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Instituto Superior Politécnico de Humanidades e Tecnologias

MATERIAL APOIO PEDAGÓGICO

ANO LECTIVO 2022 – 1º SEMESTRE

SIGLA /CURSO

ANO/TURNO 1º Manhã &


Noite

CÓD./DISCIPLINA INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO


CONTEMPORÂNEO

Data da publicação 2022

PROF./NOME ANIL VILA


Instituto Superior Politécnico de Humanidades e Tecnologias

Introdução1

Os estudantes confrontam-se com uma cadeira que geralmente é designada como


estranha e complicada, não só pela sua natureza, mas também pelo facto da sua
composição ser diversificada e multi-direcional em conteúdos programáticos. Esta
cadeira, isenta-se em seguir uma linha de pensamento único, mas pelo contrário,
procura buscar vários conteúdos em áreas diferenciadas que a compõem. O ISUPE,
considera esta cadeira existente em todos os planos de estudos de todos os seus cursos,
como uma das áreas científicas mais englobantes e de mais profundas consequências
epistemológicas.2 Deste modo, constitui-se uma cadeira de competências transversais e
não de especialidade. Entretanto, o presente material de apoio obedece a seguinte
organização:
O primeiro módulo, fala das razões-finalidades de estudo da cadeira de IPC. Se debruça
sobre as razões-finalidade humanísto-cultural, luso-lusófona, científico-epistemológico
e epistemático-paradigmático. Este módulo, termina com a sessão de explicitação do
objectivo de estudo da cadeira.
O módulo II, reserva-se ao debate sobre as eternas antinomias, as dialéticas de Platão,
Marx, Weber e Aristóteles. Destaca-se neste modulo o estudo sobre o idealismo
epistemológico e materialismo ingénuo, natural e crítico. O III módulo centra-se na
antropossociologia do pensamento contemporâneo, focando a sua abordagem nas
Tecnologias de Informação e Comunicação. Neste modulo é feita igualmente uma breve
consideração sobre o historial da internet e a sua evolução. Segue o módulo IV que
debate o Pensamento Humano e as achegas para uma Epistemologia da
Interculturalidade. Neste modulo, destaca-se o pensamento contemporâneo oriental e
ocidental e as características que se afiguram pertinentes para a compreensão dos
mesmos. Enquanto o módulo V, centra-se na abordagem da filosofia africana de
libertação. Realça as teorias de Edward Blyden, a Crítica ao Mimetismo Servil; Léopold
Sédar Senghor, a Questão da Negritude; Stanislas Adotevi, a Identidade Histórica dos
Povos Negros; Frantz Fanon, a Consciência do Colonizado e o filósofo Ébénézer Njoh-
Mouelle, a Filosofia como Factor de Libertação. Estes temas são abordados de forma

1
Conteúdos compilados por Anil Vila
2
Extraído na obra de Fernando Santos (2007). Introdução ao pensamento contemporâneo: razões e
finalidade. Universidade Lusófona: Lisboa. Este serviu de base para os conteúdos selecionados no
presente material de apoio.

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resumida com finalidade de despertar o estudante sobre a filosofia africana de


libertação. Deste modo, o estudante pode aprofundar os temas referenciados através de
pesquisas independentes utilizando as referências indicadas no presente material ou
outras fontes a serem indicadas durante as aulas pelo docente da cadeira.

Modulo I - Razões e Finalidades de uma cadeira sobre o Pensamento


Contemporâneo
Razões-Finalidades
• Humanísto-cultural
• Luso-lusófona
• Científico-Epistemológica
• Epistemática-paradigmática
Razão-Finalidade humanísto-cultural

Não se refere aos sentidos facilmente perceptíveis e ambíguos e pejorativo; generalista,


enciclopédico; pseudo-filosófico; género, hábitos e costumes; concursos televisivos;
aulas de religião e moral. Mas se refere no sentido muito prosaico e não irrelevante, de
um grau mínimo que poderíamos chamar de grau 0 de erudição e conhecimentos
próprios do homem culto de cada época, e sem os quais toda especialização científica
ou não é de todo possível ou se torna contra producente e até ridícula.

O que dizer e pensar de gente formada e cronologicamente contemporânea que nunca


ouviu falar dos enciclopedistas: Darwin, Newton, Mendeleive, Lavoisier, Marx, Freud,
Nietzsche, Einstein, Russel, Kafka, Max Weber, Piaget, Sócrates, Platão, Aristóteles,
Karl Marx, Gutemberg, Picasso, Luís de Camões, William Shakespeare, Saramago,
Fernando Pessoa, e outros. Porém, não se trata de saber tudo sobre tudo, nem cair na
moderna tentação de saber nada sobre tudo mas apenas de saber o que é próprio de todo
homem enquanto animal racional da sua época. Até, faz essencialmente saber que há
imensas coisas ou especializações que não sabe, sendo tal consciência aberta a
interdisciplinaridade que é a moderna forma de se aproximar do ideal socrático de saber
que nada sabe!
Esta razão-finalidade, na sua gênese exorta a busca incessante do conhecimento, sendo
o estudante homem culto, deve possuir a vontade de procurar conhecer assuntos ou
aspectos que marcam a sua época. É fundamental traduzir que, falar-se de conhecimento
da época, não limita-se a olhar apenas para o conhecimento científico, mas sim, olhar

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em todos graus da pirâmide3. Só desta forma, os homens cultos da lusofonia tornar-se-


ão cidadãos do mundo.

Razão-Finalidade Luso-Lusófona

Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e
todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como deve
regenerar-se a organização social. Todos as organizações ou partidos que lutam a nível
nacional e internacionalmente, como em cada um dos grupos que constituem a
sociedade de hoje, há uma ideia e um interesse, e a causa e o porquê dos movimentos?
Estas indagações, permitem-nos considerar os patriarcas das diversas áreas do saber
filosófico e científico.
Hoje não se pode viver e desenvolver-se isoladamente dos grandes intelectuais do seu
tempo; o que todos os dias a humanidade vai trabalhando, deve ser o assunto das nossas
constantes meditações. Abrir uma tribuna, onde tenham voz as ideias e os trabalhos que
caracterizam este momento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação
social, moral e política dos povos da lusofonia. 4 Este desiderato consubstancia-se nos
seguintes pontos:
1. A CPLP não pode ser, mas não está automaticamente excluído que seja ou se
torne, uma versão retardada ou camuflada dos colonialismos políticos
económicos e culturais de antanho5 (Portugal) ou de agora (Brasil).
2. Nesta perspectiva de crítica da razão-Lusófona, especificamente essencial é a
superação de todos os provincianismos, tanto os mais grosseiros como os mais
suteis, que afecta com maior ou menor consciência e virulência, os diversos
espaços do espaço Lusófono ou os diversos países e povos de Língua
Portuguesa.
3. A CPLP poderá e até deverá ser também uma comunidade dos países e Povos da
Língua Portuguesa, a qual uma vez findo os tempos do colonialismo deixou de
ser um instrumento de dominação para se tornar um instrumento de
comunicação e até de construção nacional. Assim encarada a Língua Portuguesa
poderá tornar-se uma das grandes (senão a maior das) riquezas de todos os

3
Referimos a categorização de conhecimento existente (filosófico, científico, sensorial, teológico ou
popular).
4
Neves, (2007).
5
Refere-se à antiguidade.

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países e povos da CPLP e todo investimento na sua cultura e difusão aparece


como o investimento mais inteligente e mais rentável.
Até agora já se fizeram quase, mais que todos os discursos possíveis sobre a Lusofonia
que certas línguas malévolas não se coíbem de apodar 6 de paleio7, papagaiada,
hipocrisia, ou vã retórica, o que interessa, porém, é, através de uma permanente crítica
da razão Lusófono, como aqui esboçada, democratizar, desenvolver, transformar e
realizar a CPLP e todos os espaços do espaço Lusófono. Neste âmbito, deve-se
ultrapassar igualmente as barreiras físicas que tem separado os Estados membros da
CPLP. Embora se tem desenrolado o debate sobre a livre circulação no espaço lusófono,
o cumprimento deste desiderato não passa de vã retórica e de cacofonia política que
sistematicamente observamos.
Entretanto observamos que, Brasil e Portugal têm convénios que lhes permitem
ultrapassar as barreiras físicas. Aqui nasce outra questão, porquê não estender este
convénio para os países africanos? Este trato desigual entre os Estados membros,
fragiliza a democratização da CPLP e acentua os preconceitos e maus-tratos dentro da
comunidade. Embora exista uma esperança neste matéria se considerarmos a
redinamização dos acordos de livre circulação entre os estados membros.

Razão-Finalidade Científico-Epistemológica

Esta razão, de importância central para não dizer total, remete obviamente para as
redescobertas ainda que não suficientemente aprofundadas, questões da pluri-inter-
trans-meta-pós disciplinaridade e poderia traduzir-se numa fórmula lapidar como a
seguinte: toda ciência que não seja pluri-inter-trans-meta-pós…, ciência não passará de
nula-pseudo-anti-ciência. Observaria apenas, mas com toda força que essa essência
pluri-inter-trans-meta-pós disciplinaridade só faz sentido, e só tem conteúdo real se
pressupuser e se basear na Ruptura Epistemológica Primordial (REP) que se situa ao
nível do próprio conceito de ciência e pode laconicamente definir-se como a passagem
de uma concepção monoparadigmática, reducionista e totalitária a uma concepção
pluriparadigmática, aberta e democrática da ciência.
As rupturas referidas, confundem-se com as revoluções científicas realizadas ao longo
dos tempos. Observe as seguintes figuras:

6
Traduz-se: alcunhar, intitular, qualificar.
7
Traduz-se palavreado

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Exemplos de verdadeiras revoluções científicas

Aristóteles
Piaget Copérnico

Max weber Galileu

Revoluções
Gutenberg Newton
epistemológicas,
vastas e
profundas
Marconi Descartes

Freud Darwin

Marx Kant

Nas emergentes revoluções científicas contemporâneas, independentemente dos seus


diversos modos e até modas, parecem impor-se como factos inevitáveis, tal dimensão
epistemológica seria ainda mais evidente e assinaláveis, que estaria pressuposta como a
condição – característica mais fundamental subjacente a todas elas e de todas elas, faria
uma singular (e por isto mesmo maximamente plural) revolução científica
contemporânea.

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Em suma, a mensagem é simples, mas fundamental. A inovação científica-técnica e


tecnológica e a inovação científico-social e humana terão de ser os dois co-motores,
dialogantes, mesmo se eventualmente dialécticos, de qualquer desenvolvimento ou de
qualquer modernização que valiam minimamente apena. Em termos epistemológicos
institucionais e curriculares (e num momento em que velhos ou novos e até novíssimos
paradigmas se vem forçados a abandonar as suas pretensões e tentações ditatórias e
imperialistas), a conclusão e a tradução não podem ser outras senão as de, superando
todos os arcaísmos culturais e mentais explicitar e implementar autonomamente e
transdisciplinarmente, as chamadas ciências técnicas e tecnológicas e as chamadas
ciências sociais e humanas…, modelo ideal expressos e consubstanciados no projecto
do ISUPE pertencente a ULHT8.

Razão-Finalidade Epistemático- Paradigmático


Esta não se opõe ou se distingui da razão-finalidade Científico-Epistemológica como
constitui desta a mais perfeita e profunda realização 9. Desde que Thomas Kuhn, para a
grande surpresa sua e desagrado de muitos cientistas descobriu que as causas das
revoluções científicas não revelam somente, nem sobretudo das ciências (cientistas, e
ciências ainda num sentido totalmente Pré-Ruptura Epistemológica Primordial), ou seja,
da Astronomia, da Física, da Biologia, etc., mas também e até preponderantemente
diárias extra-científicas como a Filosofia, a Moral, a Religião, a Visão do mundo…, as
ciências Socias e Humanas. Concluindo, entender-se-á finalmente o que é? Sobretudo o
porquê? E o para que?10

Objectivo

A cadeira de IPC é no fundo e em síntese, para além das razões e finalidades específicas
de Desprovincianização, Democratização e Desenvolvimento das Sociedades
Lusófonas, é também uma tentativa permanente de alargar as fronteiras do animal
racional e livre que é o homem e, por isso mesmo uma permanente luta contra todas as
formas de obscurantismos, fundamentalismos e totalitarismos, de que um certo pós-

8
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Portugal
9
Refere-se a profunda realização da razão científico-epistemológica, ou seja, a razão epistemático-
paradigmático vem complementar a razão científico-epistemológico.
10
Para uma abordagem mais exaustiva, recomendamos que leia as obras e artigos de Neves, F. S. (2007).
Razões e finalidades. Lisboa: Universidade Lusófona.

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modernismo anti-iluminista e um invadente pseudo-ecuménico e pseudoglobalizante


pensamento único poderiam constituir dos últimos e únicos avatares das actuais
sociedades11.

Modulo II - As eternas antinomias de Platão, Aristóteles e Karl Marx

Dialética é uma palavra de origem grega dialektiké e significa; a arte do diálogo, a arte
de debater, de persuadir ou raciocinar, a coerência do discurso. Dialéctica é um debate
onde há ideias diferentes, onde um posicionamento é defendido e contradito logo
depois. Para os gregos, dialéctica era separar factos, dividir as ideias para poder debatê-
las com mais clareza.
A dialética também é uma maneira de filosofar, e seu conceito foi debatido ao longo de
décadas por diversos filósofos, como Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Marx, e
outros. Dialética é o poder de argumentação, mas também pode ser utilizado num
sentido pejorativo, como um uso exagerado de sutilezas. Consiste em uma forma de
filosofar que pretende chegar à verdade através da contraposição e reconciliação de
contradições. A dialética propõe um método de pensamento que é baseado nas
contradições entre a unidade e multiplicidade, o singular e o universal e o movimento da
imobilidade.

Platão (424-347 a.C.)


Platão é bem conhecido por ter sido discípulo de Sócrates e de ter fundado a Academia,
uma escola dedicada à ciência e à filosofia.
Para Platão é por meio do diálogo e da confrontação de ideias que os equívocos são
eliminados e a verdade aparece. Em Platão a dialéctica é um instrumento de busca da
verdade. É importante compreender que para Platão “aprender não é outra coisa senão
recordar”. Para ele o conhecimento racional jaz dormente na alma e precisa ser
despertado. E como se acorda esse “conhecimento latente”? Por meio da dialéctica.
Assim, a dialéctica de Platão pressupõe a pré-existência da alma e o inatismo das
ideias. A dialética platônica se expressa nos diálogos escritos pelo filósofo,
particularmente nos chamados “diálogos da maturidade”, tais como: o Menon, Fédon e

11
Referências utilizadas para compilação deste modulo: Neves, F. S. (1997). Introdução ao Pensamento
Contemporâneo, Razões e Finalidades. Revista de Humanidades e Tecnologias, 1 (62).
Neves, F. S. (2007). Razões e finalidades. Lisboa: Universidade Lusófona.

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a República. Para Platão, a dialética é o movimento do espírito, é sinônimo de filosofia,


é um método eficaz para aproximar as ideias individuais às ideias universais. Dialéctica
é a arte e técnica de questionar e responder algo.

Aristóteles (384-322 a.C.)


Aluno de Platão e filho de um médico. Em Aristóteles a dialéctica constitui a parte da
lógica que estuda os raciocínios prováveis. Não trazem certeza nem descobrem a
verdade como em Platão, mas opinião ou probabilidade.
No pensamento do filósofo a dialética declina em favor do método analítico (silogismo
demonstrativo ou científico), ganhando um sentido negativo ou até mesmo pejorativo. A
relação entre dialéctica e analítica é tratada no Organon.
A diferença entre esses termos diz respeito, acima de tudo, às premissas: a analítica
decompõe silogismos e demonstrações científicas (fundamentos seguros); a dialéctica
tem a ver com o acto retórico de persuasão “premissas não isentas de dúvidas”. Para
Aristóteles, dialética é um processo racional, a probabilidade lógica das coisas, algo que
é aceitável por todos, ou pelo menos pela maioria. Kant continuou com a teoria de
Aristóteles, dizendo que dialéctica é, na verdade, uma lógica de aparências, uma ilusão,
pois baseia-se em princípios muito subjetivos.

Karl Marx (1818-1883)


O filósofo alemão converteu a dialéctica em um método com ajuda de Friedrich
Engels, seu parceiro na elaboração do Manifesto Comunista.  Ele inverteu a dialéctica
hegeliana sugerindo que o mundo material é o fundamento das ideias e não o contrário
como anunciava a filosofia idealista de Hegel. Em suma: “as coisas vão se
transformando e as ideias vão atrás”. Em primeiro lugar vem a natureza, que é
transformada pela ação humana em meios de produção (relações
materiais=infraestrutura). São essas relações materiais, segundo Marx, que
sustentam todos as crenças, ideias, teorias e pensamentos da sociedade
(ideologia=superestrutura). Em termos mais vulgares: “segundo vive o homem, assim
ele pensa”. Ainda que tenha insistido que a superestrutura é reflexo da infraestrutura,
Marx acentuou que ambas acabam por se influenciar reciprocamente “repudiando o
materialismo mecanicista”.
Na perspectiva marxista, dialéctica compreende a teoria do conhecimento, através dos
filósofos Hegel, Marx e Engels. Para o marxismo, dialéctica é o pensamento e a

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realidade ao mesmo tempo, ou seja, a realidade é contraditória com o pensamento


dialético. Para a dialéctica marxista, o mundo só pode ser compreendido em um todo,
reflectindo uma ideia a outra contrária até o conhecimento da verdade.

Do realismo ao Idealismo
O realismo
Por realismo entendemos o ponto de vista epistemológico segundo o qual existem
coisas reais, independentes da consciência. Esse ponto de vista é suscetível de diversas
variações. A variante que tanto histórica quanto psicologicamente dá origem às outras é
o realismo ingênuo. Ele não é ainda determinado por nenhuma reflexão epistemológica
e o problema sujeito-objecto ainda não surgiu claramente. Ele não distingue a
percepção, que é um conteúdo de consciência aos objectos, acaba atribuindo aos
objectos todas as propriedades que estão presentes nos conteúdos. As coisas são, para
ele, exactamente como as percebemos. As cores que vemos nas coisas estão-lhes
afixadas como qualidades objectivas. O mesmo vale para seu gosto e seu odor, sua
dureza ou maciez, etc. Todas essas propriedades convêm às coisas objetivamente e
independentemente da consciência que as percebe. Diferente do realismo ingênuo é o
realismo natural.
Este já não é mais ingênuo, mas está condicionado por reflexões críticas e epistêmicas.
Isto se evidencia no facto de que ele não mais identifica conteúdo perceptivo e objecto.
Não obstante, sustenta que os objectos correspondem exatamente aos conteúdos
perceptivos. Para o defensor do realismo natural, exactamente como ocorria com o
realista ingênuo, é absurdo admitir que o sangue não seja vermelho, que o açúcar não
seja doce e que vermelho e doce devam existir apenas em minha consciência. Também
para ele, todas essas são apenas qualidades das coisas. Esta forma de ver, é o modo de
ver da consciência natural, por esta razão chamamos este realismo de "realismo
natural".
A terceira forma de realismo é o realismo crítico. Ele se chama crítico por apoiar-se em
reflexões crítico-epistêmicas. Segundo ele, nem todas as propriedades presentes nos
conteúdos perceptivos convêm às coisas. Muito pelo contrário, as propriedades ou
qualidades da coisa apreendidas por nós apenas por meio de um sentido, como cores,
odores, sabores, etc., existem apenas e tão-somente em nossa consciência. Elas surgem
na medida em que certos estímulos externos atuam sobre nossos órgãos sensíveis. Tais
propriedades representam formas de reação de nossa consciência, que são naturalmente

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condicionadas em seu modo de ser pela organização de nossa consciência. É claro que
certos elementos causais e objectivos devem ser pressupostos nas coisas para o
surgimento dessas qualidades. Se o sangue parece vermelho para mim, se o açúcar
parece doce, isso deve estar fundamentado nas características desses objetos. Essas três
formas de realismo são encontradas na filosofia antiga. No primeiro período do
pensamento grego, o realismo ingênuo é o ponto de vista adotado de maneira geral.
Demócrito, sustentou o realismo natural. Segundo ele, as propriedades percebidas
convêm também às coisas, independentemente da consciência que a percebe. Esse ponto
de vista foi predominante até a Idade Moderna.

O idealismo
A palavra idealismo é utilizada em muitos sentidos diferentes. Devemos distinguir
especialmente o idealismo no sentido metafísico do idealismo no sentido
epistemológico. Chamamos de idealismo metafísico a concepção de que a realidade está
baseada em forças espirituais, em poderes ideais. Aqui, naturalmente, trataremos apenas
do idealismo epistemológico. Equivale à concepção de que não há coisas reais,
independentes da consciência. Como, após a supressão das coisas reais, só restam dois
tipos de objectos, a saber, os existentes na consciência (representações, sentimentos) e
os ideais (objectos da lógica e da matemática), o idealismo deve necessariamente
considerar os pretensos objectos reais quer como objectos existentes na consciência,
quer como objectos ideais. Daí resultam os dois tipos de idealismo: o subjetivo ou
psicológico e o objetivo ou lógico.
Fixemo-nos primeiramente no idealismo subjetivo ou psicológico. Toda a realidade,
para ele, contém-se na consciência do sujeito. As coisas não passam de conteúdos da
consciência. Seu ser consiste em serem percebidas por mim, em serem conteúdos de
minha consciência. Tão logo deixam de ser percebidas por mim, deixam também de
existir. Não lhes cabe um ser independente de minha consciência. O que há de efectivo
é unicamente minha consciência e seus conteúdos. Daí o costume de se designar esse
ponto de vista como consciencialismo. O representante clássico desse ponto de vista é o
filosófico inglês Berkeley.
O idealismo objectivo ou lógico é essencialmente diverso do subjetivo ou psicológico.
Enquanto o idealismo subjetivo parte da consciência do sujeito individual, o idealismo
objectivo toma como ponto de partida a consciência objectiva da ciência, tal como se
expressa nas obras científicas. O conteúdo dessa consciência não é um complexo de

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processos psicológicos, mas uma soma de pensamentos, de juízos. Em outras palavras,


não é algo psicológico e real, mas sim lógico e ideal - é um sistema de juízos. Se
procuramos explicar a realidade a partir dessa consciência ideal, dessa "consciência em
geral", isso não quer dizer que transformamos as coisas em dados psicológicos, em
conteúdos de consciência. O que fizemos foi reduzi-las a algo intelectual, a factores
lógicos.
Exemplo elucidativo: Tomo na mão um pedaço de giz. Para o realista, o giz existe
exteriormente à minha consciência e independentemente dela. Para o idealista subjetivo,
o giz existe apenas em minha consciência. Todo o seu ser consiste em ser percebido por
mim. Para o idealista lógico, o giz não está nem em mim nem fora de mim; ele não está
disponível de antemão, mas deve ser construído. Isso acontece por meio de meu
pensamento. Na medida em que formo o conceito giz, meu pensamento constrói o
objecto giz. Para o idealista lógico, portanto, o giz não é nem uma coisa real, nem um
conteúdo de consciência, mas um conceito. O ser do giz não é nem um ser real, nem um
ser de consciência, mas um ser lógico-ideal. Quando reduz toda a realidade a algo de
natureza lógica, o idealismo lógico é chamado de panlogismo.

Concluindo: O idealismo surge, portanto, sob duas formas principais: como idealismo
subjetivo ou psicológico e objectivo ou lógico. Existe entre os dois, como vimos, uma
diferença essencial. Essa diversidade, porém, move-se dentro de uma intuição
fundamental comum. Trata-se da tese idealista de que o objecto do conhecimento não é
algo real, mas ideal. O idealismo não se contenta em formular essa tese, mas também
procura prova-la. Argumenta que é contraditório pensar num objecto independente da
consciência, pois na medida em que penso num objecto, faço dele um conteúdo de
minha consciência. Se, ao mesmo tempo, afirmo que o objecto existe fora de minha
consciência, eu me contradigo. Consequentemente, não existem objectos reais fora da
consciência, mas, ao contrário, toda a realidade está encerrada na consciência.

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Modulo III - Antropossociologia do pensamento contemporâneo


Tema: As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como aliadas
para o desenvolvimento das sociedades modernas

Introdução12
Percebe-se com naturalidade que o nosso modo de pensar está sendo cada vez mais
moldado pelo crescimento e desenvolvimento das TICs. As mudanças ocorridas nas
últimas décadas, sobretudo os avanços tecnológicos, têm relevância nos sectores
públicos e privado, bem como no contexto social, político e econômico.
As modificações ocasionadas nos processos de desenvolvimento e suas consequências
na democracia e cidadania, convergem para uma sociedade caracterizada pela
importância crescente dos recursos tecnológicos e pelo avanço das Tecnologias de
Informação e Comunicação (TICs) com impacto nas relações sociais, empresariais e nas
instituições. É a denominada Sociedade da Informação e do Conhecimento que cogita
uma capacidade constante de inovação.
Na administração pública, é notória a progressiva aplicação e abrangência das
Tecnologias de Informação e Comunicação, sobretudo com o uso da Internet nas
diferentes esferas do governo. Aqui, o emprego das TICs inicia-se com o correio
electrónico e a pesquisa eletrônica e continua com a chamada “governança electrônica”
ou “e-governança”.
A utilização das TICs na Administração Pública possui vários objetivos: o alcance e a
melhoria contínua da qualidade, o aumento da eficácia e da eficiência, a transparência
dos actos administrativos, a fiscalização das ações governamentais e a participação
popular no exercício da cidadania, por meio da facilidade de acesso a serviços públicos
ofertados na Internet.

Breve historial das TICs e sua influência no desenvolvimento econômico e social


Um dos factores responsáveis pelas profundas mudanças no mundo são as TICs. Desse
modo, com a dinâmica de inovação, as TICs são imprescindíveis para o
desenvolvimento da economia global. Castells (1999) alega que, segundo os
historiadores, houve pelo menos duas revoluções industriais: a primeira iniciou-se
12
Pereira, D. M; & Silva, G. S. (2010). As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)
como aliadas para o desenvolvimento. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, 10, 151-174

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pouco antes dos últimos trinta anos do século XVIII e a segunda, cerca de cem anos
depois, cujo destaque é para o desenvolvimento da electricidade e do motor de
combustão interna.
Nesses dois momentos, fica claro um período de rápidas transformações tecnológicas e
sem precedentes. Um conjunto de macro invenções preparou o terreno para o
surgimento de microinvenções nos campos da agropecuária, indústria e tecnologia. Em
ambas as revoluções há características comuns, bem como diferenças marcantes. A
relevância do conhecimento científico, como base do desenvolvimento tecnológico após
1850, pode ser citada. Uma análise histórica comprova que, a longo prazo, os efeitos
positivos das novas tecnologias industriais no crescimento e desenvolvimento da
sociedade são irrefutáveis. Castells (1999) ressalta que uma das principais lições do
processo de industrialização e desenvolvimento tecnológico é que “a inovação
tecnológica não é uma ocorrência isolada”, reflete um determinado estágio de
conhecimento. Outra lição destacada por Castells (1999) e que gera controvérsias –
embora ambas tenham causado o surgimento de novas tecnologias – é que no cerne
dessas revoluções havia uma inovação fundamental na geração e distribuição de
energia: “Portanto, atuando no processo central de todos os processos – ou seja, a
energia necessária para produzir, distribuir e comunicar – as duas revoluções industriais
difundiram-se por todo o sistema econômico e permearam todo o tecido social”
(Castells, 1999, p. 75).
Após a década 60, durante a revolução tecnológica que se inicia no fim da Segunda
Guerra Mundial, configura-se a Sociedade da Informação, que modifica, em um curto
período, diversos aspectos da vida cotidiana.
Werthein (2000, p. 71) salienta que “a expressão ‘sociedade da informação’ passou a ser
utilizada, nos últimos anos deste século, como substituta para o conceito complexo de
‘sociedade pós industrial’ e como forma de transmitir o conteúdo específico do ‘novo
paradigma técnico econômico”. O conceito visa expressar as transformações técnicas,
organizacionais e administrativas, cujo ponto principal não são mais os insumos baratos
de energia, como na sociedade industrial, mas sim a informação – em consequência dos
avanços tecnológicos na microecletrônica e telecomunicações. Essas tecnologias
mudaram a quantidade, a qualidade e a velocidade das informações nos dias actuais.
As TICs compõem um factor preponderante para o desenvolvimento. São modelos
desse crescimento a Europa Ocidental, os EUA, o Japão e recentemente a China. As
TICs apresentam também influência na vida social. A sociedade estabelece contacto,

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directa ou indirectamente com novas tecnologias quando, por exemplo, assistimos à


televisão ou utilizamos serviços bancários on-line etc. Outro ponto de destaque das
TICs está relacionado ao processo de ensino. As Tecnologias têm possibilitado a
utilização das ferramentas de comunicação no segmento educacional permitindo o início
e a ascensão da Educação a Distância (EAD).

Breve resenha da Internet


A internet surgiu a partir de pesquisas militares no auge da Guerra Fria. Na década de
1960  (1969), quando dois blocos ideológicos e politicamente antagônicos exerciam
enorme controlo e influência no mundo. Qualquer mecanismo, qualquer inovação,
qualquer ferramenta nova poderia contribuir nessa disputa liderada pela União
Soviética e pelos Estados Unidos. As duas superpotências compreendiam a eficácia e
necessidade absoluta dos meios de comunicação. Nessa perspectiva, o governo dos
Estados Unidos temia um ataque russo às bases militares. Um ataque poderia trazer ao
público informações sigilosas, tornando os EUA vulneráveis. Então foi idealizado um
modelo de troca e compartilhamento de informações que permitisse a descentralização
das mesmas. Assim, se o Pentágono fosse atingido, as informações armazenadas ali não
estariam perdidas. Era preciso, portanto, criar uma rede, a ARPANET, criada pela
ARPA, em Inglês “Advanced Research Projects Agency”.
Em 1962, Licklider do Instituto Tecnológico de Massachusetts  (MIT), já falava em
termos da criação de uma Rede Intergaláctica de Computadores  (Intergalactic
Computer Network). A Internet também teve outros importantes actores que
influenciaram o seu surgimento, dentre eles:
 Os professores universitários Ken King,
 Os estudantes/investigadores Vint Cerf,
 As empresas de tecnologia IBM
 E alguns políticos norte-americanos Al Gore;
Existem várias teorias que discutem que a internet teve a sua criação e evolução
somente pela vertente militar.

Primeiros passos

A ARPANET funcionava através de um sistema conhecido como chaveamento de


pacotes, que é um sistema de transmissão de dados em rede de computadores no qual as
informações são divididas em pequenos pacotes, que por sua vez contém trecho dos

14
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dados, o endereço do destinatário e informações que permitiam a remontagem da


mensagem original. O ataque inimigo nunca aconteceu, mas o que o Departamento de
Defesa dos Estados Unidos não sabia era que dava início ao maior fenômeno mediático
do século 20, único meio de comunicação que em apenas 4 anos conseguiria atingir
cerca de 50 milhões de pessoas.

Em 29 de Outubro de 1969 ocorreu a transmissão do que pode ser considerado o


primeiro e-mail da história. O texto desse primeiro correio electrónico seria LOGIN,
conforme desejava o Professor Leonard Kleinrock da Universidade da Califórnia em
Los Angeles (UCLA), mas o computador no Stanford Research Institute, que recebia a
mensagem, parou de funcionar após receber a letra O.

Já na década de 1970, a tensão entre URSS e EUA diminui. As duas potências entram


definitivamente naquilo em que a história se encarregou de chamar de Coexistência
Pacífica. Deste modo, dividiu-se então este sistema em dois grupos, a MILNET, que
possuía as localidades militares e a nova ARPANET, que possuía as localidades não
militares. O desenvolvimento da rede, nesse ambiente mais livre, pôde então acontecer.
Não só os pesquisadores como também os alunos e os amigos dos alunos, tiveram
acesso aos estudos já empreendidos e somaram esforços para aperfeiçoá-los.

Um sistema técnico denominado Protocolo de Internet  (Internet Protocol) permitia que


o tráfego de informações fosse encaminhado de uma rede para outra. Todas as redes
conectadas pelo endereço IP na Internet comunicam-se para que todas possam trocar
mensagens. Através da National Science Foundation, o governo norte-americano
investiu na criação de backbones (que significa espinha dorsal), que são poderosos
computadores conectados por linhas que tem a capacidade de dar vazão a grandes
fluxos de dados, como canais de fibra óptica, elos de satélite e elos de transmissão
por rádio. Além desses backbones, existem os criados por empresas particulares. A elas
são conectadas redes menores, de forma mais ou menos anárquica. É basicamente isto
que consiste a Internet, que não tem um dono específico.
13
A ARPANET foi a primeira rede de computadores e entrou em funcionamento em
1969, conectando seus quatro primeiros nós, ou seja, universidades americanas. Na
década de 80, a ARPANET encerra suas actividades e cede lugar à Internet. A partir daí,
a Internet parte para sua difusão internacional, sem fronteiras nem rumos. Assim,

13
Pereira, D. M; & Silva, G. S. (2010). As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como
aliadas para o desenvolvimento. Cadernos de Ciências Sociais Aplicadas, 10, 151-174

15
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conforme a rede se expandia e ganhava mais adeptos, outras tecnologias relacionadas à


Internet foram criadas. Por volta de 1990, os “não iniciados” ainda tinham dificuldade
para usar a Internet e a capacidade de transmissão ainda era muito limitada. Nessa
época, foi criado um novo aplicativo, a teia mundial World Wide Web – WWW14, a
ideia do hipertexto15 Hypertext Markup Language – HTML e a divisão de locais em
sites16.
No fim da década de 90, o poder de comunicação da Internet, aliado ao progresso em
telecomunicações e computação, desencadeou uma grande mudança tecnológica. Nesse
novo sistema, a força da computação é distribuída numa rede montada ao redor de
servidores da web que usam os mesmos protocolos17 da Internet. O aumento assombroso
da capacidade de transmissão com a tecnologia de comunicação em banda larga
alavancou a possibilidade de uso da Internet e das tecnologias de comunicação
semelhantes a esta, já que se tornou possível transmitir, além de dados, voz, e isso
revolucionou as telecomunicações e sua respectiva indústria.

Tema: Ciência, Tecnologia e Democracia

A produtividade, a inovação contínua e os avanços tecnológicos passaram a ser vistos,


desde os anos 80, como as forças motrizes do desenvolvimento econômico regional. Em
consonância com a afirmação de que os territórios mais desenvolvidos são mais
favoráveis ao desenvolvimento tecnológico, pode-se induzir que o surgimento de
mudança tecnológica (inovação) origina o desenvolvimento regional. Seguindo essa
linha de raciocínio, é plausível afirmar que a utilização de novas tecnologias propicia
melhor desempenho econômico por intermédio da maior produtividade. Lopes (2009, p.
999) ressalta que “a produtividade, a inovação contínua e a mudança tecnológica são
consideradas como os principais catalisadores locais do desenvolvimento econômico
regional.”
As TICs contribuem de diversas maneiras para o desenvolvimento local, pois:

14
A World Wide Web (rede de alcance mundial, também conhecida como Web e WWW) é um sistema
de documentos em hipermédia interligados e executados na Internet.
15
Termo que remete a um texto em formato digital, ao qual se agregam outros conjuntos de informação
na forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons, cujo acesso se dá por meio de referências
específicas denominadas hiperlinks, ou, simplesmente, links.
16
Conjunto de páginas web, isto é, de hipertextos acessíveis na Internet.
17
Convenção ou padrão que controla e possibilita uma conexão, comunicação ou transferência de dados
entre dois sistemas computacionais.

16
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 Viabilizam o crescimento econômico, mediante investimentos em tecnologias,


crescimento do sector de TICs e impacto em outros sectores;
 Proporcionam bem-estar social, por meio do aumento da competitividade,
melhores oportunidades de negócio e maiores possibilidades de emprego;
 Oferecem qualidade de vida, por intermédio da aplicação das TICs na educação
e na saúde;
 Promovem a melhoria dos serviços públicos oferecidos aos cidadãos e o
aperfeiçoamento dos processos de tomada de decisão.
Além disso, as TICs podem contribuir para a ampliação do exercício da cidadania
aumentando a interação entre cidadão e governo mediante canais mais rápidos e
menos burocráticos de diálogo. Os meios digitais de divulgação de informações
também facilitam o controlo social do governo, dando maior transparência à
administração pública nos três níveis. Outra vertente de discussão sobre a dicotomia
tecnologia e desenvolvimento está centrada na importância determinante da tecnologia
no desempenho local.
Assim, a aplicação das tecnologias mais avançadas deve ser impulsionada mesmo em
regiões pobres, onde a produção de inovações é improvável.
A capacidade tecnológica de um território pode promover-se segundo três vertentes:
produção de tecnologia própria, utilização de tecnologia externa e introdução local de
inovação na tecnologia externa. Nas regiões mais periféricas onde não é capaz de
chegar à produção de novas tecnologias, é fundamental fazer com que cheguem quanto
antes a sua utilização (Lopes, 2009, p.1000).

O papel do Estado
As ações do Estado, com vistas a promover o desenvolvimento local, principalmente em
regiões periféricas, onde a escassez de capital econômico, social e humano, além da
fragilidade das instituições públicas, é flagrante, estão centradas em corrigir
determinadas deficiências locais e regionais. Como enumera Santos (2003):
1. Capacitação e assistência técnica para o empreendedorismo econômico, cultural
e social;
2. Capacitação e cooperação técnica para o fortalecimento institucional; geração de
emprego, trabalho e renda;

17
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3. Incentivo ao associativismo e cooperativismo; fortalecimentos dos arranjos


produtivos atual e potenciais;
4. Democratização do crédito para pequenos e médios empreendimentos;
5. Acesso às microfinanças;
6. Expansão do ensino técnico e superior, a partir das vocações econômicas e
sociais locais e microrregionais;
7. Criação de incubadoras de empreendimentos urbanos e rurais; incentivo à
implantação de núcleos locais e microrregionais de pesquisa e inovação
tecnológica, constituídos com base em parceria entre governos, universidades e
setor privado e implantação de projetos de inclusão digital.
O que deve ser guardado para o entendimento da relação entre tecnologia e a sociedade
é que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a
inovação tecnológica, é um factor decisivo no processo geral, à medida que expressa e
organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma época determinados. Em
grande parte, a tecnologia expressa a habilidade de uma sociedade para impulsionar seu
domínio tecnológico por intermédio de instituições sociais, inclusive o Estado. O
processo histórico em que esse desenvolvimento de forças produtivas ocorre assinala as
características da tecnologia e seus entrelaçamentos com as relações sociais.
“Uma das coisas que os governos na semiperiferia precisam fazer é implementar
políticas que estimulem a pesquisa e o desenvolvimento local, e o aumento da
capacidade da região para a absorção e inovação tecnológica. Essas políticas são
cruciais para o aumento da capacidade do Estado de implementar políticas sociais,
através da modernização dos fluxos de informação e melhores serviços ao público,
produzindo muitos benefícios indiretos através do desenvolvimento tecnológica com
que eles estimulam.” (Eisenberg & Cepik, 2002)
Portanto, o Estado não deve actuar apenas como regulador das ações de mercado, mas
intervir de forma activa como inductor do desenvolvimento local sustentável. Essa
acção deve acontecer na forma de parcerias entre o governo central e provincial ou
local, além de empresas, universidades, organizações não-governamentais, sociedade
civil organizada e todos os outros actores locais e regionais interessados.

Práticas para viabilizar o desenvolvimento local por meio das TICs

18
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As TICs consolidaram-se como uma nova estratégia adotada pelas administrações locais
para a diversificação de suas economias, e principalmente, para a geração de novos
postos de emprego.
 Encampar programas para a criação de polos tecnológicos;
 Oferecer incentivos fiscais para atrair empresas interessadas;
 E incentivar o empreendedorismo na área de TI.
Estas são algumas das fórmulas adotadas pelos governos municipais para a criação de
uma estrutura sólida formada de empresas de base tecnológica com condições de
realizar investimentos de maneira contínua, favorecendo o desenvolvimento de novas
tecnologias capazes de aquecer a economia e melhorar a competitividade local.
Para viabilizar a implementação dessas novas directrizes, várias acções têm sido
propostas. Vamos analisar as principais iniciativas adoptadas pelos governos nacional e
provincial, com vistas a viabilizar o desenvolvimento local por intermédio das TICs.
Os principais recursos utilizados pelos governos locais no intuito de garantir à
população de baixa renda o acesso às novas TICs, em especial à Internet, são:
 Telecentros comunitários: são espaços multifuncionais que dispõem de acesso
público à Internet, promovem cursos de informática básica, de acesso à rede
mundial de computadores e correio electrônico. Utilizam Software livre;
 Redes wi-fi (sem-fio): redes de banda larga disponíveis para acesso gratuito da
população à Internet. O cidadão necessita de equipamento próprio para
conseguir se conectar e utilizar os serviços;
 Salas de informática em escolas e bibliotecas públicas : salas equipadas com
microcomputadores dotados de aplicativos básicos com ou sem acesso à
Internet;
 Cibercafés (lan houses): são estabelecimentos comerciais com equipamentos de
TICs, conectados à Internet, cuja cobrança é feita de acordo com o tempo de uso
dos equipamentos. Parcerias com o poder público ou com Organizações Não
Governamentais (ONG) permitem a prática de preços inferiores aos de mercado,
viabilizando o uso da rede por pessoas de baixa renda;
 Quiosques ou totens: semelhantes aos serviços de auto-atendimento bancário,
são comuns em projectos que oferecem acesso rápido a serviços, informações e
correio eletrônico.

19
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Tema: A internet, liberdade de expressão

Electronic Frontier Foundation18


A Electronic Frontier Foundation que é traduzido como, Fundação de Fronteiras
Electrónicas19 - EFF, é uma organização sem fins lucrativos, com sede nos Estados
Unidos, e tem com o objectivo declarado, dedicar esforços a conservar os direitos de
liberdade de expressão, como os protegidos pela Primeira Emenda à Constituição dos
Estados Unidos, no contexto da era digital actual. Seu objectivo principal é educar à
imprensa, os legisladores e o público sobre questões de liberdades civis que estão
relacionadas com a tecnologia e actuar para defender essas liberdades. A EFF é uma
organização com membros que se mantém a base de doações e cuja sede está em San
Francisco, Califórnia, com pessoal em Toronto, Ontario e Washington DC. A EFF tem
actuado de várias maneiras:
1. Proporcionando ou financiando defesa legal nos tribunais
2. Defendendo aos indivíduos e as novas tecnologias do efeito inibitório provocado
por ameaças legais que considera infundadas ou mau dirigidas.
3. Proporcionando assessoramento ao governo e os tribunais.
4. Organizando acções políticas e correios em massa.
5. Apoiando algumas tecnologias novas que acha que ajudam a preservar as
liberdades individuais. Mantendo um banco e páginas sobre notícias e
informação relacionadas.
Monitorizando e questionando a legislação potencial que, segundo seu critério, violaria
as liberdades individuais e o fair use. Solicitando uma lista do que considera abusos de
patentes, com a intenção de vencer às que não considera meritórias.
A criação da organização esteve motivada pelo registo e embargo que Steve Jackson
Games sofreu por parte do serviço secreto dos Estados Unidos nos princípios de 1990.
Nessa época estavam a levar-se acabo outras acções policiais similares, ainda que
oficialmente sem autorização, por todo Estados Unidos, como parte de uma força
operativa estatal e federal chamada Operação Sundevil. No entanto, o caso de Steve
Jackson Games, o primeiro caso da EFF que chamou a atenção, foi o principal ponto de

18
Retirado na enciclopédia electrónica: http://pt.encydia.com/es/Electronic_Frontier_Foundation
19
Mitch Kapor, fundador da EFF. A Electronic Frontier Foundation foi fundada em julho de 1990 por
Mitch Kapor, John Gilmore e John Perry Barlow. Os fundadores conheceram-se através da comunidade
virtual The WELL.

20
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partida, desde que a EFF começou a defender as liberdades civis relacionadas com a
informática e Internet. O segundo caso importante da EFF foi o de Bernstein contra
Estados Unidos, levado por Cindy Cohn, no que o programador e professor Daniel
Bernstein demandou ao governo a permissão para publicar seu software de
criptografado-Snuffle, e o artigo que o descrevia. Em tempos recentes, a organização
tem estado envolvida na defesa de Edward Felten, Jon Johansen e Dmitry Sklyarov.
É importante lembrar igualmente os casos de Julian Assange e Edward Snowden
exilados no Reino Unido e Rússia respectivamente.

A privacidade
Nos últimos anos, a internet foi incorporada à vida de milhões de pessoas em todo o
mundo e com ela, inúmeros benefícios sobrevieram à sociedade, como a facilidade de
comunicação, o acesso e compartilhamento de informações. Mas, sem os cuidados
necessários, essa tecnologia também pode apresentar sérios riscos à segurança do
internauta. Nos dias actuais, as pessoas cada vez mais trocam dados por meio
electrônico. As novas tecnologias propiciam diferentes tipos de escândalo gerando
danos exponenciais. Estamos num momento de transição em que as relações humanas
se tornam cada vez mais interactivas através dos dispositivos móveis de comunicação,
porém, estamos nos tornando cada vez mais vulneráveis aos ataques a nossa esfera de
privacidade.
Se lançarmos um olhar sobre esta transição veremos que um dos grandes desafios será o
de preservar a reputação e a privacidade diante de um ambiente de interligação
provocado pela revolução tecnológica que cria uma esfera pública nova desafiando a
credibilidade por parte de pessoas físicas e jurídicas, neste novo ambiente social. A
reputação pessoal e das empresas é um patrimônio inestimável que deve ser encarado
como uma poupança, onde se procura acumular valores diante da percepção do público
que está sendo potencializada através da internet.
Todos nós de modo geral gostamos de tecnologia, alguns têm perfis essencialmente
exibicionista, o que contrasta com o seu pouco conhecimento sobre a vulnerabilidade do
excesso de exposição da sua privacidade no meio electrônico. Imagens captadas de
relacionamentos amorosos, duradouros ou não, tem sido reiteradas vezes utilizadas por
um companheiro que se sente fraco emocionalmente com o término de um
relacionamento e opta por extrapolar sua angústia para um público incalculável pela
internet, o que proporciona danos potencializados que vem sendo reparados com a

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devida identificação dos culpados. A farsa de anonimato, sensação propiciada pela


tecnologia, somada ao desconhecimento das leis vigentes, atrai os infractores para a
prática ilícitas que vem sendo cada vez mais desvendados e punidos pela Justiça em
todo mundo.
É necessário refletir que a potencialidade do dano cometido contra a imagem
profissional de um profissional independente, por exemplo, é imensa, pois qualquer
desleixo cometido na sua própria cidade ou região pode ter repercussões no meio
electrônico e torná-lo global em pouco tempo, fazendo com que o desgaste seja maior
que o próprio erro.
Precisamos nos consciencializar que quanto mais avança a tecnologia, a nossa
privacidade será invadida. Todo este risco provocado pela tecnologia não deve ser
encarado como desprotegido pelo Direito Angolano e dos demais países. Já temos leis e
jurisprudência suficientes sobre o tema para coibir os abusos praticados contra a
reputação de pessoas e empresas no meio electrônico.
Todavia, as autoridades competentes devem criar o hábito de monitorar a divulgação de
textos, imagens, vídeos para que seja possível identificar rapidamente o conteúdo ilícito
visando retirá-lo imediatamente de circulação como forma de minimizar o dano.
Ninguém duvida que estamos diante da necessidade de aprendermos uma nova regra de
comportamento social através do mundo eletrônico, e preparando-se para críticas e
horrores digitais que nem sempre poderão ser controladas pela vítima, mas que serão
punidas pela Justiça.

Modulo IV – O Pensamento contemporâneo ocidental: achegas para uma


Epistemologia da Interculturalidade

Orientalismo & Ocidentoxificação


Quando se trata do pensamento humano ou contemporâneo sem qualifica-lo de certa
maneira como ocidentalismo euro-americano com raízes greco-romanas, ficamos com a
impressão de que ele não abrange a herança da humanidade inteira, ou de que ao
Ocidente foi dispensado pela divina providência (ou pelo processo da evolução) o
monopólio de pensar e de representar todo o género humano. Isto pode ainda
corresponder à realidade, mas pouco abonatória, face às percepções e prioridades do
mundo não-Ocidental. Mesmo sem consciência ou compreensão desta outra realidade,
já que o intelectualismo pensante dificilmente permite ultrapassar o nível racional de

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chegar à realidade, poucos no mundo ocidental sentem a necessidade de duvidar da


validade universal dos seus dotes intelectuais que lhes servem bem para valorizar os
seus preconceitos. Não seria de estranhar se estes preconceitos apelidassem de
romântica qualquer defesa de uma sabedoria não-Ocidental.
O oriente sempre viveu o pluriculturalismo com uma reciprocidade exemplar, enquanto
os hábitos colonialistas do ocidente continuam a dificultar a sua participação nesta
reciprocidade. Podíamos já agora falar das pluri-cronias, nomeadamente no que diz
respeito ao tempo como metáfora da História.
Isto poderá ajudar-nos a esclarecer melhor os preconceitos das construções orientalistas.
James Mill (1773-1836). As relações do poder e da dominação que se criaram a partir
da expansão europeia do século XVI, ou dos chamados descobrimentos. Criaram-se no
ocidente complexos de superioridade e paternalismo em relação a outros povos (Ásia
África e a periferias da América). É por isso que hoje é quase impossível acompanhar
qualquer análise da sociedade sem levar em conta estas relações do passado colonial.
Isto acontece, porque as estruturas do poder, criadas durante o processo de colonização
ainda permanecem, embora encobertas pelas organizações internacionais e relações
culturais subtilmente controladas e influenciadas pelo capitalismo neoliberal.
Poderíamos perguntar se estamos numa era de globalização, ou numa era de
encobrimentos? A Ásia entrou no processo de descolonização e ganhou o direito de
dizer da sua justiça o que tinha a dizer aos seus ex-colonizadores. A luta dos asiáticos
com o ocidente parece estar apenas a começar. A principal intenção nesta luta é ajudar
os seus próprios povos a reflectir sobre as suas novas responsabilidades, a fim de evitar
os erros do passado, particularmente os erros que tinham feito dos seus povos vítimas
fáceis de manipulação colonial.
Verificamos entretanto actualmente uma divisão de dois polos opostos. O primeiro polo
composto pela União Europeia, os Estados Unidos da América e a China. São países
industrializados com capacidade de utilizar máquinas para transformar matérias-primas
em produtos complexos para o mercado mundial. As matérias-primas não são somente
minério e petróleo, corda de tripa, algodão e goma de traga canto. Abarcam também os
mitos, os dogmas, a música e coisas mais espirituais.
É notável referir que a Rússia tem decaído economicamente por conta de diversas
sanções que têm sido impostas pelo ocidente. Não obstante, com a presente guerra na
Ucrânia, as sanções à Russia atingiram o pico mais alto da sua história o que poderá à
média e longo prazo causar danos devastadores na economia daquele País, de um modo

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geral, estamos a assistir uma reconfiguração da geopolítica mundial. Ou seja, depois da


guerra da Rússia com a Ucrânia o mundo jamais será o mesmo, a configuração dos
blocos e superpotências que conhecemos actualmente tomará outros contornos, o que
ocasionará a ascensão de certos países e a decadência de diversas potências no cenário
geopolítico internacional.
O outro polo é a Ásia, América Latina e periferias, e a África, regiões atrasadas e
consumidores dos produtos ocidentais. As matérias-primas para esses produtos vêm dos
países subdesenvolvidos: petróleo do golfo, condimentos da Índia, jazz da África, seda e
ópio da China, antropologia da Oceânia, sociologia da África. Essas últimas duas vêm
também da América Latina: dos Aztecs e dos Inca que foram decimados pelos assaltos
do Cristianismo.
Ali Shari’ati (1933-1977) iraniano de nacionalidade faz uma análise que não se limita
ao Irão, mas abrange as regiões asiáticas e africanas sob a dominação do capitalismo
ocidental:
“Seguir as orientações das nações do Ocidente e das companhias de petróleo –
eis a verdadeira expressão da ocidentose hoje. É assim que a indústria do
Ocidente nos rouba, nos governa e controla o nosso destino. Uma vez que o
controlo da nossa economia e política, passe para as mãos das empresas
estrangeiras, eles decidem o que nos devem vender, ou pior ainda, o que não
nos devem vender.” (pp. 62-63) “A maior parte dos nossos intelectuais
competem para entrar na liderança do país, mas não conseguem fazer outra
coisa senão servir de intérpretes para os conselheiros ocidentais, que são na
realidade os administradores e executivos que tomam todas as decisões e ditam
os objectivos.” (p. 90)
Os povos asiáticos, que estão a realizar a sua modernização, não acreditam que haja
uma única modernidade e têm a sua análise própria da ocidentalização que lhes foi
imposta como modernidade durante os séculos de colonização e que continua a ser
imposta actualmente através da globalização dirigida pelo Ocidente. Rejeitam o modelo
europeu de globalização, que não considera como um ideal de desenvolvimento
saudável. Sentem-se cada vez mais desiludidos com a depauperação a que este
desenvolvimento condena os seus valores culturais tradicionais
Veem o Ocidente como um mundo decadente, que se identifica com o individualismo
cristão, com a desintegração do núcleo familiar, com o declínio de solidariedade social,
e com aproveitamento de democracia sob a camuflagem de sociedade civil e “ONGs”

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para continuar a controlar e expropriar os países da periferia. Em contraste, salientam


como valores asiáticos o respeito pela família e pela comunidade, o que consideram
como uma garantia de bom funcionamento do poder político, sem necessidade do
modelo euro-americano de democracia e manipulação capitalista da comunicação
social.
O que os críticos ocidentais apontam como fundamentalismo religioso, autoritarismo
político e violação de direitos humanos em vários países asiáticos, é justificado pelos
dirigentes destes países como uma maneira de garantir o ritmo da sua modernização
tecnológica, sem subverter os valores das culturas tradicionais do povo.
O processo de globalização parece estar a escapar das mãos dos próprios que o
iniciaram. É esta preocupação que leva o Ocidente a buscar urgentemente um novo tipo
de relacionamento com a Ásia. Da parte dos asiáticos a relutância é provocada pela sua
consciência da desigualdade desses benefícios e das rupturas geradas pela missionação
cristã europeia no tecido social asiático que foi sempre profundamente marcado pelas
suas grandes religiões e filosofias.
A emergência da China como uma potência regional e a tentativa da Índia, já com armas
nucleares e outros recursos, para ocupar aquilo que considera ser o seu espaço no
Índico, deixam várias possibilidades em aberto. No entanto, a União Europeia, os
E.U.A, e os outros países ricos do Ocidente estão preocupados com níveis cada vez
mais baixos de natalidade e preveem uma dependência crescente de mão-de-obra
imigrante.
Os países ex-colonialistas enfrentam dificuldades de integração económica, social e
cultural dos grupos étnicos das antigas colónias nas suas sociedades nacionais. Tensões
racistas e xenofónicas começam a tornar-se mais frequentes no Ocidente. Qual será a
solução? Uma gestão capitalista da crise tende a promover soluções de recurso e com
mínimos compromissos possíveis. Cabe à filosofia prestar este serviço de preparar a
opinião pública para um diálogo intercultural e apresentar uma alternativa à gestão
capitalista da crise do pluriculturalismo, que quase sempre passa pelo
monoculturalismo, imposto em forma de diálogo fictício ou políticas de inserção social.

Papel da filosofia na resolução da crise do pluriculturalista


 Compete à filosofia esclarecer o sentido crítico de cultura, incluindo a sua luta
contínua para determinar as suas metas e os seus valores em novos contextos
históricos.

25
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 Compete também à filosofia assistir os indivíduos na sua “desobediência


intracultural”, ou seja, na sua apropriação crítica da visão que a cultura
tradicional lhes oferece, admitindo a possibilidade, ou mesmo a necessidade, de
uma troca mutuamente enriquecedora entre as culturas.
 Seria a missão da filosofia de interculturalidade, ajudar a formular os critérios
éticos para uma prática de interculturalidade interactiva, para o reconhecimento
real de cada cultura como uma visão especial do mundo no seu contexto
material (o meio ambiente da cultura) próprio.
 Seria essencial também contextualizar o diálogo intercultural no quadro dos
direitos humanos, como um direito à multiversidade cultural, correspondendo à
biodiversidade da natureza como património da humanidade.
O cumprimento dessa missão filosófica criaria anticorpos de resistência aos interesses
do mercado neoliberal, reduzindo as violações impunes do direito das culturas aos seus
ambientes materiais que asseguram a qualidade de vida à grande maioria dos seus
povos.
Portanto a tradição de direitos humanos faz parte da história humana que oferece
inúmeros casos de pessoas que lutaram e sacrificaram as suas vidas contra a opressão e
injustiça em todos os cantos e em todas as sociedades do mundo. Todas essas
sociedades têm a sua percepção de injustiça e a sua memória de libertação.
É nesta base da identidade humana, em defesa dos que lutam pela vida das massas de
povos dentro das suas respectivas culturas e contra as barbaridades de qualquer
monocultura uniformizante, que a filosofia de interculturalidade deve formular o seu
projecto de compromisso e de solidariedade social.

Algumas visões orientais


O modelo universalista do tipo dialogante teve os seus simpatizantes entre os
intelectuais asiáticos. O filósofo estadista indiano, Radhakrishnan propôs uma versão
universalista neo-hindu. O hinduísmo é conhecido pela sua tolerância e pela sua visão
eclética, que proclama a unidade espiritual da humanidade. Em 1927, chamava atenção
aos conflitos provocados pelas deslocações de povos, em consequência das atitudes
imperialistas e racistas de certos países. Radhakrishnan propunha a solução hindu que
consistia em reconhecer que a humanidade inteira é uma grande família e que todas as
etnias têm o direito de se misturarem, mantendo cada uma a sua identidade e o seu
direito de autodesenvolvimento.
26
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A filosofia de Rabindranath Tagore evocou enorme interesse durante o período assolado


pelas duas Grandes Guerras. Ele fundou uma Universidade em que introduzia uma
pedagogia muito especial, ou seja, onde os jovens não seriam levados a crer que o ideal
a atingir era a idolatria nacional. Tagore defendeu que:
A história do homem tem de ser feita pelos esforços unidos de todas as raças do
mundo, pelo que este vender da consciência por razões políticas, este fazer da
pátria uma espécie de feitiço, não dará resultado. Sei que a Europa, no seu
íntimo, não o admite, mas a verdade é que não tem o direito de nos ensinar. Os
homens que morrem pela verdade tornam-se imortais, e se um povo inteiro
morrer pela verdade, também alcançará a imortalidade na história da
humanidade.
Algumas ideias críticas de Tagore depois de ter viajado de EUA ao Japão:
 Este povo (ocidental) está sendo lisonjeiramente persuadido a acreditar que vive
emancipado e que é o supremo depositário do poder. Mas este poder é usurpado
por inúmeros egoístas, e o cavalo está em freios e alojado numa estrebaria a fim
de que não venha um dia a fazer uso da sua liberdade de mover-se.
 O seu modo de pensar é moldado em conformidade com os planos de interesse
organizado; na sua escolha de ideias e formulação de opiniões o povo sente-se
reprimido por severos castigos ou pela situação constante de falsidades; o povo
sente-se forçado a viver num mundo de artificialismo e de frases hipnóticas.
 O povo tornou-se o armazém dum poder em cuja volta enxameiam milhares de
aventureiros que estão, às escondidas, examinando as suas paredes afim de
explorar este poder em proveito próprio.
 É assim que se me faz evidente que o ideal da liberdade está decaindo no mundo
Ocidental. É a mentalidade de uma sociedade que escraviza os outros, enquanto
na roda de suplício, forjada pelo seu comércio e pela sua política, gemem
milhares e milhares de pessoas, esfaqueadas e mutiladas.
 Quem se preocupa em escravizar a outrem, prende-se ele próprio à escravidão;
quem levanta muralhas em seu redor afim de excluir os outros, restringe a sua
própria liberdade dentro destas muralhas, perdendo o seu direito moral à
liberdade.
Monoculturalismo globalizante

27
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O pensamento contemporâneo ocidental apresenta-nos alguns modelos pluralistas. Mas


tal como acontece com a sua variante universalista, trata o pluriculturalismo de uma
forma muito conflituosa, com potencialidade para intolerância e conflitos étnicos. Tem-
se divulgado um pluralismo embrulhado em teorias sofisticadas de direita. Samuel
Huntington é um dos seus protagonistas que rejeita a ideia de mais de uma civilização
mundial poder coexistir.
Huntington que prefere acreditar no choque das civilizações, afirmou na conferência de
Lisboa que:
“As grandes civilizações mundiais diferem muito entre si quanto à semelhança
entre as suas culturas e a do Ocidente e ao respectivo grau de ocidentalização.
A América Latina está estreitamente relacionada com o Ocidente e, no entender
de algumas pessoas, deveria ser considerada membro da família ocidental. O
mundo ortodoxo é um parente muito mais distante e difícil. Em África, o
domínio ocidental foi curto e o seu impacto muito mais limitado, com a
excepção da África do Sul. A influência ocidental nos países muçulmanos tem
sido variável, embora muito reduzida na pátria árabe do Islão. O mesmo é
válido para a China. Em termos globais, o grau de aceitação da democracia
pelas sociedades não ocidentais varia na medida em que estas sociedades têm
sido expostas às influências do Ocidente.”20
É uma posição da política neoliberal que os defensores dos valores asiáticos poderão
associar com a doença de Huntington, uma doença de origem hereditária, que afecta o
sistema nervoso. Não tem cura e conduz inevitavelmente à morte. Um dos sintomas da
doença é a dificuldade de engolir! A arrogância desta classe de pensadores ocidentais
poderá ter muita dificuldade em engolir a capacidade da resistência e avanços das
civilizações asiáticas e não só, perante os motores ideológicos da globalização do
capitalismo neoliberal.
Uma outra versão pluralista está associada com hermenêutica e a noção de diálogo.
Fala-se de diálogo como uma grande ruptura, principalmente no contexto de diálogo
inter-religioso. O diálogo hermenêutico é concebido por Hans-Georg Gadamer, bem
diferente duma conversa agradável. Define-o como um confronto de tradições, um
confronto entre os preconceitos históricos de uma parte com as tradições culturais
doutra. Defende que um verdadeiro diálogo não se atinge apagando as diferenças, mas

20
Espada, J. C. (2000). A Invenção Democrática. Lisboa: Fundação Mário Soares.
.

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somente através de um reconhecimento delas e integrando-as no processo de diálogo. A


diversidade e a pluralidade das perspectivas são uma condição indispensável para uma
verdadeira compreensão entre as partes dialogantes.
Gadamer pode ser criticado por não levar a sério os interesses políticos, as atitudes
racistas, as manipulações ideológicas e as desigualdades disfarçadas por trás dos
discursos de diálogo. Duvida-se que seja possível um verdadeiro diálogo hermenêutico
a partir do pensamento que se considera devedor a Husserl e Heidegger que
privilegiaram os valores ocidentais a ponto de assumirem que a “regeneração do ser”
estava reservada ao pensamento europeu e não ao pensamento oriental ou outro
qualquer.
Isaiah Berlin (1909-1997) na sua tese de equilíbrio pragmático e à sua defesa ardente do
pluralismo de valores culturais. Afirma a necessidade de admitir que existem limites
para uma mútua compreensão e para uma possível solução das incompreensões
interculturais, mas também assume que é o único caminho. Porém, deve ser rejeitada
como ilusão e como convite à repetição das tiranias qualquer tentativa de reduzir todo o
conhecimento humano a um único sistema de pensamento com uma única metodologia.
Vico e Herder como defensores do pluralismo de valores dentro de um horizonte
humano comum, defendem que um encontro Ocidente-Oriente pós-orientalista e no
contexto da globalização só seria positivo na base de diálogo criativo entre os vários
centros civilizacionais com os seus valores e pensamento próprios, e não através da
homogeneização do mundo ou através de paternalismo de alguém ou de um grupo que
decida o que é bom para os outros. Portanto deve ser rejeitada como ilusão e como
convite à repetição das tiranias qualquer tentativa de reduzir todo o conhecimento
humano a um único sistema de pensamento com uma única metodologia21.
21
Leituras recomendadas para o módulo IV:
Neves, F. S; (2007). Introdução ao pensamento contemporâneo: tópicos e ensaios.
EMEN, 13 (14), 175-197.
Radhakrishnan, S. (1996). The Hindu View of Life. New Delhi: HarperCollins
Publishers India.
Vala, J. (1999)., Expressões dos racismos em Portugal. Lisboa: ICS.
Tagore, R. (1986). A Casa e o Mundo. Lisboa: Editora Presença.
Huntington, S. (1993). The clash of civilizations. Foreign Affairs, l (3), 72.
George, A. (Sem/Ano). From colonialism to eco-colonialism. International Conference.
Europe and South Asia: 500 Years (Abstracts), Calicut & Cochin, 16-20 May 1998.
Fukuyama, F. (2000). A Grande ruptura: a natureza humana e a reconstituição da
ordem social. Lisboa: Quetzal Editores.
Gadamer, H-G. (1998). O Problema da Consciência Histórica. Lisboa: Estratégias.
Berlin, I. (1998). A Busca do ideal. Lisboa: Editorial Bizâncio.
Espada, J. C. (2000). A Invenção Democrática. Lisboa: Fundação Mário Soares.

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Modulo V – Noções sobre o pensamento clássico africano


Tema: A filosofia africana e a temática de libertação

A preocupação dominante na reflexão significativa dos filósofos africanos a partir dos


anos 50, em especial nos anos 60 e 70, foi elaborar uma filosofia própria, africana,
enraizada em seu contexto histórico e social que sofria transformações profundas com o
processo de descolonização pelo qual passavam vários povos africanos, marcada pelas
condições contextuais do próprio exercício do filosofar, tal elaboração girava - segundo
alguns comentadores em torno de dois aspectos:
a) O exame das condições necessárias para a emergência de uma verdadeira
filosofia africana.
b) A insistência sobre o problema das transformações culturais e, no sentido mais
amplo, sobre a questão política.
Curiosamente, muitos temas tratados por filósofos africanos deste período são
semelhantes aos tratados por filósofos latino-americanos na mesma época. Entre eles
estão o carácter e a finalidade da filosofia, o mimetismo na cultura colonizada, a
alienação cultural, a relação entre o Eu e o Outro fora dos parâmetros da racionalidade
europeia, a distinção de uma razão branca e uma razão negra, a relação entre filosofia e
revolução, a questão da consciência e libertação nacionais, a dialética da identidade,
diversidade cultural e humanismo, filosofia e religião, filosofia e subdesenvolvimento, a
filosofia como factor de libertação e a responsabilidade do filósofo em meio ao seu
contexto histórico.

Alguns Filósofos Africanos


1. Edward Blyden e a Crítica ao Mimetismo Servil.
2. Léopold Sédar Senghor e a Questão da Negritude22
3. Stanislas Adotevi e a Identidade Histórica dos Povos Negros

22
A questão da Negritude não é abordada com profundida nesta sessão. Porém procura dar uma luz ao
estudante sobre o assunto. Para mais explicações sobre a Negritude recomendamos a leitura do livro:
Elungu, P. E. A. (2014). O despertar filosófico em África. Lisboa: Edições Pedago. Pp. 77-91.

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4. Frantz Fanon e a Consciência do Colonizado


5. Ébénézer Njoh-Mouelle: a Filosofia como Factor de Libertação

Edward Blyden e a Crítica ao Mimetismo Servil.


Edward Blyden (1832-1912) foi provavelmente o primeiro filósofo africano a tratar de
maneira mais aprofundada o mimetismo servil, a alienação cultural dos negros africanos
e a necessidade de mudanças do método pedagógico de ensino. Nasceu em São-Tomás,
nas Antilhas Dinamarquesas, escreveu alguns textos que ainda hoje guardam
actualidade no contexto dos povos dependentes.
Segundo Blyden, os sistemas e métodos de educação europeia a que eram submetidos os
negros, especialmente nos países cristãos, eram um mal que precisava ser corrigido. Em
sua maior parte, os negros que viviam em países estrangeiros contentavam-se em ser
espectadores passivos das acções dos outros povos. A educação que recebiam acabava
produzindo neles mesmos uma dúvida sobre sua própria capacidade e destino pessoais,
transformando-lhes a estrutura intelectual e social.
Neste sistema de educação, a opinião comum entre os negros era que, o mais importante
no conhecimento consiste em aprender o que outros homens estrangeiros (brancos)
dizem sobre as coisas, e inclusive, sobre a África e sobre os próprios negros. Os negros
aspiram familiarizar-se, não com o que é realmente, mas com o que está impresso nos
livros que leem. Nesses livros aprendiam que o negro era um ser inferior, degradado,
que não conseguia aprender, por si próprio, o que o poderia elevar, esclarecer e
refinar. Contestando a essa situação destacava Blyden que os negros têm uma história
escrita por eles próprios e que a ordem verdadeira das coisas consiste em primeiro fazer
a história, para em seguida escrevê-la.
Afirmava ele que para a nação africana fazer-se independente era preciso escutar o
canto simples dos irmãos, que resgatavam a história, a tradição, os eventos
maravilhosos e misteriosos da vida tribal ou nacional, as superstições, recuperando a
força da raça, da cultura. Era preciso aproximar a universidade desses elementos, dessa
realidade. Com isso, os estudantes poderiam deslocar sua atenção daqueles livros e se
misturar aos irmãos, propiciando uma nova inspiração, ideias novas e vivas. Em outras
palavras para o autor, é necessário sempre que possível ler de forma crítica, não apenas
os livros, mas todo conhecimento ocidental para não continuarmos amarrados pelos
imperialistas tiranos.

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Léopold Sédar Senghor e a Questão da Negritude


Nascido em 1906 no Senegal desenvolveu, além de actividades literárias, uma dupla
trajetória como docente e político, tornando-se professor de Línguas e Civilizações
Africanas na École de France d'outre-mer e, após exercício parlamentar, vindo a ser
presidente da República do Senegal. A negritude afirmava que o homem negro era tão
homem quanto qualquer outro e que havia realizado obras culturais de valor universal,
às quais, os que empunhavam a negritude queriam ser fiéis.
A civilização ideal seria aquela que, como esses corpos assim divinos surgidos da mão e
do espírito do grande escultor, reunisse as belezas reconciliadas de todas as raças".
Senghor, foi um dos maiores divulgadores da negritude, que se consolidava como um
movimento cultural de resgate/construção da identidade negra, buscando desvelar a
alma negra cuja característica essencial seria a emoção: "A emoção é negra, assim
como a razão é helênica" A emoção, como Senghor, é o que possibilita o elevar-se a
um estágio superior de consciência. A emotividade é o elemento essencial e constitutivo
do negro.
Enfim, a razão negra se distingue da razão branca por que ela percorre as artérias
das coisas para se alojar no coração vivo e real. A razão europeia é analítica por
utilização, a razão negra, intuitiva por participação. Em suma, é da especificidade
biológica do negro e de sua sensibilidade que Senghor deduz a conduta, a cultura e a
razão negro-africanas. Senghor afirma ainda que, o negro não vê o objeto, mas o
sente, deve ser entendida considerando-se o homem negro como um campo sensorial,
sendo realizada na sua subjectividade a descoberta do Outro.
Portanto, devido a sua sensibilidade é um sujeito que se relaciona com o objeto sem
intermediário, sendo sujeito e objeto simultaneamente. O Negro é sons, odores, ritmos,
formas e cores; eu digo tato antes de ser visão, como o Branco europeu. Ele sente mais
do que vê: ele se sente. É em si mesmo, em sua carne que ele recebe e experimenta as
radiações que emite todo existente objecto.

Stanislas Adotevi e a Identidade Histórica dos Povos Negros


Com o passar do tempo, o movimento original da Negritude acabou sendo desviado, por
pensadores reacionários, que começaram a defender uma tese fixista sobre a natureza do
negro. Frente a este desvio e questionando teses senghorianas, Stanislas Adotevi
defende uma concepção do negro que articula de maneira indissociável a identidade e a
história dos povos negros.

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Destaca o autor que a particularidade negra é que, entre todos os explorados, os negros
foram os mais explorados: o que o negro produz em seu trabalho, reproduz a sociedade
dos outros, mas não lhe é retribuído para viver plenamente sua dignidade. Foi o negro
quem fez a riqueza agrícola dos Estados Unidos e que submetido aos imperialismos
possibilitou a opulência escandalosa de tais impérios. Não há como tratar de nenhuma
particularidade negra fora desta particularidade histórica.
Sendo a história e a identidade do homem intrinsecamente vinculadas, a identidade
negra constrói-se historicamente e historicamente deve ser compreendida. Contudo os
negros devem tornar-se sujeitos históricos que mudem o curso da história vivida, em
que foram reduzidos a mero objeto em processos de exploração e opressão que
marcaram sua particularidade.
O reconhecimento da identidade negra passa necessariamente pela reapropriação prática
de sua essência de homem e, naturalmente, pela destruição do sistema que o tem negado
enquanto homem. A tomada de consciência do negro deve significar uma mudança do
curso das coisas, uma nova interpretação da cultura, uma orientação nova da existência:
uma revolta consciente.
Não mais se trata de reconhecer ao negro uma existência teórica, mas de o reencontrar
na afirmação contra sua dupla negação: a escravidão e a colonização. Adotevi não
pretende, portanto, que esta afirmação se realize ao nível teórico de uma ciência
antropológica, mas sim de maneira prática na história real dos povos negros. A África
dá ao negro a consciência do que ele é: um Negro. O Negro, em troca, deve lutar para,
tomar posse de si mesmo na intimidade colectiva de um sofrimento racial
imemorialmente negado.

Frantz Fanon e a Consciência do Colonizado


Nasceu na ilha de Martinica, território francês situado na América Central. Torna-se
argelino engajando-se com os argelinos na luta pela libertação do país que sofria o jugo
colonial francês desde 1830. Várias vezes participou de congressos pan-africanos como
membro da delegação da Argélia, tornando-se um importante porta-voz do país. Fanon
escreve: "é o colonizador quem tem feito e continua a fazer o colonizado. O colonizador
tira sua verdade, isto é, seus bens, do sistema colonial ".
Este antagonismo é acentuado pelo racismo contra o colonizado, tido como preguiçoso,
impulsivo e selvagem. O colonizado intruje-se a dominação vivendo um complexo em
que passa a negar-se como negro a fim de se pretender um negro-branco. Quanto mais o

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colonizado se amoldar aos valores culturais da metrópole, tanto mais se afastará da sua
própria cultura. Ele será tanto mais branco quanto mais tiver rejeitado sua negrura.
Existe um sentimento de inferioridade dos negros sobretudo os evoluídos, e que, sem
cessar, eles se esforçam por dominar a civilização ocidental. A maneira empregada para
tanto é frequentemente ingênua:
Vestir os trajes europeus ou as roupas da última moda, adotar as coisas que os europeus
fazem uso, suas formas exteriores de civilidade, florir a linguagem com expressões
europeias, usar frases pomposas em línguas europeias, falando ou escrevendo, tudo isso
é feito para tentar atingir um sentimento de igualdade com o Europeu e seu modo de
existência. Oprimido pelas instituições sociais e cindido de seu passado histórico, ao
colonizado que vai se conscientizando somente resta a alternativa da revolta aberta,
retomando seus valores tradicionais que, em razão do colonialismo, haviam sido
despojados de suas funções vitais.
É preciso que um programa e uma nova concepção social e políticas adaptadas à
realidade concreta sejam apropriadas pelo povo num processo de conscientização: Um
programa é necessário a um governo que pretende verdadeiramente libertar
politicamente e socialmente o povo. Programa econômico, mas também doutrina sobre
a repartição das riquezas e sobre as relações sociais.
O Governo nacional, se ele quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo,
para os desfavorecidos e pelos desamparados. Nenhum líder, qualquer que seja seu
valor, pode substituir-se à vontade popular e o governo popular deve, antes de se
preocupar com o prestígio internacional, restituir dignidade a cada cidadão, encher os
olhos de coisas humanas, desenvolver um panorama humano porque habitado por
homens conscientes e soberanos.

Ébénézer Njoh-Mouelle: a Filosofia como Factor de Libertação


Nascido em 1938 em Wouri-Bossua na República dos Camarões, Njoh-Mouelle termina
seu bacharelado, em 1959, fazendo estudos posteriores na França, versando seu
doutoramento sobre Bergson.
A filosofia africana teria assim uma difícil tarefa de contribuir para que a juventude
pudesse compreender o mundo de onde ela [a juventude] surge e no qual ela vive, a fim
de que ela própria se torne capaz de forjar o mundo por vir, um mundo melhor onde ela
mesma possa desabrochar em total liberdade. O contexto sócio histórico dos países
africanos exige, portanto, uma filosofia peculiar que deve ser um elemento activo para o

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desenvolvimento integral que necessitam os povos africanos, e não um pensamento de


museu, apenas conservador.
A interrogação filosófica angustiada é um interrogação que deve visar a abertura de
novos caminhos. A análise filosófica de Njoh-Mouelle sobre o desenvolvimento
africano, parte de uma reflexão sobre a dura realidade da pobreza ignorada e da
miséria dos homens, desde as quais formula sua posição sobre o tipo de homem a se
realizar no movimento de mudança. O valor de referência é o plenamente humano: o
homem enquanto um ser a libertar-se de todas as formas de servidão que travam seu
florescimento total. É a partir deste critério que se pode avaliar os valores tradicionais
em seus aspectos positivos ou negativos para o desenvolvimento, bem como delinear o
novo tipo de homem que terá no desenvolvimento econômico e social sua mediação de
realização.
O problema da miséria ou da felicidade, ele mesmo, somente se coloca depois de
satisfeita a necessidade vital de comer. A filosofia torna-se, assim, um factor de
libertação. A filosofia aparece então como um factor de libertação e desalienação.
Intenção criativa, ela se duplica também em um querer-fazer cuja inserção no mundo
supõe o conhecimento do mundo em questão, de onde o papel de interpretação do
mundo sobre o qual nos apoiamos. A liberdade não é um artigo de luxo, uma espécie de
coroamento pela acção do homem.
Em síntese, não há liberdade que se possa alcançar definitivamente. A verdadeira
liberdade se experimenta e se experimenta na acção libertadora concreta. Não
rejeitamos que a liberdade implique o conhecimento de si e da ordem do mundo; o que
nós rejeitamos é a redução da liberdade a esse conhecimento.
Uma filosofia capaz de libertar o africano é aquela autêntica e lúcida o suficiente para
afirmar que nenhum ser humano pode ser humilhado ou usado, transformado em objeto
útil, reduzido a uma coisa que se descarta quando não tem mais serventia; um filósofo
(individuo que raciocina) que a essa conclusão chega, não pode negar sua própria
verdade23.

23
Referências utilizadas para o módulo V:
Mance, E. A. (2012). As Filosofias Africanas e a Temática de Libertação. (Em
http://www.unicruzeiro.org.br/1315/148943.html)
Elungu, P. E. A. (2014). O despertar filosófico em África. Lisboa: Edições Pedago.

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