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PESQUISA TEÓRICA
tóricos com a cidadania, especialmente no que se Combater a desigualdade significa alcançar algum
refere aos princípios constitucionais brasileiros. patamar de igualdade, mas qual? Sen (2000) afirma
Esse movimento não pode ser contrarrestado ape- que temos que igualar as capacidades de funcionar e
nas pela multiplicação de conselhos vinculados às as vantagens individuais e não a renda.
políticas sociais, porque as leituras instrumentais da Da mesma forma que a desigualdade, a pobreza
pobreza despolitizam a questão social e a própria ação tem duas dimensões dissociadas em sua análise: a
política. É um plano de fuga que nega os vínculos pobreza de renda e a de capacidades. A dimensão
entre política econômica e política social, relativiza considerada prioritária é de capacidades individuais
as expressões da questão social no aqui e agora e para conduzir uma vida onde as necessidades bási-
magnifica uma representação de pobreza que cas possam ser supridas.
desterritorializa a questão social, pois a definição de
pobre e da pobreza pode ser calculada por fórmulas A dissociação entre pobreza de renda e pobreza de
pré-definidas e índices que se encaixam em qualquer capacidade permite ao autor focalizar o processo de
parte do mundo. desenvolvimento no indivíduo e não nas condições
Tais postulados não são frutos de uma cegueira estruturais, pois primeiro deve-se obter liberdade (ca-
involuntária, como ilustra Saramago (1995) em sua pacidades) para depois conseguir auferir renda no
ficção. Ao contrário, possuem grande eficácia ideo- mercado. Embora diferentes, pobreza de renda e de
lógica, pois conseguem deixar difusas as origens da capacidades são conexas, pois devemos aumentar
riqueza (“lícita” ou não) e se tornam poderoso obstá- capacidades que conduzam a um maior poder de
culo a alianças políticas e movimentos sociais que se auferir renda, e não ‘dar’ renda para aumentar as
posicionem contra a forma dominante de apropria- capacidades (MAURIEL, 2008a, p. 102).
ção de riqueza. Nesse “clima” metafórico, torna-se
possível realizar a proteção dos muito ricos. Ele consegue sair do foco tradicional da renda,
O que se quer ressaltar, contudo, é que se tem dos bens (ter) para o que as pessoas são capazes de
uma concepção teórica subjacente a tudo isso e que fazer com esses bens (ser e fazer). Ora, até bem
precisa ser desvendada e devidamente criticada. Tal recentemente o bem-estar das pessoas era avaliado
perspectiva foi denominada por Werneck Vianna pela quantidade de bens e serviços a que tinham aces-
(2008) de “liberal revisitada”, por primar por cida- so, o que era medido basicamente pela variável ren-
dãos autônomos por escolha própria, por pregar a da. Ao se concentrar nas capacidades dos indivídu-
igualdade de oportunidades para que todos possam os, passa a considerar características ligadas às pes-
ser efetivamente livres e por defender que o direito a soas e aquilo que conseguem realizar ou não.
que todos têm é o direito a “aprender a pescar”, ou As capacidades de escolha conformam liberda-
seja, o direito a um ponto de partida, a uma oportuni- des substantivas que se traduzem como oportunida-
dade1. Nessa tendência de análise, cada um deve ter des reais dos indivíduos promoverem seus objetivos
capacidade de se habilitar, e as oportunidades são (achievement ou realizações). A noção de capaci-
criadas para que cada um possa ter um funciona- dades para Sen é elaborada e pressupõe um indiví-
mento capaz de concretizar realizações, o que per- duo com capacidade de se capacitar/habilitar2. De-
mitirá medir e avaliar a potencialidade das habilida- senvolvimento, portanto, significa eliminar privações
des de cada indivíduo. de liberdade ou aumentar as capacidades.
O expoente com maior proeminência no desen- O exercício de liberdade individual é influenciado
volvimento dessa perspectiva é o indiano Amartya por condições habilitadoras (como saúde e educação
Sen (SEN, 2001, 2000), cujas ideias conformam base básicas) que devem ser garantidas para que cada
para a teoria do desenvolvimento humano, propaga- indivíduo possa se desenvolver ou habilitar-se para o
da por organismos econômicos multilaterais como exercício da cidadania.
PNUD e Banco Mundial. Um dos principais aspec-
tos do pensamento seniano ligado à política social é Desenvolvimento como aumento da liberdade dos
sua análise sobre pobreza e desigualdade. indivíduos significa expansão das capacidades para
A noção de pobreza para Sen (2001) é um des- as pessoas levarem o tipo de vida que valorizam
dobramento da sua discussão sobre desigualda- (liberdade como fim). Porém, as liberdades reais des-
de, que tem duas dimensões principais a serem frutadas pelas pessoas, ou suas capacidades indi-
consideradas: a desigualdade econômica (de bens, viduais de escolha dependem de disposições eco-
de renda, de condições materiais efetivas), que nômicas, sociais e políticas, daí a importância do
traduz uma situação externa aos indivíduos, re- papel instrumental das liberdades (liberdade como
mete à estrutura; e a desigualdade de capacida- meio) (MAURIEL, 2008a, p. 100).
des (de potencialidades ligadas às características
das pessoas), onde o foco está naquilo que as Portanto, combater a pobreza significa desenvol-
pessoas podem realizar. ver capacidades enquanto liberdades de escolha e o
Estado tem papel fundamental em garantir condições a ser elaboradas com forte referência ao movimento
mínimas para esse “empoderamento”. da economia fora de suas fronteiras.
Em prefácio redigido recentemente à publicação O papel estratégico que o conjunto de ações de
brasileira3, Sen reafirma que a ampliação de benefí- combate à pobreza possui hoje para manutenção do
cios sociais só pode ser garantida mediante a atual padrão de acumulação via financeirização ca-
capacitação ou “empoderamento” das pessoas, prin- racteriza-se pela regulação dos custos da força de
cipalmente as mais afetadas pela miséria. Desenvol- trabalho no mercado mundial, por meio da regulação
ver capacidades efetivas para usufruir liberdades do comportamento econômico, político e civil dos
substantivas básicas constitui condição necessária pobres, garantindo baixo risco de sublevação social e
para realizar mudanças sociais. Para ele, as ações uma forma ideologicamente palatável de inserção
de “empoderamento” ajudam a fazer frente ao pes- precária dessas massas na ordem econômico-finan-
simismo generalizado sobre os esforços públicos, pois ceira contemporânea (MAURIEL, 2009, p. 45).
“o mundo precisa de esperança e de know how”. Esse conjunto de questões reafirma a redefinição
Na concepção de política social inspirada nessa do padrão de proteção social brasileiro (PASTORINI;
vertente de pensamento, sistemas universais têm lu- GALIZIA, 2006). As principais características que vêm
gar, mas somente aqueles que propiciam a capacitação sendo apontadas mostram uma transição contraditó-
dos indivíduos para o exercí- ria das políticas sociais, de um
cio da autonomia. Por exem- projeto constitucional inclusi-
plo, um sistema público gra- As ações de focalizadas no vo e redistributivo para uma
tuito de educação é relevan- tendência à assistência
te, mas de nível fundamental;
combate direto à pobreza mitigadora (IVO, 2004), com
um sistema de saúde público possuem, geralmente, caráter uma complexa clivagem que
também é aceito, mas priori- configura tipos de políticas so-
tariamente voltado para a pro- transitório e sua continuidade ciais que podem ser agrupa-
moção da saúde. Os sistemas das, segundo diferentes tipos
públicos, portanto, não se des- fica à mercê das opções de de direitos: a) aquelas que
tinam aos pobres, são para respondem pelos direitos so-
todos, assim como os siste- governos, atendendo uma ciais básicos estruturados
mas privados, porém, o que pelo Estado (Previdência bá-
vai definir (em tese) é a es- demanda difusa e não sica; SUS, hospitalização e
colha dos indivíduos com base consultas; benefícios e pres-
a competição entre a oferta
estruturada no aparelho do tações continuadas da LOAS
pública e privada (WERNECK Estado. e seguro-desemprego); b) os
VIANNA, 2008). programas que garantem os
Ou seja, na concepção “li- direitos sociais previstos na
beral revisitada” a convivência entre as políticas Constituição, mas são passíveis de corte segundo op-
sociais universais e as focalizadas não é só permi- ção dos governos (reforma agrária; Fundo de Desen-
tida, mas recomendada. Esse hibridismo é justa- volvimento do Ensino Fundamental – FUNDEF; Me-
mente o principal elemento distintivo que vai ca- renda Escolar, entre outros projetos estruturantes); c)
racterizar a política social hoje: um mix entre sis- e, finalmente, os programas emergenciais para
temas universais básicos e formas individualiza- enfrentamento de carências e “situações de
das de proteção privada. vulnerabilidade” social de segmentos populacionais es-
Essa forma predominante de conceber política pecíficos (inclui-se aqui toda uma gama variadas de
social, que incorpora o combate à pobreza como es- programas focalizados na linha de pobreza que resol-
tratégia central de proteção social, tem uma dimen- vam demandas legítimas não contempladas nos dois
são internacional. Mauriel (2009) observa a relação grupos anteriores) (IVO, 2004, p. 60).
entre as políticas sociais centradas no combate à As ações de focalizadas no combate direto à pobre-
pobreza e as decisões estratégicas que vêm sendo za possuem, geralmente, caráter transitório e sua con-
tomadas na arena internacional, especialmente pelos tinuidade fica à mercê das opções de governos, aten-
Estados, considerados como principais atores das dendo uma demanda difusa e não estruturada no
negociações que se relacionam às políticas públicas. aparelho do Estado. Esse conjunto de ações, por sua
E constata que a entrada do combate à pobreza como vez, se ramifica em duas grandes tendências: o em-
centro das preocupações da agenda social internaci- preendedorismo, que corresponde ao estímulo à ati-
onal aconteceu a partir do contexto generalizado de vidade empresarial empreendedora como instrumento
reformas dos sistemas de welfare desde os anos 1980 de inclusão social (como exemplos tem-se o Proger,
quando, tanto em países centrais como nos periféri- Proger Jovem Empreendedor, ProJovem, Programa
cos, as políticas públicas governamentais passaram Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado etc.4); e
o “novo” assistencialismo condicionado, que se carac- Dessa forma, ela deve funcionar para incluir gru-
teriza pela transferência de renda com condicionalidades pos sociais injustamente impedidos de participar dos
(a principal iniciativa é o Programa Bolsa Família5) circuitos de produção, bens, serviços e direitos exis-
(WERNECK VIANNA, 2008, p. 133-134). tentes na sociedade brasileira. Concebida dessa ma-
Esses dois conjuntos de ações de combate à po- neira, a assistência social não estaria desgarrada das
breza possuem uma complementaridade entre si e demais políticas socioeconômicas, e não contribuiria
uma coerente relação com as outras políticas soci- para desmantelá-las ou substituí-las. Ao contrário, ela
ais, ao promover o alívio imediato da pobreza, ao re- funcionaria para fortalecer as condições de eficácia
forçar o exercício de direitos sociais básicos nas áre- das demais políticas sociais e econômicas, tendo em
as de saúde e educação (com a garantia das vista o combate integrado e intersetorial à pobreza e
condicionalidades) e ao articular-se a programas com- impedindo sua reprodução entre as novas gerações,
plementares (principalmente de iniciativas municipais) tal como postula a lei que a regulamenta.
para geração de renda. Tal concepção apoia-se na premissa de que, com
A “gestão estratégica da pobreza”, que supõe o o reconhecimento da política de assistência social
fortalecimento da capacidade dos pobres para luta- como mecanismo de concretização de direitos soci-
rem contra a pobreza como sujeitos desse processo, ais, rompe-se com a visão contratualista de proteção
aposta no crescimento individual e na melhoria das social, que sempre exige contrapartidas do
condições de acesso à produção (incentivo à gera- beneficiário.
ção de renda), ao microcrédito e, consequentemente, O que se verifica, contudo, é que a tardia
à mobilidade social (por seus próprios esforços pes- institucionalização da política de assistência6 aconte-
soais). Isso significa, sob essa concepção de política ce num ambiente onde o tratamento da questão soci-
social, possibilitar a conquista da cidadania para a al centrado no combate à pobreza focalizada só fez
parcela mais “vulnerável” da população, conferindo aprofundar o processo de desconstrução simbólica e
aos pobres uma possibilidade de inserção precária, ideológica da Seguridade enquanto base para pensar
pois como não é possível construir saídas de e construir as políticas sociais, dificultando justamen-
integração estrutural via trabalho regular em função te o caráter intersetorial que tal política deveria ter
do padrão de desenvolvimento global excludente, pro- com as demais políticas públicas.
põe-se essa forma de acomodação. Ademais, a noção de política social presente na
PNAS difere da LOAS em aspectos fundamentais
do ponto de vista da concepção de proteção social,
Assistência social: política de seguridade ou como ilustra-se nos trechos comentados abaixo.
de combate à pobreza?
Tudo isso significa que a situação atual para a cons-
O circuito se fecha ao observarmos a relação do trução da política pública de assistência social, pre-
combate à pobreza concebido enquanto aquisição de cisa levar em conta três vertentes de proteção soci-
capacidades com a Política Nacional de Assistência al: às pessoas, às circunstâncias, e dentre elas seu
Social (PNAS, 2004). núcleo de apoio primeiro, isto é, a família. A prote-
Só é possível pensar a assistência social no campo ção social exige a capacidade de ‘maior aproxima-
dos direitos, da universalização do acesso e da res- ção possível do cotidiano da vida das pessoas,
ponsabilidade estatal, quando pensada em sinergia com pois é neles que riscos, vulnerabilidades se consti-
as políticas que conformam a Seguridade Social. Logo, tuem’ (PNAS, 2004, p.14, grifos nossos).
assistência social como política pública e enquanto di-
reito de cidadania é parte da Seguridade Social. E en- Sob essa perspectiva, as causas da pobreza apare-
quanto componente da seguridade ela deve funcionar cem desvinculadas dos seus determinantes estruturais,
como uma rede de proteção impeditiva da pobreza separando os indivíduos submetidos a essa condição
extrema, além de procurar corrigir injustiças e preve- de seus lugares no sistema produtivo priorizando o
nir situações de vulnerabilidade e riscos sociais, con- cotidiano, passando a assistência a constituir um atri-
tribuindo para a melhoria das condições de vida e de buto individual para aqueles que “moralmente” têm
cidadania da população pobre mediante três procedi- direito ou potencialidade para se capacitarem.
mentos: provimento público de benefícios e serviços
básicos como direito de todos; inclusão no circuito de A nova concepção de Assistência Social como di-
bens, serviços e direitos de segmentos sociais situados reito à proteção social, direito à Seguridade Social
à margem desses frutos do progresso; e manutenção tem duplo efeito, um o de suprir sob dado padrão
da inclusão supracitada e estímulo ao acesso a pata- pré-definido um recebimento e outro, ‘desenvolver
mares mais elevados de vida e de cidadania, mediante capacidades para maior autonomia’. Neste sentido
o desenvolvimento de ações integradas no âmbito das ela é aliada ao desenvolvimento humano e social e
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