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O "Sermão de Santo António aos peixes" (pregado em 1654 em São Luís do Maranhão),
encontra-se dividido em:
Desenvolvimento e Confirmação, que engloba os capítulos II, III, IV eV; - Peroração, que
corresponde ao último capítulo.
O Exórdio surge como uma introdução ao tema que será posteriormente abordado pelo
orador. Aqui expõe-se o conceito predicável retirado do Evangelho de São Mateus e em torno
do qual todo o sermão se irá desenvolver ("vos estis sal terrae"). Posteriormente, são invocadas
as figuras de Santo António e também de Maria (como era comum nos sermões da época).
2. O "Sermão de Santo António aos Peixes" caracteriza-se por ser um discurso marcadamente
oratório e daí pertencer ao género argumentativo (e não narrativo ou descritivo), na medida
em que o orador procura defender uma tese e convencer/persuadir o seu auditório a adotar
essa tese, promovendo uma mudança de comportamentos, através de um discurso apelativo,
com argumentos organizados e interligados, com alegações metaforicamente organizadas e
com termos dicotómicos com o preciso objetivo de influenciar o seu auditório.
Assim, Vieira utiliza os peixes como uma alegoria para criticar e repreender os vícios dos
Homens (e não louvar as suas virtudes), promovendo a sua consciencialização e a alteração da
sua conduta, ao mesmo tempo que condena os colonos do Maranhão que exploravam os
indígenas.
3. Padre António Vieira (1608-1697) foi um importante orador, diplomata, conselheiro, político e
pregador, tendo dedicado a sua vida à defesa de grandes causas humanitárias, como a dos
maus-tratos infligidos aos indígenas pelos colonizadores ou a valorização do direito dos
cristãos-novos.
A sua obra estendeu-se por todo o século XVII, tendo redigido cerca de 200 sermões (e não
700), daí ser considerado o maior representante do sermão na cultura luso-brasileira da época,
evidenciando a sua obra estilos predominantemente de influência barroca (e não realista, como
a obra queirosiana "Os Maias").
Este seu sermão, enquanto género argumentativo e oratório, tinha o intuito de persuadir o
auditório, sendo, portanto, um dos mais poderosos meios de dispersão e propagação do
Cristianismo. Serve-se dos peixes como alegoria para criticar e repreender os vícios do ser
humano, dirigindo-se em particular aos colonos do Maranhão (no Brasil), que maltratavam os
indígenas e os nativos.
Por último, aproveitando o dia em questão (dia de Santo António), e perante a indiferença do
Homem para com o seu discurso, Vieira decide imitar o próprio Santo que, anos antes e de
acordo com o milagre a ele atribuído, confrontado com o desprezo dos Homens quando
pregava em Itália, se dirigiu ao rio e começou a pregar para os peixes que, ao contrário do
Homem, se agruparam e organizaram por tamanho e espécie e se dispuseram atentamente a
ouvir o seu orador.
4. Através do "Sermão de Santo António aos peixes", género argumentativo e oratório, Vieira
tinha o intuito de persuadir e influenciar o seu auditório, baseando-se em três objetivos
principais de eloquência (arte de bem falar): docere (ensinar), delectare (agradar) e movere
(persuadir), ou seja, através de um discurso (logos) agradável e persuasivo, com várias citações
e exemplos bíblicos e mitológicos, assim como com um raciocínio bem edificado e com um
discurso coerente e sintaticamente complexo e harmonioso, o orador pretendia levar o seu
auditório a aceitar os argumentos que apresentava, propondo a adoção de novos
comportamentos.
No "Sermão de Santo António aos peixes", Vieira serve-se dos peixes como alegoria para
criticar e repreender os vícios do ser humano (como a traição, o parasitismo ou o excesso de
ambição), dirigindo em particular a sua crítica aos colonos do Maranhão (no Brasil), que
maltratavam os indígenas e os nativos.
Este seu sermão apresentava, igualmente, características de um discurso religioso e
moralizador, desenvolvido a partir de um auditório fictício (os peixes), com vista à sátira e à
caricatura dos vícios e condutas impróprias do Homem.
6. Vieira refere que, por vezes, o sal não exerce devidamente a sua função de impedir a corrupção
da terra.
O orador atribui culpas aos pregadores, justificando: ou estes não transmitem corretamente a
mensagem ("os pregadores não pregam a verdadeira doutrina") ou pregam doutrinas que eles
próprios não colocam em prática ("os pregadores dizem uma cousa e fazem outra") ou
superiorizam os seus próprios interesses ("os pregadores se pregam a si e não a Cristo").
Noutra linha de pensamento, o orador culpabiliza igualmente os ouvintes, que "não se deixam
salgar", ou porque, ainda que ouçam a verdadeira mensagem, não a querem receber ("e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querer receber"), ou por preferirem
imitar as más condutas dos pregadores ("e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem"),
ou, ainda, porque procuram satisfazer os seus próprios interesses ("e os ouvintes, em vez de
servir a Cristo, servem a seus apetites").
Em suma, apenas não é válido o argumento que diferencia o estatuto social entre os
pregadores e os ouvintes, já que este não é utilizado pelo orador.
8. No Exórdio do Sermão, Vieira refere que, por vezes, o sal não exerce devidamente a sua função
de impedir a corrupção da terra (ou seja, do Homem), atribuindo várias justificações para o
facto, tal como a reiteração intencional da conjunção coordenativa disjuntiva "ou" o comprova:
"Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar".
Não obstante, apesar do leque de condutas incorretas tanto por parte dos pregadores como
por parte dos ouvintes, o orador deixa bem claro que o comportamento de Santo António é
bem diferente do comportamento dos restantes pregadores. De facto, enquanto a maioria
destes não prega devidamente a mensagem evangélica e desiste, muitas vezes, de o fazer
devido à indiferença que o Homem revela perante as suas palavras, Santo António notabilizou-
se por um comportamento oposto e persistente já que, perante a indiferença humana, limitou
se a mudar de auditório e foi pregar aos peixes (como agora Padre António Vieira tenta fazer).
11. As citações e passagens bíblicas e mitológicas são muito recorrentes no Sermão, a fim de tornar
o discurso mais apelativo e informativo, facilitando a interpretação das críticas.
Na evocação aos Roncadores, Vieira critica o orgulho e excesso de arrogância destes peixes
que, mesmo sendo tão pequenos e frágeis, ousam roncar afincadamente, revelando-se
excessivamente arrogantes.
Ao serviço do reforço desta crítica, encontra-se a figura bíblica de São Pedro. Tal como os
Roncadores têm uma imagem de si próprios muito superior ao seu verdadeiro valor, também
São Pedro fez promessas que não conseguiu cumprir pois, apesar de se ter predisposto a
defender Cristo, foi o primeiro a fracassar e a negar o seu envolvimento com Jesus.
De salientar que a figura mitológica de Ícaro surge associada à ambição desmedida e ao
exibicionismo do peixe Voador, tal como a figura de Simão Mago (que voando alto de mais,
perdeu as asas e partiu os pés aquando da queda), ao passo que a figura bíblica de Judas surge
ao serviço da afirmação da hipocrisia, falsidade, traição e caráter dissimulado do Polvo.
12. Após louvar no geral as características dos peixes no capítulo II, Vieira elogia-os
individualmente no capítulo III do desenvolvimento do Sermão, destacando a importância de
quatro peixes principais: a Rémora, o peixe de Tobias, o Torpedo e o Quatro-olhos, cada um
com um conjunto de características únicas, que são louvadas pelo orador e comparadas às
ações de Santo António.
Tomando o exemplo da Rémora, Vieira reforça que, mesmo perante a sua reduzida dimensão,
é um peixe com virtudes excecionais, fixando-se à nau e evitando o seu naufrágio. A Rémora
representa, assim, não só a persistência como, metaforicamente, a figura de Santo António que
com a sua "língua", ou seja, com o seu discurso, também conseguiu orientar e encaminhar
muitos Homens, impedindo a sua perdição.
13. O peixe Voador é criticado pelo seu exibicionismo e ambição desmedida, o qual se considera
superior aos restantes peixes, perspetivando-se com barbatanas maiores do que os demais; já a
sua ambição desmedida leva-o a tentar voar apesar de não ter asas. Esta sua presunção acaba
por culminar num trágico desfecho, ao ser traído pelo simples vento ou ao cair dentro das
embarcações, quase como se fosse pescado.
Ao serviço da crítica à ambição desmedida e ao exibicionismo encontram-se exemplos bíblicos,
como o do Simão Mago (e não Judas) que, ao querer voar alto demais, foi castigado por Deus,
tendo perdido as asas, caído e partido os pés, ou exemplos mitológicos, como o de Ícaro que,
no seu alto voo, tanto se aproximou do sol que acabou por derreter as suas asas de cera,
caindo ao mar e afogando-se.
De notar que a arrogância é característica dos peixes Roncadores (e não dos Voadores) assim
como a hipocrisia, a falsidade e o exemplo de Judas são referentes à figura do Polvo.
14. O Pegador, ao contrário da Rémora que é louvada e elogiada pela sua persistência e capacidade
de impedir o naufrágio das naus, é um peixe criticado individualmente por Padre António Vieira
devido ao parasitismo e ao oportunismo que o mesmo evidencia.
O orador refere um conjunto de ações desempenhadas pelos Pegadores, como o facto de
viverem às custas dos restos alimentares ou do abrigo dos mais fortes, satirizando, todavia, o
facto de estes também sucumbirem aquando da morte daqueles dos quais estariam totalmente
dependentes.
Em suma, os Pegadores representam os parasitas da sociedade, aqueles que se limitam a viver
às custas dos demais, sendo essa a crítica que Vieira procura transmitir com este peixe.
15. Ao afirmar que "o polvo é o maior traidor do mar", o orador recorre claramente a uma
hipérbole (e não a uma metonímia, a um disfemismo ou a uma comparação), recurso
expressivo utilizado com o intuito de agravar as condutas e as práticas dissimuladas deste
peixe, nomeadamente a capacidade de atrair as suas presas e de as capturar impiedosamente.
Vieira chega mesmo a considerar que a atitude do Polvo é mais grave e hipócrita que a de Judas
(o maior traidor de Cristo), na medida em que o mesmo tem a capacidade de se disfarçar de
"monge" manso, santo e bondoso, camuflando-se e apanhando as presas totalmente
desprevenidas.
Assim, o Polvo espelha a falsidade, a traição e a hipocrisia do Homem.
16. No final do Sermão, o orador recapitula a temática abordada anteriormente, propondo um
remate final, no qual incita e tenta persuadir, numa última tentativa, o seu auditório a aceitar
os argumentos expostos ao longo do Sermão (com a alegoria aos peixes), com o intuito de
alterar os comportamentos e a conduta dos seus ouvintes.
Numa atitude de mera humildade, Vieira compara a sua ação com a dos peixes, assumindo-se
ele próprio como um pecador (inevitável à sua condição humana) e inferiorizando-se em
relação à figura de Santo António que sempre enveredou e encaminhou os demais pelos
caminhos mais corretos.
Não obstante, a louvação final que faz nesta Peroração é a Deus, e não a Santo António,
evidenciando o louvor final que faz àqueles que serviram de alegoria ao longo de toda a
oratória ("Ah Peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade") assim como uma
última crítica aos Homens a partir do trocadilho: "Como não sois capazes de Glória, nem de
Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça, e Glória".