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Padre António Vieira,

«Sermão de Santo António


[aos Peixes]»
«Sermão de Santo António aos peixes» - Contextualização

O «Sermão de Santo António» é um discurso religioso, de caráter exortativo,


que representa uma alegoria moral e política. Vieira utiliza o esquema alegórico como
meio de satirizar e caricaturar o poder dos brancos maranhenses: constrói como
auditório fictício os peixes para dirigir, indiretamente, uma forte crítica social aos
colonos, condenando o seu comportamento, com o objetivo de o alterar. Foi pregado
na cidade de São Luís do Maranhão, a 13 de junho de 1654.

«Sermão de Santo António»

«Este Sermão (que todo é alegórico) pregou o Autor três dias antes de se embarcar
ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios, pelas causas
que se apontam no 1.º Sermão do 1.º Tomo. E nele tocou todos os pontos de doutrina
(posto que perseguida) que mais necessários eram ao bem espiritual, e temporal
daquela terra, como facilmente se pode entender das mesmas alegorias.

Vos estis sal terrae. [Mt. 5]»

O sermão é constituído por seis capítulos (estrutura externa), obedecendo a


uma estrutura interna tripartida: o exórdio, que corresponde à introdução; a exposição
e a confirmação, que correspondem ao desenvolvimento; e a peroração, que
corresponde à conclusão. Abordaremos, de seguida, as especificidades do exórdio.

Capítulo I – Exórdio

Neste capítulo, introduz-se o assunto do sermão: uma pregação que é feita aos
peixes, mas que, na verdade, se dirige aos homens; aborda-se a importância da palavra
dos pregadores («o sal») na preservação da moralidade e da integridade dos homens
(«a terra»); elogia-se Santo António como modelo a seguir; e invoca-se a Virgem
Maria, pedindo-lhe inspiração.

Exemplo: «Isto suposto, quero hoje à imitação de Santo António voltar-se da terra ao
mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.»
Definição do assunto do sermão

«Vós sois o sal da terra» é a frase bíblica que funciona como conceito
predicável, ou seja, um processo retórico que consiste na interpretação de um passo
da Sagrada Escritura, com base em associações de ideias devidamente fundamentadas
por uma autoridade teológica. É através do conceito predicável que se vai desenvolver
todo o raciocínio.

Exemplo: ««Vós», diz Cristo Senhor nosso, falando com os Pregadores, «sois o sal da
terra»[...].»

Importância da palavra dos pregadores na preservação da moralidade e da


integridade dos homens

Tal como o sal impede a corrupção e é fonte de purificação, os Pregadores


devem impedir a corrupção das almas. Contudo, apesar de haver muitos Pregadores, a
terra mantém-se corrupta.

Exemplo 1: «[...] e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o
sal.»

Exemplo 2: «O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão


corrupta como está a nossa [...].»

Este cenário indesejado pode ser da responsabilidade dos Pregadores, por três
motivos: ou os pregadores não ensinam a verdadeira mensagem do Evangelho, ou os
comportamentos dos pregadores não são coerentes com as suas palavras, ou, por
vaidade, centram o ato de pregar em si e não na mensagem cristã.

Exemplo: «Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira
doutrina; [...] ou é porque o sal não salga, e os Pregadores dizem uma coisa, e fazem
outra; [...] ou é porque o sal não salga, e os Pregadores se pregam assim, e não a
Cristo; [...].»

Por outro lado, pode ser da responsabilidade dos ouvintes por recusarem
receber a doutrina cristã, por imitarem a conduta dos falsos pregadores e não as
palavras da doutrina que eles proferem, ou por não se guiarem pelas palavras de
Cristo, mas, sim, pelos seus impulsos pecaminosos.

Exemplo: «[...] ou por que a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira
a doutrina, que lhes dão, a não querem receber; [...] ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem [...]
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo servem a
seus apetites.»

O orador, no segundo e no terceiro


parágrafos, indica o destino que deve ser dado aos
Pregadores que não pregam a verdadeira palavra de
Deus e aos ouvintes que não a querem ouvir. Como
Cristo ensinou, os maus pregadores devem ser
desprezados e expulsos da comunidade.

Exemplo 1: «Se o sal perder a substância, e a virtude, e o Pregador faltar à doutrina, e


ao exemplo, o que se lhe há de fazer é lançá-lo fora como inútil, para que seja pisado
de todos.»

Exemplo 2: «[...] assim é merecedor de todo o desprezo, e de ser metido debaixo dos
pés, o que com a palavra, ou com a vida prega o contrário.»

Se os ouvintes recusarem a evangelização dos pregadores, estes devem ignorá-


los, e mudar o auditório, indo assim pregar aos peixes. O ato de pregar aos peixes, e
não aos homens, sugere a indignação do orador pelo facto de os seus semelhantes
ignorarem a palavra que os pode salvar. Ao dirigir-se aos peixes, Santo António
denuncia a inconsciência dos homens, que parecem ter menos sensatez do que os
animais irracionais.

Exemplo: «Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina.


Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas
vozes: «Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes».»

Elogio a Santo António como modelo a seguir


Santo António é um exemplo para todos os pregadores, incluindo Vieira, não só
por ser um grande orador e um homem virtuoso como também por ter persistido na
sua missão (pregando), não abandonando a doutrina cristã, quando os homens o
ignoravam.

Exemplo: «[...] o zelo da glória divina, que ardia naquele peito [...].»

Vieira pretende seguir-lhe as pisadas e continuar a evangelizar os colonos do


Brasil, apesar de estes não seguirem nem praticarem os ensinamentos de Cristo. Tal
como as palavras de Santo António não eram escutadas em Arimino, Itália, também as
de Vieira não eram ouvidas no Brasil.

Exemplo 1: « Santo António foi sal da terra, e foi sal do mar. Este é o assunto que eu
tinha para tomar hoje. [...] Quanto mais, que o sal da minha doutrina, qualquer que ele
seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino,
que a força segui-la em tudo.»

Exemplo 2: «Isto suposto, quero hoje à imitação de Santo António voltar-me da terra
ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.»

Invocação à virgem

O orador dirige-se a Maria (mãe de Cristo) para lhe pedir ajuda e inspiração, de
modo a transmitir a mensagem cristã da forma mais justa e eficaz. Segundo Vieira, o
nome da virgem significa « Senhora do mar»; e, como o Sermão tem um tema
marinho, é a esta figura que o pregador pede auxílio para a sua tarefa.

Exemplo: « Maria quer dizer Domina maris: « Senhora do mar»; e posto que o assunto
seja tão desusado, espera que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.»

Linguagem e estilo

Neste capítulo, o orador usa diferentes recursos linguísticos que imprimem um


ritmo rápido e cadenciado e geram uma entoação viva e apelativa.

Vejamos esses recursos:


• frases curtas;

Exemplo 1: «Isto é o que se deve fazer ao sal, que não salga.»

Exemplo 2: «O mar está tão perto, que bem me ouvirão.»

• frases exclamativas;

Exemplo 1: «Ainda mal!»

Exemplo 2: «Oh maravilhas do Altíssimo!»

• interrogações retóricas;

Exemplo 1: «Não é tudo isto verdade?»

Exemplo 2: «Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao


tempo?»

• antítese;

Exemplo: «Muitas vezes vos tenho pregado nesta Igreja, e noutras de manhã, e de
tarde, de dia, e de noite, […].»

• adjetivação;

Exemplo: «[…] sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira […].»

• construções anafóricas.

Exemplo 1: «Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é
porque o sal não salga, […] ou porque a terra se não deixa salgar, […] ou é porque o sal
não salga, […].»
Exemplo 2: «Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar […].»

Louvores aos peixes

O orador argumenta de uma forma lógica e coerente. Divide o sermão em duas


partes, partindo das propriedades do sal: o sal preserva o são, por isso o pregador
enaltece as qualidades dos peixes; o sal impede a corrupção, por isso o pregador que
critica os vícios dos peixes. Os capítulos II e III constituem os louvores aos peixes: em
geral e em particular respetivamente. Vejamos, de seguida, as especificidades de cada
capítulo.

Exemplo: « Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso
Sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, na segundo
repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal,
que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.» (Capítulo
II)

Capítulo II - Louvores aos peixes em geral

A retoma do conceito predicável justifica-se pelo facto de orador mudar de


auditório, passando a dirigir-se aos peixes. Logo, explora novamente as funções do sal,
associando-as às do sermão.

Exemplo 1: «Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao
menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.»

Exemplo 2: « Vos estis sal terrae. Habeis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do
mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam:
conservar o são, e preservá-lo, para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades
tinham as pregações do vosso Pregador Santo António, como também as devem ter as
de todos os Pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem
para o conservar, e repreender o mal, para preservar dele.»
Ao considerar os peixes «irmãos» o pregador estabelece um paralelismo entre
o plano ficcional dos peixes e o plano real dos homens, que são o seu verdadeiro
auditório e a quem quer dirigir as suas críticas. Constrói-se, assim, a alegoria: os peixes
– elementos concretos – são louvados e criticados, porém o que se pretende é louvar
as virtudes de Santo António e criticar os vícios humanos (plano abstrato).

Exemplo: «Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e


confusão para os homens!»

Neste capítulo II são louvadas as qualidades dos peixes:

• foram as primeiras criaturas a ser criadas por Deus;


• são as criaturas mais numerosas que as maiores;
• são bons ouvintes e obedientes;
• são disciplinados pacíficos e atentos;
• são melhores do que os homens;
• não se domam nem domesticam;

Vejamos os excertos que comprovam estas afirmações:

Exemplo 1: « Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera
eu dizer que entre todas as criaturas viventes, e sensitivas, vós fostes as primeiras, que
Deus criou. [...] Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais, e os peixes os
maiores.»

Exemplo 2: «[...] aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de
vosso Criador e Senhor [...].»

Exemplo 3: «[...] aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de
Deus da boca do seu servo António. [...] Os homens perseguindo a António [...] e no
mesmo tempo os peixes [...] acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas palavras,
escutando com silêncio [...] o que não entendiam.»

Exemplo 4: «[...] entre todos os animais se não domam, nem domesticam.»

Louvando os peixes, criticam-se, por oposição, os homens. Os homens são


acusados de exibirem comportamentos característicos dos seres irracionais enquanto
os peixes evidenciam comportamentos e atitudes típicas dos seres humanos
(racionais). Além disso, o seu espírito corrupto contagia quem com eles conviver. Os
homens brancos do Maranhão são tão corruptos e corruptores que os índios querem
manter-se longe dos homens civilizados.

Exemplo: «Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor: trato e familiaridade
com eles, Deus vos livre.»

Para reforçar estes louvores aos peixes, criticando, simultaneamente, os


homens o orador faz referência a autores clássicos, exemplos bíblicos e Doutores da
Igreja, cumprindo, assim, o objetivo docere.

Exemplo 1: «Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se
não domam, nem domesticam.»

Exemplo 2: «No tempo de Noé sucedeu Dilúvio, que cobriu, e alagou o mundo; e de
todos os animais, quais livraram melhor?»

Exemplo 3: «Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais como mais domésticos, ou
mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens; os peixes viviam longe, e
retirados deles.»

Está ainda presente o objetivo movere, através do conselho dirigido aos peixes:
padre António Vieira recomenda aos peixes que se mantenham afastados dos homens,
considerando esse afastamento a atitude mais prudente.

Exemplo 1: «Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor: trato e
familiaridade com eles, Deus vos livre.»

Exemplo 2: «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.»

Capítulo III - Louvores aos peixes em particular


Neste capítulo apresentam-se as virtudes de quatro peixes em particular: o
peixe de Tobias, a Rémora, o Torpedo e o Quatro-
olhos.

Exemplo: «Descendo ao particular, infinita matéria


fora, se houvera de discorrer pelas virtudes, de que o
Autor da Natureza a dotou, e fez admirável em cada
um de vós. De alguns somente farei menção.»

O peixe de Tobias

Definição: A história de Tobias, no livro homónimo, exprime a providência de


Deus para com Israel no exílio. O velho Tobias ordena a seu filho Tobias que faça uma
viagem até junto do seu povo para cobrar uma dívida e ao mesmo tempo tomar
esposa entre a sua tribo. Protegido pelo anjo Rafael, Tobias vence todos os perigos da
viagem, incluindo o peixe que o atacou. Sem o saber, Tobias encontraria no peixe o
remédio para os males do seu pai e da sua futura esposa.

O peixe de Tobias tem o poder de, com as suas entranhas, curar a cegueira e
afastar os demónios. Sendo de grande dimensão, representa a bondade e o poder
purificador, no fundo, detém as virtudes do sal. É comparado a Santo António.

Exemplo: «[…] o fel era bom para curar da cegueira e o coração para lançar fora os
Demónios […].»

Santo António, à semelhança do peixe de Tobias, alumiava os ouvintes,


curando-lhes a cegueira e afastando-os do demónio, ou seja, mostrava-lhes o caminho
do Bem e da Virtude, afastando-os do Mal, isto é, impedindo-os de pecar. Comparando
o peixe de Tobias com Santo António, o orador coloca em destaque não só a virtude do
peixe, mas sobretudo a humildade e o desprendimento material do santo e a
necessidade de os homens o ouvirem e seguirem a sua doutrina, emendando-se.

Exemplo: «Certo que se a este Peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda,
pareceria um retrato marítimo de Santo António. Abria Santo António a boca contra os
Hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da Fé e glória divina.»
A Rémora

Definição: Peixe pequeno, de forma achatada. Possui na superfície dorsal da


cabeça um disco de sucção que funciona como uma ventosa e lhe permite fixar-se a
outros animais ou a embarcações.

A Rémora é um pequeno peixe que, quando se agarra ao leme do navio, tem


força suficiente para impedir que ele navegue à sua vontade, tornando-se, então, ela
mesma o guia do navio (o leme). De facto, este peixe tem a capacidade de evitar os
naufrágios das naus, razão pela qual é evocada, pois vai permitir ao orador estabelecer
um paralelo com o plano dos homens – também eles devem evitar o caminho do mal.

Exemplo: «Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão
pequeno no corpo, e tão grande na força e no poder, […] se houvera uma Rémora na
terra, que tivesse tanta força como a do mar, […]!»

O orador faz a analogia com Santo António, por causa da sua língua e da força
do seu discurso. Deste modo, esta simboliza o poder da palavra do Pregador, que é
guia das almas. Padre António Vieira adverte que os homens se deixam dominar pelos
ímpetos, pelas suas paixões, sendo, por isso, necessário que alguém os chame à razão.

Exemplo: «Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de Santo António […]. o
Apóstolo Santiago naquela sua eloquentíssima Epístola compara a língua ao leme da
Nau, e ao freio do cavalo.»

O Torpedo

Definição: Peixe, conhecido como tremelga. Produz pequenas descargas


elétricas, com as quais se defende; o seu choque provoca entorpecimento.

O Torpedo é um peixe que produz descargas elétricas que fazem tremer o


braço do pescador. Desta forma, o orador alerta os homens para a necessidade de
temerem a Deus e de não enveredarem pelos caminhos do mal.

Exemplo: «Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água,
e em lhe picando na isca o Torpedo, começa a lhe tremer o braço.»

O Quatro-olhos
Definição: Peixe comum nas costas do Brasil. É uma espécie cujos olhos têm curvatura
dupla, o que lhe possibilita à superfície da água ver simultaneamente o que se passa
dentro e fora deste elemento.

O Quatro-olhos é um peixe que anda à superfície das águas e tem dois olhos
que veem para cima, protegendo-os das aves, e outros dois que veem para baixo e o
protegem dos peixes maiores.

É referido este peixe, para se reforçar a necessidade de se saber distinguir o


Bem do Mal (isto é, na doutrina cristã, ter em mente os destinos Céu e Inferno), pois
os homens só sabem «olhar» para os seus apetites, que os conduzirão inevitavelmente
à condenação eterna. Simboliza, assim, o dever dos cristãos de afastarem os olhos da
vaidade terrena, olhando, sim, para o Céu, sem esquecer a existência do Inferno.

Exemplo: «[…] os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte


inferior direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitetura é: porque estes
peixezinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos
outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves
marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar, e inimigos no ar,
dobrou-lhes a Natureza as sentinelas, e deu-lhes dois olhos, que direitamente
olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros dois que direitamente
olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.»

Linguagem e estilo

Nestes capítulos II e III, o orador usa diferentes recursos linguísticos, que contribuem
para o ritmo rápido e cadenciado, concretizando, também, o discurso argumentativo.

Vejamos esses recursos:

• apóstrofe e personificação;

Exemplo: «[…] irmãos peixes […].» (Capítulo II)

• antítese;

Exemplo: «Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro […].» (Capítulo
III)
• construção anafórica;

Exemplo 1: «[…] lá se vivem nos seus mares, e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá
se escondem nas suas grutas […].» (Capítulo II)

Exemplo 2: «Quantos embarcados na Nau Vingança com a artilharia abocada, […]?


Quantos navegando na Nau Cobiça sobrecarregada até as gáveas […]? Quantos na Nau
[…].» (Capítulo III)

• enumeração;

Exemplo: «[…] o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal […].»
(Capítulo II)

• ironia;

Exemplo: «E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está
ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.» (Capítulo II)

• interrogação retórica;

Exemplo: «Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos
Demónios, perseguis vós?» (Capítulo III)

• comparação;

Exemplo: «[…] como peixes na água […].» (Capítulo II)

Repreensões aos peixes

Nos capítulos IV e V assistimos às críticas aos peixes em geral e em particular,


respetivamente. As repreensões aos peixes têm como objetivo agitar as consciências
dos homens e fazê-los refletir sobre os seus atos e, consequentemente, corrigir os seus
comportamentos.

Vejamos, de seguida, as especificidades de cada capítulo.


Capítulo IV - Repreensões aos peixes em geral

A circunstância de os peixes se comerem uns aos outros representa, por analogia,


o facto de os homens maltratarem e explorarem os seus semelhantes de diferentes
maneiras. São, sobretudo, «os grandes», com mais poder (financeiro, institucional,
social...), que oprimem, exploram ou enganam os mais humildes («pequenos»).

Exemplo: «Antes porém que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi
também agora as vossas repreensões. […] A primeira coisa, que me desedifica, peixes,
de vós, é que vos comeis uns aos outros. […] Não só vos comeis uns aos outros, senão
que os grandes comem os pequenos.»

O orador questiona indiretamente os colonos do Maranhão sobre o modo


como se deixam «pescar», ou seja, como são ludibriados.

Exemplo: «Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê?»

Ao contrário de outros homens, Santo António não se deixou enganar nem se


envaideceu, apesar de ser uma figura admirável. Desdenhou as futilidades do mundo e
abraçou a vida religiosa.

Exemplo: «Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com
essas vaidades. Sendo moço, e nobre, deixou as galas, de que aquela idade tanto se
preza, trocou-as por uma loba de sarja, e uma correia de Cónego Regrante; e depois
que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha,
trocou a sarja pelo burel, e a correia pela corda. Com aquela corda, e com aquele pano
pescou ele muitos, e só estes se não enganaram, e foram sisudos.»

Assim, censuram-se os homens pela sua ignorância, visto que a sua ambição por
honrarias e títulos os leva a arriscar e a perder, por vezes, a vida.

Exemplo: «[…] é aquela tão notável ignorância, e cegueira, que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes.»

Capítulo IV - Repreensões aos peixes em geral


Este capítulo apresenta-nos os vícios humanos mais recorrentes,
criticados através de quatro peixes: os Roncadores, os Pegadores, os Voadores e o
Polvo.

Exemplo: «Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de
vós.»

Os Roncadores

Definição: Peixes que produzem um ruído semelhante ao de um porco.

Os Roncadores, apesar de serem pequenos, roncam muito. Querem parecer


maiores e mais importantes do que aquilo que são. Quando comparados aos homens
que exibem a mesma atitude, o orador afirma que estes, quando têm de agir, se
acobardam. O orador, com estes peixes, critica a arrogância e a soberba dos homens.

Exemplo: «[…] vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso, como a ira. […] porque
haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais.»

Pedro, Caifás e Pilatos revelaram atitudes e um comportamento semelhantes


ao dos Roncadores, demonstrando arrogância e orgulho.

Exemplo 1: «São Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha
tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de Soldados Romanos;
e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia cortar mais
orelhas, que a de Malco.»

Exemplo 2: «Caifás roncava de saber […]. Pilatos roncava de poder: […].»

Santo António tinha poder e saber, mas não se vangloriava disso, revelando,
assim, humildade.

Exemplo: «Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e
tanto poder como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse
falar em saber ou poder, quanto mais brasonar disso.»

Os Pegadores

Definição: Peixes pequenos que se pegam a outros maiores e deles se alimentam.


O orador, com estes peixes, critica o oportunismo e o parasitismo dos homens.
Aconselha os Pegadores a não se colarem aos grandes, pois, quando um morre, arrasta
consigo os outros. Assim também deve cada homem proceder: procurar o seu
caminho, ou imitar Santo António, que se «pegou» a Cristo.

Exemplo 1: «[…] sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte
se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram.»

Exemplo 2: «Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que
vos mateis por eles, nem morrais com eles.»

Exemplo 3: «Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a


Deus. Assim o fez também Santo António, e senão, olhai para o mesmo Santo, e vede
como está pegado com Cristo, e Cristo com ele.»

Os Voadores

Definição: Peixes cujas barbatanas parecem asas e lhes permitem voar acima da linha
de água.

Os Voadores são os peixes que querem ir além da sua condição natural.


Efetivamente, são acusados de não se contentarem com o facto de serem peixes e
quererem ser aves, por terem barbatanas maiores do que as dos restantes peixes.
Desta forma, o orador, servindo-se mais uma vez da alegoria, critica a presunção e a
ambição humanas.

Exemplo: «Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a
ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar, e com
nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.»

O orador aconselha os Voadores a imitarem Santo António e não quererem ser


mais do que aquilo que são.

Exemplo 1: «Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso Santo
Pregador.»
Exemplo 2: «Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino
que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga; a vós sem fisga, nem
anzol, mata-vos a vossa presunção, e o vosso capricho.»

O Polvo

O Polvo, único peixe criticado nomeado no singular, assemelha-se a um monge,


a uma estrela, ostenta brandura e mansidão, o que sugere santidade e bondade. No
entanto, são essas características que lhe permitem dissimular-se e apanhar as suas
presas desprevenidas, o que contraria o seu aspeto físico. Desta forma, o Polvo
representa a dissimulação, a falsidade e a traição dos homens. Dada a primeira
comparação que Vieira faz ao caracterizar o Polvo, podemos afirmar que este peixe
simboliza também os falsos pregadores denunciados no Exórdio.

Exemplo: «O Polvo com aquele seu capelo na cabeça parece um Monge, com aqueles
seus raios estendidos, parece uma Estrela, com aquele não ter osso, nem espinha,
parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa, […] o dito Polvo é o maior traidor do mar.
Consiste esta traição do Polvo primeiramente em se vestir, ou pintar das mesmas cores
de todas aquelas cores, a que está pegado.»

Na sua verdadeira essência, o Polvo é o maior traidor do mar, porque se


esconde, mudando de cor, para atacar, mas também é o maior traidor da terra,
quando comparado com Judas. O orador, com estes peixes, critica a traição e a
hipocrisia.

Exemplo: «Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua
comparação já é menos traidor.»

Linguagem e estilo

Nestes capítulos, o orador usa diferentes recursos linguísticos que contribuem


para o ritmo rápido e cadenciado, concretizando, também, o discurso argumentativo.

Vejamos esses recursos:


• verbos que remetem para sensações visuais;

Exemplo 1: «Olhai [...].» (Capítulo IV)

Exemplo 2: «[…] vedes […].» (Capítulo IV)

• gradação;

Exemplo: «[…] em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não
defraudem, em que os não comam, traguem, e devorem […].» (Capítulo IV)

• interrogação retórica;

Exemplo: «É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos haveis de ser as
roncas do mar?» (Capítulo V)

• emprego do imperativo;

Exemplo: «Dizei-me […].» (Capítulo V)

• antítese;

Exemplo: «[…] traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras […].»
(Capítulo V)

• apóstrofe;

Exemplo: «Vejo, peixes, que pelo conhecimento […].» (Capítulo V)

• comparação;

Exemplo: «O Polvo […] parece um monge […].» (Capítulo V)

Peroração

A peroração corresponde à parte final do sermão, na qual o orador recapitula


sinteticamente os factos e os argumentos expostos e, acima de tudo, tenta obter a
simpatia do auditório, através dos afetos e das emoções.

Neste último capítulo do «Sermão de Santo António», procede-se ao


julgamento final dos peixes/homens; sugere-se a superioridade dos peixes, quando o
orador os compara consigo. Assim, o objetivo do capítulo é convencer o auditório,
levando-o à mudança de atitudes e comportamentos.

Exemplo: «Com esta última advertência vos despido […] Louvai a Deus, porque vos
criou em tanto número.»

Exortação/apelo aos ouvintes para porem em prática os ensinamentos ouvidos

Vieira pretende, com esta lamentação, que os homens aceitem os seus


conselhos e modifiquem os seus comportamentos, abandonando os seus vícios.

Exemplo: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, porque chegam e não têm
horror de chegar, estando em pecado mortal!»

Comparação do orador com os Peixes, assumindo-se este como pecador

Vieira confessa sentir inveja dos peixes porque eles não ofendem a Deus, ao
contrário de si, que O ofende através de palavras, lembranças e vontades. É, pois, uma
mensagem de humildade, na medida em que o orador se assume ele próprio como
pecador.

Aos peixes é explicada a razão pela qual foram excluídos do sacrifício, segundo
o Levítico: não poderem chegar vivos ao altar. Só os vivos (sem pecado mortal) podem
na hora da morte, contemplar Deus e conquistar a vida eterna. Os mortos (pecadores)
estão condenados à perdição (ao Inferno).

Exemplo: «O motivo principal de serem excluídos os peixes foi porque os outros


animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes geralmente não, senão mortos; e
coisa morta não quer Deus que se Lhe ofereça, nem chegue aos Seus Altares.»

Pedido de louvor a Deus

O hino de louvor final pretende comover os ouvintes. O apelo é louvarem a


Deus pela distinção positiva que Este fez quando os comparou com os outros animais.

Exemplo: «Louvai, Peixes, a Deus, os grandes, e os pequenos […]. Louvai a Deus,


porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas
espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade […] louvai a Deus, que vos
habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida; louvai a Deus, que vos deu
um elemento tão largo […] louvai a Deus […] louvai a Deus, que vos sustenta, louvai a
Deus, que vos conserva, louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim,
servindo […].»

Linguagem e estilo

O orador procura despertar a emoção do auditório, ao mesmo tempo que apela


ao louvor a Deus, através de determinados recursos linguísticos.

Vejamos esses recursos:

• apóstrofe;

Exemplo: «Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos […].»

• frases exclamativas;

Exemplo 1: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, […] estando em pecado
mortal!»

Exemplo 2: «Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-Lo tão
indignamente!»

• construção anafórica;

Exemplo: «Louvai, Peixes, a Deus, os grandes, e os pequenos […]. Louvai a Deus,


porque vos criou em tanto número. Louvai a Deus, que vos distinguiu em tantas
espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta variedade […] louvai a Deus, que vos
habilitou de todos os instrumentos necessários para a vida; louvai a Deus, que vos deu
um elemento tão largo […] louvai a Deus […] louvai a Deus, que vos sustenta, louvai a
Deus, que vos conserva, louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim,
servindo […].»

• interjeições exclamativas;

Exemplo 1: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, […] estando em pecado
mortal!»

Exemplo 2: «Ah Peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade!»
Visão global e estrutura argumentativa

«[...] argumentar é uma prática discursiva intencional: aquele que argumenta defende
uma determinada posição, num jogo verbal que pressupõe opiniões contrárias,
visando convencer ou persuadir o interlocutor [...].»

Ana Cristina Macário Lopes e Susana Soares, Contributos para uma análise do “Sermão de Santo António aos Peixes”

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