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21/08/2022 20:56 Folha de S.Paulo - + brasil 505 d.C.

: O jogo da representação - 10/10/2004

São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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+ brasil 505 d.C.

O JOGO DA REPRESENTAÇÃO
Hiato entre sociedade civil e sociedade política faz parte
da democracia e só poderia ser superado por um Estado
totalitário

José Arthur Giannotti

Costuma-se afirmar que as formas da representação política


se situam num contínuo entre a democracia direta, ou
melhor, a ausência de representação, e os modos mais
sofisticados pelos quais os eleitores transferem direitos,
deveres e expectativas a determinados profissionais. Esta,
porém, seria a melhor maneira de pensar a democracia
representativa? Parte-se da idéia de que, sendo a democracia,
por definição, o regime político no qual cada cidadão
participaria da elaboração das leis a que ele mesmo se
submeterá, nada mais natural imaginar que a assembléia de
todos os homens livres seria o paradigma do sistema
democrático. Mas assim se considera a política a partir de
um momento em que ela ainda não está inteiramente
institucionalizada, o poder do representante emanando
diretamente da vontade dos representados. Há um
pressuposto obscuro nesse modo de pensar, pois o cidadão é,
desde logo, tomado como elemento cujas ações se
reportariam ao núcleo autônomo do eu, originalmente
desligado do outro. Marx o nega, retoma aquela idéia grega
segundo a qual o ser humano seria antes de tudo ser social,
vale dizer, vinculado por regras regendo a vida em
sociedade; mas, levado por certo hegelianismo, termina
colocando como ideal socialista a abolição da política graças
à instalação de uma democracia social, como se a nova
sociedade pudesse ser medida por uma amizade, uma
"philia", inteiramente transparente. Não haveria, porém,
outra maneira de negar esse novo postulado mostrando como
o indivíduo político possui um princípio de individuação
próprio, diferente daquele que o faz individualidade social?

Indivíduo como agente


Quando se pensa a democracia como se ela pudesse
funcionar desprovida de processos de representação é porque
se considera o indivíduo antes de tudo como eu agente,
"cogito" dotado de vontade, cuja atuação primeira independe
do outro. É sintomático que as invocações da democracia
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direta comecem a servir ao pensamento político a partir do


momento em que se imagina a unidade política de um grupo
na base de um contrato, isto é, junção de vontades
individuais constituindo uma vontade geral, representada por
um soberano decisório, que livre os indivíduos do medo,
assegure a propriedade e assim por diante. A luta pela
democracia se resume então, ao menos no seu aspecto mais
formal, no esforço de colocar a entidade abstrata povo no
lugar do monarca soberano idealizado. Mas essa noção de
vontade sobreviveria às críticas que lhe fizeram filósofos
como Nietzsche, Heidegger ou Wittgenstein? Vale a pena
tentar esboçar essas críticas. O indivíduo nunca é agente
autônomo reflexionante, pois não há expressão que o denote
como tal. O pronome "eu" é muito diferente de um nome,
pois, como nos ensinam os lingüistas, é ele próprio uma
instância do discurso, ato único e discreto no qual toda uma
língua se atualiza. O pronome "eu" não denota fora daquele
ângulo no qual um sujeito se individualiza focando a
linguagem sob um aspecto e atuando em vista de sistemas de
ação já "preexistentes". Quando digo "eu penso", estou
enunciando que sou o indivíduo que enuncia a presente
instância do discurso que contém a palavra "eu". A reflexão
passa necessariamente pelos canais da linguagem.
Obviamente essa dimensão de qualquer indivíduo falante
altera a noção clássica de vontade. Ao querer uma maçã -
visto que só quero me exprimindo numa língua, ainda que
virtualmente-, quero também tanto os meios que me levem a
essa fruta quanto as leis que não alteram seu sabor etc. O que
significa "querer uma lei", particularmente aquelas que os
indivíduos precisam para viver em sociedade? Mais do que
desejar uma fruta, pois, no nível mais elementar da relação
pai e filho, esposo e mulher e assim por diante, esse querer
está imbricado em tudo aquilo que diz respeito à manutenção
da lei. O que dizer das leis que regem relacionamentos
indiretos? No fundo, querer a lei implica igualmente querer o
curador da lei. Note-se que essa dimensão escapava ao
pensamento clássico na medida em que estabelecia uma
continuidade entre formular uma lei e segui-la. Nunca,
porém, estarei certo de que, ao formular uma regra, outrem a
entenda como eu, a despeito de estarmos agindo juntos de
forma convergente; os erros de sentido são irrelevantes para
nossa ação comum. Segue-se que a vontade não é um ato
solitário, mas, igualmente, querer manter um sistema
normativo, mesmo que para reformá-lo. Suponhamos
crianças jogando futebol. Se pretenderem continuar jogando
juntas, necessitam admitir uma forma qualquer de arbitragem
que venha dirimir um dissenso incontornável. A não ser que
se pressuponha que todo dissenso possa ser superado na base
da discussão e da deliberação. Mas assim não pressupõem
que as diferenças de entendimento da regra "devam" ser
superadas, posto que, em algum lugar de nosso espírito,
teríamos o segredo do sentido das palavras, por conseguinte
a medida "precisa" de nossas ações coletivas? No fundo,
estaríamos pressupondo uma linguagem adâmica e os
mecanismos da razão clássica. Ora, basta reconhecer que o
querer da lei se entrelaça ao querer da curadoria da lei -é
sintomático que o poder do soberano tenha sido comparado
ao trabalho do pastor- para que o paradigma da democracia
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direta deixe de ter sentido. Para realizarem o contrato civil,


os futuros cidadãos precisariam ainda contratar nova
instância curadora, que por sua vez demandaria outra mais
alta e assim por diante. Noutras palavras, não fariam contrato
nenhum. Desse modo, não se pode deliberar e decidir sem
que se pressuponha ao lado, já "instituído", um poder
regulador que venha ajustar o comportamento coletivo
quando se forma um dissenso factualmente irredutível. Que
esse poder se reformule conforme sua eficácia nem é preciso
mencionar. Mas importa essa dobra entre o querer a lei e o
querer a arbitragem implícita no simples querer da lei. O que
estou querendo demonstrar? Que mesmo quando se quer
relações sociais como aquelas vigentes na chamada
sociedade civil, essa vontade fica na dependência de outra
vontade curadora que há de desaguar no limite que hoje se
chama sistema político. Desde que a soberania não resida
num único monarca, desde que não se resuma na capacidade
individual de decidir sobre questões de exceção, desde, por
fim, que há de nascer do próprio movimento dos
representados e dos representantes, segue-se que qualquer
escolha de um representante "político" implica atribuir-lhe
uma identidade compatível com sua atuação nesses dois
níveis.

Autonomia relativa
Por isso a prática da política se resume num "jogo" em que o
lado do representado e o lado do representante são mantidos
soberanos graças à sustentação relativa de suas próprias
regras. A escalada ao infinito da regra e seu pastoreio se
resolve, numa democracia representativa, naquele jogo do
próprio sistema político que vem a ser capaz de legislar sobre
si mesmo e controlar suas atividades, na medida em que ele é
jogo e especifica suas funções nos três poderes: Legislativo,
Executivo e Judiciário.
Isso posto, como abolir o hiato entre a sociedade civil e a
sociedade política? Essa distância só pode ser coberta por um
Estado totalitário.
É graças a esse jogo que se explica a possibilidade de o
representante votar uma lei a que "todos" os representados se
furtariam se o pudessem. Não é o que acontece com os
impostos? Consenso e dissenso andam juntos sem nunca se
fundirem. Por isso é que me preocupo com tendências, muito
presentes na sociedade brasileira, de subordinar o sistema
político às necessidades da sociedade civil, como se questões
de direito e de liberdade fossem de somenos. No limite, essa
subordinação somente seria possível se o curador fosse o
soberano absoluto, ainda que hoje em dia possa se chamar
"partido".
O grau de democracia de uma sociedade não se mede apenas
pela multiplicação das instâncias deliberativas, mas ainda,
creio eu, pela autonomia relativa que assume o jogo político
com suas regras e suas práticas, embora sempre careça de
mudança, para melhor ou para pior.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do
Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). É autor de "Certa
Herança Marxista" (Cia. das Letras). Escreve na seção "Brasil 505 d.C.",
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