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A RETOMADA DA FAMÍLIA NA POLÍTICA SOCIAL: avanços e retrocessos na


proteção social

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Aline Tosta dos Santos

Resumo: Há no desenho da política social contemporânea um particular


acento nas microsolidariedades e sociabilidades sócio-familiares. A
família, além de ser o elemento central da política social e o alvo
privilegiado dos programas sociais a partir dos anos 1990, torna-se
parceira na implementação e execução das ações desta política que
requer cada vez mais a participação do grupo familiar na proteção social
dos seus membros. Este trabalho pretende oferecer alguns elementos
para problematizar esta centralidade, especialmente no que se refere à
política nacional de assistência social.
Palavras-chave: Família, política social, assistência social.

Abstract: There is in the drawing of the social contemporary politics


particularly accent in the microsolidariedades and sociabilidades partner-
relative. Besides being the central element of the social policy and the
privileged target of the social programs from the 1990 years, the family
makes partner into the implementation and execution of the actions of this
policies that applies more and more for the participation of the familiar
group in the social protection of his members. This work, examines this
issue, specially in what it concerns National Policy on Social Assistance.
Key words: Family, social policy, social assistance.

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Mestranda. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: alinetosta@yahoo.com.br
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1. INTRODUÇÃO

O enfrentamento da questão social vem apontando novas formas de relação entre o


Estado e a Sociedade. Desse modo, assume importância no Brasil ao longo dos anos de 1980
e 1990 uma concepção regressiva dos direitos sociais acentuando o crescente distanciamento
das políticas de combate à pobreza do modelo de seguridade social prescrito na Constituição
Brasileira de 1988. Tal diretriz indicava para a redução da cobertura social estatal e adoção de
critérios mercadológicos na formatação dos sistemas de proteção social.
Nesse contexto, crescem as parcerias entre organizações privadas e o Estado sendo que
a família é retomada como alvo privilegiado dos programas sociais a partir dos anos 1990. Este
movimento se circunscreve no processo de reordenamento da Política de Assistência Social
tendo como marco histórico, a promulgação da Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica da
Assistência Social (LOAS) de 1993 e a Política Nacional de Assistência Social/2004 (PNAS)
que compreende a atual proposta do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).
O SUAS que tem por base um modelo de gestão descentralizado e participativo, constitui-
se na organização em território nacional das ações socioassistenciais. Seus eixos estruturantes
são a territorialização e a matricialidade sociofamiliar.
Com relação à família, ao retomar um lugar de destaque na política social, questiona-se
o significado desta centralidade. Neste trabalho, pretende-se oferecer elementos para
problematizar esta questão. Se por um lado, tal centralidade se apresenta como uma
revalorização do grupo familiar, unidade de referência mais abrangente do que o indivíduo; por
outro lado re-afirma a orientação neoliberal de considerar a família como uma fonte privada de
proteção social colaborando como um instrumento de controle social2.

2. A RETOMADA DA FAMÍLIA NA POLÍTICA SOCIAL.

No Brasil contemporâneo, observa-se que o núcleo familiar tem se constituído em alvo


privilegiado das políticas sociais. Isso pode ser exemplificado pelo crescimento dos programas
de renda mínima com transferência direta para as famílias, onde a mulher é eleita como titular

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Nesse debate, não podemos negar a instrumentalidade da família como instituição reprodutora de valores da ordem social
estabelecida.
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do benefício em função da melhor aplicação dos recursos em gastos com alimentação e


manutenção da família.
No entanto, a “ênfase no grupo familiar” não é algo novo. Marshall (1967) analisa a
aplicação da Lei dos Pobres na Inglaterra onde a orientação principal era tratar a família como
unidade quando se tratava de agir em relação à miséria.
Robert Castel (1998) ao apresentar as primeiras medidas de proteção social na Europa
durante a Idade Média também sinaliza o lugar da família através do conceito de proteção
próxima3.
Estas observações confirmam que o grupo familiar sempre esteve presente nos
sistemas de proteção social. No entanto, com o avanço do ideário neoliberal, a perspectiva de
pluralismo de bem-estar tem disseminado que as responsabilidades sociais devem ser
transferidas do Estado para outros setores da sociedade civil. Neste sentido, destacam-se
quatro setores: oficial, comercial, voluntário e o informal. Este último engloba as redes primárias
e informais que tem como característica o apoio desinteressado, ou seja, a família e grupos
próximos (Johnson, 1990 apud Pereira, 2006). Apoiado numa suposta “crise” do Welfare State,
este modelo também denominado de Welfare Mix (Simionatto, 1998) caracteriza-se por uma
diversidade de fontes provedoras do bem-estar.
Na contra mão da proposta de universalidade dos programas de seguridade social
instituído pela Constituição de 1988, iniciou-se no Brasil, durante a década de 1990, a
implementação de programas sociais de cunho neoliberal, seletivos e focalizados nos grupos
sociais mais vulneráveis incentivando a participação da família e dos grupos comunitários como
uma alternativa para a “crise” de Estado. Neste ponto, cabe lembrar a importância estratégica
do Estado, apesar da retórica que prega o seu declínio ou de um “mundo sem Nações-Estado”
(Iamamoto, 2008).
Assim, desde a recessão econômica mundial dos fins dos anos 1970, a família vem
sendo redescoberta como um importante agente privado de proteção social. Nesse sentido,
quase todos os governos prevêem, de alguma forma, medidas de apoio familiar.

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Esta consistia em mecanismos informais de amparo social compostos pela proteção primária (rede familiar e/ou de vizinhança) e
secundária (formas iniciais de assistência sistematizada). Para este autor, se o indivíduo possui trabalho e vínculos sociofamiliares,
encontra-se potencialmente incluído nas redes de integração social. Se lhe falta um desses dois componentes (trabalho ou
vínculos) percorre as zonas de vulnerabilidade incorrendo em processos de desafiliação social.
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Ainda que este discurso assuma traços de modernidade ao apregoar uma


“emancipação” da sociedade, no Brasil sempre se lançou mão da participação voluntária da
família nos esquemas de proteção social. O que se coloca como novo (e se questiona) neste
modelo são as tênues fronteiras entre as esferas públicas e privadas colaborando para a
corrosão da cidadania através da privatização das responsabilidades públicas.
Carvalho (2007) ao destacar a tendência dos governos em tomar a família como alvo
privilegiado das políticas de assistência social afirma que o núcleo familiar não se constitui
apenas o elemento central, a grande inovação é o seu papel de parceira na implementação
destas políticas apoiada na perspectiva acentuada de partilha de responsabilidades e
solidariedades públicas e privadas desenvolvendo-se dessa maneira um welfare family
(Simionatto, 1998).

Mas o mais importante a se observar é que a família retoma um lugar de


destaque na política social. Ela é ao mesmo tempo beneficiária, parceira e
pode-se dizer mini-prestadora de serviços de proteção e inclusão social
(Carvalho, 2007, p. 18).

Pereira (2006) considera o esvaziamento da política social como direito de cidadania


uma estratégia resultante do impacto do neoliberalismo, já que, ao invés de emancipar a família
sobrecarrega-a com tarefas e responsabilidades que pertencem ao Estado. Embora haja o
reconhecimento explícito sobre a importância da família na vida social e, portanto, merecedora
da proteção do Estado, tal proteção tem sido cada vez mais discutida, na medida em que a
realidade tem dado sinais cada vez mais evidentes de penalização das famílias brasileiras
(Brasil, 2004). Desse modo, a matricialidade sócio-familiar que passa a ter papel de destaque
no âmbito do SUAS, merece ser decifrada.

2.1. A centralidade na família: avanços e retrocessos.

A interferência do Estado na família se realizou a partir de três grandes linhas: pela


legislação (na regulação de idade mínima para casamento e direitos / deveres de pais, mães e
filhos); pelas políticas demográficas (incentivo e controle da natalidade) ou pela difusão da
cultura policialesca que atribuía às classes populares uma imagem de classes perigosas (Mioto,
2006).
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No Brasil, a associação entre a medicina higienista e o Estado produziu uma norma


familiar capaz de formar cidadãos domesticados e colocados à disposição da cidade, do Estado
e da pátria (Costa, 1979). Esta disciplinarização sobre as famílias estava relacionada com o
desenvolvimento urbano e o projeto de criação do Estado Nacional. A intervenção social dirigida
às crianças, por exemplo, se sustentava na premissa de que salvar o infante dos “vícios” da
pobreza significava salvar a nação, pois na criança encontrava-se o futuro do país.
Tais ações foram introduzidas por aparelhos institucionais de normalização. Jeannine
Verdès-Leroux (1986), ao analisar a trajetória dos agentes sociais franceses no século XX traz
elementos importantes para esta discussão e afirma o papel do trabalhador social que na
perspectiva do controle e da coerção contribuiu para o reforço dos valores da classe burguesa
nas famílias operárias.
Ao tratar das relações entre Estado e Família, muitos autores vêm apontando na
atualidade o caráter paradoxal e conflituoso que marca a relação entre o Estado e a Família.
Apesar do reconhecimento da centralidade e importância da família, a prática interventiva tem
sido de negação desse reconhecimento, havendo a penalização do grupo familiar por parte das
organizações e instituições que deviam promovê-lo. Nesse sentido, cabe mencionar a postura
do Estado brasileiro que cada vez mais perde legitimidade com a população ao tratar a pobreza
como caso de polícia, além de estabelecer uma repressão policial-militar nos territórios onde se
encontram os cidadãos pobres.
Uma questão importante nessa discussão consiste na categorização das famílias em
capazes e incapazes de desempenhar as funções que lhes são atribuídas pela sociedade
(Mioto, 2006). Historicamente, a ação do Estado se fez presente nas que falharam na
responsabilidade do cuidado e proteção dos membros. Desta forma, realizaram-se ações
baseadas em concepções estereotipadas de família e de seu papel, com prevalência de
propostas residuais. Em decorrência da culpabilização das famílias, a intervenção do Estado
sempre se realiza em momentos de situações-limite (Mioto, 2006). Ao pensarmos na
centralidade da família como eixo estruturante do SUAS, as estratégias desenvolvidas precisam
propor a emancipação das famílias e não a penalização das mesmas.
Cabe registrar que a relação conflituosa entre o Estado e a Família também se mostra
conservadora. A intervenção do Estado na família sempre foi centrada em políticas sociais e de
atendimento com base nas figuras de “maternidade e infância”, “menor abandonado”,
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“excepcional” e “idoso” de modo que a atenção ao grupo familiar se tornou periférico. Assim, a
matricialidade sócio-familiar no âmbito da Política Nacional de Assistência Social ao conceber a
família como núcleo importante na socialização dos indivíduos pressupõe superar a perspectiva
setorial e a trajetória das grandes internações que separavam os indivíduos do seu contexto
familiar e comunitário.
Tendo como eixo estruturante a matricialidade sociofamiliar, as ações desenvolvidas no
âmbito do Sistema Único de Assistência Social devem estar voltadas para a família vivida, ou
seja, aquela que se apresenta de maneira concreta no cotidiano e não reforçar o tradicional
modelo nuclear burguês. Sobre essa questão são interessantes as contribuições de Campos e
Garcia (2007) ao analisarem a supervisão dos programas sociais com foco na família. Os
autores afirmam que

As práticas acabam, via de regra, por se basearem na intuição e nas visões


que cada um tem sobre esta instituição social. As visões dominantes
reproduzem geralmente concepções monolíticas (família estruturada),
moralistas (família como bem em si mesmo), ou de cunho fundamentalista
(instituição sagrada). Além do uso de conceitos imprecisos, tais abordagens
privilegiam uma lógica individual e subjetiva, do tipo: “O que penso sobre
família, inspira-me a valorar os casos que atendo e decidir sobre a melhor
conduta a ser empregada” (Campos e Garcia, 2007, p. 96).

Segundo Vitale (2002), só recentemente tem-se tratado, de forma mais enfática, a


diversidade cultural e os novos arranjos familiares. Isso implica em uma série de considerações
que se apresentam a política de assistência social. Com relação às “novas famílias” que
emergem na contemporaneidade é preciso enxergar na diversidade desses arranjos não só os
aspectos de vulnerabilidade, mas também o potencial de autonomia em encontrar alternativas
para as suas questões. Nestes casos, a família não está desorganizada, mas organizada de
outro modo, de acordo com as necessidades que lhe são postas. As práticas profissionais e o
saber constituído precisam incluir a pluralidade de conhecimentos e o respeito ético às
diferenças para não reproduzirem ações que re-atualizem concepções estereotipadas sobre as
famílias.
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Apesar da Política Nacional de Assistência Social em seus documentos oficiais4,


reconhecer as transformações ocorridas no interior da instituição familiar e conceituá-la “como
núcleo afetivo, vinculado por laços consangüíneos, de aliança ou afinidade.” (BRASIL, 2005,
p.17) esta centralidade na família não foi suficientemente discutida.
Um dos pontos relevantes dessa reflexão incide na permanência de visões
estereotipadas de gênero que ainda se assentam nas figuras ideologizadas de
homem/provedor/pai e mulher/cuidadora/ mãe. Esta última, freqüentemente inserida em
programas sócio-educativos é responsabilizada pelo cuidado dos filhos e cumprimento dos
critérios de permanência nos programas assistenciais.
Tendo em vista estas colocações, a matricialidade sociofamiliar pode ser considerada
um avanço quando a família é atendida integralmente a partir de ações intersetoriais, ou seja,
através da perspectiva de totalidade. Quanto ao retrocesso é possível atribuir uma des-
responsabilização do Estado no âmbito da proteção social, além de uma sobrecarga da família.

3. CONCLUSÃO.

O núcleo familiar comporta aspectos contraditórios. É tanto um espaço de refúgio como


também palco de ambigüidades. Por isso, não constitui um agente tranqüilo de proteção social
(Pereira, 2006). Não se está desconsiderando o potencial de acolhida e proteção da família,
mas ao reconhecê-lo, a política social deve oferecer um forte apoio a esta instituição e não
pressioná-la a assumir responsabilidades das quais não tem como arcar. A família não pode se
constituir em uma estratégia do Estado na transferência de responsabilidades.
A dimensão sócio familiar alçada como matriz de estruturação de políticas públicas,
contrariando uma tendência histórica, não deve reeditar a culpabilização da família pelo
fracasso em cuidar e proteger seus dependentes. A isto se acrescenta a forte identificação
dessa diretriz com as concepções estereotipadas sobre família e o papel social da mulher
voltado para o cuidado com a casa e a responsabilidade pelos filhos. Concordo com Pereira
(2006) quando afirma que na perspectiva do Pluralismo de Bem-Estar é das mulheres que se
espera a renúncia das conquistas no campo do trabalho e da cidadania social, pois se presume

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Refiro-me a Política Nacional de Assistência Social, 2004 e a Norma Operacional Básica, 2005.
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que o foco central de suas preocupações continua sendo a casa, enquanto o do homem ainda é
o local de trabalho.
A ação estatal deve fortalecer as competências familiares através da garantia dos
direitos. Este posicionamento torna-se um desafio tendo em vista o contexto social brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social, 2004.

______. Norma Operacional básica do Sistema Único de Assistência Social, 2005.

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programas sociais com foco na família. In: Revista Katálysis. Florianópolis v. 10 n. 1 p. 95-
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CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. O lugar da família na política social. In: CARVALHO,
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15-22.

CASTEL, Robert. As Metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. 4. ed.


Petrópolis, R.J, Editora Vozes, 1998.

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MIOTO, Regina Célia Tamaso. Novas propostas e velhos princípios: a assistência às famílias
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e LEAL, M. (org.) Política Social, família e juventude: uma questão de direitos. 2ª ed. São
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ao pluralismo de bem-estar. In: SALES, M. A; MATOS, M. C. e LEAL, M. (org.). Política Social,
família e juventude: uma questão de direitos. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

SIMIONATTO, Ivete. Do Welfare State ao Welfare family: a reforma da Assistência na Itália.


In. Revista Ser Social. Programa de Pós-graduação em Política Social. Universidade de
Brasília. Departamento de Serviço Social. Vol.1, primeiro semestre de 1998. p. 145-164.
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VERDÈS-LEROUX, Jeannine. Trabalhador Social: prática, hábitos, ethos, formas de


intervenção. São Paulo, Editora Cortez, 1986.

VITALE, Maria Amália Faller. Famílias Monoparentais: indagações. In: Revista Serviço Social
e Sociedade n º 71, Ano XXII, 2002, Ed. Cortez, São Paulo.

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