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Apostila Vida e Obra de Celestin Freinet

[...] A criança brinca e joga, e mais que o adulto, porque tem em


si um potencial de vida que a faz procurar maior amplitude de
reações: ela grita naturalmente em vez de falar, corre sem parar
em vez de andar, depois adormece profundamente, com a
colherada de sopa na boca, e nada a despertará até a manhã
seguinte. A atividade que lhe é permitida ou tolerada pelos
adultos e pelos elementos não basta para gastar todo esse
potencial de vida, ela precisa de um derivativo que não pode
imaginar totalmente, que se contenta em copiar da atividade dos
adultos, adaptando-o à sua capacidade.

Celestin Freinet

1. A Extraordinária Vida de Célestin Freinet

1.1. Começo de vida

Célestin Freinet nasceu em 15 de outubro de 1896 em Gars, uma


pequena cidade nos Alpes Marítimos, na França.

Seus primeiros anos de vida, como os de qualquer criança da aldeia na


época, foram empregados entre os trabalhadores dos campos, em um
território pobre onde o clima, que apesar de ficar nos arredores do
Mediterrâneo, era rigoroso.
Ele sabia o essencial sobre cuidar de ovelhas -- sua esposa Elise até
escreveu sobre "sua experiência de pastorear era seu leitmotiv 1 da
experiência educacional", em 1977.

Depois de completar as aulas de continuação primária na cidade de


Grasse, ele se matriculou na faculdade de treinamento dos professores
primários de Nice.

1.2. Primeira Guerra Mundial

No começo da guerra, em 1914, Freinet foi convocado, e em 1915, aos


19 anos, ele foi gravemente ferido no Caminho das Damas 2 e foi
condecorado com a Cruz de Guerra3 e a Ordem Nacional da Legião de
Honra4.

Durante quatro anos, passou por vários hospitais para se recuperar. Por
conta de uma lesão no pulmão, ele nunca se curou por completo e acabou
sofrendo no decorrer de sua vida com uma falta de ar que, ele mesmo
viria a expressar, ser ligeiramente responsável pela essência de suas
inovações educacionais, que trazia a importância das ações dos alunos
ao contrário da constante fala do professor.

1.3. Início de trabalho como professor

Em 1920, Freinet foi nomeado professor-assistente na modesta escola de


Bar-sur-Loup, uma cidade pitoresca de apenas 1.000 habitantes. Este
lugar foi o cenário para o início do trabalho de Freinet como professor e
militante.

1 Leitmotiv (do alemão, motivo condutor), em música, é uma técnica de composição


introduzida por Richard Wagner em suas óperas, que consiste no uso de um ou mais temas
que se repetem sempre que se encena uma passagem da ópera relacionada a uma
personagem ou a um assunto.
2 Em francês, Chemin des Dames, é a designação setecentista de uma estrada situada
num local onde se travaram batalhas importantes desde o período romano .
3 A Cruz de Guerra 1914-1918 é uma condecoração militar francesa.
4 A Ordem Nacional da Legião de Honra é uma condecoração honorífica francesa. Foi
instituída em 20 de maio de 1802 por Napoleão Bonaparte e recompensa os méritos eminentes
militares ou civis à nação. Ordem máxima da nação francesa, tendo um limite de apenas 75
membros vivos entre os grã-cruzes da ordem.
Começou a introduzir tipografias escolares, semeando os princípios para
uma movimentação nacional por seus textos em revistas profissionais e
políticas.

Freinet participava dos encontros internacionais sobre grandes


educadores da época - Ferrière, Claparède, Bovet, Cousinet5 - além de
sempre ler os clássicos da teoria educacional contemporânea enquanto,
ao mesmo tempo, estudava para se tornar supervisor da escola primária.

Isso tudo contribuiu para que ele se distanciasse da teoria educacional


tradicional, assim como da teoria de Ferrière da “nova educação”.

1.4. Educação e Política

Ele também fundou uma cooperativa de trabalhadores em seu povoado


natal, para houvesse eletricidade na comunidade.

Ele associou-se ao sindicato comunista e ao Partido Comunista, e em


1925, visitou a URSS como integrante de uma delegação sindical. Lá ele
conheceu Krupskaia6, a esposa de Lenin, que era ministra da Educação.

Essas atividades sindicais e políticas influenciaram profundamente sua


concepção emergente de educação popular.

1.5. Desenvolvimento de suas técnicas pedagógicas

Em 1928, após sua transferência de Bar-sur-Loup para Saint-Paul-de-


Vence, os traços principais de seu trabalho foram estabelecidos:
impressão, correspondência inter-escolar, a escola cooperativa e, a nível
nacional, a Coopérative de l'enseignement laïque (Cooperativa Secular de

5 Autores que trabalhavam com o conceito de “Escola Nova”. A Escola Nova, também
chamada de Escola Ativa ou Escola Progressiva, foi um movimento de renovação do ensino, que
surgiu no fim do século XIX e ganhou força na primeira metade do século XX.
6 Nadejda Konstantinovna Krupskaia, em russo (São Petersburgo, 26 de fevereiro
de 1869 — Moscou, 27 de fevereiro de 1939), foi uma revolucionária bolchevique e
pedagoga russa , casada com o líder revolucionário Vladimir Lênin em 1898. Após a
Revolução de 1917, participou do governo e teve importante papel na luta contra o
analfabetismo na Rússia. Suas opiniões sobre educação tiveram grande influência no
instalação de novos critérios e normas de ensino na URSS. Foi também uma das
organizadoras do sistema bibliotecário soviético.
Educação). Freinet ficou conhecido nacional e internacionalmente devido
os congressos nos quais ele participou ou organizou.

Entre 1929 e 1933, Freinet e sua esposa Elise desenvolveram e


ampliaram o movimento que haviam fundado, no entanto, Saint Paul-de-
Vence não era Bar-sur-Loup. Apesar de pequena, a cidade já era
próspera quanto à turismo, e a vinda de dois professores comunistas não
foi vista com bons olhos, ainda mais com o reconhecimento que ambos
tinham tanto na França quanto no Mundo.

Um problema confuso envolvendo banheiros bloqueados que eram


deixados sujos, deu ao conselho de direita da cidade o pretexto
necessário para buscar e conseguir a retirada dos professores
controversos. O casal foi transferido de volta para Bar-sur-Loup, porém
não aceitaram o cargo, mesmo com carinhosa recepção que lhes foi dada
pela comunidade. Eles se demitiram e mergulharam de cabeça na
construção do movimento cooperativo de educação secular, que acabou
resultando em um verdadeiro empreendimento, onde eles elaboravam
materiais didáticos, além de continuar publicando seus estudos sobre
educação.

1.6. Escola Experimental Livre

A ideia de uma escola experimental livre surgia. Em 1934 e 1935, Freinet


conseguiu -- com o apoio do movimento, amigos políticos e da imprensa
de esquerda -- construir sua própria escola em Vence.

A escola era isolada, com salas espaçosas. As crianças eram em sua


maioria pensionistas, e eram filhos de famílias mais pobres ou em
dificuldades. Elise os descrevia como “filhos de trabalhadores parisienses,
referências de serviço social”. Eram pessoas que tinham fé em ambos os
professores.

1.7. Segunda Guerra Mundial

Os anos de 1939 e 1940 viram os primeiros sinais da ameaça e depois o


surgimento da Segunda Guerra Mundial. Freinet, como conhecido
comunista, era considerado um risco, por suas ideias e atividades
revolucionárias de sua organização.

Freinet foi preso e enviado à um campo de concentração, após a URSS


chegar à um acordo com os nazistas. No entanto, foi colocado em
liberdade condicional um tempo depois. Durante o tempo de guerra, ele
foi membro e, eventualmente, líder dos dos maquis 7 no terreno de
Briançonnais.

Na Libertação, tornou-se presidente do Comitê de Libertação dos Altos


Alpes e retomou suas atividades em Vence.

1.8. Cooperativa de Educação Secular, Instituto da Escola Moderna


e Morte de Freinet

Em 1948, a Cooperativa de Educação Secular tornou-se o Insituto da


Escola Moderna. Sua sede foi estabelecida em Cannes e acabou virando
um importante centro de produção e distribuição de materiais didáticos.

Em 1950, Freinet foi expulso do Partido Comunista, com cujas políticas


ele já não concordava mais, o que resultou em frenesi dentro de seu
movimento.

Freinet morreu em Vence em 1966. O movimento continuou após sua


morte e Elise Freinet manteve viva a memória de seu marido.

2. A Originalidade das Técnicas Freinet

A experiência com seu trabalho de professor-assistente pós Primeira


Guerra Mundial, permitiu que Freinet absorvesse e depois aperfeiçoa-se
a ideologia predominante no novo movimento educacional que ele veio a
liderar.

7Maquis é a designação, ao mesmo tempo, dos grupos da resistência francesa durante


a Segunda Guerra Mundial (que se escondia em zonas montanhosas com vegetação tipo
bosques ou maquis para atacar de surpresa os nazis), assim como indicação dos locais onde se
escondiam.
Havia uma necessidade urgente, física e psicológica, de sair da sala de
aula e ir à procura da natureza e dos ambientes ao redor.

Assim, a primeira grande inovação foi o classificatório para observar o


ambiente natural e humano. O que havia sido vislumbrado era trazido para
dentro da escola e discutido, pela primeira vez, e sendo colocado em
textos.

Esses textos eram, então, corrigidos e aperfeiçoados, e acabavam


fornecendo uma estrutura para o aprendizado das habilidades básicas
tradicionais, que, por sua vez, tornaram-se um instrumento apropriado
para progredir e melhorar a comunicação.

A teoria do desenvolvimento psicológico por fases ligadas às principais


funções da vida, subjacentes à organização sistemática do estudo do
meio ambiente - alimento, abrigo, segurança, solidariedade humana -
pareceu a Freinet impedir o surgimento dos interesses reais da criança.

Ele acreditava que o estudo do meio ambiente assumia seu absoluto


significado apenas no impulso de agir sobre ele e transformá-lo.

Logo foi ampliado e enriquecido o pensamento graças à duas dimensões


complementares: em primeiro lugar, por meio de projetos individuais
trazidos à turma por alunos que desejavam familiarizar seus colegas de
escola com eventos que os havia impressionado e dos quais haviam
participado - chamado de “Texto livre”; em segundo lugar, o "jornal
escolar" passou a ser feito; e, acima de tudo, "correspondência
interescolar", onde foi passado tais conhecimentos para outras escolas.

A comunicação, correspondente à socialização, tornou-se o instrumento


por excelência para o acesso à palavra escrita.

Assim, o desejo de comunicar transformou o estudo do meio ambiente em


observação meticulosa para o propósito de comunicação com outros fora
do ambiente imediato, e identificou, além de criar, os meios técnicos para
tal comunicação, quais eram a imprensa escolar e a linogravura.
O estudo do meio ambiente, impressão, jornal e correspondência escolar
tornou-se o primeiro instrumento de uma revolução pedagógica.

Uma transformação igualmente ousada ocorreu no estudo da aritmética.

Na visão de Freinet, a aritmética deve ser uma ferramenta para atividades


práticas, justificada não mais pelo acesso a habilidades abstratas com
números e operações numéricas, mas pela medição de campos, pela
pesagem do produto, pelo cálculo do preço de custo e do juro devido ou
devido.

A aritmética da escola deve, portanto, estar imersa na vida do ambiente,


de modo a tornar-se "aritmética viva".

A classe em si, concebida como um ambiente de "técnica para viver",


deve fornecer a base para essas atividades matemáticas. Aulas ao ar
livre, em locais distantes e que poderiam trazer novos “insights” aos
alunos, foi uma das contribuições colocadas.

No entanto, todas essas atividades custavam dinheiro e, em comunidades


pobres, a autoridade local não pode ser invocada para fornecer fundos. A
cooperativa escolar foi, assim, uma resposta a uma dupla necessidade de
motivar o estudo da aritmética e de fornecer trabalho para as oficinas
escolares, e desenvolveu-se naturalmente num ponto focal, preparando
projetos, tomando decisões, mantendo contas e avaliar possibilidades.

Para funcionar adequadamente, precisava de oficiais eleitos e reuniões


periódicas para discutir e monitorar o progresso.

As técnicas de comunicação escolar tornam-se, assim, um instrumento


de educação cívica através da ação, e não através de palestras sobre
instituições remotas que só podem receber um significado concreto
através do trabalho diário da própria escola.

3. Filosofia de Freinet

Freinet é, em sua essência, um praticante.


Sua genialidade consistia em trazer inovações para a sala de aula, em
criar um movimento e um instrumento para produzir os materiais
educacionais necessários para uma propagação extensa de suas ideias
e práticas, demonstrando não apenas seu tino para organização, mas
também o que poderia ser chamou o lado "messiânico" de seu
personagem.

Freinet acreditava que a educação era um caminho, se não o único


caminho, para mudar a humanidade.

Ele acreditava que essa direção, desde que aplicada no geral, deveria ser
um meio de reestruturação social e de transcender o capitalismo
explorador e bélico.

É aqui que Freinet, o educador, se torna um com o político de Freinet.

Específico ao seu pensamento é seu desejo de levar o materialismo


histórico ao nível da sala de aula.

A renovação da educação, até então, um pré-requisito essencial para a


libertação da humanidade, não pode ser produzida por pronunciamentos
oficiais, no entanto surge de práticas e processos técnicos que, em certo
sentido, forçam a renovação do sistema.

A impressão, que dá forma material ao pensamento e à comunicação


escrita, é o processo técnico por excelência.

Seu trabalho como um todo é concreto e expressivo, além de apelar para


as emoções, porém é ainda mais difícil de definir sua filosofia subjacente
que nunca parou de desenvolver e crescer, onde assimilar e, acima de
tudo, transformar as principais tendências do pensamento é algo
importante.

A filosofia básica de Freinet é aquela que está implícita ao que ele próprio
chamou de "técnicas de vida".
Este método é o modo de expressar uma desconfiança fundamental de
tudo formal (ou escolástico, como o próprio diria), tudo forçado e artificial,
e uma confiança grata na natureza.

Para apreciar as raízes emocionais deste pensamento, é necessário


entender o que foi passar dias na escola em Vence,um ambiente rural e
ensolarado, cercado por crianças rindo; ou ter vivido - fora da temporada
de férias, é claro - nas montanhas da Haute-Provence. É aqui que um
profundo senso de integridade e companheirismo humano são forjados -
muito longe das escolas municipais de paredes sérias e seus playgrounds
de asfalto, onde as crianças, finalmente liberadas de sua inquieta
imobilidade, lutam entre si como criaturas selvagens.

À luz das revoluções demográficas e tecnológicas que ocorrem nas


sociedades industriais, quais são as necessidades básicas dos alunos e
professores hoje? Quais condições devem ser atendidas para que o
sistema educacional continue operando?

Um dos principais propósitos tradicionalmente atribuídos às escolas é


ensinar, isto é, oferecer às crianças os conhecimentos e as habilidades
necessárias para entender sua cultura.

No entanto, qual é a situação atual do aprendiz em relação a essa visão


de estudo? As crianças de hoje passam mais tempo em frente à televisão
do que na escola.

O universo urbano abstrato em que eles habitam os desvia e os isola das


experiências imprescindíveis do que era antigamente.

O cultivo de culturas e a criação de animais, o aproveitamento das forças


elementares do vento e da água, a experiência mecânica básica de
máquinas trabalhadas pelo poder humano ou humano, medidas concretas
de comprimento, capacidade, volume e peso, as relações cotidianas e
rituais de comércio… Tudo isso e o modo de vida que os acompanhou
foram varridos pela civilização tecnológica.
A televisão transformou o contato com a natureza e com os semelhantes
em uma forma de entretenimento.

Dispositivos eletrônicos têm proporcionado trabalho produtivo com o


caráter de magia: efeitos poderosos são alcançados instantaneamente
com o toque de um botão.

As crianças de hoje "consomem princípios" sem perceber.

Os efeitos dessas mudanças ainda precisam ser totalmente ponderados,


porém há um pressentimento no exterior de que esse tipo de civilização
está tornando a existência humana cada vez mais frágil, além de uma
suspeita de que apenas muito poucos especialistas agora são capazes
de entender esse universo passivo.

Freinet queria trazer vida às escolas numa época em que eles eram os
templos de “paredes sérias”.

O conhecimento poderia então se construir de uma maneira


aparentemente abstrata, porque estava naturalmente enraizado na
experiência concreta adquirida fora da escola.

A transição do contexto prático dos campos ou da oficina para o contexto


intelectual da escola não foi automática, no entanto foi possível porque
implicou o reprocessamento dessa experiência prática espontânea.

Hoje, o movimento está na direção contrária: se a escola deve ser um


ambiente de vida, ela deve fornecer um curso básico sobre as
experiências básicas que a criança não pode mais obter do lado de fora.

As técnicas de Freinet são mais válidas do que nunca. Na verdade, elas


se tornaram quase obrigatórias.

A humanidade hoje está cada vez mais consciente de seus limites e do


perigo de uma exploração irracional do capital natural e humano do
mundo em prol da instantificação e da amenização da sede de
propriedade e poder.
A ideia de um retorno e uma revitalização dos valores básicos do amor
aos outros e amor à natureza, como contra o amor à propriedade e ao
poder, é sem dúvida a única rota filosófica que pode agora levar à
consciência universal da nossa finitude e nossa fragilidade.

Agora, mais do que nunca, Freinet se abre para nós, na educação, no


caminho da razão e do sentimento.

O artigo abaixo irá ajudar em seus estudos:

Título: Um sopro de vida: Célestin Freinet

Autores: Michelle Cardoso Blaneck, Ruth Ruschel, Ana Fausta Borghetti

Ano 2013

Link: http://facos.edu.br/publicacoes/revistas/e-
ped/agosto_2013/pdf/um_sopro_de_vida_-_celestin_freinet.pdf

Um sopro de vida: Célestin Freinet

Resumo: Com o intuito de entender como funciona a aquisição da autonomia para Freinet, o
presente texto traz algumas práticas e observações que este pensador, que passamos a admirar,
foi descobrindo ao longo de sua vida. A pedagogia de Freinet é construída com base na
experimentação e documentação, tendo em vista a formação de crianças ativas e participativas.
Outro ponto marcante em sua prática, é que considera a criança da mesma natureza do adulto
e com isso quebra a relação de hierarquia entre professor e aluno, estabelecendo assim, um
diálogo horizontal, produtivo, amigável, de extremo respeito e admiração entre ambos. Percebe-
se que, durante sua trajetória como professor, foi um sujeito curioso e questionador, apaixonado
pelo conhecimento, entregava-se por inteiro. Costumava fazer anotações sobre seus alunos e
principalmente ouvi-los. Acreditava que a escola deveria estar aberta para que a natureza
pudesse entrar e encantar seus alunos. A partir dos estudos bibliográficos conheceu-se a vida e
a obra deste pensador, e após observou-se em algumas escolas do litoral norte do Rio Grande
do Sul e na Escola Municipal Desembargador Amorim Lima - SP como se dá a utilização de tais
práticas e se estas contribuem para a formação deste sujeito autônomo.

Palavras-chave: Autonomia – diálogo horizontal- experimentação/documentação – práticas.

Introdução

A autonomia é uma habilidade bastante discutida e desejada na


contemporaneidade. Formar sujeitos autônomos é uma necessidade sendo este
um dos itens contemplados em todos os PPP’s, os quais visam uma educação
que tem como função formar cidadãos ativos na sociedade. Porém, alguns
educadores a veem de forma muito simplificada, por isso nossa pesquisa foi
encaminhada a descobrir como se dá a formação do sujeito autônomo citado por
Freinet.

A partir de estudos realizados em artigos e livros nos deparamos com a teoria e


as práticas de Freinet que nos argumentava a ineficiência das regras autoritárias
e modelos rígidos encontrados nas escolas ainda hoje. Quanto mais
estudávamos e conhecíamos suas ideias, mais nos identificávamos com o autor,
pois para a nossa surpresa era assim que imaginávamos nossas aulas... tudo
aquilo que sonhávamos realizar com as crianças, encontramos nos livros e
artigos, tudo bem explicado, simplificado e argumentado por aquele professor
genial. Ele acreditava mais no que acontecia em classe, em suas experiências,
em tudo o que acontecia em suas aulas, do que costumava ouvir nas
conferências e congressos internacionais.

Muitos educadores deparam-se diariamente com barreiras, com dificuldades


para realizar trabalhos e atividades diferentes, alegam que isto ocorre por causa
da direção, por modelos tradicionais, com um discurso de que sempre foi assim,
que não da para mudar, que o sistema é este. Mas, quem é o sistema?

Em função disso, nossa pesquisa busca entender como se dá a construção da


autonomia no ambiente escolar com base na pedagogia de Freinet.

Referencial teórico

Para Freinet, segundo SAMPAIO (1989), a concepção de autonomia abrangia


os direitos dos adultos e das crianças, de forma consciente e responsável, que
fugia das quatro paredes da sala de aula e se inter-relacionava ao meio social,
possibilitando aos alunos pensarem, criticarem, e se mobilizarem frente aos
poderes políticos e problemas sociais enfrentados. O autor acreditava que para
ocorrer aprendizagem efetivamente, era necessário estimular as crianças a
acreditarem em si mesmas, encorajá-las a fazer a diferença, deixá-las
expressarem-se livremente, e permitir que criassem e recriassem o seu futuro
de forma autônoma e de qualidade para todos.
Ao contrário de alguns educadores da época, Freinet, foi contra alguns
elementos da teoria tradicional. Logo que começou a lecionar tentou utilizar estes
métodos, onde o professor é detentor de todo o saber, e o aluno uma folha em
branco que pode ser moldado. Mas, constatou que o interesse das crianças
estava do lado de fora da escola. Observando como as crianças motivavam-se
com o que acontecia do lado de fora, o quanto se admiravam com a natureza
deu-se início a sua primeira prática diferenciada, aula - passeio.

Para este educador ficou claro que o que interessava os alunos era os bichinhos,
a natureza, subir em muros, brincar solto no pátio. Decidiu então, proporcionar
momentos felizes e de aprendizagem. Diariamente, Freinet organizava passeios
pelo vilarejo, onde as crianças observavam o trabalho dos profissionais da
região, assim como as mudanças ocorridas na natureza em virtude da troca das
estações; no retorno à sala de aula a atmosfera era outra, todos queriam mostrar
o que coletaram no passeio, o que observaram e vivenciaram. No decorrer, deu-
se conta de que precisavam de um lugar para registrar todo este conhecimento.
Começou então a escrever na lousa o que viam nos passeios, os alunos por sua
vez também queriam participar desta atividade, acrescentando suas
observações e após, anotavam no caderno de forma escrita ou através de
desenhos.

Esta simples prática, proporcionou grande aprendizagem. Nestes momentos, as


crianças davam-se conta das distâncias percorridas, apropriavam-se de noções
de espaço e tempo, mudanças climáticas e o desenvolvimento da natureza em
si. Com toda esta vivência, começou-se a dar importância à produção da escrita
e sentido à leitura, visto que estas descobertas eram muito importantes aos
alunos. Uma das coisas que obrigou Freinet a mudar sua prática foi, segundo
SAMPAIO (1989) deparar-se com um material didático ineficiente para sua
turma, pois fugia completamente da realidade dos alunos.

Após uma aula passeio, com visita a um tipógrafo, surgiu a ideia da imprensa
escolar. Freinet conseguiu a doação dos materiais de imprensa (tipos,
impressoras e os computadores) e o entusiasmo das crianças com a chegada
destes materiais, fez com que esta nova técnica se tornasse a mais nova paixão
da turma. Derrubando as dificuldades encontradas com a utilização deste
material, a produção de textos foi crescendo. Para que os textos fossem
publicados, a ortografia deveria estar correta, então ele anotava as palavras que
as crianças tinham mais dificuldades, e retomava em outro momento, porem os
próprios alunos faziam as correções que lhes cabiam. Não via valor didático no
erro. Ele acreditava que o fracasso desequilibrava e desmotivava o aluno, por
isso o professor deve ajudá-lo a superar o erro. Para ele a forma mais profunda
de aprendizagem é o envolvimento afetivo.

Como evitar os erros se não se conhecem as regras e


as razões que definem o certo e o errado? Freinet não
desprezava a importância de trazer o conhecimento
necessário no momento adequado. Na medida do
possível, o aluno terá sua autonomia garantida,
servindo-se ele próprio do dicionário e da gramática,
bem como utilizando fichas autocorretivas. Por outro
lado, nada impede que o professor ensine. Mas,
diferentemente de como ocorre na pedagogia
tradicional, esse ensinamento não decorre de uma
progressão teórica e abstrata. Nasce de necessidades
comprovadas: como se escreve esta ou aquela
palavra? Tal palavra é com “s” ou com “z”?
(LEGRAN;FREINET, 2010, p.21)

Como não se apaixonar por este educador que se dedicou à educação? Que,
mesmo em momentos de muita adversidade encontrou motivos para prosseguir
com seus ideais? E, mesmo estando em um campo de concentração durante a
Segunda Guerra Mundial, não deixou de alfabetizar.

Para Freinet, de acordo com BORGES [S.d], a escola distanciou-se muito dos
ideais humanos, preocupando-se apenas em trabalhar os conteúdos de forma
mecânica. Para ele a educação serve para que o ser humano aprenda a
respeitar-se, conhecer-se e desenvolver o que tem de mais precioso em si
mesmo, a sua própria personalidade e sua individualidade. Ao contrário do que
se observava em algumas escolas que se preocupavam em apenas transmitir
conhecimento didático, esquecendo-se de formar cidadãos que atuassem em
todas as áreas vividas de forma autônoma.

Atitudes de autonomia referem-se ao olhar como um todo, buscando solucionar


problemas que vão além das paredes escolares. Levando em conta que as
atividades desenvolvidas permitam reflexões da construção de uma postura em
busca da autonomia. Chama-se atenção que este fato só se concretiza com a
interação com o outro, necessitando de estruturas lógicas e não sendo ensinada
por vias linguísticas, discursos ou textos, e sim através de exemplos e práticas
diárias, também é necessário estimular o questionamento e o posicionamento
diante das ações e atitudes.

Metodologia

Para alcançarmos o objetivo do nosso trabalho: como se dá a construção da


autonomia no ambiente escolar – turmas do ensino fundamental - anos iniciais,
inicia-se um processo de leitura dos ideais de Célestin Freinet e, após
discussões, amadureceu-se a ideia de investigarmos em duas escolas
diferentes, de diferentes realidades, como esse processo é construído.

As duas escolas do litoral norte situam-se no município de Tramandaí- RS com


aproximadamente 400 alunos cada, com poucos brinquedos no pátio, salas de
aula compostas com mesas e cadeiras dispostas em filas, uma professora para
todas as disciplinas com exceção das disciplinas de educação física e
informática.

A escola Amorim Lima situada em São Paulo, conta com aproximadamente 800
alunos, um pátio com árvores, pista de skate, oca e forno de barro, as salas de
aula são amplas comportando cerca de cento e cinco alunos e seis tutores, as
turmas são mistas, os ambientes são ricos, com produções próprias.

Esta pesquisa caracteriza-se como sendo de cunho qualitativo, que conforme


Oliveira:

[...] conceituamos pesquisa qualitativa como


sendo um processo de reflexão e análise da
realidade através da utilização de métodos e
técnicas para compreensão detalhada do objeto de
estudo em seu contexto histórico ou segundo
estruturação [...] (OLIVEIRA, 2010, p. 37)

Como instrumentos de coleta de dados foram feitas visitas às escolas


mencionadas. Por meio das observações e dos registros em diário de campo,
obteve-se material necessário para fazer a analise do assunto em cada
ambiente, levando em consideração cada contexto, tendo como base teórica a
pedagogia de Freinet e como o autor idealiza e propõe que se dê a construção
da autonomia.

Análise de dados

Nas escolas observadas do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, percebemos que
para muitos educadores a autonomia ainda não é vista como uma construção do
sujeito com o meio, em busca de soluções para problemas vivenciados por
todos. Deparamo-nos com a incerteza do que é autonomia, para alguns
professores a autonomia restringe-se ao ato dos alunos cuidarem de seus
materiais, higiene pessoal e alimentação. Quando questionada sobre as práticas
que utiliza para desenvolver a autonomia a professora Sofia4 , relatou-nos suas
necessidades, em vista que tem uma sala de aula com 20 (vinte) alunos na faixa
etária de 7 (sete) anos. Em primeiro lugar, que seus alunos devem ser
responsáveis por seus materiais, cuidando para não extraviar, rasgar, amassar
e sujar, pois não teria condições de zelar pelos materiais de todos; em segundo,
relatou sobre a importância de trabalhar o conceito de higiene pessoal, como:
tomar banho sozinho, escovar os dentes, pentear os cabelos, cortar as unhas,
etc. Todas as atitudes visando um trabalho individual.

Durante uma visita realizada à Escola Municipal de Ensino Fundamental


Desembargador Amorim Lima, São Paulo, conseguimos presenciar ações que
estimulam autonomia nos sujeitos, logo na chegada ficamos sabendo que a
escola recebe muitos visitantes, e quem recepciona e apresenta os espaços
escolares são os alunos, no nosso caso a aluna Giovana, do 6º (sexto) ano foi a
responsável por este momento, sanando algumas dúvidas e acrescentando
outras, visto que a escola foge completamente ao que entendíamos até o
momento como escola.

A estrutura externa da escola é basicamente igual às outras, formada por uma


quadra de esportes coberta e uma aberta, um tanque de areia, pracinha, uma
horta, e também uma oca construída pelos índios de uma tribo próxima a escola,
um forno de barro, árvores para serem escaladas, uma pista de skate e um
espaço amplo para multiuso, ambientes estes que proporcionam o convívio de
todos os grupos pertencentes.

Presenciamos uma conversa dentro da oca entre algumas crianças, com idade
entre 6 (seis) e 8 (oito) anos, sobre como fariam para solucionar um problema
ocorrido (uma das paredes da oca havia sido quebrada), e quando questionados
sobre qual seria a solução, responderam-nos que precisariam de barro, água,
areia e bambu, mas como não tinham bambu, utilizariam pedras. Este diálogo
estava acontecendo sem a supervisão de um professor e em uma hora livre. Foi
o primeiro momento que nos deparamos com a autonomia tão abordada pelo
autor, onde o indivíduo promove ações e diálogo em busca da solução de
problemas vivenciados.

[...] a atividade espontânea, pessoal e produtiva, eis


o ideal da escola ativa...partir da atividade espontânea das
crianças, partir de suas atividades manuais e construtivas,
partir de suas atividades mentais e suas afeições, de seus
interesses, de seus gostos predominantes, partir de suas
manifestações morais e sociais tais como se apresentam na
vida livre e natural de todos os dias, segundo as
circunstâncias, os acontecimentos previstos ou imprevistos
que sobrevêm, eis o ponto inicial da educação (FREINET,
apud SAMPAIO 1989 : 17).

Se o ambiente externo da escola Amorim Lima era semelhante ao das outras


escolas, a parte interna era o oposto a tudo que já conhecíamos: salas amplas
com aproximadamente 105 (cento e cinco) alunos agrupados em grupos de 5
(cinco) pessoas, contando com o auxílio de 6 (seis) tutores, cada criança
dispõem de um livro com vários roteiros de estudo, sendo que cada uma escolhe
o roteiro que quer começar. As dúvidas que surgem no decorrer do estudo do
roteiro são debatidas entre os componentes do grupo e os outros colegas, e em
última instância solicitam ajuda aos tutores. A forma que está
estruturado/organizado o espaço e as atividades vem ao encontro do que lemos
sobre as ideias de Freinet. Ele apontava para que não houvesse separação, uma
vez que o próprio autor, até cortou os pés de sua cadeira para que ficasse na
mesma altura de seus alunos. O diálogo para Freinet deveria ser horizontal, a
troca de conhecimento se dá tanto do professor para o aluno, como do aluno
para o professor e não de maneira verticalizada, onde o professor detém o saber
e transmite todo seu conhecimento ao aluno, como se este fosse uma tabua
rasa, sem conhecimento.

Outra prática proporcionada por Freinet que nos chamou atenção, foi a dos
envelopes. Em um canto da sala de aula ou na escola encontram-se três
envelopes com as seguintes frases: Eu proponho, Eu critico, Eu felicito, onde os
alunos devem escrever e assinar suas produções para serem debatidas na
assembleia que ocorre uma vez por mês. Segundo explicações sobre este
evento, durante a assembleia os envelopes são abertos e os textos lidos, dando
a chance de quem foi criticado defender-se e posicionar-se perante o grupo. O
objetivo desta atividade era proporcionar momentos em que o aluno tivesse a
experiência de posicionar-se perante o grande grupo com argumentos
coerentes, ter autonomia para criticar, felicitar e propor. Sendo criticado deverá
saber lidar com esta situação/frustração. Com todas estas atividades, os alunos
tornam-se mais ativos e participativos no meio social. As crianças mesclavam as
práticas escolares com as práticas da própria comunidade, assim mobilizavam-
se para resolver problemas de cunho social, para Freinet isso foi visto como um
reforço para continuar a trilhar o caminho que escolheu. Mas para uma parte da
sociedade, as crianças que não estavam sentadas, quietas nas suas carteiras,
não poderiam estar fazendo nada sério.

Devido ao grande abandono em que se


encontrava a escola por descuido das autoridades da
aldeia, as próprias crianças buscavam soluções
alternativas para seus problemas. Certa vez
perceberam que podiam aproveitar a água da fonte
da cidade, desviando-a para uma tubulação que
chegaria aos banheiros da escola [...] de outra vez,
as crianças descobriram que o antiquário da cidade
queria comprar uma valiosa peça de mobília
pertencente a uma senhora da cidade.
Aconselharam-na a não fazer o negocio, pois se
tratava de uma peça de museu que pertencerá a um
conde da província. Com esta atitude conseguiram
transformar o antiquário no mais fervoroso inimigo do
movimento Freinet em Saint-Paul (SAMPAIO, 1989
:.59).

Mesmo com tantas dificuldades e nenhum apoio governamental Freinet


estudioso, educador nunca deixou de acreditar na educação. Em busca de um
lugar melhor, com pessoas que acreditavam que se cada um se mobilizar com
uma pequena contribuição tudo é possível e, que devemos assumir nossas
responsabilidades como professores.

Considerações finais

As escolas que observamos durante a pesquisa nos fizeram refletir sobre a


importância e o papel do educador nos dias de hoje, já que os alunos da
contemporaneidade são mais intolerantes a frustração, extremamente agitados
e costumam prestar atenção somente no que lhes interessa. Por outro lado,
aprendem de forma dinâmica (conseguem dar conta de várias coisas ao mesmo
tempo), trazem uma bagagem imensa de informações/conhecimento de suas
experiências vivenciadas no meio social.

O educador ainda está amarrado em ações e aos métodos da escola do século


XIX. Parece-nos que os mesmos têm medo de sair do seu pedestal, onde
somente eles são os detentores do conhecimento, e se colocarem em uma
posição de desaprender e aprender diariamente. Percebemos que temos tanto
a aprender quanto os alunos. Também é fundamental, aceitar a educação
transdisciplinar onde nenhum saber é mais importante que o outro, todos são de
igual importância e o centro desta é o ser humano e sua complexidade. Outro
fator que prejudica o desenvolvimento de uma metodologia visando a formação
de um sujeito participativo, engajado nas problemáticas, é a terceirização do
profissional da educação. Tal situação é percebida nas falas de educadores que
nos dizem: “meu salário é baixo, não tenho estrutura física para dar conta de
todos os alunos, meus alunos são heterogêneos, não sou preparada para
trabalhar com alunos de inclusão”, entre outras queixas.

Este relato de terceirização da responsabilidade do profissional da educação


também foi uma fala muito forte da diretora da Escola Amorim Lima.
Conversando com ela, nos atentamos para a possibilidade da mudança, pois até
então estávamos nesta mesma corrente de pensamento: acreditando que os
problemas eram dos outros. Porém, quando nos deparamos com toda a
pedagogia de Freinet, quando percebemos que não podemos exigir apenas do
outro as mudanças, sem que nós mudemos primeiro, quando nos demos conta
que esta transformação deve partir das atitudes do professor perante seu aluno,
perante a escola e também diante a comunidade escolar, percebemos que as
mudanças não ocorrem sozinhas, que dependemos uns dos outros para que a
diferença se faça.

Referências

• BORGES, Inez Augusto; A Prática Pedagógica de Célestin Freinet e os


Princípios Cristãos: Disponível em:
http://www.mackenzie.br/fileadmin/Chancelaria/GT2/Inez_Augusto_Borg
es_I.pdf. Acessado em: 30 de junho de 2013.
• FONTES, Martins; Pedagogia do Bom Senso. Tradução J. Batista. São
Paulo: Martins, 1988.
• OLIVEIRA, Maria Marly; Como Fazer Pesquisa Qualitativa. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 2010.
• SAMPAIO, Rosa Maria Whitaker Ferreira. Freinet – Evolução Histórica e
Atualidades. São Paulo, Scipione, 1989.

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