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Fernando Fernandez
Capítulo 3
o apoio da geologia, renegou-o dizendo que os continentes se moviam, mas não por causa das
razões que os geólogos apontavam! Chamado de louco por alguns, esquecido pela maioria,
Croizat foi uma das mais controversas, coloridas e fascinantes figuras humanas nas ciências
biológicas neste século.
O primeiro dos vários equívocos que correm sobre Leon Croizat é sobre sua
nacionalidade. Embora muitos o considerem venezuelano, ele nasceu em Turim, na Itália, em
1894, filho de comerciantes. De sua infância ele diz que era "apaixonadamente curioso sobre
plantas e animais, e nunca duvidei que estudaria as ciências naturais". A história quis de outra
forma. Em 1914 Croizat foi convocado para lutar pelo exército itaiano durante a primeira
guerra mundial, e viveu todo o inferno da guerra de trincheiras.
Depois do fim do conflito, com a Itália mergulhada no caos, tudo que Croizat pode
fazer foi se graduar em Direito, pela Universidade de Turim, graças a condições especiais de
ingresso à Universidade que beneficiavam os veteranos de guerra. Em 1922, ele se preparava
para reingressar à Universidade, agora para cursar um PhD, quando iria finalmente estudar as
suas amadas ciências naturais. Mais uma vez, porém, os sonhos do jovem Leon foram
atropelados pela história. Mussolini subiu ao poder, instaurou o fascismo, e Croizat, como
milhares de outros, viu-se perseguido por razões políticas e foi forçado a abandonar seu país
natal.
Após passar por vários países, Croizat finalmente se instalou nos Estados Unidos em
1923, e conheceu a dura realidade de um imigrante estrangeiro em tempos de depressão
econômica (um tema que volta a ser muito atual ultimamente). Passou por empregos
precários e tempos difíceis durante nada menos que quinze anos, até obter um trabalho
temporário mapeando o terreno do Arboreto Arnold, da Universidade de Harvard. A sorte de
Croizat começou a mudar quando, após concluído o serviço, ele conseguiu permanecer como
empregado do Arboreto, na condição de assistente técnico, ganhando trinta dólares por
semana. Não era propriamente um grande emprego, mas tinha suas vantagens, especialmente
bastante tempo livre, e acesso a uma das melhores coleções de plantas do mundo e a uma
magnífica biblioteca. Estávamos em 1938, e Croizat, aos quarenta e quatro anos, estava
prestes a começar sua carreira científica...
De posse das facilidades que dispunha, Croizat se lançou, absolutamente sozinho e
sem orientação, a um programa de pesquisa de ambição extraordinária e quase alucinada.
Fluente - por puro autodidatismo - em todas as línguas importantes da ciência, propôs-se a
entender, a partir das fontes originais, todo o pensamento de botânica ocidental desde seus
primórdios no século XVII. Propôs-se, ainda, a entender os padrões de distribuição geográfica
Disciplina Biogeografia (UVA) O Poema Imperfeito Trecho do 3° capítulo
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das plantas no mundo. Não de um grupo de plantas, mas de todas as plantas. Durante quase
dez anos, de 1938 a 1947, Croizat se dedicou a esse projeto, dia após dia, incansavelmente, em
todo tempo livre que conseguia tirar de seu trabalho. Tudo que lia, pensava ou percebia,
registrava em cadernos de anotações. Aos poucos, seu pensamento vigoroso e original se
espalhou por quatrocentos desses cadernos.
Qualquer orientador o teria desaconselhado desse projeto, dessa rematada loucura.
Mas a loucura acabou sendo uma benção. Ironicamente, a abordagem insensata de Croizat
permitiu-lhe apreciar melhor algo a que os especialistas, que trabalhavam com grupos
restritos, não haviam dado a devida importância. Croizat percebeu que muitos padrões de
distribuição eram congruentes, mesmo em grupos de plantas muito distantes taxonômica e
ecologicamente. Por exemplo, Croizat notou que as bétulas do hemisfério sul (gênero
Notophagus) tinham uma distribuição estranha; essas árvores eram encontradas apenas na
Austrália, na Nova Zelândia, e no sul da América do Sul. Aos poucos, no entanto, ele foi
percebendo uma coisa ainda mais estranha: muitas outras plantas, pouco ou nada
aparentadas às bétulas, também tinham distribuições similares ou idênticas. Croizat foi ainda
mais longe e investigou os padrões de distribuição de vários grupos animais, e notou que,
entre outros, espécies de peixes e crustáceos de água doce, de minhocas, de moluscos e de
aves repetiam em linhas gerais a mesma distribuição de Notophagus. Biotas inteiras - grandes
conjuntos de espécies - seguiam uns poucos padrões repetidos de distribuição.
Na época de Croizat, o paradigma dominante era o chamado dispersionismo,
defendido por todos os grandes biogeógrafos, entre os quais se encontravam alguns dos
maiores nomes da biologia do século XX, tais como Ernst Mayr e George Gaylord Simpson, que
muito haviam contribuído para o aperfeiçoamento da teoria da evolução. O dispersionismo
propunha, em linhas gerais, que cada espécie se origina em um local que é o seu centro de
origem, e dali se dispersa em várias direções, sendo sua distribuição atual o resutado desta
dispersão a partir do centro de origem. Toda a ênfase era colocada sobre um papel ativo dos
organismos, emigrando para novas áreas; a geografia era vista como um mero cenário passivo,
estático.
No entanto, quanto mais Croizat olhava para os seus milhares de padrões de
distribuição de plantas e animais, melhor percebia que o dispersionismo não explicava o que
ele via. Por que muitas centenas de espécies de organismos com ecologias tão diferentes, e
capacidades de dispersão tão diferentes, dispersariam seguindo padrões tão similares?
Claramente o dispersionismo não podia explicar bem tão impressionantes coincidências. Mas
como explicá-las então?
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Croizat percebeu que a resposta só podia estar numa radical, revolucionária mudança
de perspectiva. Se biotas inteiras tinham distribuições congruentes, não era porque as biotas
se moviam juntas entre os continentes. Tinha que ser porque os continentes se moviam
carregando as biotas.
Esta pode ser uma ideia familiar hoje em dia, mas era um salto conceitual fantástico na
época de Croizat. É bem verdade que o geólogo alemão Alfred Wegenerjá tinha proposto
desde 1912 a deriva continental, ou seja, que os continentes se moviam. Tinha mesmo sido
proposto que já teria havido um supercontinente sul (Gondwana) e um supercontinente norte
(Laurásia). Mas as ideias de Wegener tinham caído em descrédito na geologia, porque
ninguém tinha sido capaz de vislumbrar algum mecanismo sequer remotamente plausível que
pudesse explicar como os continentes se moviam! No entanto Croizat sustentou, baseado
apenas em seus dados biológicos, que a geologia vigente estava errada, e que Wegener estava
certo o tempo todo.
É verdade que Croizat discordava frontalmente da ideia de "continentes flutuantes"
defendida por Wegener; preferia acreditar que eram subidas e descidas dos fundos oceânicos
que haviam mudado a distribuição das massas de terra no globo ao longo do tempo geológico.
No entanto, Croizat concordava com o ponto central das ideias do alemão, ou seja, a noção de
que a geografia não era fixa. Wegener tinha que estar certo. As distribuições coincidentes de
centenas de espécies de plantas na Austrália, Nova Zelândia, sul da África e América do Sul não
faziam sentido por dispersionismo, mas faziam todo sentido se estes três lugares um dia
tivessem sido unidos como parte de um mesmo continente e depois tivessem se separado aos
poucos e ido para lugares diferentes da Terra carregando suas respectivas biotas. As biotas
desses quatro lugares eram similares por serem descendentes de partes de uma mesma biota
ancestral - a de Gondwana.
Croizat alcançou sua revolução conceitual ainda em Harvard, mas não teve chance de
publicá-la por lá. Com dez anos de trabalho ele ganharia estabilidade no seu cargo, mas para
evitar que isto acontecesse, a Universidade o demitiu poucos meses antes de completar dez
anos. Ele estava novamente sem emprego, com uma ideia que revolucionaria a biologia, mas
sem diploma de biólogo e sem publicações no seu currículo. Com essas escassas qualificações,
naturalmente não teve nenhuma chance de obter um cargo de pesquisador nos Estados
Unidos. Teve muita sorte, na verdade, em acabar sendo aceito como professor na
Universidade de Caracas, na Venezuela, em 1947. Aos cinquenta e três anos, Croizat conseguia
uma posição acadêmica pela primeira vez.
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Em Caracas, Croizat começou a colocar suas ideias no papel. Postulava que as biotas
atuais são descendentes de biotas ancestrais que existiram no passado e que as biotas
ancestrais se dividiram em resposta a mudanças geográficas, produzindo assim espécies
vicariantes. Vicariante vem da palavra italiana para representante; espécies vicariantes são
aquelas que hoje ocupam diferentes áreas, mas que possuem um mesmo ancestral que ocorria
em uma área única no passado. A ideia de espécies vicariantes não era nova, vindo pelo menos
desde Darwin e do co-descobridor da seleção natural Alfred Russell Wallace, como o próprio
Croizat sempre reconheceu. Mas foi Croizat quem fez o salto das espécies em particular para a
biota como um todo.
Movimentos de espécies isoladas ocorrem entre as biotas após a separação destas
últimas, dificultando reconstruir a sequência de eventos de vicariância que originaram a
distribuição atual de uma espécie. Em vista disso, Croizat postulava que para entendermos as
distribuições das espécies em particular, era preciso entender o que tinha ocorrido com a
distribuição da biota como um todo. Padrões de distribuição muitas vezes repetidos
("traçados generalizados") permitiriam caracterizar o que havia acontecido com a biota como
um todo; movimentos posteriores seriam facilmente identificados pelo contraste com o
padrão geral.
Um bom exemplo é dado pelos marsupiais. Estes animais - cangurus, gambás, e
espécies afins - se distribuem apenas na Austrália e na América do Sul, com a exceção de uma
única espécie que veremos a seguir. Tal padrão de distribuição é similar ao de um imenso
número de outros organismos - plantas e animais - que apresentam o mesmo traçado
generalizado. A coincidência de padrões, por sua vez, indica que as biotas da América do Sul e
da Austrália já estiveram algum dia unidas na mesma biota ancestral (no caso, a de
Gondwana). Esta biota ancestral mais tarde se partiu originando os continentes atuais, cada
qual levando os ancestrais dos marsupiais atuais - que são portanto vicariantes dos marsupiais
de Gondwana.
Se analisássemos separadamente a distribuição do gambá norte-americano (Didelphis
virginiana), o único marsupial que ocorre na América do Norte, dificilmente chegaríamos a
esta conclusão. Quando porém D. virginiana é visto dentro do contexto da distribuição do
grupo como um todo, fica muito claro que é uma exceção. A ocorrência do gambá na América
do Norte se deve à colonização por movimentos posteriores da espécie (hoje se sabe que de
fato a formação do istmo do Panamá é muito recente no tempo geológico) e não a que ela
tenha se originado ali.
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absurdo, e os continentes se moviam, sim, mas não por causa daquilo que os geólogos
afirmavam! Na hora que a geologia finalmente vinha em seu socorro, Croizat recusou seu
apoio. Preferiu se agarrar teimosamente ao seu próprio mecanismo de subidas e descidas do
fundo oceânico, que lhe parecia explicar melhor as posições onde ele achava que as massas de
terra tinham estado. Por que ele fez isso? Porque sua idade avançada (perto dos oitenta anos)
já o tornava menos permeável a novas ideias do que antes? Por sua natureza tão chegada à
polemica e à confrontação? Ou simplesmente por não aceitar que outros dividissem com ele a
glória de mostrar que estava certo? Provavelmente nunca saberemos.
De qualquer forma, a tectônica de placas ajudou que as ideias de Croizat começassem
a ser vistas de maneira muito mais favorável pela comunidade científica internacional a partir
do final dos anos sessenta. Enquanto isso, em 1966, o livro Phüogenetic Systematics colocava
as ideias do sistemata alemão Willi Hennig pela primeira vez amplamente disponíveis em
língua inglesa. Hennig também era um revolucionário. O que ele propunha era uma maneira
radicalmente nova de classificar os organismos, com base não meramente em sua semelhança,
mas baseado na reconstituição da história da separação dos grupos de animais e plantas ao
longo do tempo. Esta história era então usada para obter a classificação, com base numa lógica
simples: os grupos que se separaram uns dos outros mais recentemente são mais aparentados
evolutivamente e portanto deverão ser classificados juntos, enquanto grupos que se
separaram evolutivamente há mais tempo deverão estar mais separados na classificação,
mesmo que possam se parecer muito externamente. Hennig forneceu uma série de critérios
rígidos e objetivos para julgar, a partir da comparação das características dos organismos, se
sua separação havia sido mais ou menos recente. O pensamento de Hennig foi amplamente
saudado como uma maneira nova e mais objetiva para classificar os organismos, dando origem
a uma escola conhecida por cladística, muito popular na sistemática atual.
O leitor pode aqui estar se perguntando: e o que isso tem a ver com biogeografia, e
com Croizat? Alguns biogeógrafos norte-americanos, especialmente Gareth Nelson e Donn
Rosen, perceberam que potencialmente as ideias de Croizat e de Hennig poderiam ser
fundidas numa síntese grandiosa. A terra se move carregando a vida; se pudermos reconstruir
a sequência em que as espécies se separaram, podemos reconstruir a sequência em que as
terras (continentes, habitas, etc.) se separaram, e isto seria uma ferrmenta poderosíssima para
entender as distribuições atuais dos organismos. Esta síntese veio eventualmente a ser
conhecida como Biogeografia de Vicariância e é a base conceitual mais fundamental de toda a
biogeografia moderna.
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pouco interesse nas teorias de sistemática, e nunca aceitou a importância das ideias de Hennig
para a análise biogeográfica. Croizat não era mais um anônimo, mas com o triunfo da nova
escola de Nelson, Platnick e Rosen, ele acabou ficando como uma figura lateral da história,
mais um daqueles ingênuos que apenas "quase chegaram lá". Sua contribuição acabou não
sendo reconhecida pelo seu próprio valor, mas no máximo como um passo no caminho de
erros que conduzira à gloriosa teoria que era a biogeografia de vicariância. Nas palavras talvez
caridosas de Ole Seberg em 1986: "Pan-biogeografia se admite que tem sido uma importante
fonte de inspiração no desenvolvimento da biogeografia de vicariância". Croizat foi poupado
de ler isso, tendo morrido uns três anos antes, na Venezuela, perto do seu nonagésimo
aniversário.
Croizat, enfim, não entrou para a história como um herói da ciência. Mas foi de fato
uma figura fascinante, um mosaico tão ricamente humano de qualidades e defeitos, acertos e
erros. Sua obra intelectual foi grandiosa, não por ter acertado todas as respostas, mas pela
amplitude e ambição das questões a que se propôs, e pela visão e tenacidade em defender,
por décadas, ideias basicamente corretas em um ambiente hostil a elas. No final das contas ele
alcançou o maior êxito a que um intelectual pode aspirar: mesmo que não o percebamos, suas
ideias vivem entre nós, pois formam um dos pilares fundamentais da biogeografia moderna.
Mas há mais do que isso. A vida de Croizat foi, sob todos os aspectos, o oposto do
nosso estereótipo de uma carreira bem-sucedida de cientista, e no entanto esta vida
atribulada deixou uma contribuição enorme para a humanidade. Não estou dizendo com isso
que se deva recomendar a um jovem que queira fazer ciência que se forme em uma área
completamente diferente, não faça pós-graduação, só comece a fazer pesquisa aos quarenta e
quatro anos, publique do seu bolso e daí por diante. Mas Croizat ter dado a contribuição que
deu, nessas condições, é um fantástico exemplo do que podem a força de vontade e a garra. E
um lembrete de que a ciência não é feita por robôs,mas por seres humanos complexos, em
toda a sua rica e maravilhosa diversidade.