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Disciplina Biogeografia (UVA) O Poema Imperfeito Trecho do 3° capítulo

Fernando Fernandez

Capítulo 3

De heróis e tolos da ciência: A Teimosia de Leon


Croizat

Ao estudarem biogeografia - o ramo das ciências biológicas que se dedica ao estudo


das distribuições geográficas dos seres vivos - os estudantes aprendem que o paradigma
dominante nesta ciência hoje é uma teoria chamada biogeografia de vicariância. Aprendem,
também, que esse paradigma está ligado aos nomes de Gareth Nelson, Nelson Platnick e Donn
Rosen, que o formularam explicitamente na década de setenta. No entanto, geralmente não se
dá tanta atenção à origem da revolucionária ideia que é a pedra fundamental da biogeografia
de vicariância: a de que as distribuições atuais dos seres vivos são explicadas não pêlos
movimentos dos mesmos entre os continentes, mas principalmente por que a geografia
muda, os continentes se movem carregando as biotas que os habitam. A terra se move
carregando a vida. É uma mudança de perspectiva fundamental, mas poucos hoje ouvem falar
do homem que primeiro a alcançou: Leon Croizat. Por exemplo, no recente livro "As Sete
Maiores Descobertas Científicas da História", de Brody & Brody, há um capítulo inteiro
dedicado à história da descoberta de que os continentes se moviam, e à importância disso
para o estudo da evolução biológica, e, no entanto, não há no capítulo inteiro uma só menção
a Leon Croizat. Ele, que nos deu a chave para entender a história das espécies de animais e de
plantas, foi completamente esquecido pela história dos homens.
Croizat foi um cientista atípico, em tudo diferente dos nossos estereotipados padrões
de cientista. Autodidata, nunca fez um Doutorado ou um Mestrado, e sua graduação nem
sequer foi em biologia. No entanto foi um cientista cujas ideias revolucionaram
profundamente esta ciência, e sua carreira foi uma das mais fantásticas aventuras intelectuais
que se conhece. Com uma trajetória atribulada, obteve uma posição acadêmica pela primeira
vez já depois dos cinquenta anos de idade. Passional, era dono de um estilo inflamado e
agressivo, que nada tinha a ver com a fria objetividade que nos acostumamos a encontrar em
publicações científicas. Em parte por isso, nunca publicou nas boas revistas científicas (exceto
no finalzinho da carreira), mas sim em livros editados do seu próprio bolso. Teimoso, defendeu
durante décadas que as posições e formas das massas continentais mudavam no tempo,
baseado apenas em dados biológicos, enquanto o estabishment da própria geologia
considerava que os continentes eram fixos. Contraditório e arrogante, quando finamente teve
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o apoio da geologia, renegou-o dizendo que os continentes se moviam, mas não por causa das
razões que os geólogos apontavam! Chamado de louco por alguns, esquecido pela maioria,
Croizat foi uma das mais controversas, coloridas e fascinantes figuras humanas nas ciências
biológicas neste século.
O primeiro dos vários equívocos que correm sobre Leon Croizat é sobre sua
nacionalidade. Embora muitos o considerem venezuelano, ele nasceu em Turim, na Itália, em
1894, filho de comerciantes. De sua infância ele diz que era "apaixonadamente curioso sobre
plantas e animais, e nunca duvidei que estudaria as ciências naturais". A história quis de outra
forma. Em 1914 Croizat foi convocado para lutar pelo exército itaiano durante a primeira
guerra mundial, e viveu todo o inferno da guerra de trincheiras.
Depois do fim do conflito, com a Itália mergulhada no caos, tudo que Croizat pode
fazer foi se graduar em Direito, pela Universidade de Turim, graças a condições especiais de
ingresso à Universidade que beneficiavam os veteranos de guerra. Em 1922, ele se preparava
para reingressar à Universidade, agora para cursar um PhD, quando iria finalmente estudar as
suas amadas ciências naturais. Mais uma vez, porém, os sonhos do jovem Leon foram
atropelados pela história. Mussolini subiu ao poder, instaurou o fascismo, e Croizat, como
milhares de outros, viu-se perseguido por razões políticas e foi forçado a abandonar seu país
natal.
Após passar por vários países, Croizat finalmente se instalou nos Estados Unidos em
1923, e conheceu a dura realidade de um imigrante estrangeiro em tempos de depressão
econômica (um tema que volta a ser muito atual ultimamente). Passou por empregos
precários e tempos difíceis durante nada menos que quinze anos, até obter um trabalho
temporário mapeando o terreno do Arboreto Arnold, da Universidade de Harvard. A sorte de
Croizat começou a mudar quando, após concluído o serviço, ele conseguiu permanecer como
empregado do Arboreto, na condição de assistente técnico, ganhando trinta dólares por
semana. Não era propriamente um grande emprego, mas tinha suas vantagens, especialmente
bastante tempo livre, e acesso a uma das melhores coleções de plantas do mundo e a uma
magnífica biblioteca. Estávamos em 1938, e Croizat, aos quarenta e quatro anos, estava
prestes a começar sua carreira científica...
De posse das facilidades que dispunha, Croizat se lançou, absolutamente sozinho e
sem orientação, a um programa de pesquisa de ambição extraordinária e quase alucinada.
Fluente - por puro autodidatismo - em todas as línguas importantes da ciência, propôs-se a
entender, a partir das fontes originais, todo o pensamento de botânica ocidental desde seus
primórdios no século XVII. Propôs-se, ainda, a entender os padrões de distribuição geográfica
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das plantas no mundo. Não de um grupo de plantas, mas de todas as plantas. Durante quase
dez anos, de 1938 a 1947, Croizat se dedicou a esse projeto, dia após dia, incansavelmente, em
todo tempo livre que conseguia tirar de seu trabalho. Tudo que lia, pensava ou percebia,
registrava em cadernos de anotações. Aos poucos, seu pensamento vigoroso e original se
espalhou por quatrocentos desses cadernos.
Qualquer orientador o teria desaconselhado desse projeto, dessa rematada loucura.
Mas a loucura acabou sendo uma benção. Ironicamente, a abordagem insensata de Croizat
permitiu-lhe apreciar melhor algo a que os especialistas, que trabalhavam com grupos
restritos, não haviam dado a devida importância. Croizat percebeu que muitos padrões de
distribuição eram congruentes, mesmo em grupos de plantas muito distantes taxonômica e
ecologicamente. Por exemplo, Croizat notou que as bétulas do hemisfério sul (gênero
Notophagus) tinham uma distribuição estranha; essas árvores eram encontradas apenas na
Austrália, na Nova Zelândia, e no sul da América do Sul. Aos poucos, no entanto, ele foi
percebendo uma coisa ainda mais estranha: muitas outras plantas, pouco ou nada
aparentadas às bétulas, também tinham distribuições similares ou idênticas. Croizat foi ainda
mais longe e investigou os padrões de distribuição de vários grupos animais, e notou que,
entre outros, espécies de peixes e crustáceos de água doce, de minhocas, de moluscos e de
aves repetiam em linhas gerais a mesma distribuição de Notophagus. Biotas inteiras - grandes
conjuntos de espécies - seguiam uns poucos padrões repetidos de distribuição.
Na época de Croizat, o paradigma dominante era o chamado dispersionismo,
defendido por todos os grandes biogeógrafos, entre os quais se encontravam alguns dos
maiores nomes da biologia do século XX, tais como Ernst Mayr e George Gaylord Simpson, que
muito haviam contribuído para o aperfeiçoamento da teoria da evolução. O dispersionismo
propunha, em linhas gerais, que cada espécie se origina em um local que é o seu centro de
origem, e dali se dispersa em várias direções, sendo sua distribuição atual o resutado desta
dispersão a partir do centro de origem. Toda a ênfase era colocada sobre um papel ativo dos
organismos, emigrando para novas áreas; a geografia era vista como um mero cenário passivo,
estático.
No entanto, quanto mais Croizat olhava para os seus milhares de padrões de
distribuição de plantas e animais, melhor percebia que o dispersionismo não explicava o que
ele via. Por que muitas centenas de espécies de organismos com ecologias tão diferentes, e
capacidades de dispersão tão diferentes, dispersariam seguindo padrões tão similares?
Claramente o dispersionismo não podia explicar bem tão impressionantes coincidências. Mas
como explicá-las então?
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Croizat percebeu que a resposta só podia estar numa radical, revolucionária mudança
de perspectiva. Se biotas inteiras tinham distribuições congruentes, não era porque as biotas
se moviam juntas entre os continentes. Tinha que ser porque os continentes se moviam
carregando as biotas.
Esta pode ser uma ideia familiar hoje em dia, mas era um salto conceitual fantástico na
época de Croizat. É bem verdade que o geólogo alemão Alfred Wegenerjá tinha proposto
desde 1912 a deriva continental, ou seja, que os continentes se moviam. Tinha mesmo sido
proposto que já teria havido um supercontinente sul (Gondwana) e um supercontinente norte
(Laurásia). Mas as ideias de Wegener tinham caído em descrédito na geologia, porque
ninguém tinha sido capaz de vislumbrar algum mecanismo sequer remotamente plausível que
pudesse explicar como os continentes se moviam! No entanto Croizat sustentou, baseado
apenas em seus dados biológicos, que a geologia vigente estava errada, e que Wegener estava
certo o tempo todo.
É verdade que Croizat discordava frontalmente da ideia de "continentes flutuantes"
defendida por Wegener; preferia acreditar que eram subidas e descidas dos fundos oceânicos
que haviam mudado a distribuição das massas de terra no globo ao longo do tempo geológico.
No entanto, Croizat concordava com o ponto central das ideias do alemão, ou seja, a noção de
que a geografia não era fixa. Wegener tinha que estar certo. As distribuições coincidentes de
centenas de espécies de plantas na Austrália, Nova Zelândia, sul da África e América do Sul não
faziam sentido por dispersionismo, mas faziam todo sentido se estes três lugares um dia
tivessem sido unidos como parte de um mesmo continente e depois tivessem se separado aos
poucos e ido para lugares diferentes da Terra carregando suas respectivas biotas. As biotas
desses quatro lugares eram similares por serem descendentes de partes de uma mesma biota
ancestral - a de Gondwana.
Croizat alcançou sua revolução conceitual ainda em Harvard, mas não teve chance de
publicá-la por lá. Com dez anos de trabalho ele ganharia estabilidade no seu cargo, mas para
evitar que isto acontecesse, a Universidade o demitiu poucos meses antes de completar dez
anos. Ele estava novamente sem emprego, com uma ideia que revolucionaria a biologia, mas
sem diploma de biólogo e sem publicações no seu currículo. Com essas escassas qualificações,
naturalmente não teve nenhuma chance de obter um cargo de pesquisador nos Estados
Unidos. Teve muita sorte, na verdade, em acabar sendo aceito como professor na
Universidade de Caracas, na Venezuela, em 1947. Aos cinquenta e três anos, Croizat conseguia
uma posição acadêmica pela primeira vez.
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Em Caracas, Croizat começou a colocar suas ideias no papel. Postulava que as biotas
atuais são descendentes de biotas ancestrais que existiram no passado e que as biotas
ancestrais se dividiram em resposta a mudanças geográficas, produzindo assim espécies
vicariantes. Vicariante vem da palavra italiana para representante; espécies vicariantes são
aquelas que hoje ocupam diferentes áreas, mas que possuem um mesmo ancestral que ocorria
em uma área única no passado. A ideia de espécies vicariantes não era nova, vindo pelo menos
desde Darwin e do co-descobridor da seleção natural Alfred Russell Wallace, como o próprio
Croizat sempre reconheceu. Mas foi Croizat quem fez o salto das espécies em particular para a
biota como um todo.
Movimentos de espécies isoladas ocorrem entre as biotas após a separação destas
últimas, dificultando reconstruir a sequência de eventos de vicariância que originaram a
distribuição atual de uma espécie. Em vista disso, Croizat postulava que para entendermos as
distribuições das espécies em particular, era preciso entender o que tinha ocorrido com a
distribuição da biota como um todo. Padrões de distribuição muitas vezes repetidos
("traçados generalizados") permitiriam caracterizar o que havia acontecido com a biota como
um todo; movimentos posteriores seriam facilmente identificados pelo contraste com o
padrão geral.
Um bom exemplo é dado pelos marsupiais. Estes animais - cangurus, gambás, e
espécies afins - se distribuem apenas na Austrália e na América do Sul, com a exceção de uma
única espécie que veremos a seguir. Tal padrão de distribuição é similar ao de um imenso
número de outros organismos - plantas e animais - que apresentam o mesmo traçado
generalizado. A coincidência de padrões, por sua vez, indica que as biotas da América do Sul e
da Austrália já estiveram algum dia unidas na mesma biota ancestral (no caso, a de
Gondwana). Esta biota ancestral mais tarde se partiu originando os continentes atuais, cada
qual levando os ancestrais dos marsupiais atuais - que são portanto vicariantes dos marsupiais
de Gondwana.
Se analisássemos separadamente a distribuição do gambá norte-americano (Didelphis
virginiana), o único marsupial que ocorre na América do Norte, dificilmente chegaríamos a
esta conclusão. Quando porém D. virginiana é visto dentro do contexto da distribuição do
grupo como um todo, fica muito claro que é uma exceção. A ocorrência do gambá na América
do Norte se deve à colonização por movimentos posteriores da espécie (hoje se sabe que de
fato a formação do istmo do Panamá é muito recente no tempo geológico) e não a que ela
tenha se originado ali.
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Croizat chamou a sua revolucionária visão de Pan-biogeografia, que significa


biogeografia do todo. Sempre sustentou que a Pan-biogeografia não era uma teoria, mas sim
um método para analisar padrões biogeográficos.Para expor suas ideias, escreveu volumosos
livros, em característico estilo prolixo, confuso e repetitivo. Neles alinhava intermináveis
sequências de exemplos de seu método aplicado aos mais variados grupos de plantas e de
animais. Após dez anos de trabalho, estava pronto o primeiro grande tratado
Panbiogeography, cerca de mil páginas em três volumes. Mas, depois desse trabalho imenso e
laborioso, veio a enorme decepção para Croizat. Nenhum editor se interessou em publicar
suas ideias.
Nem mesmo mais este obstáculo foi capaz de deter um homem com a tenacidade, a
garra de Leon Croizat. Sacrificando suas modestas economias, ele publicou o livro do seu
próprio bolso. Panbiogeography finalmente saiu em 1958. Aos sessenta e quatro anos, Croizat
via as ideias de uma vida inteira publicadas pela primeira vez. Um segundo livro sobre suas
ideias, Space, Time, Form: the Biological Synthesis, sairia em 1964, também publicado pelo
próprio Croizat.
A partir deste momento, Croizat gradualmente passou a ser um nome conhecido na
biogeografia mundial. Começou, também, a publicar artigos em revistas científicas de pouco
prestígio, na Venezuela e em outros países; não publicara porém nenhum artigo nas revistas
científicas de "primeiro time". Na verdade não era conhecido ainda como um genial inovador,
e sim como um venezuelano meio louco com ideias bizarras. Em suas publicações, argumentou
vigorosamente contra os grandes defensores do dispersionismo na época, como Darlington,
Mayr e Simpson. Seu estilo de escrever era a antítese do contido estilo científico. Croizat
escrevia em primeira pessoa, argumentando de maneira passional e agressiva, e com
frequência atacando violentamente seus rivais. Por exemplo, a respeito de um argumento do
grande Ernst Mayr, Croizat comentou que ele (Mayr) não poderia estar escrevendo aquilo de
boa fé. Croizat usava também de ironia e de frases inteiras em caixa alta para sublinhar suas
posições. A agressividade e a estranheza de seu estilo certamente não contribuíram para que
suas ideias ganhassem mais aceitação.
Mayr pelo menos escreveu várias vezes defendendo tenazmente o dispersionismo
contra as ideias de seu ardoroso rival. Já Simpson tomou em relação a Croizat uma atitude
talvez única na história das polémicas científicas: simplesmente recusou-se a escrever seu
nome uma única vez. Não que ele desconhecesse Croizat, pois Simpson várias vezes chegou a
discutir algumas críticas brandidas por um "venezuelano excêntrico". Em uma passagem,
Simpson escreveu: "..alguns poucos entusiastas defenderam tal absurdo [se referindo à ideia
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de vicariância] até o ponto de descer ao nível de ofensas pessoais''. Os referidos "entusiastas"


não foram identificados. Nas milhares de páginas da grandiosa obra científica de Simpson, em
nenhum lugar se encontra escrito o nome Leon Croizat,
No final da década de sessenta, bem no meio da acesa polémica entre Croizat e seus
rivais, caiu uma verdadeira bomba vinda da geologia: a tectônica de placas. O trabalho
simultâneo de vários geólogos foi deixando claro, a partir de 1967-68, que a crosta terrestre é
formada por gigantescas placas rígidas, incluindo tanto continentes como assoalhos oceânicos,
que se movem lentamente sobre um manto pastoso. O movimento é impulsionado pelas
correntes de magma sob a superfície da Terra. A crosta pesada afunda nos continentes e
torna-se menos densa e mais fluida pelo contato com as altíssimas temperaturas no interior do
planeta. Ao aflorar, nas cordilheiras meso-oceânicas, este magma gera a separação das placas
para ambos os lados com a formação de novo assoalho oceânico. Um exemplo é o da América
do Sul e da África, que já estiveram juntas como parte do supercontinente meridional
Gondwana. Hoje são separadas pelo Atlântico e ainda se afastam lentamente, à medida que
assoalho oceânico é produzido na Dorsal Meso-Atlântica. Quando duas placas movendo-se em
direções diferentes se chocam, a colisão vai gerando um dobramento das placas que resulta na
formação de grandes cordilheiras. E o caso, por exemplo, do Himalaia, formado como
consequência do choque da Índia, que originalmente fazia parte do Gondwana, com a Ásia,
que era parte do supercontinente setentrional, Laurásia.
Como vimos, não era nova a ideia da deriva continental, ou seja, de que os
continentes se moviam, imperceptivelmente, ao longo dos milhões de anos do tempo
geológico. Wegener propusera isto décadas antes. Porém, as ideias de Wegener nunca haviam
sido aceitas, pelo mesmo motivo pelo qual a realidade da evolução não havia sido aceita antes
de Darwin: o fenômeno, mesmo que evidente, muitas vezes só é aceito cientificamente
quando há um mecanismo plausível para explicá-lo. Darwin, com a seleção natural, havia
fornecido o mecanismo plausível para a evolução; agora a tectônica de placas fazia o mesmo
para a deriva continental. Wegener foi reabilitado e a deriva continental em poucos anos
tornou-se amplamente aceita na geologia. A implicação disto para a biogeografia aos poucos
também foi se tornando clara: Croizat tinha estado certo o tempo todo.
Seria de se esperar que Croizat tivesse de imediato aplaudido a tectônica de placas, e
gozado do triunfo daquela teoria que reabilitava as ideias de toda sua vida. Mas a natureza
humana não é assim tão simples, e a maneira como a ciência funciona é muito menos linear do
que geralmente supomos. Embora a geologia não fosse sua área, isto não impediu Croizat de
escrever rejeitando vigorosamente a tectônica de placas. Para ele, o mecanismo proposto era
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absurdo, e os continentes se moviam, sim, mas não por causa daquilo que os geólogos
afirmavam! Na hora que a geologia finalmente vinha em seu socorro, Croizat recusou seu
apoio. Preferiu se agarrar teimosamente ao seu próprio mecanismo de subidas e descidas do
fundo oceânico, que lhe parecia explicar melhor as posições onde ele achava que as massas de
terra tinham estado. Por que ele fez isso? Porque sua idade avançada (perto dos oitenta anos)
já o tornava menos permeável a novas ideias do que antes? Por sua natureza tão chegada à
polemica e à confrontação? Ou simplesmente por não aceitar que outros dividissem com ele a
glória de mostrar que estava certo? Provavelmente nunca saberemos.
De qualquer forma, a tectônica de placas ajudou que as ideias de Croizat começassem
a ser vistas de maneira muito mais favorável pela comunidade científica internacional a partir
do final dos anos sessenta. Enquanto isso, em 1966, o livro Phüogenetic Systematics colocava
as ideias do sistemata alemão Willi Hennig pela primeira vez amplamente disponíveis em
língua inglesa. Hennig também era um revolucionário. O que ele propunha era uma maneira
radicalmente nova de classificar os organismos, com base não meramente em sua semelhança,
mas baseado na reconstituição da história da separação dos grupos de animais e plantas ao
longo do tempo. Esta história era então usada para obter a classificação, com base numa lógica
simples: os grupos que se separaram uns dos outros mais recentemente são mais aparentados
evolutivamente e portanto deverão ser classificados juntos, enquanto grupos que se
separaram evolutivamente há mais tempo deverão estar mais separados na classificação,
mesmo que possam se parecer muito externamente. Hennig forneceu uma série de critérios
rígidos e objetivos para julgar, a partir da comparação das características dos organismos, se
sua separação havia sido mais ou menos recente. O pensamento de Hennig foi amplamente
saudado como uma maneira nova e mais objetiva para classificar os organismos, dando origem
a uma escola conhecida por cladística, muito popular na sistemática atual.
O leitor pode aqui estar se perguntando: e o que isso tem a ver com biogeografia, e
com Croizat? Alguns biogeógrafos norte-americanos, especialmente Gareth Nelson e Donn
Rosen, perceberam que potencialmente as ideias de Croizat e de Hennig poderiam ser
fundidas numa síntese grandiosa. A terra se move carregando a vida; se pudermos reconstruir
a sequência em que as espécies se separaram, podemos reconstruir a sequência em que as
terras (continentes, habitas, etc.) se separaram, e isto seria uma ferrmenta poderosíssima para
entender as distribuições atuais dos organismos. Esta síntese veio eventualmente a ser
conhecida como Biogeografia de Vicariância e é a base conceitual mais fundamental de toda a
biogeografia moderna.
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Para muitos, o marco inicial mais importante da biogeografia de vicariância foi um


artigo intitulado Centers oforigin anel related concepts ("Centros de origem e conceitos
relacionados"), que Croizat, Nelson e Rosen publicaram em 1974 na importante revista
Systematic Zoology. O texto criticava o dispersionismo e defendia que apenas a ideia de
vicariância podia explicar satisfatoriamente os padrões de distribuição dos organismos. Esse
artigo é hoje considerado um clássico, um dos originadores da escola mais importante da
biogeografia atual. Foi também a primeira vez que Croizat publicou numa revista de tal
importância, o que representava o reconhecimento, enfim, daquele bacharel em direito como
parte do seleto círculo dos maiores biogeógrafos. "Enfim", aliás, é mesmo a palavra que
convém, pois Croizat já tinha oitenta anos de idade.
Qual a reação de Croizat a este importante, ainda que tardio, reconhecimento?
Croizat rejeitou a autoria do artigo. Deixemos a palavra com o próprio Croizat (em 1982): "Eu
escrevi em algum momento em 1972 a contribuição depois publicada em 1974, sozinho como
é do meu costume: eu não gosto de compartilhar responsabilidades, portanto eu sempre faço
ou morro por mim mesmo; e enviei [o artigo] para transmissão ao meu correspondente, Dr.
Gareth Nelson, porque eu não sabia naquela época em Coro o endereço do editor de
Systematic Zoology. Nelson prontamente respondeu que ele o faria, mas não poderia eu
consentir que ele, e Rosen (se eu me lembro bem, como uma sugestão posterior), se unissem à
publicação como autores secundários? Eu concordei por cortesia mas vendo eventualmente
Croizat et al. 1974 (Croizat, Nelson, and Rosen, 1974) impresso eu me perguntei se o material
não seria melhor atribuído a Nelson et al. Meu manuscrito original tinha sido tão retocado etc.
que eu eventualmente fui censurado por Brundin (1981: 128) com bastante razão pelo artigo
Croizat et al. 1974 conter ideias contraditórias às contribuições de Croizat anteriores a 1974.
(...) Esse artigo indesejado alcançou - para detrimento meu e de todos - muita difusão, e é
mencionado pela maioria dos biólogos de hoje como uma peça-chave da minha bibliografia. É
relativamente curto, não cansa, é facilmente acessível, e sobre o resto, bem... aconteceu que
eu não tive sorte. (...) As ideias que são portanto questionadas (Brundin é um juiz confiável no
assunto) não pertencem a Croizat, mas ao et al. final da autoria, quase certamente ao
Dr.Gareth Nelson."
Polémicas à parte, o certo é que após 1974 Nelson e Croizat seguiram caminhos
radicalmente diferentes. Neson, junto com Rosen e com Norman Platnick, foi em frente na
síntese da sistemática filogenétíca de Hennig com a ideia de vicariância (cuja "paternidade",
conjunta com Croizat, o artigo de 1974 parecia lhe conferir). Acabou tornando-se um dos
maiores "papas" da nova e dominante escola, a biogeografia de vicariância. Já Croizat tinha
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pouco interesse nas teorias de sistemática, e nunca aceitou a importância das ideias de Hennig
para a análise biogeográfica. Croizat não era mais um anônimo, mas com o triunfo da nova
escola de Nelson, Platnick e Rosen, ele acabou ficando como uma figura lateral da história,
mais um daqueles ingênuos que apenas "quase chegaram lá". Sua contribuição acabou não
sendo reconhecida pelo seu próprio valor, mas no máximo como um passo no caminho de
erros que conduzira à gloriosa teoria que era a biogeografia de vicariância. Nas palavras talvez
caridosas de Ole Seberg em 1986: "Pan-biogeografia se admite que tem sido uma importante
fonte de inspiração no desenvolvimento da biogeografia de vicariância". Croizat foi poupado
de ler isso, tendo morrido uns três anos antes, na Venezuela, perto do seu nonagésimo
aniversário.
Croizat, enfim, não entrou para a história como um herói da ciência. Mas foi de fato
uma figura fascinante, um mosaico tão ricamente humano de qualidades e defeitos, acertos e
erros. Sua obra intelectual foi grandiosa, não por ter acertado todas as respostas, mas pela
amplitude e ambição das questões a que se propôs, e pela visão e tenacidade em defender,
por décadas, ideias basicamente corretas em um ambiente hostil a elas. No final das contas ele
alcançou o maior êxito a que um intelectual pode aspirar: mesmo que não o percebamos, suas
ideias vivem entre nós, pois formam um dos pilares fundamentais da biogeografia moderna.
Mas há mais do que isso. A vida de Croizat foi, sob todos os aspectos, o oposto do
nosso estereótipo de uma carreira bem-sucedida de cientista, e no entanto esta vida
atribulada deixou uma contribuição enorme para a humanidade. Não estou dizendo com isso
que se deva recomendar a um jovem que queira fazer ciência que se forme em uma área
completamente diferente, não faça pós-graduação, só comece a fazer pesquisa aos quarenta e
quatro anos, publique do seu bolso e daí por diante. Mas Croizat ter dado a contribuição que
deu, nessas condições, é um fantástico exemplo do que podem a força de vontade e a garra. E
um lembrete de que a ciência não é feita por robôs,mas por seres humanos complexos, em
toda a sua rica e maravilhosa diversidade.

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