importância das visitas domiciliares e, de forma conjunta,
decidiram realizar o transporte das atividades da equipe, juntamente com uma
técnica de enfermagem e uma agente comunitária que aceitaram dirigir para via-
bilizar os cuidados necessários ao território.

Esse relato de boas práticas aponta a importância da organização de uma


agenda de trabalho, da regularidade de reuniões em equipe, da parceria entre os
membros da equipe, do respeito com posicionamentos diferentes entre os traba-
lhadores, do reconhecimento do trabalho de todos.

174
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

O trabalho dessa equipe reforça o papel da comunicação, a habilidade de es-


cuta entre os profissionais, o saber lidar com as diferenças, a definição de objetivos
em comum para o bom desenvolvimento e qualidade do trabalho.

Saiba mais:

Na página 99 do manual de Gerenciamento Local da APS DF é


possível conferir outras formas de organização de agenda propos-
tas pela SES-SF:

O Manual de gerenciamento GSAP <https://www.saude.df.gov.br/


documents/​37101/63767/MANUAL_DE_GERENCIAMENTO_LO-
CAL_DA_APS_DF.pdf> , no item Organização da Agenda das
Equipes propõe um modelo específico para o DF.

175
BOA
BOAPRÁTICA
PRÁTICADA
DAUNIDADE
UNIDADE4 4

QUEM NÃO SE COMUNICA SE TRUMBICA!

Em uma equipe de ESF, durante reunião de equipe semanal, enquanto a enfermeira levantava a
pauta para o encontro, um agente de saúde, aquele conhecido como “briguento”, pede para falar sobre
o fato de um colega de trabalho, também agente comunitário de saúde, chegar atrasado todos os dias.
Apesar da proposta de organização da pauta, esse agente de saúde, muito irritado, aponta o dedo para
seu colega dizendo estar cansado de ficar todos os dias, logo cedinho, acolhendo os moradores da
área dele, orientando sobre fluxos na unidade e pedindo para eles voltarem no outro dia para que
pudessem falar diretamente com o agente de referência.

Com tom bastante irritado, questiona


se de fato estão fazendo um trabalho em
equipe e pede esclarecimentos a seu
homólogo e posicionamento da equipe
em relação a essa situação.

O agente de saúde que tem chegado atrasado à unidade pede desculpas, bastante envergonhado e,
ao tentar começar a falar, é interrompido pelo auxiliar de enfermagem da equipe, que reforça que tem
agendado algumas coletas laboratoriais em domicílio na área dele, mas que estas estão atrasadas, pois ele
não está na unidade cedo para que o façam conjuntamente, em especial para os casos novos do território.

O agente de saúde novamente tenta


falar e a enfermeira da equipe o interrompe
e argumenta a importância da colaboração
de todos no trabalho em equipe, fala sobre
a responsabilidade profissional com o
cumprimento do horário de trabalho e diz
que terá de comunicar à coordenação da
unidade a respeito dos atrasos constantes.
A equipe passa para outra pauta que havia sido levantada, e o agente de saúde que teve os atra-
sos apontados permanece quieto, após tentar falar por três vezes e ser interrompido. A reunião de
equipe termina, e a semana de trabalho segue com mal-estar importante entre os agentes de saúde,
alguns deles, apesar de não terem se posicionado na reunião, também se sentiam sobrecarregados
com os atrasos do colega.

Na reunião de equipe da outra semana, a pauta do atraso do agente de saúde é trazida nova-
mente, quando este tenta se justificar, é interrompido novamente por seu colega de trabalho, levan-
ta-se da sala, bastante irritado e abandona a reunião. A enfermeira tenta chamá-lo de volta, mas ele
sai da unidade a passos largos. A equipe continua a reunião de equipe dizendo da postura inadequa-
da do colega e diz que “não é assim que as coisas devem ser resolvidas”!

A médica da equipe, bastante quieta e muito atenta às “movimen-


tações” e características de cada membro, pede para falar e pondera
que, em dois encontros seguidos, isso é trazido como pauta. Informa
que o agente de saúde tentou falar por diversas vezes sobre os seus
atrasos e fora interrompido pelos colegas, aponta que na última
reunião ele permaneceu quieto durante todo o tempo e que, hoje, ao
tentar falar novamente, foi interrompido. Relata que ele é bastante
tímido, recém-chegado à equipe e que ainda tem buscado seu “lugar”
com o grupo que já se conhece e trabalha há muito tempo junto.
Reforça com o grupo que a chegada em uma nova equipe é sempre
muito difícil e pede para que os colegas relembrem como foi cada um
de seus processos ao chegarem a uma equipe nova de trabalho.

Fala também que cada um tem características


muito diferentes e que estas precisam ser respeita-
das e identificadas. Aponta que o agente de saúde
em questão é bastante quieto, tímido, nunca
trabalhou na área de saúde, mas tem desenvolvido
um ótimo trabalho no território, tendo sido muito
elogiado pela população. Reforça que ele fora desres-
peitado por todos quando fora interrompido, já que
não teve a chance de dizer o que estava havendo,
ainda que entendesse que os atrasos dele de fato
estavam sobrecarregando os demais colegas e
que isso precisava ser trazido na reunião, pois se
tornara um conflito na equipe.
O grupo escuta a médica de maneira silenciosa e, após terminar sua fala, reconhece que agiram
de modo equivocado com o colega. O agente de saúde “briguento” concorda que fora desrespeitoso
e inclusive hostil com o colega e que, às vezes, se irrita com o fato de ele não falar nada na reunião
“entrar mudo e sair calado”, por outro lado, diz que também era bastante quieto quando chegou à
equipe e que só conseguiu se posicionar quando se sentiu mais seguro com o trabalho.

A auxiliar de enfermagem fala que, enquanto equipe, não demos a opor-


tunidade dele se explicar e aponta outros exemplos dessa situação, relem-
brando as outras reuniões de equipe quando discutiam outras pautas.

A enfermeira da equipe diz se sentir enver-


gonhada com a postura dela, dizendo que
havia sugerido falar com a coordenação da
UBS antes mesmo de seu colega de trabalho e
entender o que estava havendo com ele, avalia
inclusive a situação que ali acabara de aconte-
cer quando todos em silêncio escutaram a
médica da equipe, reforçando que talvez aquela
equipe precise pensar sobre “as vozes que são
mais ouvidas” e as que são menos ouvidas.

Aponta que talvez tenham muitos problemas de comunicação que precisem ser mais bem
observados e que a médica daquela equipe tinha muita habilidade nessa escuta e observação
do grupo.

Os demais agentes de saúde sugerem que possam chamar uma reunião urgente, não pro-
gramada com o colega, para oportunizar sua fala e refletir os pontos levantados na sua ausên-
cia, a fim de garantir transparência e respeito, tão fundamentais no trabalho em equipe.
No outro dia, na reunião “extraordinária”, o agente de saúde “briguento” pede desculpas
para seu colega por sua hostilidade e gestual (apontar o dedo), os demais profissionais se
colocam e o agente de saúde pode dizer que vinha se sentindo muito desconfortável com a
equipe, pois não conseguia se posicionar diante das discussões, diz que o dia que saiu da sala
e abandonou a reunião sentiu-se muito envergonhado com sua atitude, mas não conseguiu
expressar sua insatisfação de outra maneira.
O grupo o acolheu e disse que tinha contribuído, e
muito, para que isso acontecesse. O agente pôde,
então, falar sobre os seus atrasos, informou ao grupo
que estava estudando à noite, fazendo um curso de
auxiliar de enfermagem, e que chegava à casa todos
os dias muito tarde, assim acordava atrasado todos
os dias; pôde questionar se era possível mudar seu
horário de trabalho para que pudesse entrar um
pouco mais tarde e não causar tantos conflitos na
equipe. Uma agente de saúde falou de sua possibili-
dade de entrar mais cedo, para que pudesse sair mais
cedo também e que essa mudança a ajudaria muito,
pois conseguiria buscar sua neta na creche. A enfer-
meira parabenizou o agente pela iniciativa de voltar a
estudar e agradeceu a disponibilidade da colega em
apoiá-lo nessa mudança de horário, comunicando que
conversaria com a coordenação da unidade.

Esse caso ilustra a importância de estabelecermos boa comunicação em um trabalho em equipe,


atentar para as variadas características dos membros da equipe, observar se a palavra está circulan-
do nos espaços coletivos, se as pessoas estão tendo a oportunidade de se colocar ou ficam no lugar
de ouvintes apenas; também aponta o quão fundamental é analisar a situação-problema, entender
suas origens e construir espaços para falar sobre isso.

Uma situação mal resolvida ou observada pode se desdobrar em muitos conflitos e processos de
trabalho desgastantes, abandono ou infelicidade no dia a dia de trabalho. Outra situação importante
que o caso traz são os rótulos “aplicados” aos trabalhadores: o “briguento”, o “tímido” e o quanto
isso pode dificultar as relações interpessoais e valorização de outras características e habilidades do
trabalhador. Por fim, é fundamental que as diferenças de escolaridade possam ser diluídas nas
relações interpessoais, evitando que falas e apontamentos dos profissionais de nível superior
tenham maior “valor” ou “peso” nos processos decisórios, devendo a equipe buscar a todo tempo
relações cada vez mais horizontais no dia a dia de trabalho.
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

ENCERRAMENTO

Nesta unidade, vimos que os conflitos interpessoais são condição do trabalho


e que “fugir” deles não representa uma boa estratégia para resolvê-los. Conhecer
técnicas de comunicação, entre elas a comunicação não violenta, planejar o tra-
balho, organizar as reuniões de equipe, discutir sobre técnicas de mediação de
conflitos são importantes para o desenvolvimento de boas relações das equipes de
saúde.

Reconhecer que o ambiente de trabalho pode ser adoecedor e que estabele-


cer espaços saudáveis de comunicação deve ser um investimento de todo gestor
de unidade e membros das equipes de atenção primária em saúde.

180
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

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182
ESTRATÉGIA
SAÚDE DA FAMÍLIA

FICHA TÉCNICA

© 2022. Ministério da Saúde. Escola Fiocruz de Governo. Fundação Oswaldo Cruz.


Alguns direitos reservados. É permitida a reprodução, disseminação e utilização desta
obra, desde que citada a fonte. É vedada a utilização para fins comerciais.

Curso de Estratégia Saúde da Família. Brasília: [Curso na modalidade a distância].


Fiocruz-2022.

PROGRAMA QUALIS APS


Secretaria de Estado de Saúde O Programa Qualis APS tem por objetivo cooperar
no processo de qualificação da gestão e da assis-
do Distrito Federal
tência, visando à melhoria dos serviços prestados
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Subsecretaria de Atenção Integral à Saúde É viabilizado por meio de convênio da Secretaria

Coordenação da Atenção Primária à Saúde de Estado de Saúde do Distrito Federal com a Fio-
cruz Brasília e a Fundação para o Desenvolvimen-
Diretoria da Estratégia Saúde da Família
to Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec) e
Gerência de Estratégia Saúde da Família
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Gerência de Apoio à Saúde da Família
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Coordenação Adjunta do curso Bruno Costa

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