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«Este Sermão (que todo é alegórico) pregou o Autor três dias antes de se embarcar
ocultamente para o Reino, a procurar o remédio da salvação dos Índios, pelas causas
que se apontam no 1.º Sermão do 1.º Tomo. E nele tocou todos os pontos de doutrina
(posto que perseguida) que mais necessários eram ao bem espiritual, e temporal
daquela terra, como facilmente se pode entender das mesmas alegorias.
Capítulo I – Exórdio
Neste capítulo, introduz-se o assunto do sermão: uma pregação que é feita aos
peixes, mas que, na verdade, se dirige aos homens; aborda-se a importância da palavra
dos pregadores («o sal») na preservação da moralidade e da integridade dos homens
(«a terra»); elogia-se Santo António como modelo a seguir; e invoca-se a Virgem
Maria, pedindo-lhe inspiração.
Exemplo: «Isto suposto, quero hoje à imitação de Santo António voltar-se da terra ao
mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.»
Definição do assunto do sermão
«Vós sois o sal da terra» é a frase bíblica que funciona como conceito
predicável, ou seja, um processo retórico que consiste na interpretação de um passo
da Sagrada Escritura, com base em associações de ideias devidamente fundamentadas
por uma autoridade teológica. É através do conceito predicável que se vai desenvolver
todo o raciocínio.
Exemplo: ««Vós», diz Cristo Senhor nosso, falando com os Pregadores, «sois o sal da
terra»[...].»
Exemplo 1: «[...] e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o
sal.»
Este cenário indesejado pode ser da responsabilidade dos Pregadores, por três
motivos: ou os pregadores não ensinam a verdadeira mensagem do Evangelho, ou os
comportamentos dos pregadores não são coerentes com as suas palavras, ou, por
vaidade, centram o ato de pregar em si e não na mensagem cristã.
Exemplo: «Ou é porque o sal não salga, e os Pregadores não pregam a verdadeira
doutrina; [...] ou é porque o sal não salga, e os Pregadores dizem uma coisa, e fazem
outra; [...] ou é porque o sal não salga, e os Pregadores se pregam assim, e não a
Cristo; [...].»
Por outro lado, pode ser da responsabilidade dos ouvintes por recusarem
receber a doutrina cristã, por imitarem a conduta dos falsos pregadores e não as
palavras da doutrina que eles proferem, ou por não se guiarem pelas palavras de
Cristo, mas, sim, pelos seus impulsos pecaminosos.
Exemplo: «[...] ou por que a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira
a doutrina, que lhes dão, a não querem receber; [...] ou porque a terra se não deixa
salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem [...]
ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes em vez de servir a Cristo servem a
seus apetites.»
Exemplo 2: «[...] assim é merecedor de todo o desprezo, e de ser metido debaixo dos
pés, o que com a palavra, ou com a vida prega o contrário.»
Exemplo: «[...] o zelo da glória divina, que ardia naquele peito [...].»
Exemplo 1: « Santo António foi sal da terra, e foi sal do mar. Este é o assunto que eu
tinha para tomar hoje. [...] Quanto mais, que o sal da minha doutrina, qualquer que ele
seja, tem tido nesta terra uma fortuna tão parecida à de Santo António em Arimino,
que a força segui-la em tudo.»
Exemplo 2: «Isto suposto, quero hoje à imitação de Santo António voltar-me da terra
ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes.»
Invocação à virgem
O orador dirige-se a Maria (mãe de Cristo) para lhe pedir ajuda e inspiração, de
modo a transmitir a mensagem cristã da forma mais justa e eficaz. Segundo Vieira, o
nome da virgem significa « Senhora do mar»; e, como o Sermão tem um tema
marinho, é a esta figura que o pregador pede auxílio para a sua tarefa.
Exemplo: « Maria quer dizer Domina maris: « Senhora do mar»; e posto que o assunto
seja tão desusado, espera que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.»
Linguagem e estilo
• frases exclamativas;
• interrogações retóricas;
• antítese;
Exemplo: «Muitas vezes vos tenho pregado nesta Igreja, e noutras de manhã, e de
tarde, de dia, e de noite, […].»
• adjetivação;
Exemplo: «[…] sempre com doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira […].»
• construções anafóricas.
Exemplo 1: «Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é
porque o sal não salga, […] ou porque a terra se não deixa salgar, […] ou é porque o sal
não salga, […].»
Exemplo 2: «Deixa as praças, vai-se às praias, deixa a terra, vai-se ao mar […].»
Exemplo: « Suposto isto, para que procedamos com clareza, dividirei, peixes, o vosso
Sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas virtudes, na segundo
repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal,
que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.» (Capítulo
II)
Exemplo 1: «Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao
menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.»
Exemplo 2: « Vos estis sal terrae. Habeis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do
mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos se experimentam:
conservar o são, e preservá-lo, para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades
tinham as pregações do vosso Pregador Santo António, como também as devem ter as
de todos os Pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem
para o conservar, e repreender o mal, para preservar dele.»
Ao considerar os peixes «irmãos» o pregador estabelece um paralelismo entre
o plano ficcional dos peixes e o plano real dos homens, que são o seu verdadeiro
auditório e a quem quer dirigir as suas críticas. Constrói-se, assim, a alegoria: os peixes
– elementos concretos – são louvados e criticados, porém o que se pretende é louvar
as virtudes de Santo António e criticar os vícios humanos (plano abstrato).
Exemplo 1: « Começando, pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes, bem vos pudera
eu dizer que entre todas as criaturas viventes, e sensitivas, vós fostes as primeiras, que
Deus criou. [...] Entre todos os animais do mundo, os peixes são os mais, e os peixes os
maiores.»
Exemplo 2: «[...] aquela obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de
vosso Criador e Senhor [...].»
Exemplo 3: «[...] aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de
Deus da boca do seu servo António. [...] Os homens perseguindo a António [...] e no
mesmo tempo os peixes [...] acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas palavras,
escutando com silêncio [...] o que não entendiam.»
Exemplo: «Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor: trato e familiaridade
com eles, Deus vos livre.»
Exemplo 1: «Falando dos peixes, Aristóteles diz que só eles entre todos os animais se
não domam, nem domesticam.»
Exemplo 2: «No tempo de Noé sucedeu Dilúvio, que cobriu, e alagou o mundo; e de
todos os animais, quais livraram melhor?»
Exemplo 3: «Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais como mais domésticos, ou
mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens; os peixes viviam longe, e
retirados deles.»
Está ainda presente o objetivo movere, através do conselho dirigido aos peixes:
padre António Vieira recomenda aos peixes que se mantenham afastados dos homens,
considerando esse afastamento a atitude mais prudente.
Exemplo 1: «Peixes, quanto mais longe dos homens, tanto melhor: trato e
familiaridade com eles, Deus vos livre.»
Exemplo 2: «Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.»
O peixe de Tobias
O peixe de Tobias tem o poder de, com as suas entranhas, curar a cegueira e
afastar os demónios. Sendo de grande dimensão, representa a bondade e o poder
purificador, no fundo, detém as virtudes do sal. É comparado a Santo António.
Exemplo: «[…] o fel era bom para curar da cegueira e o coração para lançar fora os
Demónios […].»
Exemplo: «Certo que se a este Peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda,
pareceria um retrato marítimo de Santo António. Abria Santo António a boca contra os
Hereges, e enviava-se a eles, levado do fervor e zelo da Fé e glória divina.»
A Rémora
Exemplo: «Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão
pequeno no corpo, e tão grande na força e no poder, […] se houvera uma Rémora na
terra, que tivesse tanta força como a do mar, […]!»
O orador faz a analogia com Santo António, por causa da sua língua e da força
do seu discurso. Deste modo, esta simboliza o poder da palavra do Pregador, que é
guia das almas. Padre António Vieira adverte que os homens se deixam dominar pelos
ímpetos, pelas suas paixões, sendo, por isso, necessário que alguém os chame à razão.
Exemplo: «Se alguma Rémora houve na terra, foi a língua de Santo António […]. o
Apóstolo Santiago naquela sua eloquentíssima Epístola compara a língua ao leme da
Nau, e ao freio do cavalo.»
O Torpedo
Exemplo: «Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água,
e em lhe picando na isca o Torpedo, começa a lhe tremer o braço.»
O Quatro-olhos
Definição: Peixe comum nas costas do Brasil. É uma espécie cujos olhos têm curvatura
dupla, o que lhe possibilita à superfície da água ver simultaneamente o que se passa
dentro e fora deste elemento.
O Quatro-olhos é um peixe que anda à superfície das águas e tem dois olhos
que veem para cima, protegendo-os das aves, e outros dois que veem para baixo e o
protegem dos peixes maiores.
Linguagem e estilo
Nestes capítulos II e III, o orador usa diferentes recursos linguísticos, que contribuem
para o ritmo rápido e cadenciado, concretizando, também, o discurso argumentativo.
• apóstrofe e personificação;
• antítese;
Exemplo: «Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro […].» (Capítulo
III)
• construção anafórica;
Exemplo 1: «[…] lá se vivem nos seus mares, e rios, lá se mergulham nos seus pegos, lá
se escondem nas suas grutas […].» (Capítulo II)
• enumeração;
Exemplo: «[…] o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi tão serviçal […].»
(Capítulo II)
• ironia;
Exemplo: «E desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está
ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.» (Capítulo II)
• interrogação retórica;
Exemplo: «Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a quem vos quer livrar dos
Demónios, perseguis vós?» (Capítulo III)
• comparação;
Exemplo: «Antes porém que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi
também agora as vossas repreensões. […] A primeira coisa, que me desedifica, peixes,
de vós, é que vos comeis uns aos outros. […] Não só vos comeis uns aos outros, senão
que os grandes comem os pequenos.»
Exemplo: «Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com
essas vaidades. Sendo moço, e nobre, deixou as galas, de que aquela idade tanto se
preza, trocou-as por uma loba de sarja, e uma correia de Cónego Regrante; e depois
que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha,
trocou a sarja pelo burel, e a correia pela corda. Com aquela corda, e com aquele pano
pescou ele muitos, e só estes se não enganaram, e foram sisudos.»
Assim, censuram-se os homens pela sua ignorância, visto que a sua ambição por
honrarias e títulos os leva a arriscar e a perder, por vezes, a vida.
Exemplo: «[…] é aquela tão notável ignorância, e cegueira, que em todas as viagens
experimentam os que navegam para estas partes.»
Exemplo: «Descendo ao particular, direi agora, peixes, o que tenho contra alguns de
vós.»
Os Roncadores
Exemplo: «[…] vendo o seu tamanho, tanto me moveram o riso, como a ira. […] porque
haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais.»
Exemplo 1: «São Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha
tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de Soldados Romanos;
e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu vos prometo que havia cortar mais
orelhas, que a de Malco.»
Santo António tinha poder e saber, mas não se vangloriava disso, revelando,
assim, humildade.
Exemplo: «Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber, como já vos disse, e
tanto poder como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais que o ouvisse
falar em saber ou poder, quanto mais brasonar disso.»
Os Pegadores
Exemplo 1: «[…] sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte
se lhes pegam aos costados, que jamais os desferram.»
Exemplo 2: «Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal maneira pegados, que
vos mateis por eles, nem morrais com eles.»
Os Voadores
Definição: Peixes cujas barbatanas parecem asas e lhes permitem voar acima da linha
de água.
Exemplo: «Dizei-me, Voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a
ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar, e com
nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.»
Exemplo 1: «Voadores do mar (não falo com os da terra), imitai o vosso Santo
Pregador.»
Exemplo 2: «Quisestes ser melhor que os outros peixes, e por isso sois mais mofino
que todos. Aos outros peixes do alto, mata-os o anzol ou a fisga; a vós sem fisga, nem
anzol, mata-vos a vossa presunção, e o vosso capricho.»
O Polvo
Exemplo: «O Polvo com aquele seu capelo na cabeça parece um Monge, com aqueles
seus raios estendidos, parece uma Estrela, com aquele não ter osso, nem espinha,
parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa, […] o dito Polvo é o maior traidor do mar.
Consiste esta traição do Polvo primeiramente em se vestir, ou pintar das mesmas cores
de todas aquelas cores, a que está pegado.»
Exemplo: «Vê, Peixe aleivoso, e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua
comparação já é menos traidor.»
Linguagem e estilo
• gradação;
Exemplo: «[…] em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não
defraudem, em que os não comam, traguem, e devorem […].» (Capítulo IV)
• interrogação retórica;
Exemplo: «É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos haveis de ser as
roncas do mar?» (Capítulo V)
• emprego do imperativo;
• antítese;
Exemplo: «[…] traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras […].»
(Capítulo V)
• apóstrofe;
• comparação;
Peroração
Exemplo: «Com esta última advertência vos despido […] Louvai a Deus, porque vos
criou em tanto número.»
Exemplo: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, porque chegam e não têm
horror de chegar, estando em pecado mortal!»
Vieira confessa sentir inveja dos peixes porque eles não ofendem a Deus, ao
contrário de si, que O ofende através de palavras, lembranças e vontades. É, pois, uma
mensagem de humildade, na medida em que o orador se assume ele próprio como
pecador.
Aos peixes é explicada a razão pela qual foram excluídos do sacrifício, segundo
o Levítico: não poderem chegar vivos ao altar. Só os vivos (sem pecado mortal) podem
na hora da morte, contemplar Deus e conquistar a vida eterna. Os mortos (pecadores)
estão condenados à perdição (ao Inferno).
Linguagem e estilo
• apóstrofe;
• frases exclamativas;
Exemplo 1: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, […] estando em pecado
mortal!»
Exemplo 2: «Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-Lo tão
indignamente!»
• construção anafórica;
• interjeições exclamativas;
Exemplo 1: «Oh quantas Almas chegam àquele Altar mortas, […] estando em pecado
mortal!»
Exemplo 2: «Ah Peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade!»
Visão global e estrutura argumentativa
«[...] argumentar é uma prática discursiva intencional: aquele que argumenta defende
uma determinada posição, num jogo verbal que pressupõe opiniões contrárias,
visando convencer ou persuadir o interlocutor [...].»
Ana Cristina Macário Lopes e Susana Soares, Contributos para uma análise do “Sermão de Santo António aos Peixes”