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I000214
9 786558 210580
Filosofia da Educação
Sandro Teixeira
Sandro Teixeira
Filosofia da Educação
Sandro Teixeira
IESDE BRASIL
2021
© 2021 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Flaticon
Teixeira, Sandro
Filosofia da educação / Sandro Teixeira. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE,
2021.
154 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-058-0
3 Educação e democracia 62
3.1 Uma educação liberal renovada 63
3.2 Jürgen Habermas: esfera pública expandida e educação 77
3.3 Limitações do modelo habermasiano 85
4 Educação e descentramento 90
4.1 Descentramento, reflexividade e educação 91
4.2 Limitações da reflexividade sob a análise da pedagogia
histórico-crítica 106
4.3 Martha Nussbaum e as humanidades em risco de extinção 115
Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• comprender que a definição do que é filosofia depende da
definição de cada filósofo e seu tempo;
• acompanhar as definições de filosofia de alguns filósofos de
épocas históricas distintas: Platão, Kant, Nietzsche, positivis-
tas lógicos;
• analisar as relações entre filosofia e filosofia da educação.
10 Filosofia da Educação
filósofos procuraram defini-la. Vamos, por enquanto, optar por essa
última alternativa.
Sting/Wikimedia Commons
O que é filosofia?
12 Filosofia da Educação
oral, naquele momento, era de suma importância; os oradores conse-
guiam se destacar socialmente e influenciar as decisões da pólis. Sa-
ber expor ideias, argumentar e influenciar tornaram-se as habilidades
mais valorizadas.
14 Filosofia da Educação
homens mais propensos à ação justa. O pensamento filosófico preci-
saria estar presente sobretudo naqueles que governam a cidade.
16 Filosofia da Educação
Com tudo isso, é fundamental que percebamos o centro da argu-
mentação platônica: o filósofo está apontando para a necessidade de
apreender os limites da abstração e da objetividade, que, se conheci-
dos, possibilitariam uma ação muito mais efetiva sobre a nossa realida-
de. Um conceito conhecido em sua forma mais geral nos possibilitaria
aplicá-lo a qualquer caso particular de nossa realidade contingente. É
óbvio que, para conceitos que geram tantas opiniões e inúmeras inter-
pretações, como é o caso de justiça, é muito mais complexo imaginar-
mos a possibilidade de encontrarmos uma ideia tão ampla capaz de
dar conta de todos os casos particulares.
18 Filosofia da Educação
muito mais críticas dos tempos de Sócrates e Platão), o filósofo propõe Saiba mais
uma realidade fora ou para além do tempo, que é o mundo inteligível. Não vamos nos aprofun-
Ser virtuoso não mais significa combater inimigos sem medo da mor- dar neste aspecto, mas re-
comendamos fortemente
te, como na primeira cultura grega; é necessário agora, no tempo da àqueles que se interessam
democracia ateniense, renunciar cada vez mais ao atual mundo deca- pelo tema a leitura das tra-
gédias gregas, compostas
dente, perecível e pouco confiável, parece nos dizer o filósofo. O auto- para serem encenadas.
controle, a renúncia, a ascese e a razão podem nos fazer reencontrar a Ésquilo, Sófocles e Eurí-
pedes, que viveram em
virtude dos nossos antepassados. A boa vida, que é a vida com justiça, uma época histórica muito
só pode ser alcançada por meio do exercício contínuo de sacrifício e próxima à de Platão, são
os três maiores escritores
autocontrole. gregos de tragédias. Em
praticamente todas elas,
Há muitos outros aspectos da filosofia platônica que são fundamen- os heróis gregos de um
tais para a história do pensamento mundial e da cultura, mas o que foi passado muito distante
são colocados diante
dito até aqui é suficiente para nossos objetivos. A filosofia platônica, é de situações dramáticas
importante observar, é a filosofia socrática adicionada de preocupa- muito humanas. O aspecto
antes mítico desses heróis
ções acerca da origem do conhecimento. Assim, uma possível resposta fica em segundo plano
de Platão à nossa pergunta inicial, “o que é filosofia?”, poderia ser: é e, diante de situações
extremamente complexas,
pensar sobre o processo da origem do conhecimento, como ela funda- agora nas peças dos três
menta a realidade em duas partes, a sensível e a intelectiva, e, principal- dramaturgos citados pas-
sam a mostrar ao público
mente, que efeitos morais ela pode ter sobre os homens em sociedade, suas ações e decisões de
como esse mundo intelectivo se coloca como uma dimensão para além uma forma muito humana,
recheadas de boas e más
do mundo sensível, físico – daí o termo metafísica (do grego metaphysis): escolhas, bons e péssimos
além da física ou além da natureza. comportamentos.
20 Filosofia da Educação
posição contra a realidade mais próxima, que pesa como um fardo so- Livro
bre o pensamento: corpo, carne, sangue, paixão, volúpia, ódio” (GIACOIA O livro Condição
pós-moderna: uma
JÚNIOR, 2007, p. 19). É por isso então que Nietzsche, desde os primei- pesquisa sobre as origens
ros escritos, planejava o chamado platonismo revertido como seu proje- da mudança cultural
apresenta as mudanças
to principal, que, em outras palavras, seria construir uma filosofia que sociais, culturais, artísti-
fosse o exato oposto da filosofia platônica. cas, filosóficas, científicas
e estéticas que surgiram
Para Nietzsche, a influência da metafísica platônica, ao longo dos após a Segunda Guerra
Mundial, as quais foram
séculos, havia sido devastadora, principalmente quando se uniu ao
responsáveis por grandes
cristianismo, produzindo uma metafísica ainda mais poderosa, pois transformações nas
relações travadas entre
formou a ideia de que o mundo sensível e tudo que pertence a ele pre-
as crescentes práticas
cisam ser continuamente desprezados. A filosofia nietzschiana preten- capitalistas, a arte e a
cultura.
de revalorizar todos os aspectos condenados pela metafísica
HARVEY, D. São Paulo: Edições
cristã-platônica. Para Nietzsche, nenhum ser humano devia moldar seu
Loyola, 2005.
caráter com base em promessas de realizações futuras em alguma rea-
lidade que não seja a que tem diante de si. Assim, contra o essencialis-
mo da filosofia platônica, Nietzsche procura apontar a riqueza e
a necessidade de valorizar o mundo que se apresenta para nós Figura 4
Sculpture agenouillé (escultura ajoelhada),
em sua aparência atual.
de Charles Henry Niehaus
A filosofia de Nietzsche não obteve grande êxito enquanto
ele esteve vivo, mas não podemos deixar de observar que hoje ela é
extremamente influente. Nas discussões sobre a pós-modernidade, é
difícil não encontrar referências ao seu pensamento.
Kil
Mas o que nos importa verdadeiramente é perceber como o seu
om
691
entendimento acerca da filosofia é profundamente diferente da visão
/Wik
imed
de Platão. Se, para Platão, a filosofia é sobretudo metafísica, como Niet-
ia
Commons
zsche responderia a essa questão?
Por essa razão é que não podemos buscar uma definição profun- O martelo, para Nietzsche, era um elemento
da do que seja a filosofia com base na definição de dicionários, pois de desmonte, demolição. Filosofar com
o martelo é buscar a destruição de
vemos que a resposta a essa pergunta depende mesmo é do que outras filosofias, ou das ilusões que elas
propunham.
22 Filosofia da Educação
Conforme mencionado, eis uma boa resposta, mas agora sabemos
também que as respostas tendem a se complexificar se resolvermos
mergulhar nos conhecimentos de cada um dos grandes filósofos, certo?
Em um certo sentido, é importante que seja assim, uma vez que isso
facilita a dinâmica social do nosso cotidiano. Já imaginou se passássemos
a problematizar cada crença? Certamente nossa dinâmica diária estaria
Como já foi dito, ele age dessa maneira porque está treinado para
olhar aspectos do real que geralmente ignoramos; mas nós dificilmente
adotamos a mesma postura do filósofo. Claro, podemos alegar que não
temos treinamento para isso. No entanto, esse não é um argumento tão
convincente. Vamos tentar aqui enriquecer esse argumento para melho-
rar a defesa de quem acha que não pode tomar uma atitude parecida com
a do filósofo. Para isso, será de grande utilidade a excelente explicação de
dois sociólogos muito influenciados por uma escola filosófica importante
do século XX chamada Fenomenologia, cujos maiores representantes são
os filósofos Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1986).
24 Filosofia da Educação
Eu apreendo a realidade da vida cotidiana como uma realidade
ordenada. Seus fenômenos estão pré-arranjados em padrões
que parecem ser independentes da apreensão que tenho deles
e que se impõem sobre ela. A realidade da vida cotidiana pare-
ce já objetificada, isto é, constituída por uma ordem de objetos
que têm sido designados enquanto objetos antes do meu apare-
cimento na cena.
Mas temos que tomar cuidado para não confundirmos o que foi
dito até aqui com uma visão determinista, ou seja, não devemos ima-
Glossário
ginar que estamos completamente determinados a sermos meros re-
idiossincrasia: constitui-
ção individual, em virtude produtores de tudo o que nos ensinam. Nós efetivamente tendemos
da qual cada indivíduo a essa repetição, mas existem idiossincrasias em nós como sujeitos,
reage diferentemente à
ação de agentes externos. que não vão se conformar com o que aprendemos e apreendemos do
mundo social.
26 Filosofia da Educação
consegue passar da atitude natural, que é a simples aceitação e a re-
produção dos conteúdos sociais, inclusive os discriminatórios, sem
questionamento algum, para a atitude teórica, que é conseguir não
somente perceber alguns dos problemas mais graves em nossa reali-
dade, mas também questioná-los com base no conhecimento bem fun-
damentado. De modo geral, as pessoas mais acomodadas em relação
ao mundo que herdam dificilmente buscam sair da atitude natural e
dar um salto para a teórica.
Podemos dizer que o sistema escolar funciona sobre uma base teó-
rica que orienta os professores em todas as disciplinas. Além da ma-
téria específica de cada um deles, há sempre um ou alguns métodos
adotados pelos professores que são pensados para ajudar a fluência
do aprendizado: a comunicação entre professores e alunos, a com-
preensão mais fácil dos conteúdos, as questões disciplinares etc.
28 Filosofia da Educação
possíveis. Podemos perceber, então, o papel central que a pedagogia
possui nesse cenário.
30 Filosofia da Educação
ouvem suas ofertas. Em um país, como o nosso, que está na semiperi-
feria do capitalismo, parece haver só vantagens quando a proposta é
ensinar ao jovem alguma habilidade técnica, seja ela aprender a operar
máquinas modernas, consertar aparelhos elétricos ou eletrônicos etc.
32 Filosofia da Educação
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Se chegamos até aqui com uma compreensão melhor do que é filoso-
fia e do que é filosofia da educação, boa parte de nossos objetivos foram
atingidos. Precisamos entender que a filosofia é essencialmente uma for-
ma de conhecimento muito preocupada com a fundamentação. Ela não
pode ter medo de aprofundar-se na análise dos conceitos que embasam
a educação. Instrumentalizada como filosofia da educação, sua tarefa é
justamente mergulhar no estudo das teorias e dos conceitos que formam
a base das pedagogias adotadas e buscar extrair dali razões para dizer
que aquela pedagogia é adequada ou para dizer que aquela pedagogia
não serve aos propósitos da educação.
Nesse sentido, é preciso compreender que a filosofia da educação não
é necessariamente um trabalho que visa à legitimação fácil de qualquer
pedagogia. Ela pode muito bem encontrar problemas graves na pedago-
gia adotada e não a recomendar como adequada para o processo de en-
sino. Sendo assim, ainda que preocupada em fundamentar seu objeto
de análise, ela pode também rechaçá-lo. A pedagogia sabe disso; a boa
pedagogia respeita a natureza filosófica, aliás, o que ela mais deve esperar
é que a filosofia da educação se empenhe no rigor de suas análises.
Com Sócrates, Platão e Nietzsche, observamos que os filósofos dificil-
mente repetem uns aos outros; quase sempre estão nos desvelando as-
pectos inéditos da realidade. Depois, vimos o quanto a natureza filosófica é
importante para a filosofia da educação: espera-se dela que, se for necessá-
rio, se contraponha a crenças e costumes enraizados e valorizados pela co-
munidade. O filósofo precisa ter reconhecido o seu direito de se contrapor.
Ele, inclusive, pode recomendar aspectos irrealizáveis em uma pedagogia;
faz parte da atividade filosófica trabalhar com horizontes utópicos. Por fim,
o que se deve esperar da análise filosófica no campo da educação é que ela
contribua na fundamentação dos saberes que por ali circulam.
ATIVIDADES
1. Como podemos responder à seguinte pergunta: o que é filosofia?
Vídeo
2. O que é filosofia da educação? Qual é a sua importância nas escolas?
REFERÊNCIAS
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knowledge. London: Penguin Books, 1991.
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mar./ago. 2018.
GIACOIA JÚNIOR, O. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos. In: IMAGUIRE G.;
ALMEIDA C. L. S.; OLIVEIRA M. A. (orgs.). Metafísica Contemporânea. Rio de Janeiro: Vozes,
2007.
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New York: Basic Books, 2013.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2013.
NODARI, P. C. A doutrina das ideias em Platão. Revista Síntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 101,
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VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva,
2008.
VICENTE, J. J. N. B. O Papel da Educação na República de Platão. Revista Kínesis, v. VI, n. 11,
p. 215-224, jul. 2014.
STRAUSS, L. Platão. In: STRAUSS, L.; CROPSEY, J. (orgs.). História da Filosofia Política. Rio de
Janeiro: Forense, 2013.
34 Filosofia da Educação
2
Educação e dispositivos
de poder
Neste capítulo, propomos abordar três momentos históricos
distintos, mas relacionados: o início da Idade Moderna, o momen-
to em que ela já está bem consolidada e o momento atual, que al-
guns autores preferem chamar de pós-modernidade. Veremos que
cada momento desses exige um tipo de sujeito. Em seguida, vamos
acompanhar a luta humana pela emancipação por meio da edu-
cação e observar que o trabalho das instituições modernas quase
sempre ocorreu para impedir essa emancipação. Para cada um des-
ses momentos, escolhemos o trabalho de um filósofo (Jean-Jacques
Rousseau, Michel Foucault e Maria Edelweiss Bujes) para entender
melhor como a educação resolve ou procura resolver as tensões en-
tre sujeitos e instituições.
Objetivos de aprendizagem
36 Filosofia da Educação
Figura 2
Preceptor ensinando crianças.
Ariès (2017) lembra que a criança, até o fim da Idade Média, ti-
nha uma carga afetiva inversamente proporcional ao seu tamanho.
Nesse período, ela recebia o que o grande historiador da infância
chamou de paparicação. Depois era muito comum que a criança pas-
sasse a viver na casa de outra família, com o intuito de aprender um
ofício. Isso significa que não havia um espaço específico reservado à
infância; a criança estava desde muito cedo inserida no espaço dos
adultos e aprendia quase todos os aspectos da vida por meio do
contato direto com eles.
38 Filosofia da Educação
Obviamente nossa sensibilidade contemporânea se choca ao sa-
ber disso, até porque hoje os espaços sociais voltados à infância são
inúmeros e nós tendemos a respeitá-los. Atualmente existe, inclu-
sive, um problema oposto: há especialistas que se preocupam com
o excesso de oferta de produtos, de padrões de alimentação e de
consumo voltados à infância.
Figura 3
Espaços voltados para a infância em séculos anteriores
Shakko/Wikimedia Commons
A pintura retrata que não havia
um espaço específico reservado
à infância; a criança estava
desde muito cedo inserida no
espaço dos adultos.
ALMA-TADEMA, L. Educação dos filhos de Clovis. 1861. Óleo sobre tela, color.: 127 x 176.8 cm. Coleção particular.
A partir deste momento, (ROUSSEAU, 1999a), era provavelmente essa Esparta mítica, austera e
quando mencionarmos
Discurso estaremos nos igualitária que tinha em mente.
referindo à obra Discurso
sobre a origem e os Rousseau se volta para o passado, porque em seu presente não
fundamentos da desigual- consegue enxergar uma sociedade justa. O que ele mais destaca em
dade entre os homens de
Rousseau. Esparta, por exemplo, é a capacidade de autogoverno e a boa cidadania
de seus habitantes: moderados, corajosos e dispostos a se autossacri-
ficar por sua cidade.
40 Filosofia da Educação
que existem leis regendo os comportamentos e um poder centraliza-
dor que regula tais leis.
42 Filosofia da Educação
Já em seu tempo, Rousseau foi muito criticado pela força com que
idealizava a natureza, como se só coisas boas as pessoas pudessem
extrair dela. É verdade que do conhecimento da natureza está toda
a origem da ciência e que a exploração de seus recursos garantiu
a sobrevivência do ser humano na terra. Até esse ponto é possível
concordar plenamente com Rousseau, mas não se pode esquecer do
alto nível de exigência que as intempéries naturais impuseram aos
seres humanos desde os tempos mais remotos.
Figura 4
Ciências, artes e entretenimento
Serhii Bobyk/Shutterstock
Para Rousseau, as ciências e as artes poderiam ser
entendidas como uma forma de entretenimento. Com o
passar do tempo, essa ideia ganhou novos significados.
44 Filosofia da Educação
os perigos e a morte, homens que a necessidade abate e que a
menor pena desanima? (ROUSSEAU, 1999b, p. 208)
46 Filosofia da Educação
O anti-intelectualismo da doutrina de Rousseau em Emílio ren-
deu-lhe inúmeras críticas. E não dá para dizer que o filósofo já não
soubesse que esse seria um dos resultados inevitáveis. Afinal, ele
escreve no interior de uma sociedade letrada; ele mesmo é um dos
expoentes do Iluminismo, um movimento de valorização do conhe-
Filme
cimento formal e marco inicial das sociedades tecnológicas e cientí-
O filme Na natureza sel-
ficas dos séculos seguintes. vagem narra a história de
um jovem que parte em
Portanto, parece contraditório um filósofo iluminista resgatar os uma viagem em busca de
aspectos até aqui abordados. Mas não! Rousseau talvez, premonito- maior proximidade com
a natureza. Já no início do
riamente, tenha entendido que a ciência e a técnica nos afastariam filme, o jovem doa seu pa-
da natureza e que esse afastamento nos seria prejudicial. trimônio antes de viajar. A
viagem é transformadora
Hoje nosso embate com os problemas ecológicos é uma realida- e, ao longo do caminho,
esse personagem encon-
de. Muitos movimentos se inspiraram nesse aspecto do pensamento tra pessoas, das quais fica
desse filósofo. Após Rousseau, uma série de livros tematizam o re- amigo; essas amizades
parecem enriquecer suas
torno do ser humano à natureza, alguns como crítica às sociedades experiências humanas.
tecnológicas e outros como símbolo de resgate de valores que se Um belo filme, inspirado
em uma história real, mas
perderam com a modernização. com muita inspiração nos
ideais rousseaunianos de
Encerramos nossa reflexão acerca desse importante filósofo simplicidade, desapego e
com as palavras de Touraine (2002, p. 28): “mas, se Rousseau é um valorização das relações
humanas em detrimento
discípulo dos filósofos e em particular de Diderot […], seu pensa- de riquezas materiais.
mento é também a primeira grande crítica interna da modernidade Direção: Sean Penn. Portugal:
que conclama à harmonia da natureza contra a confusão e desi- Paramount Vintage, 2007.
gualdade sociais”.
48 Filosofia da Educação
do condenado ficarão sinais que não devem se apagar; (ii) visa ser uma
peça em que todos os que presenciaram a punição pudessem, de algu-
ma forma, sentir um pouco a punição como o seu próprio triunfo sobre
o punido, como se cada pessoa sentisse que teve parte na punição.
A “matematização” dos
Rid
o/
conhecimento.
50 Filosofia da Educação
filósofo, as sociedades modernas, ao evitarem a exposição da punição,
desenvolvem mecanismos silenciosos e imperceptíveis de dotar todas
as suas instituições com alto grau de disciplina e vigilância. Junto disso,
esses mecanismos se desinstitucionalizam, ou seja, não estão mais tão
ligados direta e unicamente ao poder do Estado.
52 Filosofia da Educação
É como se ele estivesse dizendo que as sociedades modernas
souberam muito bem identificar os mecanismos de captação da
energia produtiva em torno da utilidade e, com base nisso, com a
ajuda do desenvolvimento tecnológico, produziram corpos dóceis,
que aceitam a sujeição sem nem a perceberem.
54 Filosofia da Educação
contemporâneas pode produzir. Ou seja, se os discursos conseguem
circular pelo espaço escolar, de alguma forma, independente dos
conteúdos que carregam, eles automaticamente nos parecem ver-
dadeiros, pois essa instituição respeitável com relação ao conheci-
mento abriu-lhes passagem. E isso é perigoso. Vejamos o que Bujes
(2002, p. 21) pensa acerca da preocupação com a linguagem:
a perspectiva sobre a qual meus estudos se apoiam afirma que
os objetos do mundo social são construídos discursivamente, não
apenas pela linguagem falada ou escrita, mas também por meio
da utilização de sistemas de representação que nos permitem
utilizar signos e símbolos para representar o que existe à nossa
volta, seja um conceito, uma ideia ou imagem. […] Os significa-
dos não estão dados para sempre, eles são sempre transitórios
porque são constituídos historicamente […] a essência das coisas
nada mais é do que uma invenção humana, instituída nas trocas e
negociações de sentido que estabelecemos intersubjetivamente.
Figura 6
Circulação dos discursos nas sociedades Para Bujes, discurso não é
apenas o ato de enunciar;
são discursos diferentes:
documentos, livros, imagens,
palestras etc.
Andrii Yalanskyi/
phipatbig/IhorZigor/
Shutterstock
56 Filosofia da Educação
das populações e a inexorável cumplicidade que se estabelece
entre pedagogia e expertise, por exemplo.
58 Filosofia da Educação
ordem econômica. Desse modo, o grande questionamento que fica é:
onde está o impulso dessa suposta nova pedagogia para direcionar o
aluno no caminho da autonomia?
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Seguindo o tema da educação e sua relação com a infância, procura-
mos dar coerência ao fio histórico que acompanha o capítulo. Vimos com
Rousseau o início da Idade Moderna e sua crítica ao tipo de sociedade
que ele via nascer. A proposta pedagógica do filósofo visa a um modelo
de educação que possa se contrapor aos apelos do luxo, que naquele mo-
mento apontavam para o aumento da desigualdade social caso o apego
ao referido apelo se confirmasse.
Foucault nos ajuda a pensar a educação em um outro momento da
história da modernidade, em que o desenvolvimento técnico colabora
para a massificação dos dispositivos de poder e controle das sociedades
de um capitalismo avançado.
Com Maria Edelweiss Bujes, um terceiro momento dessa história foi te-
matizado, o momento atual, em que os dispositivos continuam atuantes,
mas exigem um novo sujeito, que supostamente é livre, embora descu-
bramos que essa imagem de liberdade é enganosa; as instituições conti-
nuam contribuindo para o assujeitamento pacífico e silencioso dos seres
humanos, os conformando não às suas próprias necessidades, mas às
necessidades dos interesses econômicos e políticos vigentes.
REFERÊNCIAS
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ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2017.
BUJES, M. I. E. A invenção do eu infantil: dispositivos pedagógicos em ação. Revista
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Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/13079. Acesso em:
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BUJES, M. I. E.; ROSA, J. de M. Discursos curriculares da formação docente, projetos de
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DICIO. Dicionário On-line de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/. Acesso
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FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2004.
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LOCKE, J. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 2002.
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Acesso em: 16 jul. 2021.
60 Filosofia da Educação
3
Educação e democracia
Neste capítulo, vamos abordar alguns momentos do surgimento e da
consolidação do que atualmente entendemos por democracia liberal. Junto
a isso, mas não menos importante, interessa-nos compreender os aspectos
que incidem sobre a educação nesse cenário. Dois pensadores importantes
que nos servirão de guias para esse trajeto são: John Dewey, o qual exerceu
grande influência no campo da educação e da política ao longo de todo o sé-
culo XX, situando-se como um pensador liberal; e Jürgen Habermas, filósofo
e autor de vasta obra, que procurou oferecer respostas a problemas graves
presentes nas democracias liberais. Algumas das respostas de Habermas
nos interessam, pois refletem diretamente no campo da educação.
Por fim, procuramos apontar a importância e as limitações das propostas
de Habermas, com base em alguns dos críticos do pensamento desse eminen-
te filósofo. Vivemos um tempo em que disputas ideológicas entre o que classi-
ficamos como esquerda e direita se tornaram evidentes, por isso vale lembrar
que o contexto histórico que permeia esses dois filósofos nos permitirá com-
preender melhor a gênese dessas disputas, uma vez que o pensamento tanto
de Dewey quanto de Habermas se espraia para além da educação e reflete,
exemplarmente, os embates que ganham contornos definidos no século XVIII.
Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• aprender os aspectos do pensamento de Dewey que eviden-
ciem seu posicionamento político e como esse, divergente
do marxismo e do liberalismo mais tradicional, impactou
suas reflexões sobre a democracia e sobre o quanto a edu-
cação é fundamental para o projeto de uma democracia libe-
ral renovada;
• compreender os conceitos de esfera pública, mundo da vida
e sistema desenvolvidos por Habermas;
• conhecer algumas das críticas endereçadas ao modelo teóri-
co de Habermas.
Educação e democracia 61
3.1 Uma educação liberal renovada
Vídeo As redes sociais são um termômetro interessante no que diz res-
peito a posicionamentos políticos. Se você tem ou já teve um perfil
em alguma delas, dificilmente passou incólume em relação ao teor
apaixonado com que os usuários defendem suas posições políticas,
defesas essas, muitas vezes, sem conhecimento algum, apenas por pai-
Glossário xão e exaltação. De qualquer forma, não é nossa proposta defender
incólume: que permane- qualquer posição, mas compreender melhor a gênese dessa disputa.
ce igual, sem alteração;
bem conservado, inaltera-
É preciso fazer isso por dois motivos: (i) porque a ideia de educação
do (HOUASSIS, 2009). vigente, os projetos pedagógicos que a embasam e aqueles projetos
que a criticam, todos estão em constante diálogo com o cenário e as
expectativas geradas pelas políticas adotadas pelos Estados modernos;
(ii) porque os filósofos que vamos estudar neste capítulo também são
políticos; assim, a política está presente mesmo quando o foco de seus
argumentos não é, necessariamente, político.
62 Filosofia da Educação
Contemporaneamente, as ciências sociais e, fundamentalmente, nesse
caso, a ciência política estão cada vez mais amparadas por números e esta-
tísticas, o que confere uma exatidão maior às suas análises. No entanto, há
certo grau imponderável nas relações sociais e na história dos agrupamen-
tos humanos que impede os números de estabelecerem cenários futuros
com um grau de certeza. Dificilmente, cientistas sociais e historiadores de-
sejarão comprometer-se com a ideia de leis naturais que rejam os eventos
Tah Design/Shutterstock
Versão sofisticada
Versão forte Aqueles que entendiam
como melhor solução
Aqueles que propunham
limitar os “danos” e retardar,
a reversão completa das
tanto quanto possível,
ideias e ações da revolução.
as mudanças, inspiradas
na revolução, que ainda
estariam por vir.
Educação e democracia 63
Organizados dessa forma, os dois grupos uniam-se na ideia de que
era necessário retomar o poder político – sendo isso o que ocorre em
1815, quando os conservadores retomam o poder em um evento que
eles cunharam como Restauração. Entretanto, foi um poder que não du-
rou muito, pois logo os ideais revolucionários estariam de volta ao poder.
64 Filosofia da Educação
De qualquer forma, desde 1848, com os socialistas se opondo niti-
damente aos liberais, o quadro de posições políticas se completou. À
direita estavam os conservadores monarquistas; ao centro, os liberais,
que enquanto só tinham como oposição os conservadores estavam à
esquerda, entretanto quando os socialistas se organizaram, passaram
a ocupar o centro; e, por fim, à esquerda, os socialistas. O critério aqui
é a postura diante dos ideais revolucionários e da velocidade das mu-
danças. A seguir, o Quadro 1 nos ajuda no mapeamento de localização
dessas posições ideológicas.
Quadro 1
Posições ideológicas
Revolução Francesa
Socialistas (esquerda) Liberais (centro) Conservadores (direita)
Revolucionários Reformistas Reacionários
Acreditavam nos ideais da Revolução Acreditavam nos ideais da Revo- Não acreditavam nos ideais da Revo-
Francesa. lução Francesa. lução Francesa; opunham-se a ela.
Desejavam mudanças profundas e Desejavam mudanças, mas com
Desejavam o retorno da monarquia.
velozes. moderação.
Pelo que conhecemos da história, não é difícil indicar que, das três
posições, foi o liberalismo que se espalhou culturalmente por quase
todas as instituições modernas. Uma de suas construções ideológicas é
a nossa democracia moderna. Geralmente nos referimos à democracia
sem atentarmos para a necessidade de qualquer outro qualificativo.
No entanto, vamos nos referir a ela como democracia liberal, afinal a
maior parte dos regimes democráticos, os quais se consolidaram do
século XIX até os dias atuais, são tidos como democracia liberal, cuja es-
trutura está embasada nos ideais liberais, tais como a defesa do respei-
to à pessoa humana em sua individualidade e da propriedade privada.
Educação e democracia 65
nos dias atuais o retorno às monarquias absolutistas. Posturas como
essa – assim como o comunismo, à esquerda – geralmente estão fora
do jogo democrático por se tratarem de radicalismos perigosos.
Figura 1
Ideário de luta pela liberdade
DELACROIX, E. A Liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela, color.: 260 x 325 cm. Museu do Louvre, Paris.
66 Filosofia da Educação
deve buscar a neutralidade, com a regulação da economia sendo feita
pelos próprios agentes econômicos. Isso precisa ser dito porque a ideia
de neutralidade do Estado é um dos maiores problemas nas demo-
cracias liberais; geralmente ela está garantida formalmente (nos dis-
cursos, nas leis, “na letra”, como dizemos), porém, materialmente, nas
ações econômicas, políticas e sociais, ela nem sempre se concretiza. E
isso impacta também as questões educacionais. Voltaremos ao tema
quando apresentarmos as críticas ao pensamento de Habermas.
Por meio disso, notamos que o cenário atual é muito complexo para ter-
mos a pretensão de defini-lo em poucas linhas. De qualquer forma, conse-
guimos apresentar as forças políticas que norteiam os embates ideológicos
desde a Revolução Francesa. Interessa-nos, principalmente, o liberalismo e
sua democracia, uma vez que são seus princípios que coordenam as socie-
dades em que nossos dois filósofos, Dewey e Habermas, produziram suas
ideias. Inicialmente, vamos nos preocupar com Dewey. Veremos que a nos-
sa prévia, delineando posições políticas, também nos ajudará aqui.
Educação e democracia 67
É então que, tocado por esse cenário, Dewey vai produzir muitos de
seus trabalhos, os quais, de alguma maneira, procuram dar respostas
a essas difíceis desigualdades. Não por acaso, o seu pensamento foi o
grande inspirador de um movimento pedagógico renovador e muito im-
portante para a educação brasileira da primeira metade do século XX,
conhecido como Escola Nova. Anísio Teixeira, líder desse movimento e
um dos maiores nomes de nossa educação, foi aluno de John Dewey.
Figura 3
Crianças trabalhando, fotografia de Lewis Hine (1909)
Everett Collection/Shutterstock
Crianças trabalhando em
moinho de algodão. O garoto
descalço teve que subir no
maquinário para alcançar
o local que precisava de
conserto.
Curiosidade Por isso, vale nos debruçarmos um pouco mais sobre o pensamen-
Lewis Hine viajou pelos to desse importante e engajado filósofo. É no seu posicionamento com
Estados Unidos entre
1908 e 1924 fotogra- relação às desigualdades que Dewey procurará opinar como um liberal
fando crianças de várias de tipo peculiar. Como vimos, o liberalismo foi a ideologia mais bem-su-
idades que exerciam
diversas funções, desde cedida em termos de influência por todas as instituições sociais e a que
catadoras de algodão a melhor representou o espírito burguês característico da modernidade.
operadoras de máquinas
nas indústrias. Lewis pro- Como uma ideologia representativa desse espírito, nunca foi incomum
duziu mais de 5 mil fotos. que nas disputas entre interesses de diferentes classes sociais o libera-
O trabalho foi encomen-
dado pelo National Labor lismo estivesse ao lado dos representantes da burguesia em detrimen-
Committee, organização to das classes que dependiam de salário para viver.
criada para combater o
trabalho infantil. Para Dewey, esse liberalismo não servia. O filósofo, embora relu-
tante, procurou alinhar-se ao liberalismo muito mais em função das
promessas de respeito e luta pela liberdade de cada indivíduo. Assim, é
possível ver em Dewey um liberal que não se furta a criticar duramente
68 Filosofia da Educação
o próprio liberalismo, principalmente porque vê nas desigualdades so-
ciais a presença concreta das classes que detêm o poder de exploração
da força de trabalho, por meio de toda a maquinaria tecnológica dis-
ponível. A passagem seguinte evidencia muito bem isso, ao dizer que a
produção tem sido:
cuidada de modo grosseiro e intenso. Acelera-se de modo frenéti-
co o fazer as coisas; e todos os dispositivos mecânicos são usados
para avolumar a massa sem sentido. Como resultado, a maioria
dos trabalhadores não encontra satisfação, nem renovação, nem
crescimento intelectual, nem realização no trabalho… A estupidez
de separar a produção do consumo, do enriquecimento presente
da vida, fica evidente nas crises econômicas, nos períodos de de-
semprego que se alternam com períodos de exercício, trabalho ou
“superprodução”. … O lazer não é o alimento da mente no traba-
lho, nem a recreação; é uma avidez febril por diversões, emoções,
exibições; caso contrário, não há lazer, exceto como um torpor
obtuso. É inevitável a fadiga que se deve, para alguns, à monoto-
nia, e, para outros, ao esforço excessivo para manter o ritmo. Na
sociedade, a separação da produção e do consumo, dos meios e
fins, é a raiz da mais profunda divisão de classes. Estão no controle
aqueles que fixam “metas” para a produção, constituem a classe
dominante aqueles que se encarregam de atividades produtivas
isoladas. Porém, se são oprimidos os últimos, não são verdadeira-
mente livres os primeiros. (DEWEY, 1944, p. 271-272)
Educação e democracia 69
social se dará por meio do enfrentamento entre a classe social explorada
pelo trabalho e aquela que se beneficia dessa exploração.
70 Filosofia da Educação
não pode estar desacoplada da ideia de busca pela construção de um
mundo mais justo. Aqui, a justiça não deve ser entendida apenas como
igualdade formal, mas em sua materialidade plena, a qual significa uma
melhor distribuição de riquezas.
Educação e democracia 71
inteligência. Isso serve para que Dewey possa criticar projetos pedagógi-
cos que, em síntese, culpabilizam apenas o indivíduo pelo seu fracasso.
72 Filosofia da Educação
destino certo, o indivíduo não se atenta ao sistema e suas contradições. A
contradição maior do liberalismo antigo é, justamente, declarar-se defen-
sor universal das liberdades individuais, além de respaldar e encobrir as
estruturas econômicas que produzem o aprisionamento das individualida-
des, privando-as, muitas vezes, dos aspectos materiais mais elementares.
Educação e democracia 73
momento da dúvida, pois é com base nela que o aluno vai utilizar vários
processos mentais, como o levantamento de hipóteses, a análise e a
comparação, elementos esses típicos de uma sociedade que escolheu
a ciência como base de desenvolvimento. Além disso, o aluno torna-se
corresponsável por sua própria formação, mais ciente dos processos
que o envolvem.
O processo de aprendizado dos O método de Dewey, somado a uma maior participação do aluno
alunos deve envolver a dúvida. na produção de seu próprio saber, pressupunha uma carga de expe-
Assim, o professor compreende
que esse momento é o que gera riências vivas que a escola não estava habituada a oferecer. Podemos
conhecimento. dizer que esse é o importante caráter empírico da filosofia deweyana.
Vejamos a crítica que o filósofo fazia à escola tradicional, acusando-a de
eliminar a maior riqueza do conhecimento: a experiência.
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74 Filosofia da Educação
Quando se diz que aprendemos com a experiência, e com os li-
vros e conselhos dos outros somente na medida em que estes
se relacionam com a experiência, não se trata de meras frases
feitas. Mas a escola alheou-se, isolou-se de tal forma das con-
dições e motivações correntes da vida que o lugar para onde
enviamos as crianças com o fito de lhes incutir a disciplina é o
lugar do mundo onde é mais difícil adquirir experiência – a mão
de toda a disciplina digna desse nome. Só as pessoas limitadas
por uma imagem limitada e rígida da disciplina escolar correm o
risco de menosprezar essa disciplina profunda e infinitamente
mais ampla que se adquire ao participar num trabalho construti-
vo. (DEWEY, 2002, p. 26, grifo do original)
O filósofo não se contenta em fazer essa crítica apenas de modo abs- Filme
trato; seus livros estão cheios de exemplos de como um conteúdo esco- No filme Nenhum a menos,
lar poderia ser imensamente enriquecido com mais empirismo, o que uma menina de 13 anos
de idade precisa substituir
poderia dotar cada aula de aspectos mais interessantes. Suas sugestões seu professor por alguns
procuram adotar exercícios com base nas atividades cotidianas e rotinei- dias. Antes de se afastar,
o docente pede para que
ras. Ele sugere, por exemplo, que uma aula de ensino básico de costura ela não deixe nenhum
possa ser o pretexto para algo que vá além do sentido pragmático dessa aluno abandonar a escola
durante sua ausência. Um
bela atividade, como uma aula com referências à história dessa prática dos alunos, no entanto,
e de inúmeros conhecimentos relacionados a ela. Ou seja, para Dewey deixa de acompanhar as
aulas. A garota, momen-
(2002, p. 28), taneamente professora,
descobre que ele deixou
estas atividades são pretextos para recapitular o desenvolvimen-
o vilarejo em busca de
to histórico do homem. Por exemplo, as crianças recebem em emprego na cidade. Ela,
primeiro lugar a matéria-prima – as fibras de linho, os frutos do então, vai atrás desse
algodoeiro, a lã tal como é extraída do corpo da ovelha (se pu- aluno.
dermos levá-las ao local onde as ovelhas são tosquiadas, tanto Há inúmeras discussões
importantes no filme.
melhor). Em seguida, é feito o estudo destes materiais, do ponto Vamos nos ater a uma
de vista da respectiva adaptação aos usos a que se destinam. Por delas: o cotidiano escolar
exemplo, a fibra de algodão é comparada com a fibra de lã. das crianças muda radi-
calmente quando a jovem
Nesse ponto, o filósofo põe-se no lugar do professor, ao adotar esse professora decide incre-
mentar as aulas por meio
método empírico, invertendo, por alguns momentos, o papel de educa- de atividades em uma
dor: a criança com suas descobertas também é capaz de ensinar. olaria. Os alunos, que
inicialmente se preocu-
Eu não sabia, até as crianças me terem dito, que o motivo para o pavam apenas em copiar
desenvolvimento tardio da indústria algodoeira, quando compa- e decorar conteúdos,
se tornam mais ativos e
rada com a manufatura de tecidos de lã, era o fato de a fibra do participantes. Uma boa
algodão ser tão difícil de separar manualmente das sementes. história para relacionar
Um grupo de crianças trabalhando durante trinta minutos a se- aos aspectos empíricos da
teoria de John Dewey.
parar as fibras de algodão da cápsula e das sementes, conseguiu
extrair menos de trinta gramas. Foi-lhes fácil calcular que uma Direção: Yimou Zhang. China: China
Film Group Corporation, 1998.
pessoa, usando as mãos, não conseguiria descaroçar mais do
Educação e democracia 75
que meio quilo por dia, e compreenderam assim por que motivo
os seus antepassados preferiam as roupas de lã às de algodão.
(DEWEY, 2002, p. 26-27)
76 Filosofia da Educação
3.2.1 A constituição da esfera pública
Jürgen Habermas é, atualmente, um dos filósofos vivos mais res-
peitado e estudado. Seu pensamento é influente nos estudos políticos,
nas ciências sociais, nos estudos culturais e linguísticos e na educa-
ção. Nascido em 1929, em Düsseldorf (Alemanha), tornou-se, nos anos
1950, assistente de Theodor Adorno, um dos mais importantes filóso-
fos da conhecida Escola de Frankfurt, instituição em torno da qual ou-
tros pensadores eminentes como Max Horkheimer e Herbert Marcuse
estavam ligados.
Figura 5
Theodor Adorno e Max Horkheimer
Educação e democracia 77
til, a burguesia iniciava o seu próprio processo de construção de espaços
representativos, que mais tarde se tornarão independentes do Estado.
Com a consolidação da produção capitalista, as atividades públicas rela-
tivas à burguesia, as quais até então se delimitavam à economia domés-
tica, tornam-se públicas, no sentido de serem executadas em ambientes
nos quais circulavam pessoas que iam além dos membros da família.
78 Filosofia da Educação
efervescência, o conhecimento e a articulação a respeito das ações do
Estado vão se tornando assunto comum.
esfera pública deveria mediar as funções políticas entre Estado • Todos os homens do pre-
sidente. Direção: Alan J.
e sociedade e a publicidade deveria ser o princípio a garantir o
Pakula. Estados Unidos:
acordo da política com a moral. Dentro de uma visão iluminista, Walter Coblenz, 1976.
Kant concebe o uso público da razão. Isto é, a discussão ocorre • O quarto poder. Direção:
no seio do povo, a fim de que este seja induzido a se servir de Costa-Gavras. Estados
Unidos: Punch Produc-
sua própria razão.
tions, 1997.
O pensamento de Kant, produzido na Alemanha do século XVIII, já • The Post: a guerra secreta.
Direção: Steven Spiel-
indicava a importância dessa capacidade de expressão a que as socie- berg. Estados unidos:
dades próximas do início da modernidade apontavam. O iluminismo DreamWorks Pictures,
2017.
do qual Oliveira (2010) se refere em Kant parece residir na crença do fi-
Educação e democracia 79
lósofo a respeito dos poderes da razão como guia do desenvolvimento
humano. Por ser uma expressão da razão, no embate entre sociedade
e Estado, a esfera pública, em seu funcionamento pleno, teria a capaci-
dade de garantir à sociedade respostas mais próximas de seus desejos
e suas necessidades por parte do Estado.
80 Filosofia da Educação
mos, ao longo de nosso processo de desenvolvimento, adquirido com-
petências que nos permitiriam produzir entendimentos. Esse processo
de entendimento seria resultado de nossa linguagem, sempre mediada
pela comunicação, cuja natureza é intersubjetiva e interativa. Assim, a
maior possibilidade de resolução dos conflitos humanos teria no diálo-
go a chance mais robusta de entendimento.
Para entendermos como tudo isso se relaciona à questão da edu- Saiba mais
cação em Habermas, precisamos ainda compreender como ele define Um exemplo simples, mas
importante: Habermas
o conflito entre o que chama de sistema e mundo da vida, dois de seus (2014) nos mostra
conceitos mais importantes e famosos. O texto de Mühl (2011, p. 1.039) como foi dura a luta dos
jornais contra os poderes
nos oferece uma boa ideia desses conceitos e o que eles envolvem: instituídos. No entanto, a
imprensa conseguiu, em
Sistema e mundo são duas esferas que se opõem; mas ao
1834, no parlamento in-
mesmo tempo são interdependentes, constituindo um complexo glês, que tribunas fossem
que determina a forma de ser da sociedade moderna. O mundo criadas para que os repór-
teres pudessem acompa-
sistêmico, apesar de se apresentar como oposto ao mundo vital,
nhar os debates políticos.
tem sua origem vinculada ao mundo da vida e se mantém, ainda Você consegue perceber
que de forma parasitária, dependente do agir comunicativo. O o quanto isso representa?
mundo sistêmico é decorrente da racionalização do mundo da Até então, dificilmente
a imprensa teria acesso
vida e surge como um mecanismo redutor de carga que pesa a esses espaços, mas
sobre o agir comunicativo diante do esgotamento dos outros quando eles passaram a
mecanismos de controle social. À medida que ele se torna mais ser garantidos, a própria
população que consumia
complexo, tende a romper seus vínculos com o mundo da vida,
esses jornais poderia ter
a substituir a comunicação pela linguagem por mecanismos de acesso aos debates.
controle técnicos sob os auspícios do dinheiro e do poder, em
detrimento dos demais componentes do mundo da vida. Quan-
do o sistema se torna independente do mundo da vida e mais
complexo, a dinâmica da influência entre ambos se modifica. Da
situação inicial, em que o mundo da vida determina a estrutura
sistêmica, com a complexificação social, os papéis se invertem e
o sistema passa a reger o mundo da vida. Disso decorre o pro-
cesso que Habermas chama de “colonização do mundo da vida”,
Educação e democracia 81
cujo sintoma mais representativo é a instrumentalização e a res-
trição progressiva da comunicação através do domínio técnico
e da violência estrutural. Em decorrência, o mundo da vida, de
uma instância central, transforma-se em periférica diante da do-
minação que o sistema regido pelo dinheiro e pelo poder passa
a exercer. A educação, intimamente atrelada ao mundo da vida,
não deixa de sofrer as consequências de tal condicionamento.
82 Filosofia da Educação
tividade humana, identificadas cada vez mais no caráter inanimado das
coisas e dos objetos que nos circundam.
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lo/
Lo
po Educação e democracia 83
Habermas entende que, diante dos entraves proporcionados pela in-
vasão sistêmica, a reprodução dos aspectos centrais do mundo da vida
tem nas psicopatologias uma das consequências mais graves. A violência
é uma das possíveis expressões sociais dessas patologias, que pervade
a sociedade de modo geral. Assim, os muros da escola não são capazes
em contê-la, uma vez que essa se dá sistemicamente.
84 Filosofia da Educação
tencializar a razão comunicativa. É também dos bancos escolares que
uma razão ordenada e direcionada humanisticamente pode formar os
futuros cidadãos atuantes como pessoas capazes de exprimir e reivin-
dicar as necessidades sociais mais legítimas, de identificar e separar a
necessidade solidária do interesse pecuniário.
Educação e democracia 85
é formada por muitas assimetrias de poder, o que impede qualquer
idealização da democracia em torno da ideia de igualdade. Se isso for
levado em consideração, e Miguel estiver correto, as democracias não
são um debate entre iguais. Em outras palavras, aqueles que decidem
efetivamente no jogo democrático talvez possam ser equiparados pelo
poder e pelas capacidades cognitivas, intelectuais e econômicas. Mas
muitos daqueles sujeitos que imaginamos estarem representados na
democracia na verdade não estão, ou estão sub-representados.
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Pre
86 Filosofia da Educação
Com isso, a comunicação é, para Habermas, o ponto central de ca-
pacidade de conflitos, porém, para Miguel, há muitos outros aspectos
a serem considerados. É esse tipo de consideração que a perspectiva
de Habermas não faz e, por isso, o modelo de razão comunicativa con-
tinua a trabalhar com uma imagem ideal. Habermas, principalmente,
em suas obras posteriores, abandona a tensão entre a colonização
do mundo da vida pelo avanço sistêmico e toma a “ação comunicativa
como garantidora, em última instância, da integração da sociedade, em
um modelo em que as tensões entre os diferentes tipos de racionali-
dade e as esferas sistêmica e do mundo da vida tornam-se bem mais
brandas (ou mesmo desaparecem)” (MIGUEL, 2014 , p. 68).
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A educação, como vimos, enfrenta grandes desafios desde que se
consolidou como uma necessidade universal. No entanto, quando ela
não está ameaçada por concepções que desejam se apossar com o
único intuito de absoluta mercantilização, são as instituições que lhe
dão respaldo. É preciso lembrar de que nem a escola tampouco a
democracia são constituídas definitivamente.
Educação e democracia 87
Todos aqueles que se interessam por educação, ou trabalham com
ela, têm como obrigação estarem atentos a essas disputas e informados
para, se concordarmos com Habermas, saberem identificar que forças e
interesses estão em jogo; se são forças que contribuem para a solidarie-
dade ou se são mais um movimento do avanço sistêmico sobre nós.
ATIVIDADES
Vídeo 1. Discorra sobre como o empirismo do pensamento de John Dewey
pode ser compreendido como uma contribuição à democracia.
5. O que é reificação?
REFERÊNCIAS
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2002.
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DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e cultura. São Paulo: Nacional; Edusp, 1970.
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria
da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.
HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo:
Martins Fontes, 2012. v. 2.
HOUASSIS, A. (org.). Houassis eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva. 2009. [CD-ROM].
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PEREIRA, E. A. et al. A contribuição de John Dewey para a educação. Revista Eletrônica de
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WALLERSTEIN, I. M. The modern world-system IV: centrista liberalism triumphant, 1789-
1914. Oakland: University of California Press, 2011.
88 Filosofia da Educação
4
Educação e descentramento
O presente capítulo foca sua discussão em torno da ideia do
descentramento – conceito utilizado por Stuart Hall, importante pensa-
dor das condições que mudaram a história do Ocidente nas últimas
décadas. Para Hall, um dos aspectos basilares das mudanças ocorridas
se deu em torno dos desafios impostos à manutenção das identidades
sociais na contemporaneidade. Vamos, então, compreender o que é
o descentramento, como ele incide sobre os sujeitos e que efeitos ele
produz na educação.
Por fim, com a filósofa Martha Nussbaum, vamos ver o quanto essas
mudanças contemporâneas ameaçam a educação e, principalmente, as
disciplinas ligadas às humanidades. O mundo que se encontra cada vez
mais dependente da ciência e da tecnologia não tem buscado, no mesmo
ritmo, o embasamento teórico e humano necessário para compreender e
educar suas sociedades, diante de tão fortes mudanças.
Objetivos de aprendizagem
Educação e descentramento 89
4.1 Descentramento, reflexividade e educação
Vídeo A questão da identidade é um problema complexo e um desafio
para as ciências humanas de modo geral. A essência dessa discussão
se dá em torno das características que definem um sujeito – as que
mencionamos aqui vão para além dos traços físicos. É muito comum
que nos definamos baseados em profissões, por exemplo, “ele é um
médico” e “ela é uma advogada”. Porém, ainda existem maneiras mais
amplas de nos definirmos, como as nacionalidades (brasileiro, egípcio
etc.) e etnias (por exemplo, anuak, ianomâmi, entre outras).
I. o sujeito do Iluminismo;
90 Filosofia da Educação
Vamos ver em que consiste cada uma dessas definições.
Educação e descentramento 91
nova configuração tem, portanto, o entendimento “de que este nú-
cleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era
formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’, que
mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura –
dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2005, p. 11).
1
Muitos autores, no
Vemos, então, que a identidade que representa o sujeito sociológi-
entanto, discordam que co é mais complexa em relação ao sujeito do Iluminismo – se este se
estamos vivendo em
uma era que superou
via como uno e estável, agora começa a perceber que parte de seus
a modernidade e, por gostos, percepções e valores é herdeira de sua relação com os grupos
isso, evitam o termo
pós-modernidade, como é
sociais próximos dele. Desse modo, já não é possível falar em caráter
o caso de Giddens (1991), individualista da identidade, uma vez que se começa a perceber a pre-
que usa a expressão mo-
dernidade tardia. Bauman
sença e a influência de um núcleo que vai para além do indivíduo na
(2001) também evita o formação de sua identidade: o sujeito é, também, o que são os grupos
termo e prefere se referir
a essa etapa como mo-
de sua convivência.
dernidade líquida. Já Hall
acaba oscilando entre os
Mas esse processo de identificação do sujeito com outros grupos
termos pós-modernidade e não para por aí; no desenrolar da história, ele continua se complexifi-
modernidade tardia. Mas,
independentemente de
cando. Ao estágio mais intricado dessa relação, Hall relaciona o sujeito
se ter ou não superado a pós-moderno, de quem ele afirma: “o sujeito, previamente vivido como
modernidade, a descrição
de todos os autores
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmen-
citados tem muitos ele- tado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algu-
mentos em comum, o
que nos permite ver o
mas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2005, p. 12). Se,
momento atual como no início do período moderno, o sujeito era estável e uno, agora, no
tendo características bem
específicas. Ao longo do
fim desse arco histórico, para Hall, o sujeito é bastante fragmentado.
capítulo, preferiremos, A fragmentação do sujeito contemporâneo é uma característica apon-
quando possível, o termo
pós-modernidade.
tada por inúmeros pensadores; ela tem tanta relevância que muitos
acreditam que estamos, baseados na fragmentação do sujeito, em uma
1
nova era, batizada, de modo geral, de pós-modernidade .
Figura 1
Representação do sujeito sociológico O sujeito sociológico é
influenciado pelos grupos
sociais próximos a ele,
herdando opiniões, gostos e
valores.
Andrii Yalanskyi/
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92 Filosofia da Educação
Temos, portanto, até aqui, a caracterização dos três tipos de sujeito
a que Hall faz referência. Vamos apresentar, resumidamente, essas ca-
racterísticas a seguir, para uma melhor visualização:
Fim da Idade Média/Início Metade do século XIX aos Dos anos 1970 aos dias
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da Idade Moderna anos 1970 atuais
Educação e descentramento 93
O que precisamos entender, na citação de Giddens, é a distinção que
ele faz entre a pré-modernidade, em que há a cultura da “presença” (a
interação face a face é uma marca distintiva desse período), e a moder-
nidade, na qual a interação face a face vai, aos poucos, sendo dispen-
sada, de modo a gerar a cultura da “ausência”. Talvez essa discussão
nos pareça ainda muito abstrata; vamos, então, buscar exemplos mais
concretos, até para que possamos perceber o quanto as alterações nas
nossas noções de tempo e espaço contribuem para a transformação
dos três tipos de sujeitos apontados por Hall.
94 Filosofia da Educação
presenciar, simultaneamente, algum evento exigia que as pessoas esti-
vessem no mesmo local.
Educação e descentramento 95
mas chama a atenção para o fato de que essa segunda é uma realidade
cada vez mais presente e influente sobre nosso conhecimento. É pre-
ciso observar que Thompson (1998) não cita a internet, pois, na época
de seu texto, a popularização da internet estava apenas engatinhando;
entretanto, em seus trabalhos posteriores, ele já a considera, em grande
parte, como mais um tipo de interação mediada.
Artigo
https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/153199
96 Filosofia da Educação
geral, o conhecimento de um mundo que se amplia para muito
além de nossos encontros diários. Os horizontes espaciais de
nossa compreensão se dilatam grandemente, uma vez que eles
não precisam estar fisicamente aos lugares onde os fenômenos
ocorrem. Tão profunda é a medida em que nossa compreen-
são do mundo foi modelada pelos produtos da mídia hoje que,
quando viajamos pelo mundo para lugares mais distantes como
visitante ou turista, nossa experiência vivida é muitas vezes pre-
cedida por um conjunto de imagens e expectativas adquiridas
através de nossa prolongada exposição aos produtos da mídia.
Mesmo naqueles casos em que a nossa experiência de lugares
distantes não coincide com nossas expectativas, o sentimento
de novidade ou surpresa muitas vezes confirma o fato de que
nossa experiência vivida foi precedida por uma série de ideias
preconcebidas e derivadas, pelo menos em parte, das palavras e
imagens transmitidas pela mídia.
Educação e descentramento 97
rem”, o que significa que a nossa capacidade de compreensão, de in-
formação e, até mesmo, de comunicação acaba sendo potencializada
devido a tudo isso. Quando comparamos os cidadãos de sociedades
pré-modernas aos das sociedades atuais, é evidente a vantagem que
temos, em função de as nossas potencialidades imaginativas, informa-
cionais e compreensivas terem se expandido, enfim, da mundanidade
mediada.
Se você fizer uma rápida pesquisa na internet, vai descobrir que, entre
os anos de 2020 e 2021, houve uma oferta repentina de boinas mascu-
linas, que, por muito tempo, estiveram à venda, mas eram consumidas
por um público pequeno e bem específico. Por que então, de repente,
ocorreu uma explosão na procura desse artigo? O motivo está em uma
2 série da Netflix
2
chamada de Peaky Blinders. A trama conta a história
A série começou sendo de uma família de gangsters agindo na Inglaterra pós-Primeira Guerra
exibida, primeiro, em
2013 pela BBC, depois
Mundial. Entre as peças de roupa que situam os personagens naquele
pela HBO e, a partir de momento histórico estão as boinas. Pressupõe-se que a admiração do
2017, pela Netflix.
público masculino em torno da história que a série conta tenha produ-
zido a grande busca por esse item no mercado de moda atual – alguns
sites, inclusive, anunciam o produto como “boinas estilo Peaky Blinders”.
98 Filosofia da Educação
de vida que não estão próximos de nós. Isso é um fenômeno mundial,
ou seja, a identificação com objetos simbólicos
3
que venham de longe, 3
por meio de eventos (esportivos, políticos, artísticos etc.), filmes, séries, Devemos entender por
objetos simbólicos aque-
músicas, entre outros, ocorre em qualquer lugar onde haja a possibi- les cujo valor está para
lidade desse intercâmbio de informações, viabilizado pelos meios de além do material, tendo,
então, valor naquilo que
comunicação e de transporte atuais. representam. Eles podem,
dessa forma, representar
Referimo-nos a um exemplo simples anteriormente, mas podemos uma mensagem política,
mencionar a adoção de algo que esteja para além das boinas, como de incorporação ou desa-
pego de valores morais,
comportamentos e valores. Nesse sentido, Giddens (1993) trata da de protesto etc.
adoção de novos comportamentos envolvendo sexo e matrimônio. O
autor se refere a um estudo dos anos 1980, em que garotos e garotas
foram consultados sobre o início da vida sexual. A pesquisa revelou
que os rapazes não sabiam falar de sexo com algum comprometimen-
to de futuro; eles falavam sobre episódios sexuais esporádicos, “como
desempenho heterossexual precoce ou conquistas sexuais diversas”
(GIDDENS, 1993, p. 59). Já as garotas, para as mesmas perguntas, con-
tavam histórias de angústia e de entusiasmo pelas relações íntimas.
Segundo a pesquisa, essas histórias pareciam, de algum modo, a de
novelistas profissionais, dados os detalhes e a complexidade da nar-
rativa; portanto, as moças pareciam estar muito mais envolvidas na-
queles momentos íntimos relatados do que os garotos. No entanto,
parece que, apenas uma década depois, esse comportamento femini-
4
no já mudou , e essa alteração, ainda que lenta, tem relação direta 4
com a influência simbólica que nos chega de outros lugares. Observe- A análise de Giddens
não para aqui. No livro A
mos aqui como Giddens (1993, p. 63) destaca esse aspecto como um transformação da intimi-
dos fundamentos da mudança: dade: sexualidade, amor
e erotismo nas sociedades
em uma sociedade altamente reflexiva, assistindo televisão e modernas (GIDDENS,
lendo, elas entram em contato e ativamente procuram nume- 1993), ele mostra estágios
mais avançados que
rosas discussões sobre sexo, relacionamentos e influências que
envolvem o processo de
afetam a posição das mulheres. Os elementos fragmentários da emancipação feminina,
ideia do amor romântico a que estas garotas se aferram, buscan- baseada na capacidade de
do deter um controle prático de suas vidas, não estão mais intei- esse público refletir (com
toda a informação que
ramente ligados ao casamento. lhe chega: revistas, livros,
programas de TV etc.)
Para Giddens (1993), assim como para Thompson (1998), as pessoas sobre as diferenças das
de hoje podem pensar melhor sobre a educação que receberam e so- condições sociais entre os
gêneros que conquistou.
bre as tradições herdadas da família, dos amigos e de indivíduos mais
velhos, que as fizeram acreditar que determinados comportamentos
e valores são corretos e outros não. Toda a informação e o entreteni-
Educação e descentramento 99
mento a que estamos submetidos diariamente não funcionam apenas
como algo para nos distrair, mas sim como uma espécie de palco, em
que novos comportamentos, ideias, roupas e modos de pensar e agir
vão nos sendo apresentados e, à luz deles, acabamos avaliando e os
colocando em comparação com nossas vidas. Nesse trajeto, podemos
abrir mão de coisas que fazem parte de nossa bagagem existencial e
trocá-las por alguns desses novos elementos que passam diante de nós
nesse palco diário de informação e entretenimento.
Para Hall, o perigo pode estar no fato de que as pessoas, hoje, po-
dem se identificar com os aspectos já apresentados anteriormente e
“abandonar” sua cultura local, isto é, os valores que circulam em suas
cidades e países de origem. De certo modo, se isso ocorre, as culturas
locais vão se esvaziando, de modo a enfraquecer as identidades na-
cionais. Hall entende, também, que todo o processo cultural que apre-
sentamos até aqui é resultado do processo de globalização. Sobre a
globalização e o seu aspecto cultural, Hall (2005, p. 69) retrata:
que impacto tem a última fase da globalização sobre as iden-
tidades nacionais? Uma de suas características principais é a
“compressão espaço-tempo, a aceleração dos processos globais,
de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias
mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um
impacto imediato sobre as pessoas e lugares situados a uma
grande distância.
Para o autor (HALL, 2005, p. 69, grifos do original), há, nisso tudo,
três consequências sociais possíveis:
• As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado
do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno
global”.
• As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou parti-
cularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização.
• As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identida-
des – híbridas – estão tomando seu lugar.
Hall procura analisar com cuidado cada uma das possíveis conse-
quências desse processo. Mas o que nos interessa é pensar de que modo
toda essa mudança cultural, que representa o sujeito pós-moderno, in-
cide sobre a educação brasileira. Se considerarmos como corretas as
análises dos autores apresentados até aqui, podemos refletir, desde já,
sobre quais tipos de desafio são lançados à nossa educação. Faremos
Syda Productions/Shutterstock
Bujes e Rosa (2012) nos alertam que, em muitos casos assim, a escola
não faz mais do que repetir os interesses empresariais de uma economia
cada vez mais neoliberal. Nesse sentido, a escola abdica de seu espírito
independente e crítico, formando apenas uma maior quantidade de mão
de obra futura. Não significa que esse também não seja um dos objeti-
vos da escola – o preparo para o mercado de trabalho –, mas ela pode e
deve ir além dele. Muitos outros objetivos, tão importantes quanto esse
ou até mais, precisam se concretizar por meio do pilar institucional que
a escola tem sido para as sociedades modernas.
Giddens tem outro conceito, que talvez nos traga algum alento, o
qual ele chama de reflexividade. A reflexividade consiste “no fato de
que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas
à luz da informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando
assim constitutivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 45). Isso sig-
nifica que toda a nossa vida social está sob a luz da possibilidade de
Diante desse cenário, o qual vale para qualquer sujeito que viva nas
sociedades reflexivas (independentemente de idade, sexo ou religião),
somos obrigados a aprender a viver sob o signo do errático, isto é, do
que não pode garantir certezas. Giddens (1991, p. 46) pode nos escla-
recer melhor sobre esse aspecto:
a modernidade é constituída por e através de conhecimento
reflexivamente aplicado, mas a equação entre conhecimento
e certeza revelou-se erroneamente interpretada. Estamos em
grande parte num mundo que é inteiramente constituído através
de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo
tempo, não podemos nunca estar seguros de que qualquer ele-
mento dado deste conhecimento não será revisado.
5
Hall (2005) lembra que
Assim, temos como resultado a instabilidade e a insegurança, além
algumas das reações se do espírito conflitivo que essas mudanças provocam nos comporta-
dão em forma de funda-
mentalismos (religiosos ou
mentos e modos de vida mais tradicionais que resistem – em alguns
5
étnicos), em várias partes casos, até violentamente . O professor precisa entender, portanto,
do mundo, na tentativa de
afirmação do tradicional
que parte da inquietude em sala é reflexo do nosso tempo, não sendo
e da anulação dos valo- culpa de aulas, às vezes, carinhosa e exaustivamente elaboradas. É difí-
res pós-modernos.
cil para todos nós, porque saímos de um mundo cujos conhecimentos
Bauman (2013) defende que os jovens, hoje, só não são vistos como
dispensáveis porque podem ser considerados uma potencial contribui-
Figura 3
Mídias digitais em um celular
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Para esses dois autores, as mídias nos oferecem conteúdos que não
só nos tornam diferentes, como também mais capazes de reflexão.
Com Bauman, porém, todos esses aspectos precisam ser considera-
dos à luz dos interesses financeiros que comandam essas tecnologias.
Para um pensador como ele, tecnologias novas, que concentrem nelas
a capacidade de poder e de manipulação, estão sempre sob o domínio,
ou risco de domínio, de grupos que não têm como interesse principal o
6 desenvolvimento humano .
6
Saviani, por sua vez, deixa bem claro, em sua visão de escola, que
essa importante instituição moderna tem no seu interior as mesmas
oposições presentes na sociedade como um todo. A divisão de classes,
7 7
marca inconteste das sociedades contemporâneas capitalistas, está
Inconteste porque a visão
também presente na escola. Para Saviani (1999), as classes dominantes
pedagógica da pedagogia
histórico-crítica tem, no não têm interesse algum na mudança da estrutura educacional, uma vez
marxismo, um de seus
que, do modo como ela se encontra, as estruturas de domínio permane-
principais fundamentos, e
no pensamento de Marx a cem sem ser contestadas – em muitos casos, não são nem identificadas.
luta de classes é o motor
da história. Sendo assim, a teoria crítica deve se desenvolver com base no inte-
resse dos grupos dominados, “assumindo a escola como um instrumen-
to de luta contra a marginalidade, o que significa engajar-se no esforço
para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível
nas condições históricas atuais” (SANTOS, 2018, p. 46). Por isso, há o jul-
gamento às pedagogias crítico-reprodutivistas referidas – embora elas
identifiquem a cisão social, não se organizam programaticamente com a
intenção de mudá-la. Além disso, a pedagogia histórico-crítica faz ques-
tão de se diferenciar das pedagogias tradicionais e das novas quanto à
posição do professor e à do aluno no processo de aprendizado.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Neste capítulo, tivemos a oportunidade de ser apresentados aos
conceitos de descentramento, desencaixe e reflexividade. Vimos também
o quanto os aspectos sociais que envolvem esses conceitos são comple-
xos em sua compreensão. A escola pode ter um papel essencial, no sen-
tido de evitar que o descentramento se torne motivo de desinteresse e
dispersão, e um outro mais importante ainda na introdução desses alu-
nos ao conhecimento historicamente produzido e compartilhado.
Além disso, com Martha Nussbaum, vimos o enfraquecimento da pre-
sença das humanidades nas sociedades pós-modernas – isso é um fenô-
meno mundial – e o quanto ele impacta a própria ideia de democracia e
socialização saudáveis. Esperamos que essa reflexão sirva para entender-
mos que aquilo que se enfraquece é a presença das humanidades nos
bancos escolares, devido aos interesses que as querem de fato esqueci-
das, mas não a capacidade dessas disciplinas de nos tornarem melhores,
mais reflexivos, sensíveis e críticos.
ATIVIDADES
Vídeo 1. Sobre a seguinte observação: “o professor precisa entender, portanto,
que parte da inquietude em sala é reflexo do nosso tempo, não sendo
culpa de aulas, às vezes, carinhosa e exaustivamente elaboradas”.
Que atitude(s) o professor pode ter em sala de aula com relação à
inquietude? Especifique.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Z. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BUJES, M. I. E.; ROSA, J. de M. Discursos curriculares da formação docente, projetos de
trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal. Revista Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18,
jul./dez. 2012.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Unesp, 1993.
HALL, S. A. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HOUAISS, A. (org.). Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. [CD-ROM].
NUSSBAUM, M. C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São
Paulo: Martins Fontes, 2015.
SANTOS, R. E. O. Pedagogia histórico-crítica: que pedagogia é essa? Revista Horizontes,
v. 36, n. 2, p. 45-56, maio/ago. 2018.
SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 1999.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis:
Vozes, 1998.
Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• entender a atuação das ideologias na disputa pelo currículo
na escola;
• compreender que forças ideológicas disputam a educação
contemporânea;
• acompanhar as importantes discussões no campo das
ciências e da filosofia que podem servir como parâmetros
de decisão nos impasses criados em função de disputas
ideológicas.
Figura 1
Escola como espaço de vivências
Rawpixel.com/Shutterstock
Escola vista como um espaço de trocas de experiências e aprendizado que sempre se renova e
nunca está presa a um padrão preestabelecido.
Mas não devemos nos enganar, pois apesar de tudo isso, para Apple
as escolas são lugares não somente de subordinação; elas funcionam
também como espaços de resistência, a qual, como vimos, expressa-se,
muitas vezes, como contestação. Apple também nos fala da presença
de um currículo oculto nas escolas. Por currículo oculto, o autor entende
o enfoque das instituições de educação em “normas e valores que são
implícita porém efetivamente transmitidos pelas escolas e que habitual-
mente não são mencionados na apresentação feita pelos professores
dos fins ou objetivos” (APPLE, 1982, p. 127). Vamos, a partir de agora,
tentar explorar melhor essa definição importante de Apple.
Figura 2
Jogo de xadrez
totojang1977/Shutterstock
Uma vez tendo iniciado o jogo
de xadrez, no nosso exemplo,
há uma série de possibilidades
de movimentos: o peão pode
se mover para a frente e as
torres, para o lado ou para a
frente. Perceba que a todo
momento acionamos essas
regras em nossa consciência
para executar o próximo lance.
Para Apple, então, esse tipo de procedimento, que silencia quanto a dis-
cussões acerca do valor do conflito, ajuda a potencializar a crença de que o
conflito é sempre ruim e que, por isso, precisamos evitá-lo – inclusive deixan-
do de falar e discutir a seu respeito. Como isso se faz sem nenhuma expli-
citação, acabamos internalizando esse “cuidado” com o conflito como uma
regra básica, que, como já vimos, funciona sem que tenhamos consciência
dela, o que a torna extremamente eficiente na limitação que estabelece.
maxsattana/Shutterstock
Filme
Todas as mudanças estão sujeitas a gerar conflitos, pois colocam em jogo o tradicional e o
usual. No entanto, elas são extremamente necessárias para o desenvolvimento dos indivíduos e O filme Malcolm X é um
das sociedades. grande exemplo para
pensarmos acerca de
O próprio Apple faz referência a isso quando lembra que na socie- nossa discussão sobre as
regras constitutivas. Por
dade americana, nas últimas décadas, o movimento negro ganhou vi-
algum tempo, o discurso
sibilidade e conquistou espaços sociais até então não imaginados, com de Malcolm X contra o
racismo de sua sociedade
base nessa ideia de conflito, utilizando a noção de que era preciso se
foi bastante radical.
organizar como movimento e lutar politicamente por mais reconheci- Depois de sua conversão
ao islamismo, no entanto,
mento. Mas mesmo esse progresso foi mantido sob controle. As figuras
essa radicalidade abran-
mais expostas desse movimento foram aquelas que tiveram destaque dou. Muito tem sido dito a
respeito do tom radical de
mais por suas mensagens de harmonia, ao passo que as figuras mais
seu discurso, considerado
conflitivas, igualmente importantes, foram obscurecidas pela história um fator preponderante
para que outros líderes
ensinada na escola, nas mídias e em outros mecanismos capazes de
negros norte-americanos
ativar a memória de uma sociedade. se tornassem ícones dos
movimentos sociais que
Também se poderia apontar para a expansão agora manifesta do eclodiram principalmente
material histórico sobre o negro em que figuram aqueles negros a partir dos anos 1960. A
que se mantiveram dentro dos limites considerados legítimos (re- figura de Malcolm X, ao
contrário, passou por um
gras constitutivas) de protesto ou que progrediram nos campos
processo de obscureci-
aceitos da economia, atletismo, educação ou arte. Em geral, não mento histórico.
se encontra referência a Malcom X, a Marcus Garvey ou a outros
que formularam uma crítica forte aos modos vigentes de controle Direção: Spike Lee. EUA: 40 Acres
and a Mule Filmwoks, 1992.
e atividade econômicos e culturais. (APPLE, 1982, p. 146-147)
Quadro 1
Avaliação de conflito
1. Mudanças
Avaliado por Michael Apple 2. Criação de leis O conflito é produtivo
3. Ampliação da consciência
Fonte: Elaborado pelo autor.
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como importantes marcadores de identidade dos
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grupos que participam das reivindicações e dos embates políticos
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A utopia, por sua vez, também é uma forma de ver e pensar o mun-
do que não corresponde à realidade. Mas, diferentemente da ideologia,
essa visão incorpora elementos que propõem a mudança da realidade.
O seu fim último, é possível dizer, é a transformação e a superação das
injustiças e das desigualdades que caracterizam a ordem vigente. Em
geral, as ideologias dominam o presente, afinal elas são instrumentos
para a manutenção da ordem atual, e as utopias têm como horizonte o
futuro: o rompimento e a transformação das injustiças está sempre por
se realizar. Mannheim (1987, p. 169, grifo do original) descreve assim a
relação entre esses dois modos de ver o mundo:
no curso da história, o homem ocupou-se com mais frequência
dos objetos que transcendiam o alcance de sua existência que dos
No século XX, por exemplo, foi possível pensar que as grandes con-
tradições e injustiças poderiam ser resolvidas com base na noção de
classes, em que trabalhadores precisavam lutar, organizados, contra os
interesses de conglomerados econômicos. Mas já no fim do século XX,
a fragmentação de gostos, de objetivos e de estilos de vida parece ter
trazido dificuldades para esse tipo de discurso, que conseguia imaginar
uma classe homogênea e com objetivos comuns.
Para autores como Eagleton (1997), por exemplo, muitos aspectos das
teorias modernas, tão criticadas pelos pós-modernos, continuam existin-
do, e nós continuamos precisando de teorias totalizantes, que não se mi-
rem apenas na fragmentação do sujeito moderno. Não foram os antigos
Isso apenas reforça a nossa defesa de que teorias que trabalham com
categorias totalizantes, como a obra de Michael Apple, não podem ser
descartadas como obsoletas, uma vez que elas ainda discutem de manei-
ra correta temas muito caros à educação. Acreditamos que o educador
precisa compreender a complexidade das tentativas teóricas de apreen-
são da realidade. Cada uma dessas tentativas nos ajuda a entender a ri-
queza e as potencialidades de novas compreensões do valor da educação
e de todos os seres humanos envolvidos por cada uma delas.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao longo deste capítulo, tivemos a oportunidade de entrar em conta-
to com ideias pedagógicas muito influentes na educação brasileira. Se a
pedagogia crítica não é hoje a corrente mais influente, ela conquistou em
certo passado recente essa posição. Mas não devemos imaginar que ela
esteja esquecida, até porque os eventos políticos, econômicos e culturais
da última década parecem apontar para o ressurgimento de pedagogias
com propostas mais totalizantes e que se mantenham críticas.
O sistema escolar brasileiro, com todas as suas peculiaridades, desi-
gualdades, contradições e complexidades, exige um aporte teórico imen-
so que nos ajude a compreender essa realidade multifacetada. Por essa
razão, procuramos apresentar as ideias seminais de Michael Apple e ou-
tras que buscam questioná-lo. Esperamos que essa discussão entre teo-
ATIVIDADES
Vídeo 1. O que é reprodução contestada?
REFERÊNCIAS
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APPLE, M. W. Educando à direita: mercados, padrões, Deus e desigualdade. São Paulo:
Cortez; Instituto Paulo Freire, 2003.
APPLE, M. W. Education and Power. NEW York: Routledge, 2012.
APPLE, M. W. Ideologia e currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CASTELLS, M. O poder da comunicação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
EAGLETON, T. Las ilusiones del posmodernismo. Buenos Aires: Editorial PAIDÓS, 1997.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
HOLLANDA, C. B. Teoria das elites. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MANNHEIM, K. Ideología y utopía. Introduccíon a la sociologia del conocimiento. Cidade do
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NOGUEIRA, M. O. O currículo no centro da luta: contribuições de Michael Apple para a
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p. 119-130, jan./abr. 2019.
RIBEIRO, M. P.; VELOSO, S. G. A.; ZANARDI, T. A. C. Fim da teoria crítica? Crítica aos extremos
pós-modernos e pós-estruturais da teoria curricular. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 2,
p. 255-282, maio/ago., 2016.
SAFATLE, V. O Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São
Paulo: Cosac Naify, 2015.
SILVA, T. T. Monstros, ciborgues e clones: os fantasmas da pedagogia crítica. In: SILVA,
T. T. Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
3 Educação e democracia
1. Discorra sobre como o empirismo do pensamento de John Dewey
pode ser compreendido como uma contribuição à democracia.
O empirismo no método educacional leva ao aproveitamento mais
intenso da prática escolar e da exploração de objetos e processos
em sala. Esse enriquecimento da prática leva à necessidade do
desdobramento dos fatos históricos e ao aprofundamento da história
das práticas que envolvem nosso cotidiano. Dewey acreditava que assim
os trabalhadores, os cidadãos, mediante esse contato mais intenso
com a história, estariam também mais aptos a opinar na democracia.
5. O que é reificação?
A reificação, no sentido que Habermas e outros nomes importantes do
pensamento social dão ao fenômeno, é retirar das relações humanas
a afetividade, os valores solidários e os interesses mútuos, restando
apenas objetivos imediatos e de caráter exploratório.
4 Educação e descentramento
1. Sobre a seguinte observação: “o professor precisa entender,
portanto, que parte da inquietude em sala é reflexo do
nosso tempo, não sendo culpa de aulas, às vezes, carinhosa e
exaustivamente elaboradas”. Que atitude(s) o professor pode
ter em sala de aula com relação à inquietude? Especifique.
O professor precisa, em primeiro lugar, estar informado e conectado
a seus alunos. Ele necessita extrair as razões dessa inquietude,
analisá-las e buscar trazê-las para as atividades como debates,
produções de texto, atividades culturais – o teatro, por exemplo.
5 Educação e currículo
1. O que é reprodução contestada?
Michael Apple observa que os grupos dominantes em uma sociedade
buscam impor seus conhecimentos e valores ensinados em sala de
aula por meio do currículo. Embora isso ocorra, sempre há grupos,
de professores ou alunos, que resistem a essa imposição. A essa
resistência dá-se o nome de reprodução contestada.
I000214
9 786558 210580
Filosofia da Educação
Sandro Teixeira
Sandro Teixeira