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Código Logístico ISBN 978-65-5821-058-0

I000214
9 786558 210580

Filosofia da Educação
Sandro Teixeira

Sandro Teixeira
Filosofia da Educação

Sandro Teixeira

IESDE BRASIL
2021
© 2021 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Flaticon

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T269f

Teixeira, Sandro
Filosofia da educação / Sandro Teixeira. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE,
2021.
154 p. : il.
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-5821-058-0

1. Educação - Filosofia. I. Título.


CDD: 370.1
21-72062
CDU: 370.1

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Sandro Teixeira Doutor e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR). Mestre em Literatura Brasileira pela
mesma instituição. Bacharel em Filosofia e licenciado
em Letras – Português pela UFPR. Professor no ensino
superior há 16 anos, com atuação nas seguintes áreas:
filosofia da ciência, filosofia geral, democracia e ciência.
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SUMÁRIO
1 Filosofia, Educação e Ciência 9
1.1 O que é filosofia? A definição dos filósofos 9
1.2 Filosofia e filosofia da educação 23

2 Educação e dispositivos de poder 35


2.1 Jean-Jacques Rousseau: o primeiro passo para a educação
moderna 36
2.2 Michel Foucault: sobre os dispositivos de poder 47
2.3 Maria Bujes: dispositivos de poder na educação infantil 53

3 Educação e democracia 62
3.1 Uma educação liberal renovada 63
3.2 Jürgen Habermas: esfera pública expandida e educação 77
3.3 Limitações do modelo habermasiano 85

4 Educação e descentramento 90
4.1 Descentramento, reflexividade e educação 91
4.2 Limitações da reflexividade sob a análise da pedagogia
histórico-crítica 106
4.3 Martha Nussbaum e as humanidades em risco de extinção 115

5 Educação e currículo 120


5.1 Michael Apple: currículo e demandas educacionais 120
5.2 Currículo e demandas educacionais no Brasil 136
5.3 Reflexão filosófica e o papel do educador na
contemporaneidade 142

6 Resolução das atividades 150


APRESENTAÇÃO
Vídeo
Esta obra foi elaborada para iniciar você nas discussões que
têm se desenvolvido no campo da educação ao longo da história.
A Filosofia é a mais tradicional disciplina em todo o campo do
saber. Por essa razão, ela tem a capacidade de nos lançar nos
mais importantes caminhos do pensamento em diversas áreas.
Sabendo disso, direcionamos a potente lupa filosófica para
compreender ideias e teorias que têm orientado a prática de
educadores ao redor do mundo.
Sendo o filósofo da educação aquele que se interessa pelas
teorias, buscando analisá-las com cuidado e pretendendo
apontar suas falhas e suas virtudes, esta obra não poderia fazer
diferente. Desse modo, apresentamos filósofos de períodos
históricos diferentes, para que possamos observar que as teorias
sobre o ato de ensinar sempre estiveram presentes na história
do desenvolvimento da civilização.
O primeiro capítulo busca nos ensinar que a melhor definição
para a pergunta “o que é filosofia?” deve ser pesquisada na obra
de cada um dos filósofos estudados. Em Platão, por exemplo, a
ideia de filosofia está intrinsecamente ligada à ideia de metafísica.
Já Nietzsche procura desenvolver uma filosofia antimetafísica (e
antiplatônica) – por isso, veremos que sua resposta para a nossa
pergunta inicial diverge frontalmente da resposta platônica.
Ainda, buscamos construir neste capítulo uma resposta geral,
ainda que insuficiente, para estabelecer uma distinção entre
filosofia e filosofia da educação.
O segundo capítulo nos remete diretamente ao início da
modernidade. Rousseau é apresentado como o primeiro grande
filósofo da educação do período. Seu livro Emílio, ou Da Educação
é até hoje considerado uma das grandes obras sobre educação
de todos os tempos. Rousseau foi um dos maiores críticos da
sociedade moderna nascente; sua filosofia aponta para uma
sociedade futura muito problemática. Nessa mesma postura
crítica, lançamo-nos ao século XX com a filosofia de Foucault e da
educadora brasileira Maria Edelweiss Bujes, ambos críticos dos sistemas de controle
das sociedades modernas e seus impactos na educação.
O terceiro capítulo procura pensar a relação entre educação e política – mais
precisamente entre educação e democracia. Para isso, buscamos as ideias de dois
filósofos vindos de tradições diferentes, mas ambos preocupados com os desafios
que os sistemas democráticos precisam enfrentar para evitar que se tornem injustos
e parciais. A educação para esses dois autores, John Dewey e Jürgen Habermas, tem
papel preponderante nesse desafio.
O quarto capítulo dialoga diretamente com o conceito de pós-modernidade.
Para alguns autores, vivemos em sociedades que já não refletem as características
da sociedade moderna. As novas formas de socialização refletem um novo tipo de
sujeito: o descentrado. Este não pode mais ser definido por características fixas de
identidade, o que pode representar a libertação para alguns e o aprisionamento
para outros. Ainda, o capítulo procura compreender como a pós-modernidade
impacta a sala de aula. Se as teorias que propõem o descentramento pós-moderno
estiverem corretas, o que significa ensinar para sujeitos descentrados? Essa é a
pergunta que percorre o capítulo todo.
O quinto capítulo estabelece um diálogo entre teorias representativas
de dois momentos: modernidade e pós-modernidade. A teoria do educador
norte-americano Michael Apple aparece como devedora de conceitos e categorias
ligados à modernidade, teoria essa que tem sido o flanco para estudiosos
pós-modernos e pós-estruturalistas da educação lançarem suas principais críticas
a Apple. Entretanto, não se pode deixar de observar que a obra desse pensador
tem reconhecidos méritos. São dele, por exemplo, os conceitos de currículo oculto
e reprodução contestada – a qual diz respeito à força de resistência que sempre se
produz contra toda a educação que procura impor, tacitamente, valores de grupos
dominantes em uma sociedade. Pelas contribuições inequívocas de Michael Apple,
o capítulo se encerra questionando alguns aspectos do tipo de crítica pós-moderna
que se faz ao educador estadunidense.
Por fim, esta obra foi elaborada com base em momentos históricos e diferentes
filósofos e pensadores da educação. Nela, não se pretende apresentar algum tipo
de fórmula para o bem educar; isso pode ser feito por via de outros caminhos
pedagógicos. O que queremos é que você possa encontrar ideias importantes de
alguns pensadores fundamentais para a educação e, com isso, sentir-se motivado a
conhecer mais profundamente as obras desses pensadores, a fim de orientar sua
prática pedagógica futura com a ajuda da filosofia da educação.
1
Filosofia, Educação e Ciência
Este capítulo procura inicialmente apresentar dois modos distintos de
definir o que é a filosofia. O primeiro deles entende que a resposta mais
completa a essa pergunta deve ser encontrada no próprio pensamento dos
filósofos mais importantes. A dificuldade aqui se dá em função de que cada
um desses filósofos apresenta uma visão diferente sobre o que é a filosofia.
O segundo modo oferece uma definição bastante objetiva; ele procura
compreender o que é filosofia apontando características que podem estar
presentes no pensamento de todos, ou quase todos, os filósofos. Para
isso, buscamos analisar alguns aspectos de três filósofos importantes na
história da filosofia: Sócrates, Platão e Nietzsche.
O capítulo apresenta, ainda, uma segunda seção que explica a relação
entre filosofia e educação e o significado da filosofia da educação. Há uma
pergunta de fundo que percorre todo o texto: qual é a importância da filo-
sofia da educação para a educação? Esperamos que ao fim deste capítulo
o interesse pelo processo de educação seja despertado e que também
seja possível encontrar uma resposta satisfatória a essa última questão.

Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• comprender que a definição do que é filosofia depende da
definição de cada filósofo e seu tempo;
• acompanhar as definições de filosofia de alguns filósofos de
épocas históricas distintas: Platão, Kant, Nietzsche, positivis-
tas lógicos;
• analisar as relações entre filosofia e filosofia da educação.

Filosofia, Educação e Ciência 9


1.1 O que é filosofia? A definição dos filósofos
Vídeo É comum que diante de perguntas do tipo “o que é...” recorramos a
uma busca ao dicionário ou, mais modernamente, a uma “googlada” na
internet. De certa forma, ao fazermos isso, esperamos quase sempre
respostas sintetizadas e objetivas, capazes de nos oferecer significados
satisfatórios para o que procuramos. Mas, no caso da pergunta que nos
Saiba mais
interessa, “o que é filosofia?”, um verbete no dicionário pode não ser
Hofstadter e Sander
(2013) apresentam as
tão satisfatório. Aliás, o filósofo norte-americano Douglas Hofstadter
possibilidades e as vari- (1945-), procurando entender um pouco melhor a importância que as
ções de sentido que uma
palavra pode ter, usando
analogias têm para o pensamento, sem deixar de reconhecer a utilida-
o exemplo do vocábulo de dos dicionários, alerta para a limitação que eles impõem ao signifi-
banda, que pode aparecer
em um bom dicionário
cado das palavras.
com os seguintes signifi-
cados: 1. pedaço de pano;
Segundo Hofstadter e Sander (2013), “embora dicionários deem a
2. pequeno grupo de impressão de analisar as palavras esmiuçadamente, de fato apenas ar-
músicos; 3. faixa de fre-
quências de certo alcance;
ranham suas superfícies”. Isso porque, ao organizarem os vocábulos
entre outros exemplos em entradas e subentradas, com definições bem precisas, podem dar
que a você mesmo pode
ter ocorrido enquanto lia
a impressão errada de que cada subentrada é estanque, ou seja, cada
essas definições. significado do vocábulo está totalmente delimitado pela definição dada
e não se confunde com os outros significados do mesmo vocábulo.

Claro que, para os propósitos de um dicionário, essa é a forma mais


Livro sensata, organizada e eficiente de captura e definição das palavras que
uma língua possui e incorpora ao longo de sua história. Mas claro tam-
Pode nos ser de maior
ajuda a consulta a um bém é o fato de que a língua viva – fora dos dicionários, cotidiana – é bem
dicionário temático;
mais fluída e menos delimitada do que isso. Por essa razão, podemos
eles costumam abordar
uma área específica do concordar com o filósofo e dizer que dicionários tocam apenas a superfí-
conhecimento: filosofia,
cie das palavras e, podemos acrescentar, da própria ideia de língua.
psicanálise, psicologia,
filosofia da educação etc.
Se nos dicionários isso ocorre para significados de substantivos con-
Todos ou os principais
temas de cada área são cretos como banda, por exemplo, imagine a redução de significado que
elencados em ordem alfa-
incide sobre a definição do termo filosofia, que por sua própria nature-
bética e com a vantagem
de poderem apresentar za contém significações mais abstratas, além de possuir um histórico
as definições de cada
muito extenso, remontando há, pelo menos, vinte e quatro séculos!
tema de maneira mais
ampla. Em português, o
Seria, portanto, bastante redutor inserir aqui uma definição de filo-
dicionário temático mais
completo de filosofia é o sofia como a que encontramos nos dicionários. Isso não significa que
Dicionário de Filosofia. não podemos ou não devemos consultá-los.
ABBAGNANO, N. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2012. Um caminho mais adequado, no entanto, para encontrarmos uma
melhor compreensão do que é filosofia, é investigar como os próprios

10 Filosofia da Educação
filósofos procuraram defini-la. Vamos, por enquanto, optar por essa
última alternativa.

1.1.1 O que é a filosofia na visão de Sócrates e Platão


Dois filósofos gregos nos servem bem nesse início de investigação: Figura 1
Sócrates e Platão. O que vamos buscar saber é o que eles nos respon- Escultura de Sócrates

deriam diante da pergunta:

Sting/Wikimedia Commons
O que é filosofia?

Para isso, porém, precisamos conhecer alguns aspectos da filosofia


de cada um deles. Filósofo ateniense do
período clássico da
Sócrates (470-399 a.C.) usou apenas a retórica como ferramenta Grécia Antiga.

para a exposição de sua filosofia; já Platão (427-347 a.C.) deixou muitos 1


textos escritos, alguns deles, inclusive, conhecidos como diálogos socrá- Segundo autores neopla-
tônicos do século VI d.C.,
ticos. Socráticos porque neles o personagem principal é Sócrates, tal a na entrada da Academia,
1
admiração que Platão nutria por seu mestre filosófico maior. escola filosófica cujo dono
era Platão, havia uma
Essa diferença entre a filosofia falada (Sócrates) e a escrita (Platão) inscrição com os dizeres:
Quem não é geômetra
já nos ajuda a compreender aspectos importantes da filosofia nesse não entre!
seu período inicial. Muito provavelmente, Sócrates optou pela retórica
porque a palavra oral ganhava especial valor no momento histórico em
Saiba mais
que o filósofo viveu.
No que diz respeito à re-
A sociedade grega do século IV a.C. passava por uma ruptura no tórica, Sócrates foi inimigo
dos sofistas, pois eles
seu modo de compreender a participação de seus cidadãos na pólis eram céticos quanto à ca-
(cidade), entendendo que seus membros deveriam ser formados visan- pacidade de a filosofia le-
var a algum conhecimento
do a uma participação efetiva na vida pública da cidade. A ruptura se verdadeiro. Enquanto
deu porque a cultura dos antepassados da sociedade em que Sócrates Sócrates usava a retórica
como instrumento filosó-
viveu não pensava assim. Nessa última, que remontava à formação do fico, acreditando ensinar
povo grego, muitos séculos antes, desenvolvera-se uma concepção cul- o autoconhecimento e
a verdade, os sofistas a
tural aristocrática distanciada do povo, voltada para os mais nobres. usavam com um sentido
bem mais pragmático:
Werner Jaeger (1888-1961), um dos maiores especialistas em Gré-
ensinar, a quem pagasse
cia antiga, observou que o ideal de educação dessa época era definido bem, a arte do bem falar
para vencer adversários
pelo conceito de areté, que, não tendo um exato equivalente em língua
nos debates públicos.
portuguesa, encontra-se próximo ao sentido do que entendemos por

Filosofia, Educação e Ciência 11


virtude, mas em um sentido amplo, nas características que, imagina-
-se, possam dotar alguém com qualidades excepcionais, no nível da
excelência: “a areté é o atributo próprio de nobreza. Os gregos sem-
pre consideraram destreza e força incomuns como base indiscutível
de qualquer posição dominante. Senhorio e areté estavam inseparavel-
mente unidos” (JAEGER, 2013, p. 24).
Glossário O melhor exemplo para compreender essa primeira cultura do povo
rapsodo: na Grécia anti- está presente na literatura, nas histórias contadas por Homero, poeta e
ga, recitador profissional
de poesias épicas.
rapsodo grego, em A Ilíada.

Os personagens mais destacados por Homero são todos pertencen-


tes ao grupo de gregos mais poderosos econômica e socialmente. Nas
muitas batalhas sangrentas que o texto descreve e no próprio discurso
dos personagens, revela-se o ideal do homem virtuoso, o ideal daquele
que busca a excelência em suas principais características: há, portanto,
o mais sagaz (Ulisses); o guerreiro imbatível (Aquiles); o comandante
mais poderoso (Agamenon) etc.

É como se a exibição dessas virtudes manifestadas em seu nível ex-


tremo franqueasse a seus portadores o direito de liderar e exercer o
senhorio das decisões e ações da sociedade que representavam. Das
virtudes, talvez a coragem seja a que se exibe mais coletivamente, isso
porque o sentido maior da areté grega é o de formar homens capazes de
morrer por seus concidadãos. Vemos aí, nessa primeira cultura grega,
um objetivo pedagógico claro: formar guerreiros capazes de dar a vida
em defesa do território, dos valores e dos tesouros de suas cidades.

No entanto, é dessa primeira cultura, que remonta pelo menos ao


Figura 2
Escultura de Platão século X a.C., que a sociedade grega do tempo de Sócrates, Platão (Fi-
gura 2) e, mais tarde, Aristóteles vai se distanciando. Esses filósofos
Rafael Machado da Silva/Wikimedia Commons

pertencem a uma cultura grega mais moderna e integrada comercial-


mente a outros povos. O ideal do homem virtuoso não deixa de existir,
inclusive é possível o identificarmos nos diálogos escritos por Platão,
mas é suplantado por um ideal mais abrangente. Diante da moderni-
zação das cidades gregas, cidades-Estado ou pólis, e do comércio que
muitas delas estabelecem com outros povos, o povo grego busca dotar
seus cidadãos de capacidade de participação na vida política.

Quando ficamos sabendo, então, que Sócrates não escreveu um


texto sequer e optou pela exposição oral de seus ensinamentos filo-
Filósofo do período clássico da
Grécia antiga. sóficos, precisamos relacionar esse aspecto ao fato de que a palavra

12 Filosofia da Educação
oral, naquele momento, era de suma importância; os oradores conse-
guiam se destacar socialmente e influenciar as decisões da pólis. Sa-
ber expor ideias, argumentar e influenciar tornaram-se as habilidades
mais valorizadas.

Se Sócrates estivesse comprometido com a antiga cultura, dificil-


mente teria sido esse personagem consagrado nos textos de Platão
e na cultura filosófica do Ocidente, pois, diferente da areté dos tem-
pos homéricos, o filósofo, armado apenas de sua retórica e método,
ensinava em praça pública, a quem estivesse disposto a ouvi-lo. Com
Sócrates, então, surge um senso de universalidade, que parte do pres-
suposto de que todos possuem a faculdade da razão. O papel do filó-
Saiba mais
sofo é ajudar os dispostos a trilhar o caminho da filosofia, para que
No cinema, a utilização
cheguem ao conhecimento da verdade por meio do exercício da razão. de temas filosóficos não
fica somente restrita aos
Temos aqui elementos para a compreensão de uma primeira defini- filmes intelectualizados. A
ção ou entendimento do que é filosofia por parte de um filósofo. Para filosofia platônica e a co-
nhecida alegoria do Mito
Sócrates, a filosofia é um contínuo exercício de busca pelo conhecimento da Caverna – homens
de si. Sim, “de si”, pois, para ele, a razão pode se revelar por meio do apro- vivem presos em uma
caverna escura e só veem
fundamento no conhecimento que temos de nós mesmos. Esse apro- sombras, formas indefi-
fundamento é necessário porque os homens, imersos na exterioridade nidas e enganosas (que
representam o mundo
de seus interesses cotidianos, estão afastados do conhecimento que a sensível); um dia um de-
razão, pulsante, mas resguardada em nosso interior, pode oferecer. les se liberta e descobre
que fora da caverna há
O caminho desse aprofundamento pode ser orientado pelo filósofo, um mundo iluminado,
com formas claras e ob-
por isso é que nos diálogos socráticos, escritos por Platão, Sócrates sur-
jetivas (que representam
ge como a figura central, mas sem desconsiderar seus interlocutores, o mundo inteligível) – são
representadas nos filmes:
que vão sendo questionados e direcionados a buscar respostas cada
O show de Truman, Matrix,
vez mais substantivas com relação aos temas abordados. Sócrates e, mais recentemente, O
quarto de Jack.
acreditava que os conceitos morais em sua integralidade só poderiam
ser conhecidos por meio de conceitos e não pela experiência. Por isso,
também recaiu a ênfase de seu método no diálogo. Entender o que é
o justo, o belo etc. só era acessível pela via conceitual, da definição. A
cada novo questionamento, a cada novo olhar para dentro de si, o ho-
mem conhece um pouco melhor a definição e, por isso, compreende o
significado do que deve reger nossa vida individual e social: o que é o
justo, o que é o bom etc.

A filosofia, portanto, é esse exercício dialético que orienta o contínuo


questionamento acerca do que somos e do que devemos ser e, princi-
palmente, a atividade que nos ensina a prudência por meio do raciocínio.

Filosofia, Educação e Ciência 13


As paixões, os rompantes de emoção e a intemperança, por exemplo,
são produtos do mundo exterior sobre nós que vão sendo neutraliza-
dos pelo exercício filosófico da razão. Também por esse motivo, Sócra-
tes tornou-se uma figura indigesta para os poderosos de seu tempo. Os
comportamentos, valores e opiniões circulantes na sociedade acabavam
sendo questionados e, muitas vezes, desmoralizados, pois eram enten-
didos como uma falsa verdade – a verdade, como vimos anteriormente,
só pode ser acessada pela razão no interior de cada um de nós.

Para Sócrates, a aplicação correta da razão resulta na compreensão


da maneira mais adequada de se viver. Ao encontro dessa premissa,
temos a voz de Vicente (2014, p. 216):
o primeiro a fazer uso do método da discussão e da inquirição
racional de modo despreconceituoso e não dogmático, Sócrates
apresentava-se como um homem cuja vocação era levar seus
concidadãos atenienses a pensar em sua própria vida de acordo
com procedimentos que eles do contrário não empregariam, a
fim de convencê-los de que uma vida não examinada não vale
a pena ser vivida. Isso era feito com intensidade quase religiosa,
a fim de perturbar a complacência mental das pessoas, fossem
quais fossem as consequências, razão pela qual não surpreende
que, num período de turbulência política, ele viesse a ser o foco
de uma hostilidade que acabou por levá-lo à morte.

Não podemos esquecer que nosso objetivo é acompanhar como al-


guns filósofos responderam à difícil pergunta “o que é filosofia?”. Vimos,
ainda que brevemente, como Sócrates respondia a essa pergunta, mas é
muito complicado dissociar o seu modo de pensar do filósofo que mais
foi influenciado por ele, Platão, e que de certa forma potencializou o que
Sócrates propôs. No caso desses dois filósofos, o pensamento de um é o
desdobramento do pensamento do outro. Por isso, vale a pena buscar-
mos compreender em que reside esse desdobramento em Platão.

Para nós, a importância da filosofia de Platão reside no desenvol-


vimento de sua ideia de metafísica. Uma vez que nossa pergunta é “o
que é filosofia?”, vamos encontrar na metafísica platônica provavel-
mente a ideia mais bem-acabada do que esse filósofo grego entende
por filosofia. Platão esteve, como Sócrates, muito preocupado com o
problema da justiça, com uma realidade que pudesse comportar so-
ciedades capazes de oferecer uma vida justa. Para o filósofo, porém, a
justiça estaria distante de poder se manifestar em um mundo como o
nosso. No entanto, a educação, se bem conduzida, poderia tornar os

14 Filosofia da Educação
homens mais propensos à ação justa. O pensamento filosófico preci-
saria estar presente sobretudo naqueles que governam a cidade.

Em A República, Platão nos apresenta à ideia do Rei-Filósofo: a fi-


losofia é entendida como tão fundamental para o funcionamento da
pólis que o principal atributo que um rei deve ter é a formação filo-
sófica. Só esta poderá dar-lhe a sabedoria necessária para tomar as
decisões corretas com relação à vida política e à moral de seu povo.
Isso porque, seguindo as trilhas abertas por Sócrates, Platão entende
que a filosofia pode levar ao conhecimento das virtudes em si e da
justiça como ideia, não apenas a justiça que se manifesta nos vários
exemplos de que dispomos em nossa realidade mais perceptível.

Todas as manifestações de justiça que conseguimos observar são


fragmentos de uma ideia cuja integralidade não pode ser compos-
ta por tais fragmentos. É apenas o exercício do raciocínio, orientado
pelo filósofo, que pode nos oferecer uma compreensão muito mais
satisfatória do que os fragmentos de justiça que nos rodeiam. Confor-
me vemos na afirmação de Strauss (2013, p. 52):
se a justiça significa menos dar ou conceder a cada um o que a
lei atribui a ele do que dar ou conceder a cada um o que é bom Livro
para sua alma, mas o que é bom para sua alma são as virtudes, O livro Édipo Rei –
Antígona trata-se de um
segue-se que não pode ser verdadeiramente justo quem não
texto de teatro escrito
conhece “as virtudes em si”, ou, em geral, as ideias, ou quem por um dos três maiores
não é filósofo. nomes da tragédia grega.
A personagem princi-
As leis que os homens criam são também imperfeitas, pois são pal é Antígona, filha de
Édipo. Na defesa pelo
frutos do conhecimento imperfeito que temos de nossa realidade.
sepultamento de seu
Por isso, a filosofia platônica apresenta a dicotomia entre mundo irmão, Polinice, Antígona
enfrenta Creonte, seu tio.
sensível e mundo intelectivo. A nossa realidade sensível, aquela que
Na peça, vemos as leis
nos chega por meio dos sentidos (tudo o que podemos tocar, ver divinas sendo defendidas
por Antígona, enquanto
etc.), é tomada por Platão como uma realidade imperfeita. Mas, com
Creonte defende as
a sua teoria das ideias, Platão defende a existência de uma realidade leis humanas. Impor-
tante perceber que no
diferente da descrita.
momento histórico em
que a peça foi escrita, na
Em um de seus diálogos, Timeu 52a, ele define essa outra realidade
sociedade grega já se en-
como estável, fixa, diferente da que normalmente temos diante de nós, contrava um certo espaço
para a contestação das
em que tudo parece estar sob o signo do perecível e do mutável – nós
leis divinas. Creonte é o
frequentemente nos enganamos, nossas leis precisam ser revisadas, personagem que encarna
esse espírito crítico.
nossos corpos envelhecem etc. Já nessa realidade imutável, permanen-
te, as coisas possuem uma natureza estável e imperecível. Dessa for- SÓFOCLES. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2000.
ma, o que temos é:

Filosofia, Educação e Ciência 15


DStarky/aShatilov/Shutterstock
MUNDO SENSÍVEL MUNDO INTELIGÍVEL

• Intelecto e a sua capacidade de


• Os nossos sentidos e a raciocínio lógico e abstrato.
nossa sensibilidade. • O conhecimento verdadeiro
• Perecível e mutável. se contrapõe às impressões
sensíveis.

A distinção entre realidades vem sendo motivo de intensas discus-


sões ao longo da história. Houve uma tradição filosófica que associou
a teoria das ideias (ou das essências) de Platão ao pensamento religio-
so. Esse tipo de leitura da filosofia grega gerou a interpretação de que
Platão estaria se referindo a um mundo do tipo espiritual, no sentido
religioso. Mas a leitura mais filosófica e correta entende que o filósofo
nos fala do mundo do intelecto e da capacidade de raciocinar e de or-
ganizar os conteúdos do nosso mundo de maneira sistemática e mais
geral possível. Conforme aponta Nodari (2004, p. 363):
as ideias não são simples conceitos ou representações puramen-
te mentais. Não são simples pensamentos, mas aquilo que o
pensamento pensa quando liberto do sensível. Quando fala das
ideias, Platão refere-se aos conteúdos objetivos de nossos con-
ceitos universais. São o verdadeiro ser. São as essências objeti-
vas. Aquilo que faz com que cada coisa seja aquilo que é.

O que pode nos ajudar a compreender a citação de Nodari é pensar-


mos sobre a definição de justiça, por exemplo. Se consultarmos cinco
pessoas diferentes e pedirmos a cada uma delas a opinião sobre o que
é justiça, é bem provável que cada uma dê uma definição diferente. A
esse tipo de conhecimento Platão dá o nome de doxa, que se refere à
opinião, ao conhecimento individual e parcial de algum conteúdo; con-
traposta à doxa, o filósofo apresenta a noção de nous, conhecimento
verdadeiro e também a parte racional e imortal do que o filósofo en-
tende por alma.

16 Filosofia da Educação
Com tudo isso, é fundamental que percebamos o centro da argu-
mentação platônica: o filósofo está apontando para a necessidade de
apreender os limites da abstração e da objetividade, que, se conheci-
dos, possibilitariam uma ação muito mais efetiva sobre a nossa realida-
de. Um conceito conhecido em sua forma mais geral nos possibilitaria
aplicá-lo a qualquer caso particular de nossa realidade contingente. É
óbvio que, para conceitos que geram tantas opiniões e inúmeras inter-
pretações, como é o caso de justiça, é muito mais complexo imaginar-
mos a possibilidade de encontrarmos uma ideia tão ampla capaz de
dar conta de todos os casos particulares.

Por isso é que os exemplos mais interessantes vêm da matemática,


da geometria. De modo muito simples, pensemos na definição de um
quadrado ou de um círculo: após serem definidos, percebemos que tais
definições podem se referir a quaisquer representações dessas figuras;
o que pode diferenciar cada caso particular são apenas as medidas, mas
a generalização da definição está lá. Mas Platão sabe que a geometria
é insuficiente para todas as necessidades de uma realidade imperfeita
como a nossa. Para esse filósofo, a passagem do mundo sensível ao
mundo inteligível se dá em saltos de compreensão, saltos que podem
ser entendidos como uma ascensão em níveis cada vez mais elevados de
compreensão, sendo o último desses níveis o da sabedoria.

Em nossa realidade, o filósofo seria aquele que nos apresenta o ca-


Saiba mais
minho dessa ascensão e nos ajuda em alguns de seus níveis iniciais.
Sugerimos àqueles que
Porém, aquele que quer alcançar níveis elevados precisa afastar-se das querem se aprofundar no
conhecimento acerca do
questões da vida cotidiana. É preciso se sacrificar e renunciar ao que o
tema da ascensão e da
mundo sensível e perecível oferece. Esse compromisso com a austeri- ascese em Platão lerem o
Capítulo VII de A República,
dade para consigo mesmo, com a renúncia dos desejos e a busca pelo
além de Teeteto, um dos
autocontrole cada vez maior do corpo e do espírito ficou conhecido mais belos e importantes
textos do filósofo.
como ascese.

A filosofia platônica é uma filosofia ascética, talvez por isso, ao lon-


go da história, muitas leituras religiosas tenham tentado se apropriar
dela. Por essas leituras, Platão seria mais um ser iluminado com uma
mensagem capaz de modificar a história. Mas, ao que parece, Platão
nos fala mesmo é da importância do exercício da razão e da busca do
conhecimento em sua forma mais abrangente e geral possível, que são
os limites de nossa própria racionalidade.

Filosofia, Educação e Ciência 17


Há, no entanto, uma explicação bem menos elevada para entender
essa separação em duas realidades muito distintas que Platão propõe
em sua filosofia. Vimos, lá no início desta seção, que a primeira cultura
grega cultivava a ideia de virtude. Mas no momento histórico em que
Platão viveu, essa cultura estava sendo substituída por uma cultura me-
nos aristocrática e mais aberta à participação geral dos cidadãos da pólis.

Como a época dos grandes e míticos heróis gregos, Aquiles, Ajax,


Ulisses etc., já havia acabado, não somente Platão, mas muitos outros
artistas e filósofos que viveram na mesma época sentiam que seu tem-
po era um tempo decadente, de graves problemas com a corrupção e
de descontrole de toda sorte por parte da população. É possível, por
isso, imaginar que o pensamento de Platão, legado a nós com os seus
diálogos, reflita e potencialize esse sentimento.

O mundo inteligível platônico é o mundo das virtudes perdidas e


que precisa ser reconquistado. Mas o filósofo sabe que não é possível
mais essa recuperação, pois sua sociedade e ele, filósofo, também são
muito mais críticos do que eram seus antepassados com relação aos
heróis que compõem a mitologia vigorosa que dá identidade ao povo
grego em sua primeira cultura. Os heróis que foram cantados na obra
de Homero agora não mais servem como modelos, mas como figuras
que precisam ser analisadas em suas virtudes e defeitos.

Sigamos uma análise da presença da epopeia homérica no interior


da estrutura da tragédia grega – fica claro como a presença dos heróis
nas tragédias já não desempenha a mesma função que nos clássicos
de Homero:
2 2
A epopeia , que fornece ao drama os seus temas, suas persona-
Na Ilíada estão presentes gens, o quadro de suas intrigas, apresentava as grandes figuras
todos os heróis gregos dos heróis de outrora como modelos; ela exaltava os valores, as
que participaram da
virtudes, os grandes feitos heroicos. Por meio do jogo dos diálo-
guerra contra Tróia. Já
na Odisseia a história se gos, do confronto dos protagonistas com o coro, das inversões
concentra em um desses da situação durante o drama, o herói lendário, cuja glória era
heróis retornando para cantada pela epopeia, torna-se, no palco do teatro, o objeto de
casa após a guerra contra
Tróia: Ulisses (em latim)
um debate. Quando o herói é questionado diante do público, é
ou Odisseu (em grego). o homem grego que, nesse século V ateniense, no e por meio
do espetáculo trágico, descobre-se ele próprio problemático.
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 2008, p. 161)

Como não é mais possível recorrer ao exemplo mítico dos heróis


do passado (o mito já não tem a mesma força sobre as mentalidades

18 Filosofia da Educação
muito mais críticas dos tempos de Sócrates e Platão), o filósofo propõe Saiba mais
uma realidade fora ou para além do tempo, que é o mundo inteligível. Não vamos nos aprofun-
Ser virtuoso não mais significa combater inimigos sem medo da mor- dar neste aspecto, mas re-
comendamos fortemente
te, como na primeira cultura grega; é necessário agora, no tempo da àqueles que se interessam
democracia ateniense, renunciar cada vez mais ao atual mundo deca- pelo tema a leitura das tra-
gédias gregas, compostas
dente, perecível e pouco confiável, parece nos dizer o filósofo. O auto- para serem encenadas.
controle, a renúncia, a ascese e a razão podem nos fazer reencontrar a Ésquilo, Sófocles e Eurí-
pedes, que viveram em
virtude dos nossos antepassados. A boa vida, que é a vida com justiça, uma época histórica muito
só pode ser alcançada por meio do exercício contínuo de sacrifício e próxima à de Platão, são
os três maiores escritores
autocontrole. gregos de tragédias. Em
praticamente todas elas,
Há muitos outros aspectos da filosofia platônica que são fundamen- os heróis gregos de um
tais para a história do pensamento mundial e da cultura, mas o que foi passado muito distante
são colocados diante
dito até aqui é suficiente para nossos objetivos. A filosofia platônica, é de situações dramáticas
importante observar, é a filosofia socrática adicionada de preocupa- muito humanas. O aspecto
antes mítico desses heróis
ções acerca da origem do conhecimento. Assim, uma possível resposta fica em segundo plano
de Platão à nossa pergunta inicial, “o que é filosofia?”, poderia ser: é e, diante de situações
extremamente complexas,
pensar sobre o processo da origem do conhecimento, como ela funda- agora nas peças dos três
menta a realidade em duas partes, a sensível e a intelectiva, e, principal- dramaturgos citados pas-
sam a mostrar ao público
mente, que efeitos morais ela pode ter sobre os homens em sociedade, suas ações e decisões de
como esse mundo intelectivo se coloca como uma dimensão para além uma forma muito humana,
recheadas de boas e más
do mundo sensível, físico – daí o termo metafísica (do grego metaphysis): escolhas, bons e péssimos
além da física ou além da natureza. comportamentos.

1.1.2 Nietzsche: a resposta de um rebelde


Vamos pensar juntos: se nos guiarmos pela resposta de Sócrates e Figura 3
Platão, é possível dizer que a concepção desses filósofos pode ser to- Retrato de Friedrich Nietzsche

Friedrich Hartmann/Wikimedia Commons


mada como uma resposta definitiva e única para a nossa pergunta?
Ainda que esses filósofos tenham se preocupado com os limites e as
possibilidades de generalização do conhecimento humano, a resposta
deles à nossa pergunta não nos satisfaz. Isso porque vamos encontrar
em outros filósofos outras preocupações e definições – algumas, inclu-
sive, opostas ao que disseram nossos dois filósofos gregos. O caso mais
emblemático, nesse sentido, é o de Friedrich Nietzsche (1844-1900), cuja
filosofia tornou-se célebre por, entre outros importantes motivos, ser
antiplatônica.
Filósofo, filólogo, crítico
Por meio da ascensão do poderio romano sobre os gregos, a me- cultural, poeta e compositor
prussiano do século XIX.
tafísica platônica é aproximada da religião cristã, com base no desen-

Filosofia, Educação e Ciência 19


volvimento da própria Igreja Católica. A filosofia desse período ficou
conhecida como patrística, em função da ativa participação dos padres
da Igreja Católica na vida cultural e educacional das sociedades desse
período. Assim, no fim da Idade Média, o platonismo estava já embe-
bido da religião cristã. Na verdade, é mais exato dizer que a metafísica
do fim desse período histórico era a metafísica cristã, que usara alguns
preceitos presentes no platonismo.

É possível dizer que na modernidade esse combo de religião e filoso-


fia tornou-se incômodo para muitos dos filósofos do período, uma vez
que a filosofia precisava compreender os novos tempos, que se organi-
zavam em torno da racionalidade que impulsionava a ciência, cada vez
mais matemática e empírica: isso quer dizer que era necessário concen-
trar-se no que experiências e demonstrações procuravam provar.

Propor mundos ideais, como a ideia de paraíso no cristianismo ou


de mundo das ideias em Platão, passa a não ser mais o centro das
preocupações filosóficas. Immanuel Kant (1724-1804) já havia proposto
uma distinção importante, em sua obra maior A Crítica da Razão Pura
(1781), entre mundo numênico, o mundo das coisas em si, que, se exis-
tisse, estaria desde sempre vedado aos humanos, uma vez que nossa
capacidade racional limitada não conseguiria perceber essa realidade,
e o mundo fenomênico, o mundo dos fenômenos, que se refere à rea-
lidade como ela se apresenta comumente a nós, por meio da nossa
razão e dos nossos sentidos. O mundo da ciência e os interesses da filo-
sofia se voltam quase que completamente para essa última realidade.

Mas foi em Nietzsche que a metafísica cristã-platônica encontrou


seu maior crítico. Segundo o filósofo, “a raiz profunda, a base comple-
tamente desenvolvida do pensar metafísico, encontra-se sistematizada
no idealismo platônico, com a doutrina das ideias e a consequente opo-
sição entre os mundos sensível e inteligível” (GIACOIA JÚNIOR, 2007,
p. 13). As investidas de Kant, procurando separar a metafísica dos inte-
resses da filosofia, não foram suficientes. Nietzsche consegue identifi-
car, em seu tempo, o século XIX, a presença de uma metafísica pulsante
e vigorosa e ainda muito próxima da filosofia.

Nietzsche entende que Platão usou a filosofia para imprimir nela os


aspectos da personalidade de um legislador moralista. Platão, por essa
interpretação, teria verdadeiro desprezo pelo mundo sensível e, por
conseguinte, pelos sentidos, nutrindo, principalmente, grande “indis-

20 Filosofia da Educação
posição contra a realidade mais próxima, que pesa como um fardo so- Livro
bre o pensamento: corpo, carne, sangue, paixão, volúpia, ódio” (GIACOIA O livro Condição
pós-moderna: uma
JÚNIOR, 2007, p. 19). É por isso então que Nietzsche, desde os primei- pesquisa sobre as origens
ros escritos, planejava o chamado platonismo revertido como seu proje- da mudança cultural
apresenta as mudanças
to principal, que, em outras palavras, seria construir uma filosofia que sociais, culturais, artísti-
fosse o exato oposto da filosofia platônica. cas, filosóficas, científicas
e estéticas que surgiram
Para Nietzsche, a influência da metafísica platônica, ao longo dos após a Segunda Guerra
Mundial, as quais foram
séculos, havia sido devastadora, principalmente quando se uniu ao
responsáveis por grandes
cristianismo, produzindo uma metafísica ainda mais poderosa, pois transformações nas
relações travadas entre
formou a ideia de que o mundo sensível e tudo que pertence a ele pre-
as crescentes práticas
cisam ser continuamente desprezados. A filosofia nietzschiana preten- capitalistas, a arte e a
cultura.
de revalorizar todos os aspectos condenados pela metafísica
HARVEY, D. São Paulo: Edições
cristã-platônica. Para Nietzsche, nenhum ser humano devia moldar seu
Loyola, 2005.
caráter com base em promessas de realizações futuras em alguma rea-
lidade que não seja a que tem diante de si. Assim, contra o essencialis-
mo da filosofia platônica, Nietzsche procura apontar a riqueza e
a necessidade de valorizar o mundo que se apresenta para nós Figura 4
Sculpture agenouillé (escultura ajoelhada),
em sua aparência atual.
de Charles Henry Niehaus
A filosofia de Nietzsche não obteve grande êxito enquanto
ele esteve vivo, mas não podemos deixar de observar que hoje ela é
extremamente influente. Nas discussões sobre a pós-modernidade, é
difícil não encontrar referências ao seu pensamento.

Kil
Mas o que nos importa verdadeiramente é perceber como o seu

om
691
entendimento acerca da filosofia é profundamente diferente da visão

/Wik
imed
de Platão. Se, para Platão, a filosofia é sobretudo metafísica, como Niet-

ia
Commons
zsche responderia a essa questão?

Nietzsche sempre gostou de usar a imagem do martelo, que pode


ser visto como um elemento de desmonte, destruição. Ele dizia que
filosofava com o martelo, ou seja, sua filosofia buscava a destrui-
ção de outras filosofias, ou das ilusões que elas propunham, prin-
cipalmente a cristã-platônica. Assim, se fizéssemos a pergunta
que nos interessa desde o início para Nietzsche, “o que é filosofia?”,
a resposta provavelmente seria: é uma antimetafísica; é a valoriza-
ção, pela via do conhecimento, das aparências, e não das essências.

Por essa razão é que não podemos buscar uma definição profun- O martelo, para Nietzsche, era um elemento
da do que seja a filosofia com base na definição de dicionários, pois de desmonte, demolição. Filosofar com
o martelo é buscar a destruição de
vemos que a resposta a essa pergunta depende mesmo é do que outras filosofias, ou das ilusões que elas
propunham.

Filosofia, Educação e Ciência 21


Desafio pensa cada um dos filósofos. Vimos, com Nietzsche e Platão, que essas
A filosofia platônica e a respostas podem, inclusive, ser diametralmente opostas. Uma das per-
filosofia nietzschiana são
antagônicas na maior par- guntas mais difíceis de serem respondidas é aquela cuja resposta deva
te de seus princípios. No ser capaz de delimitar o(s) campo(s) de investigação da filosofia.
entanto, parece que, no
mundo contemporâneo, Houve, no século XX, por exemplo, o movimento filosófico conhecido
a filosofia de Nietzsche
tem sido mais valorizada. como positivismo lógico, cujos principais filósofos, organizados em um
Procure refletir sobre as grupo chamado de Círculo de Viena, muito atentos ao desenvolvimento
razões a respeito dessa
preferência dos nossos da ciência, sobretudo da física, entenderam que caberia à filosofia ape-
tempos. No link a seguir, nas o papel de auxiliar das ciências, buscando interpretar e compreen-
você encontra um texto
que pode auxiliá-lo nessa der as relações lógicas das proposições científicas. Todas as discussões
reflexão. consideradas filosóficas que não se encaixassem nessa função auxiliar,
Disponível em: https://educacao. não servindo para melhorar a compreensão lógica das teorias científicas,
uol.com.br/disciplinas/filosofia/
filosofia-pos-moderna---nietzsche- foram consideradas por esses filósofos como metafísicas.
a-relativizacao-dos-valores.htm.
Acesso em: 16 jul. 2021.
Então, nesse caso, a metafísica era entendida segundo um sentido
bastante pejorativo, como uma espécie de lixo filosófico, frases e con-
ceitos que não podem ser provados e, por isso, são inúteis. É claro que
essa é uma posição radical, inclusive alguns dos filósofos pertencentes
ao Círculo de Viena mais tarde a revisaram, mas vemos aí mais uma
definição de filosofia – esta, inclusive, elenca boa parte do que é consi-
derado filosofia como inutilidade sem fundamento – bastante diferente
daquelas que acompanhamos até aqui.

De qualquer forma, nesta seção conseguimos aprender que uma


resposta com maior exatidão à pergunta “o que é filosofia?” depende
muito da filosofia em questão. Mas não vamos terminar sem uma defi-
nição mais objetiva para a nossa pergunta inicial. Sim, a construção de
uma resposta com certa objetividade é possível – desde que saibamos
que essa resposta é objetiva para satisfazer nossos fins didáticos, afinal
o mundo em que vivemos exige de nós uma certa objetividade, não?

Quando levamos em consideração não apenas os filósofos, mas


também os acadêmicos e estudiosos da filosofia, uma resposta que pa-
rece ser razoavelmente satisfatória a todos seria: a filosofia é uma ativi-
dade intelectual que procura colocar sob investigação nossas crenças a
fim de validá-las ou não, investigação essa que procura se orientar por
métodos racionais propostos pelos filósofos. Validar uma crença signi-
fica oferecer provas ou argumentos, em seu favor, que sejam capazes
de justificar a veracidade dessa crença.

22 Filosofia da Educação
Conforme mencionado, eis uma boa resposta, mas agora sabemos
também que as respostas tendem a se complexificar se resolvermos
mergulhar nos conhecimentos de cada um dos grandes filósofos, certo?

1.2 Filosofia e filosofia da educação


Vídeo Você já deve ter percebido que a filosofia gosta de discutir com uma
certa profundidade cada assunto que lhe cabe. Na verdade, essa é a
própria natureza da filosofia: discutir com precisão e profundidade,
procurando concentrar-se nos pontos que não são percebidos ou não
são valorizados por pessoas, entidades ou instituições que se debru-
çam sobre um certo assunto. O filósofo é aquele tipo de pessoa que
não pode se contentar com respostas prontas.

Você lembra que na definição objetiva para a pergunta “o que é filo-


sofia?” falávamos em análise das crenças, para validá-las ou não? Pois
então, a filosofia sabe que, quando uma crença funciona plenamente
em nós, ela aparece em nosso discurso da maneira mais espontânea
possível. Isso ocorre porque nós acreditamos tão profundamente nes-
sa crença que dificilmente paramos para analisá-la.

1.2.1 O olhar divergente da filosofia


Quando falamos em crença, associamos esse nome imediatamente
à religião. Crença, no entanto, é apenas uma maneira de nos referir-
mos a alguma coisa ou ideia que acreditamos ser verdadeira. Vejamos
um exemplo. Talvez você more em um prédio que utiliza a divisão entre
elevadores sociais e elevadores de serviço. De modo geral, a maioria
de nós respeita essa divisão sem problema algum. Mas, quando ocorre
algum caso que repercute na mídia, por exemplo, a potencial discrimi-
nação que existe nessa divisão, alguns começam a pensar melhor nos
problemas sociais envoltos nessa prática e possivelmente todos, após
algum tempo, voltam ao mesmo hábito antigo sem mais pensar nos
aspectos problemáticos existentes ali. Esse é um exemplo simples de
crença embutida em nossos hábitos; tendemos a repetir e repetir esses
hábitos cotidianamente sem problematizá-los.

Em um certo sentido, é importante que seja assim, uma vez que isso
facilita a dinâmica social do nosso cotidiano. Já imaginou se passássemos
a problematizar cada crença? Certamente nossa dinâmica diária estaria

Filosofia, Educação e Ciência 23


completamente comprometida; ficaríamos apenas pensando e não agi-
lizaríamos mais a nossa vida. Por outro lado, teríamos sociedades mais
maduras e esclarecidas se nos esforçássemos um pouco mais no ques-
tionamento de nossas crenças e das crenças sociais que mantêm certos
arranjos da ordem social que incomodam a muitos, mas nunca foram
analisados de maneira aguda, profunda e com argumentos fortes.

Voltando ao exemplo do elevador e suas divisões sociais, vemos que


poucas pessoas interrompem suas preocupações cotidianas para pensar
sobre os aspectos problemáticos em torno de coisas e ações tão rotinei-
ras em suas vidas: respeitar as divisões sociais estabelecidas enquanto
utilizam um aparelho mecânico para subirem ou descerem até os seus
destinos de trabalho e lazer. O filósofo não faz isso. Ele vai se preocupar
com aquilo que deixamos de perceber. Mas somente o filósofo deve ter
essa postura? Não, claro que não! Aliás, ele não age dessa maneira para
manter-se fiel à sua tradicional imagem de “avoado”, “excêntrico”.

Como já foi dito, ele age dessa maneira porque está treinado para
olhar aspectos do real que geralmente ignoramos; mas nós dificilmente
adotamos a mesma postura do filósofo. Claro, podemos alegar que não
temos treinamento para isso. No entanto, esse não é um argumento tão
convincente. Vamos tentar aqui enriquecer esse argumento para melho-
rar a defesa de quem acha que não pode tomar uma atitude parecida com
a do filósofo. Para isso, será de grande utilidade a excelente explicação de
dois sociólogos muito influenciados por uma escola filosófica importante
do século XX chamada Fenomenologia, cujos maiores representantes são
os filósofos Edmund Husserl (1859-1938) e Martin Heidegger (1889-1986).

Os sociólogos em questão, Peter Berger (1929-2007) e Thomas


Luckmann (1927-2016), nos ensinam que existem vários níveis de rea-
lidade, os quais diferem quanto à nossa capacidade de consciência em
relação a cada um deles. A consciência da realidade de estarmos es-
crevendo este texto agora ou de você estar lendo este texto agora é
muito mais apreensível ao sujeito do que os aspectos dessa mesma
realidade quando ela nos aparece nos sonhos, por exemplo. A essa
realidade mais apreensível, Berger e Luckmann chamam de realidade
da vida cotidiana.

É da realidade da vida cotidiana que falamos no caso do exemplo do


elevador. Vejamos, em mais detalhes, como Berger e Luckmann (1991,
p. 35, grifo do original) a caracterizam:

24 Filosofia da Educação
Eu apreendo a realidade da vida cotidiana como uma realidade
ordenada. Seus fenômenos estão pré-arranjados em padrões
que parecem ser independentes da apreensão que tenho deles
e que se impõem sobre ela. A realidade da vida cotidiana pare-
ce já objetificada, isto é, constituída por uma ordem de objetos
que têm sido designados enquanto objetos antes do meu apare-
cimento na cena.

Em outras palavras, o que os autores estão sugerindo é que a nossa


realidade é a maneira como comumente entendemos como os obje-
tos estão relacionados entre si, e que eles já estão prontos e definidos
antes de nossa presença. Mas não apenas de nossa presença em uma
cena qualquer da vida cotidiana, mas nossa presença na própria vida.
Quando nascemos, já encontramos um mundo pronto, com objetos
nele, cada um tendo uma ou várias funções e significados.

Nós não construímos esses significados; nós os aprendemos nos


processos de socialização ao longo de nosso crescimento (na escola, na
família, com amigos, no trabalho) e, sem ao menos perceber, logo esta-
mos com esses significados internalizados, repetindo as mesmas ações
e os compreendendo da mesma maneira que as outras pessoas que vi-
veram na mesma sociedade antes de nós. Segundo Berger e Luckmann
(1991, p. 35-36):
A linguagem usada na vida cotidiana continuamente me for-
nece as objetificações necessárias e postula a ordem dentro
da qual estas fazem sentido e dentro da qual a vida cotidiana
tem um significado para mim. Vivo em um lugar que é geo-
graficamente designado; emprego ferramentas, de abridores
de lata a carros esportivos, que são especificadas pelo voca-
bulário técnico da minha sociedade. Vivo dentro de uma rede
de relações humanas, do meu clube de xadrez aos Estados
Unidos da América, que também são ordenados por meio do
vocabulário. Dessa forma, a linguagem marca as coordenadas
da minha vida em sociedade e preenche a minha vida de ob-
jetos com sentido.

Nesse processo, a linguagem não só falada, mas também pensada,


produzida socialmente, é internalizada por nós. Por essa razão, tende-
mos a pensar e perceber a realidade de maneira muito parecida com as
pessoas que pertencem à mesma sociedade. Assim, se essa sociedade
não pensa muito sobre a discriminação sobre elevadores, é bem possí-
vel que nós também não pensemos.

Filosofia, Educação e Ciência 25


Até porque, além de herdarmos uma linguagem comum, social, que
nos faz perceber e pensar o mundo sob uma perspectiva, as pessoas
ao nosso redor confirmam a veracidade das nossas ações e pensamen-
tos toda vez que essas ações e pensamentos expressam um conteúdo
referendado pela sociedade: “eu sei que a minha atitude natural nesse
mundo corresponde à atitude natural dos outros, que eles também en-
tendem as objetificações por meio das quais esse mundo é organizado”
(BERGER; LUCKMANN, 1991, p. 37). Isso quer dizer que o conhecimento
do mundo pressupõe, em grande parte, a intersubjetividade do meu
conhecimento, ou seja, eu preciso encontrar confirmação do que pen-
so, sinto e expresso nas outras pessoas também.

Perceba que, se levarmos essas considerações a sério, concluiremos


que boa parte de como entendemos o mundo, pensamos e agimos so-
bre ele se deve a um grupo maior de pessoas, e não somente a nós. E
aí chegamos ao ponto essencial: por todas essas razões, enquanto o
mundo estiver funcionando da maneira como o conhecemos, ou seja,
enquanto as pessoas ao nosso redor acharem corretas nossas ações e
pensamentos, tendemos a não questioná-lo. Se, então, quase ninguém
vê o problema discriminatório na divisão de elevadores, dificilmente
nós enxergaremos. Se, no Brasil, quase até metade do século XIX, ape-
nas uma parcela ínfima da população livre via como errada a explora-
ção da escravidão, então a chance desse tipo de exploração existir sem
contestação até aquele momento era enorme.

Mas temos que tomar cuidado para não confundirmos o que foi
dito até aqui com uma visão determinista, ou seja, não devemos ima-
Glossário
ginar que estamos completamente determinados a sermos meros re-
idiossincrasia: constitui-
ção individual, em virtude produtores de tudo o que nos ensinam. Nós efetivamente tendemos
da qual cada indivíduo a essa repetição, mas existem idiossincrasias em nós como sujeitos,
reage diferentemente à
ação de agentes externos. que não vão se conformar com o que aprendemos e apreendemos do
mundo social.

Há pessoas que percebem que há problemas profundos no mundo


que herdamos e passam a questionar a realidade. Também há pessoas
que se especializam em perceber alguns desses problemas; é o caso do
filósofo. Com relação a esse último, Berger e Luckmann chamam sua
atitude de atitude teórica.

Já que o filósofo está sempre buscando perceber os “furos” da rea-


lidade por meio do conhecimento e da teoria, assim ele, muitas vezes,

26 Filosofia da Educação
consegue passar da atitude natural, que é a simples aceitação e a re-
produção dos conteúdos sociais, inclusive os discriminatórios, sem
questionamento algum, para a atitude teórica, que é conseguir não
somente perceber alguns dos problemas mais graves em nossa reali-
dade, mas também questioná-los com base no conhecimento bem fun-
damentado. De modo geral, as pessoas mais acomodadas em relação
ao mundo que herdam dificilmente buscam sair da atitude natural e
dar um salto para a teórica.

1.2.2 A filosofia da educação


O filósofo, muitas vezes, é visto como alguém excêntrico, distraído
ou descuidado. Na verdade, ele não está distraído, mas está pensando
sobre aspectos da nossa realidade por ângulos que não são muito cos-
tumeiros. Platão nos conta no Teeteto, 174a, que na Grécia antiga Ta-
les de Mileto (623-558 a.C.), considerado por muitos o primeiro filósofo,
certa vez, observando o céu, caiu em um buraco e, nesse instante, foi
zombado por uma moça espirituosa que disse que o filósofo procurava
entender o que se passava no céu, mas não via o que estava junto aos
próprios pés.

Essa imagem sobre os filósofos parece ter ainda muita força em


nossos dias, não? De qualquer forma, não podemos ignorar que Tales
inventou a matemática dedutiva e é também autor de teoremas que
usamos ainda hoje na geometria. Será que alguém tão distraído assim
seria capaz de produzir façanhas do intelecto como ele produziu?

Até agora, acompanhamos referências à filosofia de maneira Triff/Shutterstock

geral, mas é preciso saber que a filosofia tem áreas especí-


ficas de interesse. Assim como o mundo contemporâneo
é altamente especializado, a filosofia, como uma forma
importante de conhecimento que busca estar atenta a
cada uma dessas especializações, possui também suas
divisões. Há, por exemplo, a filosofia da química, a filosofia
da física, a filosofia política, a filosofia da mente, a filosofia
da ciência, a filosofia da psicologia e, entre muitas outras, a
filosofia da educação. Essa última é a que nos interessa
nesta obra.

Já conhecemos bem o espírito filosófico geral, que está


presente em todas as filosofias citadas. Mas, na prática, o

Filosofia, Educação e Ciência 27


que é e como funciona a filosofia em uma de suas especializações, nes-
se caso, a educação? O que é, portanto, a filosofia da educação?

Podemos dizer que o sistema escolar funciona sobre uma base teó-
rica que orienta os professores em todas as disciplinas. Além da ma-
téria específica de cada um deles, há sempre um ou alguns métodos
adotados pelos professores que são pensados para ajudar a fluência
do aprendizado: a comunicação entre professores e alunos, a com-
preensão mais fácil dos conteúdos, as questões disciplinares etc.

Geralmente quem define os métodos e as linhas teóricas a serem


adotadas são os profissionais da área da pedagogia. A pedagogia, por-
tanto, está muito preocupada com a definição desses métodos, da apli-
cação deles em sala de aula e dos resultados gerais que eles produzem.
A aplicação de uma pedagogia, portanto, diz respeito à aplicação de
normas bem estabelecidas que buscam reger um sistema de ensino
como um todo.

Muitas vezes, a filosofia da educação é confundida com a pedago-


gia, mas precisamos estabelecer a diferença aqui. Enquanto a pedago-
gia está preocupada com as normas e com o bom funcionamento da
aplicação de métodos previamente escolhidos, a filosofia da educação
está preocupada em analisar todo esse universo de funcionamento re-
gido pela pedagogia.

Documentário Uma boa filosofia da educação se preocupa em analisar tanto os


O documentário A Educa- aspectos das teorias pedagógicas vigentes na escola ou no sistema es-
ção Proibida procura fazer
uma crítica ao modelo
colar quanto os aspectos humanos e sociais relacionados a tais teorias.
pedagógico atual e sugere É possível dizer que a pedagogia precisa dar respostas institucionais
um novo modelo edu-
cativo. As críticas feitas muito mais objetivamente do que a filosofia da educação.
entendem que o modelo
de ensino atual está Antes de iniciar o ano letivo, todo um projeto pedagógico precisa
enrijecido e dirigido mais
estar pronto, bem definido, bem fundamentado e, ao longo do ano,
a uma espécie de condi-
cionamento para que o ci- precisa dar resultados. Resultados, inclusive, que podem ser medidos:
dadão sirva aos interesses
do sistema social do que
as notas médias dos alunos de cada série, o grau de alfabetização, a ca-
propriamente à educação pacidade de resolver problemas matemáticos, o desempenho de cada
em sentido lato.
professor etc.
Disponível em: https://
www.youtube.com/ Assim, a medição dos resultados gera números, gráficos e perfis
watch?v=OTerSwwxR9Y Acesso
pedagógicos muito claros e precisos, o que, por sua vez, gera muita
em: 16 jul. 2021.
cobrança e pressão quando os resultados não se mostram os melhores

28 Filosofia da Educação
possíveis. Podemos perceber, então, o papel central que a pedagogia
possui nesse cenário.

É claro que a pedagogia também está em contato direto com as


várias teorias pedagógicas; não se trata de um campo exclusivamente
técnico em que somente números, dados e resultados estão presen-
tes. Mas mesmo que essas teorias sejam estudadas e exaustivamente
discutidas, ao fim do processo, é sempre a aplicação delas que vai ser
medida e gerar cobranças. Portanto, a responsabilidade institucional
está continuamente presente no horizonte da pedagogia.

Já a filosofia da educação não tem sobre ela o peso de precisar ofe-


recer respostas institucionais imediatas. Ela, podemos dizer, fica na re-
taguarda do processo de ensino, procurando analisar o que tem sido
adotado pedagogicamente, os resultados da pedagogia vigente, mas
não somente isso: ela procura analisar os aspectos filosóficos, humanos
e sociais que também habitam aquele sistema educacional e que não
são motivo de reflexão nem da pedagogia nem de outras disciplinas.

Você se lembra da atitude filosófica de Tales de Mileto, preocupado


com o que ocorria nos céus enquanto todas as outras pessoas estavam
preocupadas com os assuntos mais cotidianos, mais, digamos assim,
terrenos? De certa forma, o filósofo da educação tem o mesmo papel,
mas agora o seu céu é a educação.

O filósofo da educação pode permitir-se perguntar sobre a efeti-


vidade do que está sendo ensinado, por exemplo. Você se lembra de
uma cena clássica do filme Sociedade dos Poetas Mortos (1989) em que
o admirado professor de literatura de um colégio de ensino muito rí-
gido pede aos alunos que rasguem as folhas do manual de literatura?
O manual explicava como é possível medir matematicamente a beleza
de um poema.

O professor percebe que aquele método não é nenhum pouco efe-


tivo e, mais, percebe que ele não contribui para que os alunos se inte-
ressem pela poesia. Ou seja, na cabeça do professor está claro que o
método adotado que visa ensinar e criar uma certa sensibilidade poéti-
ca nos alunos faz justamente o contrário. Os alunos relutam em rasgar
as folhas, mas logo que o fazem se sentem felizes e como que se liber-
tando de um fardo. A partir daquele momento, os alunos começam a
se interessar pelo assunto.

Filosofia, Educação e Ciência 29


Livro Pois bem, o nosso professor em questão teve uma atitude filosófi-
Um dos temas que tem ca. Ele conseguiu enxergar vários dos elementos que estavam em jogo
preocupado filósofos
da educação no mundo naquele contexto: ele percebeu a insatisfação dos alunos, a ineficácia
inteiro é a relação que do método, o tipo de aluno que estava sendo formado pela instituição
jovens estudantes esta-
belecem com as redes – onde eles aprendiam a anotar tudo e estudar demasiado, mas ne-
sociais. O livro A Sociedade nhum se mostrava apaixonado pelo estudo e pelo conhecimento – etc.
de Controle – Manipulação
e modulação nas redes Enxergando aquilo e vendo sua ineficácia, ele propôs e implantou um
digitais faz uma reflexão novo método.
importante dos perigos
quanto à captação dos No filme, que obviamente romantiza esse processo, o método do
dados que informamos
às redes (mesmo que
professor dá certo em, pelo menos, um aspecto: os alunos passam a
isso pareça inofensivo), gostar daquela matéria e ter um novo olhar sobre o conhecimento, e
e em como os governos
não estão estabelecendo
uma transformação profunda se inicia em cada um deles.
restrições suficientes para
limitarem essa captação
Não se pode esperar que o filósofo da educação vá ser tão bem-su-
por parte das empresas. cedido em todas as suas ações e sugestões quanto o professor do fil-
O livro é composto de
ensaios de pesquisadores
me, mas sua tarefa na educação é bem parecida. Claro, ele não precisa
que se apoiam em teorias pedir para que os alunos rasguem seus livros, mas ele pode analisar a
de filósofos contemporâ-
neos importantes, como
pedagogia que está sendo praticada e propor reformulações. Mas ele
Maurizio Lazzarato, Michel não fará isso sem argumentos: vai certamente oferecer inúmeros argu-
Foucault, entre outros.
mentos para mostrar as falhas do sistema atual e alternativas que ele
SOUZA, J.; AVELINO, R.; SILVEIRA, S.
julga serem muito melhores.
A. da. São Paulo: Hedra, 2019.
Ele fará isso não porque é inimigo da pedagogia que está sendo
adotada pelo sistema educacional ou porque quer criar uma rixa com
a pedagoga responsável. Ele fará isso porque provavelmente toda a
pedagogia ali está regendo a vida educacional há tanto tempo que
ninguém mais a contesta, já foi incorporada como uma crença. Todos
automatizaram o que precisa ser feito e o fazem ano após ano da mes-
ma maneira. Mas agora já sabemos como um filósofo trata as crenças;
ele está treinado para perceber ao menos algumas delas, operando na
educação, e dizer quando elas são boas para o ensino ou quando elas
são perniciosas e atrapalham o processo de aprender.

O filósofo da educação pode também interessar-se por certos temas


que ele considera que precisam ser mais bem discutidos por aqueles
profissionais que estão na linha de frente da educação. Um exemplo
bem presente em nosso tempo é a disputa entre o ensino mais hu-
manístico e o de viés tecnicista. De modo geral, as propostas de ensino
tecnicista são bem empolgantes. Pais e alunos ficam satisfeitos quando

30 Filosofia da Educação
ouvem suas ofertas. Em um país, como o nosso, que está na semiperi-
feria do capitalismo, parece haver só vantagens quando a proposta é
ensinar ao jovem alguma habilidade técnica, seja ela aprender a operar
máquinas modernas, consertar aparelhos elétricos ou eletrônicos etc.

Os pais imaginam independência financeira para o futuro dos fi-


lhos e os filhos ficam empolgados porque, imaginam, vão trocar toda
aquela “chatice” de filosofia, história e sociologia por ferramentas e
aparelhos eletrônicos.

É óbvio que não há mal algum no aprendizado de tais atividades.


Porém, se isso resultar na perda do contato dos alunos com disciplinas
que os farão pensar em sua própria humanidade e na relação deles
com outros seres humanos em sociedade, pode haver aí um prejuízo.
Porém, esse é um prejuízo difícil de mensurar. Como eu posso medir o
quanto da capacidade de reflexão e humanização um aluno perdeu? É
aí que entra o filósofo, que busca compreender o problema e, quando
possível, visualizar soluções. Vejamos o que pode ser dito sobre o pro-
blema do tecnicismo na educação:
Amparado pela capitalização do conhecimento incorporado pelo
sujeito, o tecnicismo continua validando suas verdades sobre o
mundo vivido no espaço escolar, conduzido pelas esteiras atuais
da nova fase de modernização da sociedade informacional e
global. Por esses meios, os desdobramentos que assumiu no
terreno fecundo da educação brasileira fizeram prosperar, jus-
tamente, os germes que se propunha a reforma do ensino: o
preparo para a produção industrial. A razão “encantada” pelos
artifícios da reprodução do capital e, com ele, da reprodução da
cultura é conduzida a uma identidade particularmente fortuita,
incisivamente inclinada a imperar somente seu lado desviante,
como razão instrumental. (BRENNAND; MEDEIROS, 2018, p. 12)

O problema maior apontado pelos autores anteriores é o fato de que


a educação tecnicista, do modo como normalmente é proposta, acaba
por focar apenas os conteúdos que apenas têm a razão instrumental
como base. Esta é um conceito desenvolvido por um filósofo alemão
contemporâneo chamado Jürgen Habermas. Em poucas palavras, a ra-
zão instrumental estabelece como único critério a utilidade. Historica-
mente esse tipo de racionalidade foi utilizada pelo homem para dominar
a natureza, conhecendo seu funcionamento por meio da ciência.

Filosofia, Educação e Ciência 31


Livro O problema é que as relações humanas e os problemas sociais
O livro A obra em Negro não são apenas coisas e precisam de um outro tipo de racionali-
conta a história de um
homem da Idade Média dade que não tenha como critério único a utilidade. Relacionar-se
que foi médico, filósofo e com coisas e com artefatos tecnológicos permite relações regidas
alquimista. À medida que
esse personagem vai se pela utilidade, mas com pessoas é o contrário. Um dos problemas
aprofundando no conhe- da educação tecnicista seria não problematizar as consequências
cimento de si, por meio
de suas ricas experiências no comportamento e na sensibilidade de pessoas formadas apenas
com o conhecimento, o para valorizarem o útil.
conflito entre suas ideias
e as imposições de uma Desafio
sociedade marcada pela
intolerância religiosa
Pensando na relação que os jovens, e boa parte dos adultos também, esta-
vai aumentando. Um
romance de difícil leitura, belecem com as redes sociais, que tipo de considerações você imagina que
mas que compensa por um filósofo da educação poderia fazer? Elenque algumas dessas considera-
ser considerado um dos ções observando as informações a seguir:
cem maiores romances
• Compreender, com elementos da análise da economia, análise da infor-
do século XX. Zenon, o
personagem principal, mação e da sociologia, como empresas lucram com a nossa ignorância
encarna muito do que foi acerca dos métodos de coleta de informação nas redes sociais.
discutido neste capítulo
• Elencar efeitos negativos que a relação exagerada com as redes pode
em torno da ideia de
atitude teórica.
causar: efeitos psicológicos, sociais etc.
• Buscar entender como a relação disfuncional com a internet pode com-
YOURCENAR, M. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2018. prometer os relacionamentos afetivos.
• Apresentar o perfil do consumista compulsivo, que muitas empresas
tentam impor como padrão aos internautas.

Mas o que nos interessa é apenas perceber até onde se estende o


olhar filosófico na educação. O filósofo da educação precisa estar aten-
to a questões que nem sempre são conhecidas, mas que ele percebe
que incidem sobre a educação de maneira fundamental. Como eco-
nomistas, sociólogos, administradores e políticos oferecem sua contri-
buição tomando decisões com base em índices, gráficos e relatórios, o
filósofo da educação é aquele que vai debruçar-se sobre temas como
o da razão instrumental, por exemplo, que é mais abstrato e não se
mede em números. E por serem temas já mais abstratos por natureza,
muito especializados e que despertam pouco interesse na maioria das
pessoas, a contribuição da filosofia da educação para o desenvolvimen-
to humano acaba, muitas vezes, passando despercebida.

32 Filosofia da Educação
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Se chegamos até aqui com uma compreensão melhor do que é filoso-
fia e do que é filosofia da educação, boa parte de nossos objetivos foram
atingidos. Precisamos entender que a filosofia é essencialmente uma for-
ma de conhecimento muito preocupada com a fundamentação. Ela não
pode ter medo de aprofundar-se na análise dos conceitos que embasam
a educação. Instrumentalizada como filosofia da educação, sua tarefa é
justamente mergulhar no estudo das teorias e dos conceitos que formam
a base das pedagogias adotadas e buscar extrair dali razões para dizer
que aquela pedagogia é adequada ou para dizer que aquela pedagogia
não serve aos propósitos da educação.
Nesse sentido, é preciso compreender que a filosofia da educação não
é necessariamente um trabalho que visa à legitimação fácil de qualquer
pedagogia. Ela pode muito bem encontrar problemas graves na pedago-
gia adotada e não a recomendar como adequada para o processo de en-
sino. Sendo assim, ainda que preocupada em fundamentar seu objeto
de análise, ela pode também rechaçá-lo. A pedagogia sabe disso; a boa
pedagogia respeita a natureza filosófica, aliás, o que ela mais deve esperar
é que a filosofia da educação se empenhe no rigor de suas análises.
Com Sócrates, Platão e Nietzsche, observamos que os filósofos dificil-
mente repetem uns aos outros; quase sempre estão nos desvelando as-
pectos inéditos da realidade. Depois, vimos o quanto a natureza filosófica é
importante para a filosofia da educação: espera-se dela que, se for necessá-
rio, se contraponha a crenças e costumes enraizados e valorizados pela co-
munidade. O filósofo precisa ter reconhecido o seu direito de se contrapor.
Ele, inclusive, pode recomendar aspectos irrealizáveis em uma pedagogia;
faz parte da atividade filosófica trabalhar com horizontes utópicos. Por fim,
o que se deve esperar da análise filosófica no campo da educação é que ela
contribua na fundamentação dos saberes que por ali circulam.

ATIVIDADES
1. Como podemos responder à seguinte pergunta: o que é filosofia?
Vídeo
2. O que é filosofia da educação? Qual é a sua importância nas escolas?

3. Por que a areté da cultura primitiva grega não encontrou a mesma


aceitação nos tempos de Sócrates e Platão?

Filosofia, Educação e Ciência 33


4. Como Nietzsche entendeu a presença da metafísica na história da
civilização ocidental?

5. Por que é possível dizer que percebemos a realidade de uma maneira


muito parecida que as outras pessoas pertencentes à mesma
sociedade?

REFERÊNCIAS
BERGER, P.; LUCKMANN, T. The Social Construction of Reality. A treatise in the sociology of
knowledge. London: Penguin Books, 1991.
BRENNAND, E. G.; MEDEIROS, J. W. M. A razão invertida: o tecnicismo na educação como
veículo de colonização do mundo vivido. Revista P2P & Inovação, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2,
mar./ago. 2018.
GIACOIA JÚNIOR, O. Nietzsche: fim da metafísica e os pós-modernos. In: IMAGUIRE G.;
ALMEIDA C. L. S.; OLIVEIRA M. A. (orgs.). Metafísica Contemporânea. Rio de Janeiro: Vozes,
2007.
HOFSTADTER, D.; SANDER, E. Surfaces and Essences: analogy as the fuel and fire of thinking.
New York: Basic Books, 2013.
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2013.
NODARI, P. C. A doutrina das ideias em Platão. Revista Síntese, Belo Horizonte, v. 31, n. 101,
p. 359-374, 2004.
VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Perspectiva,
2008.
VICENTE, J. J. N. B. O Papel da Educação na República de Platão. Revista Kínesis, v. VI, n. 11,
p. 215-224, jul. 2014.
STRAUSS, L. Platão. In: STRAUSS, L.; CROPSEY, J. (orgs.). História da Filosofia Política. Rio de
Janeiro: Forense, 2013.

34 Filosofia da Educação
2
Educação e dispositivos
de poder
Neste capítulo, propomos abordar três momentos históricos
distintos, mas relacionados: o início da Idade Moderna, o momen-
to em que ela já está bem consolidada e o momento atual, que al-
guns autores preferem chamar de pós-modernidade. Veremos que
cada momento desses exige um tipo de sujeito. Em seguida, vamos
acompanhar a luta humana pela emancipação por meio da edu-
cação e observar que o trabalho das instituições modernas quase
sempre ocorreu para impedir essa emancipação. Para cada um des-
ses momentos, escolhemos o trabalho de um filósofo (Jean-Jacques
Rousseau, Michel Foucault e Maria Edelweiss Bujes) para entender
melhor como a educação resolve ou procura resolver as tensões en-
tre sujeitos e instituições.

Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• entender as ideias pedagógicas de Jean-Jacques Rousseau,
que não podem ser desvinculadas de seu olhar crítico sobre
a sociedade moderna em seus primeiros passos;
• compreender que, embora Foucault não tenha sido um
filósofo da educação, alguns de seus conceitos são muito
usados na pedagogia e na filosofia da educação;
• aprender o conceito de dispositivo, o qual permite a Foucault
pensar que há uma pedagogia social típica da modernidade
que não se resume às escolas, mas está vinculada a todas as
instituições modernas;
• conhecer uma pensadora brasileira da área da educação
com contribuições pedagógicas originais e que dialogam
com as ideias de Foucault.

Educação e dispositivos de poder 35


2.1 Jean-Jacques Rousseau: o primeiro
Vídeo
passo para a educação moderna
Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) é um dos grandes pensadores
do período moderno. É inevitável associar seu nome à filosofia políti-
ca, em função de sua principal obra, O contrato social. Parte importan-
te dos líderes revolucionários envolvidos no evento mais contundente
do período, a Revolução Francesa (1789–1799), tinham em Rousseau
Glossário
o seu grande inspirador intelectual. No entanto, o pensamento desse
espraiar: espalhar(-se)
por todas as direções; filósofo se espraia para muitas outras áreas, como as artes, a educa-
propagar(-se) (MICHAELIS, ção e, até mesmo, para o que hoje conhecemos como antropologia.
2021).
A educação, escopo deste capítulo, apresenta-se de maneira evi-
dente em Emílio, ou da Educação, considerado por muitos um livro
tão importante quanto O contrato social. E não por coincidência,
Rousseau decidiu publicar os dois livros no mesmo ano, 1762.

Figura 1 Observamos que a leitura de Emílio nos remete a as-


Primeira edição da obra Emílio, ou pectos desenvolvidos em O contrato social e a outros tex-
da Educação (1762)
tos de sua autoria, que procuram pensar a capacidade de
Jean-Jacques Rousseau (1712–1778)/Wikimedia
Commons

sociabilidade do indivíduo moderno e, por conseguinte, a


capacidade de garantir uma vida política saudável para as
sociedades modernas. Rousseau foi um pensador inquieto
e insubmisso; toda a sua obra revela uma postura bastan-
te crítica com relação à sociedade de seu tempo. Por isso,
quando o filósofo se põe a pensar a capacidade de socia-
bilidade humana, as questões que levanta aparecem como
críticas duras.

Emílio é uma tentativa de evitar uma análise apoiada na


imagem de homens adultos e integrados ao sistema social
vigente. Nesse sentido, ele se torna um livro inusitado, mas
de importância ímpar no projeto filosófico de Rousseau,
uma vez que está centrado na figura de uma criança. Essa
criança, Emílio, é acompanhada por seu preceptor desde o
Na obra Emílio, ou da Educação, Rousseau nascimento até os 25 anos de idade.
criticou os métodos educativos de seu tempo.

36 Filosofia da Educação
Figura 2
Preceptor ensinando crianças.

Vol de nuit/Wikimedia Commons


Os preceptores eram
encarregados da educação de
crianças ou jovens em famílias
mais abastadas. Essa função,
bastante antiga, era muito
comum no século XVIII.

O filósofo, na voz do preceptor, nos apresenta – em primeira


pessoa – suas observações atentas com relação ao menino e a suas
escolhas quanto à educação
1
que vai oferecer a essa criança. Então, 1
é essa criança fictícia que passa a ser o objeto de estudo do filósofo. É importante lembrar que
nossa referência para
Claro que, contemporaneamente, talvez exigíssemos um método educação de crianças e
jovens é a escola pública e
científico mais bem elaborado por trás desse tipo de abordagem. gratuita, mas a discussão
Para nós pode parecer um método de análise bastante falível, uma acerca de uma educação
universal para crianças e
vez que temos um narrador e seu relato diante de uma imagem pra- jovens como um direito
ticamente literária de criança; mas precisamos entender que a ciên- social é mais recente; foi
apenas durante o período
cia experimental naquele momento estava apenas se consolidando da Revolução Francesa
e que a psicologia só começa a se organizar no século seguinte. Por que essa ideia ganhou
força.
isso, não podemos exigir de Rousseau o que, por exemplo, Jean Pia-
get ou Lev Vygotsky fizeram acerca da análise do comportamento
infantil no século XX.

Educação e dispositivos de poder 37


Além disso, a filosofia não é definida exatamente como uma
ciência. Assim, é comum que até mesmo contemporaneamente os
filósofos se permitam estabelecer hipóteses ou experiências de pen-
samento que fujam dos rigores observacionais estabelecidos pela
ciência atual. De qualquer forma, Emílio torna-se um marco do pen-
samento sobre a educação. Até hoje debruçam-se sobre esse livro
profissionais de áreas como a filosofia da educação, filosofia, peda-
gogia, psicologia infantil, historiadores e cientistas sociais.

Para nossos propósitos, interessa observar que essa obra – marco


da educação moderna – surge com um olhar especial sobre a infância.
O primeiro e mais visível mérito do texto de Rousseau foi o de ter mu-
dado o estatuto da imagem da infância de como era vista até então. Já
no início de seu texto, Rousseau pede para que Emílio seja visto como
uma criança. Ele faz esse pedido porque sabe que em sua sociedade a
infância se encerrava por volta dos oito anos de idade, pois entendia-
-se que a partir dessa idade se tornavam jovens adultos.

A obra de Rousseau contribuiu não apenas para que essa per-


cepção se modificasse, mas também para que se pensasse em uma
educação específica para os mais jovens. Para nós, parece algo banal
afirmar que a criança precisa de um tratamento social diferente do
adulto e uma educação específica. No entanto, precisamos lembrar
que a noção de diferenciação entre as fases da vida não é apenas
biológica; é também, em grande parte, social.

Ariès (2017) lembra que a criança, até o fim da Idade Média, ti-
nha uma carga afetiva inversamente proporcional ao seu tamanho.
Nesse período, ela recebia o que o grande historiador da infância
chamou de paparicação. Depois era muito comum que a criança pas-
sasse a viver na casa de outra família, com o intuito de aprender um
ofício. Isso significa que não havia um espaço específico reservado à
infância; a criança estava desde muito cedo inserida no espaço dos
adultos e aprendia quase todos os aspectos da vida por meio do
contato direto com eles.

Quando uma criança falecia, algumas pessoas achegadas podiam


ficar consternadas, mas, de modo geral, não era o que acontecia,
pois imaginava-se que outra criança nasceria e substituiria com cer-
ta rapidez a presença da criança que partiu.

38 Filosofia da Educação
Obviamente nossa sensibilidade contemporânea se choca ao sa-
ber disso, até porque hoje os espaços sociais voltados à infância são
inúmeros e nós tendemos a respeitá-los. Atualmente existe, inclu-
sive, um problema oposto: há especialistas que se preocupam com
o excesso de oferta de produtos, de padrões de alimentação e de
consumo voltados à infância.

Figura 3
Espaços voltados para a infância em séculos anteriores

Shakko/Wikimedia Commons
A pintura retrata que não havia
um espaço específico reservado
à infância; a criança estava
desde muito cedo inserida no
espaço dos adultos.
ALMA-TADEMA, L. Educação dos filhos de Clovis. 1861. Óleo sobre tela, color.: 127 x 176.8 cm. Coleção particular.

Mas, de qualquer forma, a percepção que a sociedade medieval


tinha sobre a criança, precisamos reconhecer, é muito diferente da
nossa. E é nesse aspecto que temos uma dívida para com Rousseau,
pois Emílio foi um dos iniciadores do processo que mudou nosso olhar
a respeito da infância. No entanto, a infância na obra não possui ape-
nas um significado, digamos assim, mais literal. Precisamos compreen-
der o significado mais profundo da presença da infância no texto desse
grande filósofo genebrino. Para isso, temos que conhecer também um
pouco de suas demais obras.

A infância interessa a Rousseau como a possibilidade de estabelecer


um paralelo com uma das principais discussões de seu tempo: o ser
humano em estado de natureza. Vejamos em que consiste essa ideia.

Educação e dispositivos de poder 39


Na obra Discurso sobre as ciências e as artes, observamos que Rou-
sseau (1999b) sente uma simpatia especial pelas sociedades mais an-
tigas. Esparta é um de seus modelos. Quando conhecemos um pouco
melhor a história dessa cidade grega, sabemos que ela se notabilizou
por ser, entre as cidades-Estado da Grécia, a mais guerreira.

Toda a educação daquela sociedade voltava-se para a proteção de seu


território e para o preparo contínuo para a guerra. Era uma sociedade rí-
gida, baseada na ordem, no militarismo e na disciplina. Conta-se que seus
cidadãos acreditavam que o luxo e o apego demasiado aos bens mate-
riais poderiam tornar as pessoas menos dispostas para a batalha. Sendo
assim, o estilo de vida adotado acabava sendo propositadamente o mais
simples possível. Com base nisso surge a expressão estilo de vida espar-
tano, que designa alguém que busca austeridade em seus hábitos, não
Glossário cultiva luxos e alimenta-se frugalmente. Até por esses aspectos, acredi-
frugalmente: que se tou-se que Esparta fosse uma cidade sem distinções sociais. Mas a verda-
alimenta com moderação
(HOUAISS, 2009).
de é que essas distinções existiam e muito do modo austero de vida dos
espartanos era cultivado e incentivado pelos grupos dominantes para evi-
tar qualquer tipo de mobilidade social. Quando o filósofo escreve a obra
2 Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
2

A partir deste momento, (ROUSSEAU, 1999a), era provavelmente essa Esparta mítica, austera e
quando mencionarmos
Discurso estaremos nos igualitária que tinha em mente.
referindo à obra Discurso
sobre a origem e os Rousseau se volta para o passado, porque em seu presente não
fundamentos da desigual- consegue enxergar uma sociedade justa. O que ele mais destaca em
dade entre os homens de
Rousseau. Esparta, por exemplo, é a capacidade de autogoverno e a boa cidadania
de seus habitantes: moderados, corajosos e dispostos a se autossacri-
ficar por sua cidade.

Em Discurso, Rousseau procura uma resposta à seguinte questão:


o que é uma sociedade justa? Mas essa pergunta o leva a uma outra,
ainda mais fundamental: o que é natural? – uma vez que ele pretende
fundamentar a justiça como algo que está inscrito na natureza e, por
isso, precisa ser resgatada pelos indivíduos modernos.

Ao tentar responder a essa questão, o recuo histórico de Rousseau


torna-se ainda mais radical. Sua viagem no tempo vai para além de
Esparta. Ele propõe analisar o ser humano em uma dimensão mais
universal, pois crê em poder encontrar os traços mais característicos
da humanidade nos seus representantes quando esses ainda não es-
tavam agregados em uma sociedade civil, ou seja, uma sociedade em

40 Filosofia da Educação
que existem leis regendo os comportamentos e um poder centraliza-
dor que regula tais leis.

Dessa maneira, o filósofo propõe buscar, pela via do pensamen-


to e da hipótese, a humanidade em seu estado de natureza, para sa-
ber se os seres humanos, em sua forma mais original, são bons ou
maus. Dependendo da resposta, seria possível ao filósofo resgatar tais
características e propor os caminhos para a construção de uma socie-
dade mais justa.

Como vimos, esse pensador já havia encontrado na imagem de


Esparta – bastante idealizada – alguns sinais positivos para sua espe-
culação, mas essa cidade grega já era um local organizado em torno
de poderes constituídos. Por isso, Rousseau precisou ir além, ou seja,
teve a necessidade de lançar-se mais adiante da história, imaginando,
portanto, como os seres humanos seriam em seu estado mais puro.
Com base nisso, ele chega à conclusão de que o ser humano é bom
por natureza.

Outros filósofos da era moderna já haviam feito exercício semelhan-


te ao de Rousseau. John Locke, por exemplo, ao buscar compreender o
ser humano em seu estado natural, chega à conclusão de que o ser hu-
mano é mau por natureza. Para Locke, esse estado é qualquer um em
que os homens não tenham um poder centralizador e organizador das
sociabilidades. Para esse filósofo, o ser humano deixado sem leis revela
sua índole original, que é sempre do egoísmo e da autopreservação.

Thomas Hobbes, também a imaginar o ser humano em seu estado


de natureza, já havia dito algo semelhante; são dele expressões como:
“o homem é o lobo do homem” e “a guerra de todos contra todos”.

Para esses dois pensadores ingleses, o estado de natureza precisa


ser evitado, pois o ser humano diante de um mundo sem regulações
sociais revela-se mau. Vejamos o que John Locke (1998, p. 391-392, gri-
fo nosso) relata sobre o estado de natureza e a necessidade de regula-
ção para evitá-lo:
admito sem hesitar que o governo civil é o remédio adequado
para as inconveniências do estado de natureza, que certamente
devem ser grandes quando aos homens é facultado serem juízes
em suas próprias causas, pois é fácil imaginar que aquele que
foi injusto a ponto de causar injúria a um irmão dificilmente será
justo o bastante para condenar a si mesmo por tal.

Educação e dispositivos de poder 41


Dos filósofos que procuraram apoiar suas teorias em alguma possí-
vel essência humana, apenas Rousseau – na Era Moderna – foi capaz de
visualizar algo bom no estado de natureza humano. Até o momento, fa-
lamos da conclusão de Rousseau acerca de nossa natureza, mas ainda
não observamos como ele nos apresenta esse estado em seus textos.
Por isso, é importante vermos como ele faz isso.
A terra abandonada à fertilidade natural e coberta por flores-
tas imensas, que o machado jamais mutilou, oferece, a cada
passo, provisões e abrigos aos animais de qualquer espécie.
Os homens, dispersos em seu seio, observam, imitam sua in-
dústria e, assim, elevam-se até o instinto dos animais, com
a vantagem de que, se cada espécie não possui senão o seu
próprio instinto, o homem, não tendo talvez nenhum que lhe
pertença exclusivamente, apropria-se de todos, igualmente se
nutre da maioria dos vários alimentos que os outros animais
dividem entre si e, consequentemente, encontra sua subsis-
tência mais facilmente do que qualquer deles poderá conse-
guir. (ROUSSEAU, 1999a, p. 58)

Nessa citação, notamos um dos motivos que levam Rousseau


a uma conclusão diferente da de outros filósofos de seu tempo: a
idealização. É inegável que o filósofo idealiza tanto a natureza quan-
to a presença do ser humano nela.

No trecho citado, a natureza surge como algo acolhedor e


professoral – ela é capaz de ensinar como viver às espécies que nela
habitam. E mesmo quando surge de maneira mais ameaçadora, sua
presença parece alimentar apenas aspectos vantajosos para os seres
humanos, conforme Rousseau (1999a, p. 58):
habituados, desde a infância, às intempéries da atmosfera e
ao rigor das estações, experimentados na fadiga e forçados a
defender, nus e sem armas, a vida e a prole contra as outras
bestas ferozes ou a elas escapar correndo, os homens adqui-
rem um temperamento robusto e quase inalterável, os filhos
trazendo para o mundo a excelente constituição de seus pais
e fortificando-a pelas mesmas atividades que a produziram,
adquirem, desse modo, todo o vigor de que a espécie humana
é capaz. A natureza faz com eles precisamente como a lei de
Esparta com os filhos dos cidadãos; torna fortes e robustos
aqueles que são bem constituídos e leva todos os outros a
perecerem, sendo quanto a isso diferente de nossas socieda-
des, onde o Estado, tornando os filhos onerosos para os pais,
mata-os indistintamente antes de seu nascimento.

42 Filosofia da Educação
Já em seu tempo, Rousseau foi muito criticado pela força com que
idealizava a natureza, como se só coisas boas as pessoas pudessem
extrair dela. É verdade que do conhecimento da natureza está toda
a origem da ciência e que a exploração de seus recursos garantiu
a sobrevivência do ser humano na terra. Até esse ponto é possível
concordar plenamente com Rousseau, mas não se pode esquecer do
alto nível de exigência que as intempéries naturais impuseram aos
seres humanos desde os tempos mais remotos.

Outros filósofos entenderão que essas exigências vão levar os


seres humanos a buscar desenvolver habilidades para se protege-
rem das ameaças naturais. O início da civilização está posto: quanto
mais ferramentas e conhecimento para dominar a natureza são de-
senvolvidos, mais os indivíduos se sentem seguros. É por essa razão
também que a maioria dos filósofos olha para o estado natural e vê
algo de que é necessário fugir.

Porém, o olhar de Rousseau é distinto. Já nas linhas finais de nos-


sa última citação, ele elenca os vilões para o estado de coisas que
ele identifica em sua própria sociedade. E nenhum desses vilões é
a natureza. Não há outro texto em que isso fica mais claro do que
em seu famoso Discurso sobre as ciências e as artes. Nesse discurso,
o filósofo identifica nas ciências e nas artes de seu tempo os gran-
des inimigos do progresso humano. Parece contraditório identificar
a ciência como uma barreira ao progresso, mas Rousseau (1999b,
p. 190) fundamenta muito bem o seu ponto de vista:
como o corpo, o espírito tem suas necessidades. Estas são o
fundamento da sociedade, aquelas constituem o seu delei-
te. Enquanto o Governo e suas leis atendem à segurança e
ao bem-estar dos homens reunidos, as ciências, as letras e
as artes, menos despóticas [que o Estado] e talvez mais po-
derosas, estendem guirlandas de flores sobre as cadeias de
ferro de que estão eles carregados, afogam-lhes o sentimen-
to dessa liberdade original para a qual pareciam ter nascido,
fazem com que amem sua escravidão e formam assim o que
se chama povos policiados.

Ainda que identifiquemos as fragilidades de sua idealização da


natureza, é essa que permite ao filósofo construir o aspecto crítico
e mais importante de sua filosofia. Vemos no trecho citado que as
ciências e as artes já fazem parte de uma sociedade considerada
civilizada e cada vez mais distante da natureza.

Educação e dispositivos de poder 43


Para Rousseau, tais atividades funcionam quase como o que con-
temporaneamente entenderíamos como entretenimento.

Figura 4
Ciências, artes e entretenimento

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Serhii Bobyk/Shutterstock
Para Rousseau, as ciências e as artes poderiam ser
entendidas como uma forma de entretenimento. Com o
passar do tempo, essa ideia ganhou novos significados.

Assim, ao invés de tornarem os seres humanos mais solidários,


amáveis e verdadeiros, as ciências e as artes acabam por deixá-los mais
egoístas e acostumados ao luxo e às facilidades que se apresentam por
meio da ciência. “Outros males, piores ainda, acompanham as letras e
as artes. Tal é o luxo, como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos
homens. O luxo, raramente, apresenta-se sem as ciências e as artes,
e estas jamais andam sem ele” (ROUSSEAU, 1999b, p. 208). Mais uma
vez, a Grécia surge como modelo para Rousseau, não como modelo de
um pleno estado de natureza, mas de sociedade com um pouco mais
de equilíbrio: a falta de apego ao luxo e poucas facilidades para en-
frentar o cotidiano formam pessoas ativas e perceptivas para as reais
necessidades que a condição humana estabelece quando diante de um
mundo natural, conforme afirma:
as antigas repúblicas da Grécia, com aquela sabedoria que brilha-
va na maioria de suas instituições, interditavam a seus cidadãos
todos os ofícios tranquilos e sedentários que, enfraquecendo e
corrompendo o corpo, rapidamente debilitam a alma. Com efei-
to, de que maneira poderão enfrentar a fome, a sede, as fadigas,

44 Filosofia da Educação
os perigos e a morte, homens que a necessidade abate e que a
menor pena desanima? (ROUSSEAU, 1999b, p. 208)

Os seres humanos, como se vê na citação, ficam diminuídos em


suas potencialidades. Rousseau via nas sociedades de seu tempo so-
ciedades degeneradas. Degeneradas no sentido de que os cidadãos
modernos tinham facilmente sido seduzidos pelo luxo e não se impor-
tavam mais com a extrema desigualdade social que se avolumava.

As sociedades estariam cada vez mais orientadas, por via da educação,


das ciências e artes, a buscar apenas o excedente, o penduricalho, despre-
zando o que fosse simples e essencial, qualquer que fosse a tarefa.
De onde nascem todos esses abusos senão da funesta desigual-
dade introduzida entre os homens pelo privilégio dos talentos e
pelo aviltamento das virtudes? Aí está o efeito mais evidente de
todos os nossos estudos, a mais perigos de suas consequências.
Não se pergunta mais a um homem se ele tem probidade, mas
se tem talento; nem de um livro se é útil, mas se é bem escrito.
(ROUSSEAU, 1999b, p. 210)

Portanto, virtude para o filósofo distingue-se claramente de talento.


Enquanto virtude representa o essencial, aquilo que não podemos abrir
mão nas coisas e nas relações pessoais e nas situações de uma forma
geral, o talento representa o excessivo, o que ressalta a beleza, mas de
certa forma não é necessário para o bem ou utilidade em alguma coisa.

A filosofia de Rousseau pretende resgatar a noção de virtude. Uma


sociedade virtuosa é aquela que sabe reconhecer o essencial. Por essa Livro
razão, o filósofo se lança na aventura para além do tempo, que é a O livro Germinal, escrito
por Èmile Zola, retrata as
abstração de imaginar o ser humano em seu estado mais natural. Em relações de trabalho e as
seu estado de natureza, o indivíduo ainda não conhece o luxo e o su- lutas das classes operá-
rias exploradas. É um mo-
pérfluo e, por isso mesmo, é um indivíduo virtuoso, bom, que valoriza mento da história em que
apenas os aspectos simples e úteis para a existência. as leis trabalhistas ainda
não regulavam (ou regula-
Hoje tudo isso nos parece de uma inocência muito grande. Mas não vam muito timidamente) o
mundo do trabalho, o que
podemos retirar o mérito de Rousseau de ter se adiantado – em pelo favorecia níveis extremos
menos um século – aos problemas que a nascente sociedade capita- de exploração sobre os
trabalhadores. O livro se
lista ia conhecer. Desigualdade e desumanidade foram aspectos po- concentra em um grupo
derosos no início da exploração dos meios de produção moderno nos de mineiros na França do
século XIX.
séculos XVIII e XIX. Foi em um ritmo muito menos acelerado que essas
ZOLA, È. São Paulo: Estação
sociedades nascentes encontraram regulação para o tipo de explora-
Liberdade, 2012.
ção humana que se destacava cada vez mais.

Educação e dispositivos de poder 45


Agora que conhecemos o cerne do pensamento crítico de
Rousseau, devemos voltar à obra Emílio. Nesse importante livro, o
preceptor pretende educar Emílio para ser um homem virtuoso e
não um homem que venha a valorizar o talento. Um dos aspectos
da educação natural projetada por Rousseau no livro é a busca por
uma educação não intelectualizada, que levaria o aluno a um tipo de
ensino calcado nos livros.

O filósofo propõe que, para além do intelecto, o ser humano é do-


tado de instintos naturais, emoções e sentimentos, sendo que esses
últimos aspectos costumam ser mais confiáveis. Pelo uso do intelec-
to os seres humanos podem criar disfarces, máscaras para os seus
verdadeiros desejos. O intelecto, portanto, pode significar um re-
curso poderoso para o encobrimento da autenticidade e da verdade.

Ao pensar dessa forma, Rousseau pretende não só possibilitar a Emílio


tornar-se alguém mais autêntico e transparente, mas garante que a edu-
cação não seja um processo que busque operar na criança a internaliza-
ção dos interesses dos adultos ou de interesses que a preparem para a
vida adulta. O espaço de liberdade para a criança precisa começar nisso.

São os sentidos e instintos da criança que devem reger o apren-


dizado. Vejamos o que o preceptor de Emílio diz sobre o que deve
Livro reger a educação de seu aluno:
Henry David Thoreau foi na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação
um dos escritores mais in-
comum é o estado do homem; e quem quer que seja educado
fluenciados por Rousseau.
Walden, ou a Vida nos para esses, não pode desempenhar-se mal dos que com esse
Bosques é um clássico se relacionam. Que se destine o meu aluno à carreira militar,
da literatura, misturando
à eclesiástica ou à advocacia pouco me importa. Antes da vo-
relato autobiográfico e
reflexões filosóficas. Nele, cação dos pais, a natureza chama-o para a vida humana. Viver
Thoreau expõe sua expe- é o ofício que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele
riência quando buscou não será, concordo, nem magistrado, nem soldado, nem padre;
refúgio na natureza. Em
uma pequena cabana, o
será primeiramente um homem. Tudo o que um homem deve
autor passa a construir ser ele o saberá, se necessário, tão bem quanto quem quer que
seus próprios móveis e seja; e por mais que o destino o faça mudar de situação, ele
caçar sua própria comida;
estará sempre em seu lugar. (ROUSSEAU, 1979, p. 15)
enfim, busca um modo
de vida que seja o mais
simples possível. Isso lhe
No método de educação exposto pelo preceptor, fica evidente a
possibilita fazer uma das sua confiança nas “lições” da natureza. A educação natural deve ga-
críticas mais contunden-
tes da crescente civiliza-
rantir firmeza de caráter e autoconhecimento suficientes para que o
ção industrial. jovem educando saiba quem é e, por isso, mantenha-se firme nessas
THOREAU, H. D. São Paulo: Edipro, características, independentemente de serem as situações da vida
2018.
favoráveis ou não.

46 Filosofia da Educação
O anti-intelectualismo da doutrina de Rousseau em Emílio ren-
deu-lhe inúmeras críticas. E não dá para dizer que o filósofo já não
soubesse que esse seria um dos resultados inevitáveis. Afinal, ele
escreve no interior de uma sociedade letrada; ele mesmo é um dos
expoentes do Iluminismo, um movimento de valorização do conhe-
Filme
cimento formal e marco inicial das sociedades tecnológicas e cientí-
O filme Na natureza sel-
ficas dos séculos seguintes. vagem narra a história de
um jovem que parte em
Portanto, parece contraditório um filósofo iluminista resgatar os uma viagem em busca de
aspectos até aqui abordados. Mas não! Rousseau talvez, premonito- maior proximidade com
a natureza. Já no início do
riamente, tenha entendido que a ciência e a técnica nos afastariam filme, o jovem doa seu pa-
da natureza e que esse afastamento nos seria prejudicial. trimônio antes de viajar. A
viagem é transformadora
Hoje nosso embate com os problemas ecológicos é uma realida- e, ao longo do caminho,
esse personagem encon-
de. Muitos movimentos se inspiraram nesse aspecto do pensamento tra pessoas, das quais fica
desse filósofo. Após Rousseau, uma série de livros tematizam o re- amigo; essas amizades
parecem enriquecer suas
torno do ser humano à natureza, alguns como crítica às sociedades experiências humanas.
tecnológicas e outros como símbolo de resgate de valores que se Um belo filme, inspirado
em uma história real, mas
perderam com a modernização. com muita inspiração nos
ideais rousseaunianos de
Encerramos nossa reflexão acerca desse importante filósofo simplicidade, desapego e
com as palavras de Touraine (2002, p. 28): “mas, se Rousseau é um valorização das relações
humanas em detrimento
discípulo dos filósofos e em particular de Diderot […], seu pensa- de riquezas materiais.
mento é também a primeira grande crítica interna da modernidade Direção: Sean Penn. Portugal:
que conclama à harmonia da natureza contra a confusão e desi- Paramount Vintage, 2007.
gualdade sociais”.

2.2 Michel Foucault: sobre os


dispositivos de poder
Vídeo
Michel Foucault (1926–1984) não foi propriamente um filósofo da
educação, mas seus conceitos se tornaram tão importantes que é mui-
to difícil deixar de considerar alguns deles aqui. Até porque há uma
série de pensadores da educação que fazem largo uso dos conceitos
desenvolvidos por esse eminente filósofo francês. Sua obra é muito
vasta e grande parte de suas preocupações se dão em torno do que ele
denominou de sociedade disciplinar.

Para Foucault, todas as sociedades se organizam em torno de


relações de poder para poderem existir. De modo geral, quando
teorizamos sobre o poder em um nível social, imaginamos que ele

Educação e dispositivos de poder 47


emana das instituições para os cidadãos, pois essas seriam, por sua
força e respeitabilidade, uma espécie de antena da qual irradiam
normas morais e de comportamento que definem o que é aceito e o
que não é aceito socialmente.

As expectativas que temos do comportamento dos outros e que


os outros têm de nós seriam, em grande parte, resultado da presen-
ça institucional em nossas vidas. Vamos analisar, por exemplo, em
uma instituição como a escola. Nela, desde a infância, recebemos
informação a respeito de nossa história comum, dos valores mais
prezados, dos conhecimentos que nos renderão mais admiração na
família, entre amigos etc. À medida que crescemos, vamos interna-
lizando conhecimentos e comportamentos. Assim, é difícil negar a
forte presença institucional em nossas vidas e principalmente na re-
gulação de nossas vidas.

Foucault também se preocupou muito com esse aspecto da vida


social. Assim sendo, o papel das instituições age em nós de modo tão
furtivo que não percebemos o quanto de nós, de nossos pensamentos,
de nossos comportamentos, se deve a esse trabalho institucional. Esse
aspecto não é uma característica apenas de nossos tempos; as institui-
ções têm essa natureza e esse efeito sobre os indivíduos desde sempre.

No entanto, Foucault preocupou-se com a história de muitas das


instituições representativas das sociedades e percebeu que, junto
dessa natureza geral das instituições, uma abordagem histórica era ca-
paz de revelar as especificidades das instituições modernas. O olhar
filosófico de Foucault se interessa principalmente pela gênese e desen-
volvimento das instituições modernas. Em Vigiar e Punir, o filósofo lança
seu olhar histórico na passagem da Idade Média para a modernidade
e descobre algo curioso: as punições nessas duas fases da história oci-
dental seguem modelos diferentes para cada uma delas.

Na Idade Média, a punição exigia que o corpo do punido estives-


se em evidência; é o que Foucault chama de ostentação dos suplícios.
Embora nos pareça algo absolutamente selvagem, ele observa que o
suplício, nesse contexto, “deve ser equiparado aos extremos de uma
raiva sem lei” (FOUCAULT, 2004, p. 31). Há no suplício desse momento
histórico um método e uma razão de ser, ou melhor, duas razões de
ser: (i) visa tornar infame aquele que é punido, sobre o próprio corpo

48 Filosofia da Educação
do condenado ficarão sinais que não devem se apagar; (ii) visa ser uma
peça em que todos os que presenciaram a punição pudessem, de algu-
ma forma, sentir um pouco a punição como o seu próprio triunfo sobre
o punido, como se cada pessoa sentisse que teve parte na punição.

Foucault (2004, p. 32) escreve: “nos ‘excessos’ dos suplícios, se inves-


te toda a economia do poder”, apontando que, para aquele momento
histórico, esse tipo de punição tinha efetividade e conseguia concen-
trar a autoridade dos poderes constituídos em toda a significação dos
suplícios, o que resultava no reconhecimento dos cidadãos de que uma
ordem jurídica e política realmente praticava a justiça.

Entretanto, por volta do fim do século XVII, tais punições começa-


ram a perder a efetividade: “o protesto contra os suplícios é encon-
trado em toda parte na segunda metade do século XVIII […] O suplício
tornou-se rapidamente intolerável” (FOUCAULT, 2004, p. 63). O filósofo
pergunta-se por quê. E é a sua reposta o que mais nos interessa aqui;
ela tem a ver com a mudança técnica radical e profunda pela qual as
sociedades do século XVII e XVIII passam. Figura 5
Criança utilizando conheci-
O século XVIII é um século em que as sociedades, ao menos as euro-
mento matemático.
peias, começam a se transformar no sentido de adotar um saber mais
preciso e científico, abandonando saberes mais tradicionais.

Harvey (2005) nos ajuda a compreender essa transformação e como


a “matematização” dos saberes científicos invadiu todas as áreas
do conhecimento, oferecendo precisão e substituindo crenças
e costumes que não estivessem de acordo com essa nova ma-
neira de conhecer.
Privados de todos os elementos de fantasia e de
crença religiosa, bem como de todos os vestígios
das experiências envolvidas em sua proporção,
os mapas tinham se tornado sistemas abstra-
tos e estritamente funcionais para a organiza-
ção factual de fenômenos no espaço. A ciência
da projeção mapográficas e as técnicas de
levantamento cadastral os tornaram

A “matematização” dos
Rid
o/

saberes surgiu com a adoção


Sh
ut

de um saber mais preciso e


ter
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científico em todas as áreas do


ck

conhecimento.

Educação e dispositivos de poder 49


descrições matematicamente rigorosas. Eles definiam, com cres-
cente grau de precisão, direitos de propriedade de terra, fron-
teiras territoriais, domínios de administração e controle social,
rotas de comunicação etc. (HARVEY, 2005, p. 227)

Isso não aconteceu apenas com o conhecimento territorial e mapo-


gráfico, mas se espalhou para toda forma de conhecimento, principal-
mente aos que importavam aos interesses dos Estados.

Esse movimento gerou uma capacidade muito maior e mais precisa


de controle dos Estados sobre seus cidadãos: regras mais rigorosas de
identificação, contagem mais precisa das populações, sistemas de se-
gurança e agentes públicos mais bem equipados etc. Com todas essas
modificações, a sensibilidade moderna já não suporta o espetáculo dos
suplícios. O próprio sistema de justiça é invadido pelo apelo da tecnolo-
gia moderna, como nos informa Foucault (2004, p. 76):
deslocar o objetivo e mudar sua escala. Definir novas táticas
para atingir um alvo que agora é mais tênue, mas também mais
largamente difuso no corpo social. Encontrar novas técnicas às
quais ajustar as punições e cujos efeitos adaptar. Colocar novos
princípios para regularizar, afinar, universalizar a arte de casti-
gar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo econô-
mico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus
circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova
tecnologia do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de
ser essenciais da reforma penal no século XVIII.

De modo equivalente a essa mudança técnica, a sensibilidade mo-


derna também não suporta mais a exibição dos suplícios como puni-
ção aos criminosos. Poderíamos imaginar com isso que essa mudança
tenha representado uma sociedade menos punitiva. Mas não é o que
Foucault nos informa. Segundo o filósofo, todo o conhecimento técnico
é utilizado para aperfeiçoar os modos de punição, que não precisam
mais ser explícitos.

Na verdade, o que ocorre agora é que os mecanismos disciplina-


dores não mais se explicitam, porque a técnica fez com que eles se
espalhassem por toda a sociedade. “Muitos processos disciplinares
existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas
também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e
XVIII fórmulas gerais de dominação” (FOUCAULT, 2004, p. 118). Para o

50 Filosofia da Educação
filósofo, as sociedades modernas, ao evitarem a exposição da punição,
desenvolvem mecanismos silenciosos e imperceptíveis de dotar todas
as suas instituições com alto grau de disciplina e vigilância. Junto disso,
esses mecanismos se desinstitucionalizam, ou seja, não estão mais tão
ligados direta e unicamente ao poder do Estado.

É como se as instituições também partilhassem do poder de dis-


ciplinar e vigiar, e fazem isso porque todas elas podem imprimir um
controle calculado, possibilitado pelos avanços tecnológicos.

Assim, fábricas, prisões, escolas, clubes etc. exercem o controle “de


acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo o tempo, o
espaço, os movimentos” (FOUCAULT, 2004, p. 118). Aos métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo e realizam a
sujeição constante de suas forças, impondo a esses corpos uma aceita-
ção sem resistência, Foucault chamará de disciplina.

Assim como a aceitação sem resistência a que os corpos de todos os


indivíduos submetidos a essa disciplina produzem será chamada pelo
filósofo de docilidade. Portanto, a modernidade será, para ele, pródiga
em produzir corpos dóceis.

É importante se perguntar pela finalidade desse tipo de disciplina-


mento e domínio; o princípio que está por trás de tudo isso é o da utili-
dade. A modernidade, mais do que qualquer outro período da história,
procura moldar os cidadãos com base em seus interesses econômicos
e políticos. Foucault (2004, p. 119) sintetiza isso em uma passagem bri-
lhante em Vigiar e Punir:
o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o es-
quadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”
que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nas-
cendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos
outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas
que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez
e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta
as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e dimi-
nui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência).

O mais problemático naquilo que Foucault nos apresenta, se ele es-


tiver correto, é que o conjunto de técnicas e métodos utilizados para
nos convencer silenciosamente – a esse processo silencioso o filósofo

Educação e dispositivos de poder 51


Filme chama de dispositivo – a servir a certos interesses é que tais técnicas
O filme Os Incompreen- e métodos não são colocados à disposição para fomentar o exercício
didos conta a história de
um rapaz de 14 anos de de autonomia dos sujeitos. Pelo contrário, os dispositivos têm por sua
idade, Antoine Doinel, que principal característica a invisibilidade. É muito difícil identificar quando
tem problemas familiares
e se rebela contra as e onde eles agem e sua ação ocorre apenas no sentido de enquadrar o
imposições e disciplinas comportamento, os desejos e as aptidões em direção ao favorecimento
escolares. A filosofia de
Foucault nos convida a de interesses políticos e econômicos.
prestar atenção nos indi-
víduos mais recalcitrantes
Como o próprio filósofo alerta, nossos corpos ficam mais fortes e
da sociedade, pois neles atuantes quando se trata de produzir, e mais fracos, menos falantes e
residem as sementes da
rebeldia, as quais podem
opinativos quando se trata de decidir politicamente a nosso favor. Um
ser úteis para que visuali- aspecto que tem de ser ressaltado na análise de Foucault é o de que ge-
zemos os dispositivos que
nos tornam corpos dóceis.
ralmente, quando falamos em interesses políticos e econômicos, pen-

Direção: François Truffaut. França:


samos imediatamente em elites econômicas e políticas engendrando
Les Films du Carrosse, 1959. modos de explorar as classes trabalhadoras. No entanto, esse tipo de
raciocínio está mais próximo das abordagens marxistas.
Glossário
Porém, para Foucault, ocorre algo diferente desse tipo de interpre-
sub-repticiamente: por
tação: o poder e seus dispositivos não estão sob o controle de forças
meio de meios ilícitos,
ilegais; ilicitamente, ilegal- que os centralizam e o distribuem, mas perpassam toda a sociedade,
mente (DICIO, 2021).
estão nela dispersos.

Assim, não se trata exatamente do controle de uma classe social so-


Livro
bre as demais, mas de uma sociedade completamente vigiada. Todos
Bartlelby, o Escrivão é um
conto de Herman Melville, sofrem os efeitos dos dispositivos de poder.
o mesmo autor do clássi-
co Moby Dick. O persona- A dispersão de poder por toda a sociedade faz Foucault nos
gem do referido conto é
um dos mais enigmáticos alertar de que há uma espécie de pedagogia do poder atuando
da literatura, pois, como sub-repticiamente sobre todos, tendo como resultado a produção de
funcionário público, ele se
nega a realizar qualquer sujeitos infantis, apartados da possibilidade de construírem sua pró-
tarefa. Toda vez que seus
serviços são solicitados, pria autonomia. Assim, como Weinmann (2006, p. 17) enuncia:
ouve-se dele “melhor não
fazer!”. O que teria levado
de acordo com tal enfoque, pode-se afirmar que o dispositivo
o personagem a esse educacional moderno consiste em um conjunto heterogêneo
comportamento é algo
de práticas disciplinares, tais como: discursos sobre a impor-
que prende o leitor do
início ao fim. Precisamos tância de educar a infância, instituições educacionais diversas,
pensar que no seio de prédios e regulamentos escolares, leis de ensino, portarias
uma sociedade que cobra
o melhor desempenho, ministeriais, enunciados com pretensão de cientificidade pe-
eis que surge alguém dagógicos, psicológicos, sociológicos etc.
que se nega a produzir
e atender aos ditames
econômicos e sociais de
Por fim, cabe lembrar que duzentos anos antes, Rousseau pedia
seu tempo. que a sociedade atentasse mais ao que fosse útil e menos ao que
MELVILLE, H. Rio de Janeiro: José fosse supérfluo. O pensamento de Foucault parece uma resposta ao
Olympio, 2017.
apelo de Rousseau.

52 Filosofia da Educação
É como se ele estivesse dizendo que as sociedades modernas
souberam muito bem identificar os mecanismos de captação da
energia produtiva em torno da utilidade e, com base nisso, com a
ajuda do desenvolvimento tecnológico, produziram corpos dóceis,
que aceitam a sujeição sem nem a perceberem.

2.3 Maria Bujes: dispositivos de


poder na educação infantil
Vídeo
Maria Isabel Edelweiss Bujes, pedagoga, pesquisadora e doutora
em Educação no Brasil, é uma das vozes originais e influentes quanto
à análise da condição da educação infantil nas sociedades contem-
porâneas. Seu pensamento aproveita ideias e conceitos desenvol-
vidos por Michel Foucault, mas não apenas. Podemos dizer que, de
certa maneira, ela está filiada ao pensamento pós-estruturalista.

Dentre algumas das características do pós-estruturalismo está a


sua desconfiança com relação às possibilidades emancipadoras pro-
metidas no início do projeto moderno. Assim, se em sua nascente a
modernidade acreditou ser possível tornar os sujeitos autônomos,
racionais e livres, hoje há quem afirme se tratar de um projeto ina-
cabado e sem condições de cumprir o que prometeu.

Em Foucault isso já estava posto, pois sua obra denuncia o quanto


o desenvolvimento técnico e científico acabou por trair os ideais mo-
dernos. Se o filósofo francês estiver correto em seus argumentos, esse
desenvolvimento serviu para facilitar a docilidade dos corpos em sua
aceitação silenciosa, e até inocente, das disciplinas necessárias ao favo-
recimento das forças econômicas e políticas atuais.

É importante realçar aqui o fato de que quando apontamos o


silêncio dos dispositivos de poder operando em todas as direções,
a fim de docilizar nossas vontades, não devemos imaginar que essa
operação só se põe em funcionamento quando somos adultos. To-
dos estão sujeitos a essa interferência, inclusive crianças. Desde o
nascimento das sociedades modernas, a escola, por ser uma insti-
tuição altamente respeitada, tem sido um dos símbolos em que os
dispositivos circulam melhor e têm mais eficiência. Por essa razão,
há necessidade de dobrar os cuidados sobre ela.

Educação e dispositivos de poder 53


Maria Edelweiss Bujes sabe disso e seus trabalhos procuram de-
senvolver uma compreensão mais refinada do ambiente escolar, dos
projetos pedagógicos que o permeiam e o efeito deles nas crianças.
Em um estudo que procurou analisar o Referencial Curricular para
a Educação Infantil (RCN) de 1998, ela já apontava para o perigo dos
conteúdos impostos pelas pedagogias vigentes e que procuravam
disfarçar a sua arbitrariedade com tons de neutralidade.
A perspectiva em que se moveu o estudo, portanto, foi a de
enfatizar em suas análises o caráter histórico e político do Re-
ferencial. Isso implicou mostrar como as opções nele presentes
– que dizem respeito aos saberes que o orientam, aos arranjos
que o compõem, aos saberes que põe em marcha, às palavras
de ordem que faz ressoar etc. – não passam de escolhas ar-
bitrárias de um grupo social e profissional hegemônico, e são
nele incorporadas de tal forma que passam a ser vistas como
naturais e não passíveis de discussão. (BUJES, 2002, p. 18)

Muito importante no trecho citado a referência que a autora faz


da necessidade de buscar o caráter histórico do documento ana-
lisado. Essa é uma estratégia aprendida com Foucault; para ele a
grande arma para identificar os mecanismos silenciosos e as tramas
do poder que se inserem nos discursos (sejam esses discursos do-
cumentos, livros, palestras, aulas, imagens, imagens fílmicas, enfim,
tudo o que envolve linguagem e visa a nosso convencimento) é a
busca de sua gênese.

Toda ideia, toda proposta de comportamento e de regime moral


Glossário
possui um histórico; para Foucault, é preciso pesquisar esse registro
urdidura: ato de dispor
os fios (de uma teia, de ro-
para descobrir intenções não reveladas que se escondem na origem
los) para fazer um tecido. desses discursos. Aqui, Maria Bujes nos mostra que uma série de
propostas pedagógicas se inserem nos documentos oficiais e, com
um certo verniz de cientificidade, se colocam como naturais, quan-
3 do na verdade são historicamente construídas, com intenções muito
O termo urdidura é aqui
bem determinadas.
empregado no sentido
figurado, pois compreen-
Efetivamente, na trilha aberta por Foucault, Maria Bujes parece
demos a linguagem como valorizar a investigação histórica, com especial atenção às urdidu-
uma teia, na qual as 3
urdiduras seriam a sua
ras presentes na linguagem . E devemos estar realmente atentos a
trama. A analogia revela esse aspecto, principalmente quando falamos de escola, pois é nela
a complexidade das
estruturas que compõem
que os discursos circulam mais livremente e se aproveitam da vali-
a linguagem. dação que a principal instituição de conhecimento das sociedades

54 Filosofia da Educação
contemporâneas pode produzir. Ou seja, se os discursos conseguem
circular pelo espaço escolar, de alguma forma, independente dos
conteúdos que carregam, eles automaticamente nos parecem ver-
dadeiros, pois essa instituição respeitável com relação ao conheci-
mento abriu-lhes passagem. E isso é perigoso. Vejamos o que Bujes
(2002, p. 21) pensa acerca da preocupação com a linguagem:
a perspectiva sobre a qual meus estudos se apoiam afirma que
os objetos do mundo social são construídos discursivamente, não
apenas pela linguagem falada ou escrita, mas também por meio
da utilização de sistemas de representação que nos permitem
utilizar signos e símbolos para representar o que existe à nossa
volta, seja um conceito, uma ideia ou imagem. […] Os significa-
dos não estão dados para sempre, eles são sempre transitórios
porque são constituídos historicamente […] a essência das coisas
nada mais é do que uma invenção humana, instituída nas trocas e
negociações de sentido que estabelecemos intersubjetivamente.

Atentemos para a força do seguinte aspecto: para Maria Bujes


(2002, p. 21) os “objetos do mundo social são construídos discursi-
vamente”. Isso significa dizer que para esse tipo de pensamento, as
batalhas no mundo se decidem sobretudo por meio do discurso.
Nossa atenção sobre ele deve ser redobrada, pois é por meio dele
que os dispositivos de poder mais se organizam.

Figura 6
Circulação dos discursos nas sociedades Para Bujes, discurso não é
apenas o ato de enunciar;
são discursos diferentes:
documentos, livros, imagens,
palestras etc.
Andrii Yalanskyi/
phipatbig/IhorZigor/
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Educação e dispositivos de poder 55


Mas a presença do discurso não está somente nas relações exter-
nas a nós; é sobretudo no nosso interior, no modo como pensamos em
nós mesmos, que os efeitos desse discurso se refletem: “a experiência
em que os sujeitos se reconhecem como tal é uma atribuição de senti-
do às próprias condutas e alheias” (BUJES, 2002, p. 22). Nesse sentido,
o que nos forma enquanto sujeitos, o que nos dá identidade, não são
características essenciais, naturais, que estiveram sempre conosco; de-
pende muito mais das conexões que estabelecemos ao longo da vida
com outros objetos, práticas, discursos, relações e forças.

Nossa autoconsciência e autocompreensão são “um efeito de discur-


sos que constituem tanto as relações de poder quanto a subjetividade.
Discursos que definem o que pode ser dito e pensado; quem pode falar
e quando isso deve ocorrer” (BUJES, 2002, p. 22). Desse modo, é possível,
de acordo com a pesquisadora, falar de um “eu inventado”, no sentido
de que todos nós somos, em muitos aspectos, fruto dessa confluência
de discursos que inevitavelmente nos incide. Se é possível falar de um eu
inventado, é preciso, portanto, estar atento aos discursos que vão incidir
sobre aqueles que ainda estão inventando o seu eu, isto é, as crianças.

Bujes (2010) chama a atenção para os riscos de uma certa cum-


plicidade que pode ser engendrada entre a pedagogia e os recursos
e discursos científicos disponíveis no trato com a educação. Isso não
está muito desenvolvido no texto de Bujes, mas vamos nos permitir
inserir algumas inferências acerca do que ela nos sugere: a peda-
gogia, apenas por dominar tais recursos e discursos esperados em
uma sociedade técnica, que gera expectativas de domínio técnico
daqueles que ocupam espaços de liderança, como é o caso dos pro-
fessores sobre os alunos, garantiria a legitimidade dos projetos pe-
dagógicos. Em outras palavras, a qualidade da pedagogia aplicada
seria julgada mais por seu domínio técnico, sua expertise, do que
propriamente pelos benefícios que pudesse oferecer aos alunos.
Conforme a própria Bujes (2010, p. 171):
desde o século XIX, o controle sobre as crianças vem se apro-
fundando, pois um discurso regulamentador tem possibilitado a
efetuação de diagnósticos, a proposição de medidas, a previsão
de resultados, colocando em ação um princípio de visibilidade
obrigatória dos sujeitos infantis (notas escolares, medidas antro-
pométricas, registros de observação, dossiês…). Tudo isso serve
para demonstrar as implicações da ciência com o governamento

56 Filosofia da Educação
das populações e a inexorável cumplicidade que se estabelece
entre pedagogia e expertise, por exemplo.

O perigo na referida cumplicidade reside no fato de que a pedagogia,


em vez de pensar criticamente a formação dos alunos, compactuada
com o estado de coisas concordantes com os recursos de controle da
sociedade, não teria capacidade de promover um projeto de autonomi-
zação dos sujeitos formados pela escola. Isso confirma que essa pro-
moção da autonomia dos sujeitos como promessa acaba sendo sempre
frustrada, desde seu início, com a consolidação da modernidade. Entre-
tanto, Bujes não nos oferece apenas a impressão de que isso ocorre. Em
um texto posterior, ela fará uma análise de caso muito interessante que,
de certa forma, materializa suas observações anteriores.

Bujes e Rosa (2012) situam historicamente a escola contemporânea


como sendo a segunda escola, diferente em alguns aspectos da escola
do início da modernidade (a primeira escola). Enquanto a primeira cen-
trava-se nos métodos de repetição e memorização, a escola atual defen-
de as experiências realizadas pelo próprio aluno. As autoras associam
esse aspecto a Rousseau – não podemos esquecer, como vimos na
primeira seção deste capítulo, que o ponto essencial do preceptor de
Emílio era dotar seu pupilo de autonomia e, para isso, exigia do rapaz
pouco contato com os saberes instituídos, criando assim a possibilidade
de que o próprio jovem atento aos ensinamentos naturais buscasse ex-
periências educativas e as resolvesse por si mesmo.

Além disso, a segunda escola tem como característica a mobilidade,


diferente da ordenação tipicamente disciplinar da primeira escola. Mo-
bilidade aqui se refere às exigências sociais que esperam que os indiví-
duos contemporâneos estejam preparados para atuar em um mundo
sempre movente e que sejam capazes de responder adequadamente
às novas exigências sociais e profissionais que se apresentam a todo
momento. Porém, mesmo nesse novo regime, os dispositivos de poder
continuam atuando. E a escola nesses novos tempos prepara o indiví-
duo para a autonomia ou para, mais uma vez, submeter-se silenciosa-
mente aos interesses que não são seus?

Em primeiro lugar, é preciso compreender que os interesses econô-


micos vigentes na primeira escola eram os de uma sociedade industrial
surgente, cujo objetivo mais importante, em termos humanos e eco-
nômicos, era construir sujeitos capazes para a atividade da produção;

Educação e dispositivos de poder 57


indivíduos que se conformassem com empregos e atividades ligadas ao
mundo da indústria, ainda semirreguladas por leis trabalhistas.
4 Já em nossa sociedade, o interesse se organiza em torno do con-
4
Antunes (2009, p. 126) sumo e não mais da produção; é preciso formar consumidores ,
retrata corretamente o
cenário econômico atual,
e o mundo do trabalho passa a explorar muito mais as capacidades
centrado no consumo: intelectuais dos trabalhadores, que antes eram explorados apenas em
“um produto, antes de
ser fabricado, deve ser
sua força física.
vendido (mesmo numa
indústria ‘pesada’, como
Se antes, na primeira escola, sob o liberalismo, o significado de
a automobilística, um liberdade estava associado a algo natural e espontâneo, agora, sob
automóvel é colocado na
produção somente depois
o neoliberalismo, a liberdade é ressignificada para objeto de consu-
que as redes de vendas mo. Basta checarmos as redes sociais. Hoje a imagem de sujeitos
dão o comando)”.
felizes, livres e autônomos é encontrada em muitos perfis do Insta-
gram, por exemplo. É claro que na maioria das vezes isso não pas-
sa de uma imagem, mas o próprio sujeito virou objeto de consumo
(uma foto bem tirada, objetos de valor adquiridos e postados são
sempre correspondidos com likes).

Portanto, diante dessa nova configuração social, as autoras se põem


a analisar propostas pedagógicas que prometem muito e se colocam
como inovadoras. As propostas analisadas têm em comum apresentar
como inovador o ensino que se centra em projetos de trabalho. Tais
projetos são apresentados como estratégias pedagógicas que visam
transgredir e explorar novos caminhos, fazendo com que as escolas
deixem de “ser formadas por compartimentos fechados”.

Então, o que temos aqui é o aluno elaborando um projeto que seja de


seu agrado e se engajando na tarefa de resolver os problemas que o pro-
jeto exige. Assim, de acordo com Bujes e Rosa (2012, p. 14, grifos nossos),
os Projetos de Trabalho elevam à máxima preconizada de levar
o sujeito a reaprender a aprender ao longo de sua vida. Cada um
descobre que tem responsabilidade na sua própria aprendiza-
gem – o sujeito empresário de si –, sendo apto a desenvolver suas
capacidades na tentativa de melhor solucionar os desafios e resol-
ver os problemas de seu cotidiano.

Do mesmo modo, o professor vê-se obrigado a atualizar-se em lei-


turas que lhe apresentam um vocabulário novo, como os conceitos de
flexibilidade, espírito inovador, aprender a aprender. Como resultado,
professores e alunos passam a usar um novo vocabulário; mas desco-
bre-se que ele não é tão novo assim, pois é usado há muito pela nova

58 Filosofia da Educação
ordem econômica. Desse modo, o grande questionamento que fica é:
onde está o impulso dessa suposta nova pedagogia para direcionar o
aluno no caminho da autonomia?

Especificamente o que essa proposta traz é apenas o apelo empre-


sarial que espera ter esse perfil de cidadãos, treinados a responder
com desenvoltura às demandas econômicas operantes na sociedade.

O que queremos expressar com isso é que a escola, nesse exemplo


de análise, não está fornecendo nada inovador; está apenas facilitando
o assujeitamento, a aceitação silenciosa que discutimos no início desta
seção, dos interesses políticos e econômicos da vez.

Os imperativos sociais, econômicos e políticos mudaram da primeira


escola para a segunda, mas essa instituição continua com o mesmo papel:
não de emancipar o aluno, mas o contrário, de obscurecer, de tornar o mais
invisível possível o processo de aceitação dos dispositivos disciplinares.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Seguindo o tema da educação e sua relação com a infância, procura-
mos dar coerência ao fio histórico que acompanha o capítulo. Vimos com
Rousseau o início da Idade Moderna e sua crítica ao tipo de sociedade
que ele via nascer. A proposta pedagógica do filósofo visa a um modelo
de educação que possa se contrapor aos apelos do luxo, que naquele mo-
mento apontavam para o aumento da desigualdade social caso o apego
ao referido apelo se confirmasse.
Foucault nos ajuda a pensar a educação em um outro momento da
história da modernidade, em que o desenvolvimento técnico colabora
para a massificação dos dispositivos de poder e controle das sociedades
de um capitalismo avançado.
Com Maria Edelweiss Bujes, um terceiro momento dessa história foi te-
matizado, o momento atual, em que os dispositivos continuam atuantes,
mas exigem um novo sujeito, que supostamente é livre, embora descu-
bramos que essa imagem de liberdade é enganosa; as instituições conti-
nuam contribuindo para o assujeitamento pacífico e silencioso dos seres
humanos, os conformando não às suas próprias necessidades, mas às
necessidades dos interesses econômicos e políticos vigentes.

Educação e dispositivos de poder 59


ATIVIDADES
Vídeo 1. Por que Esparta é um modelo inspirador para Rousseau? Comente.

2. Que características permitem dizer que a percepção a respeito da


infância na Idade Média e início da Era Moderna era muito diferente da
percepção contemporânea? Discorra.

3. O que é o estado de natureza? Defina.

4. Como o estado de natureza está vinculado ao pensamento pedagógico


para Rousseau?

5. Por que Foucault não aceitaria a sugestão de Rousseau acerca da


importância da utilidade como garantia de sociedades mais justas?

REFERÊNCIAS
ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 2017.
BUJES, M. I. E. A invenção do eu infantil: dispositivos pedagógicos em ação. Revista
Brasileira de Educação, n. 21, p. 17-39, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-
24782002000300003. Aceso em: 16 jul. 2021.
BUJES, M. I. E. Infância e Risco. Educação & Realidade, v. 35, n. 3, p. 157-174, set./dez. 2010.
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BUJES, M. I. E.; ROSA, J. de M. Discursos curriculares da formação docente, projetos de
trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal. Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18, jul. 2012.
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DICIO. Dicionário On-line de Português. Disponível em: https://www.dicio.com.br/. Acesso
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FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2004.
HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
LOCKE, J. Dois Tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. 2021. Disponível em: https://
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ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre as ciências e as artes. São Paulo: Nova Cultural, 1999b.
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TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 2002.
WEINMANN, A. de O. Dispositivo: um solo para a subjetivação. Psicologia & Sociedade, v. 18,
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Acesso em: 16 jul. 2021.

60 Filosofia da Educação
3
Educação e democracia
Neste capítulo, vamos abordar alguns momentos do surgimento e da
consolidação do que atualmente entendemos por democracia liberal. Junto
a isso, mas não menos importante, interessa-nos compreender os aspectos
que incidem sobre a educação nesse cenário. Dois pensadores importantes
que nos servirão de guias para esse trajeto são: John Dewey, o qual exerceu
grande influência no campo da educação e da política ao longo de todo o sé-
culo XX, situando-se como um pensador liberal; e Jürgen Habermas, filósofo
e autor de vasta obra, que procurou oferecer respostas a problemas graves
presentes nas democracias liberais. Algumas das respostas de Habermas
nos interessam, pois refletem diretamente no campo da educação.
Por fim, procuramos apontar a importância e as limitações das propostas
de Habermas, com base em alguns dos críticos do pensamento desse eminen-
te filósofo. Vivemos um tempo em que disputas ideológicas entre o que classi-
ficamos como esquerda e direita se tornaram evidentes, por isso vale lembrar
que o contexto histórico que permeia esses dois filósofos nos permitirá com-
preender melhor a gênese dessas disputas, uma vez que o pensamento tanto
de Dewey quanto de Habermas se espraia para além da educação e reflete,
exemplarmente, os embates que ganham contornos definidos no século XVIII.

Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• aprender os aspectos do pensamento de Dewey que eviden-
ciem seu posicionamento político e como esse, divergente
do marxismo e do liberalismo mais tradicional, impactou
suas reflexões sobre a democracia e sobre o quanto a edu-
cação é fundamental para o projeto de uma democracia libe-
ral renovada;
• compreender os conceitos de esfera pública, mundo da vida
e sistema desenvolvidos por Habermas;
• conhecer algumas das críticas endereçadas ao modelo teóri-
co de Habermas.

Educação e democracia 61
3.1 Uma educação liberal renovada
Vídeo As redes sociais são um termômetro interessante no que diz res-
peito a posicionamentos políticos. Se você tem ou já teve um perfil
em alguma delas, dificilmente passou incólume em relação ao teor
apaixonado com que os usuários defendem suas posições políticas,
defesas essas, muitas vezes, sem conhecimento algum, apenas por pai-
Glossário xão e exaltação. De qualquer forma, não é nossa proposta defender
incólume: que permane- qualquer posição, mas compreender melhor a gênese dessa disputa.
ce igual, sem alteração;
bem conservado, inaltera-
É preciso fazer isso por dois motivos: (i) porque a ideia de educação
do (HOUASSIS, 2009). vigente, os projetos pedagógicos que a embasam e aqueles projetos
que a criticam, todos estão em constante diálogo com o cenário e as
expectativas geradas pelas políticas adotadas pelos Estados modernos;
(ii) porque os filósofos que vamos estudar neste capítulo também são
políticos; assim, a política está presente mesmo quando o foco de seus
argumentos não é, necessariamente, político.

John Dewey (1859-1952) pode ter seu pensamento situado no interior


do liberalismo, enquanto Jürgen Habermas (1929-), filósofo contempo-
râneo, é descende da Escola da Frankfurt – famoso grupo alemão de
pensadores de esquerda (embora o seu pensamento tenha, ao longo
dos anos, se distanciado de muitas das teses do grupo frankfurtiano).
Embasados nesse posicionamento inicial desses filósofos, vamos com-
preender, um pouco melhor, do que se trata a distinção entre esquerda
e direita por meio da história. Depois, ao estudarmos mais detidamente
acerca de cada uma, poderemos identificar o modo como as suas ideias
se relacionam aos seus posicionamentos políticos.

Para uma melhor delimitação temporal de nossa distinção, pode-


mos dizer que o início desse tipo de disputa ideológica ocorre após
o evento símbolo que marca o começo de nossa era moderna: a Re-
volução Francesa (1789–1799). O monumental trabalho de Wallerstein
(2011) nos ajuda nessa breve explicação. Para ele, quando a Revolução
Francesa se concretizou, um grupo específico de franceses viu nela um
tipo de mudança política planejada e que, por isso, feria o que eles en-
tendiam por evolução lenta das forças sociais “naturais”. Na verdade,
hoje, mais do que naquele momento, há uma grande desconfiança em
torno da defesa de algum tipo de natureza ou essência que determine
a velocidade das mudanças sociais.

62 Filosofia da Educação
Contemporaneamente, as ciências sociais e, fundamentalmente, nesse
caso, a ciência política estão cada vez mais amparadas por números e esta-
tísticas, o que confere uma exatidão maior às suas análises. No entanto, há
certo grau imponderável nas relações sociais e na história dos agrupamen-
tos humanos que impede os números de estabelecerem cenários futuros
com um grau de certeza. Dificilmente, cientistas sociais e historiadores de-
sejarão comprometer-se com a ideia de leis naturais que rejam os eventos

de uma sociedade para uma direção, um desenlace já predeterminado por uma


suposta natureza neles presentes.
Mas para aquele grupo de franceses era o que tinha ocorrido; a
revolução, por ter sido deliberada, jamais coincidiria com as “verda-
deiras” mudanças que somente a natureza das forças sociais poderia
determinar. De qualquer forma, precisamos apenas compreender que
esse grupo, que carregava consigo uma ideologia conservadora, reagiu
contrariamente aos eventos revolucionários e, por esse espírito reativo,
ficaram marcados como reacionários. Assim, reacionário, naquele mo-
mento histórico, significa não mais do que uma posição reativa diante
das mudanças revolucionárias – sendo essa a ideologia conservadora
que esteve nesse primeiro momento relacionada ao termo reacionário.

Os conservadores (reacionários), em termos objetivos, se dividiam


em dois grupos do conservadorismo/reacionarismo:

Tah Design/Shutterstock
Versão sofisticada
Versão forte Aqueles que entendiam
como melhor solução
Aqueles que propunham
limitar os “danos” e retardar,
a reversão completa das
tanto quanto possível,
ideias e ações da revolução.
as mudanças, inspiradas
na revolução, que ainda
estariam por vir.

Educação e democracia 63
Organizados dessa forma, os dois grupos uniam-se na ideia de que
era necessário retomar o poder político – sendo isso o que ocorre em
1815, quando os conservadores retomam o poder em um evento que
eles cunharam como Restauração. Entretanto, foi um poder que não du-
rou muito, pois logo os ideais revolucionários estariam de volta ao poder.

Os liberais surgem, aproximadamente, no mesmo momento que


os conservadores, mas com posições contrárias a estes. De maneira
ainda turva, eles se organizaram em torno da defesa da revolução e de
tudo o que ela prometia para o futuro. Contudo, foi em 1815 que essa
posição ficou bem definida, com os liberais se proclamando como ple-
na oposição ao conservadorismo. Estava formado, assim, o primeiro
cenário das disputas ideológicas e políticas modernas das sociedades
ocidentais. À direita, localizavam-se os conservadores, buscando, a
todo custo, um retorno às estruturas sociais correspondentes à mo-
narquia absolutista. À esquerda, os liberais, que se proclamavam
universalistas e defensores de uma nova consciência, a qual abarcava
tudo que representava ser moderno.

O socialismo foi a última das três ideologias a ser formulada: “antes


de 1848 dificilmente ela podia ser pensada como uma ideologia distin-
tiva” (WALLERSTEIN, 2011, p. 10). Inicialmente, aqueles que viriam a ser
considerados socialistas não se diferenciavam dos liberais, mas, aos
poucos, as diferenças foram se delineando; assim, a principal delas
se referia à velocidade das mudanças que os dois grupos projetavam
aplicar por meio da política em direção ao que entendiam por progres-
so. Nos socialistas residia a convicção de que as mudanças precisavam
ser aceleradas e não se dariam sem muitos esforços e planejamento,
como relata Wallerstein (2011, p. 11, grifos do original):
o coração do programa deles, em resumo, consistia em acelerar o
curso da história. Aí está a razão pela qual a palavra revolução era
mais considerada por eles do que reforma, que parecia implicar
em atividade política, se conscienciosa, meramente paciente, pare-
cendo encarnar primariamente uma atitude de esperar para ver.

É muito comum até os dias de hoje que liberais estejam associados


à ideia de reforma, portanto são reformistas, o que implica a cren-
ça de que as mudanças políticas e sociais devem ser implementadas,
mas de maneira lenta, e à ideia de revolução estejam ligados os so-
cialistas, embora essa ideia esteja hoje mais vinculada ao comunismo
do que ao socialismo.

64 Filosofia da Educação
De qualquer forma, desde 1848, com os socialistas se opondo niti-
damente aos liberais, o quadro de posições políticas se completou. À
direita estavam os conservadores monarquistas; ao centro, os liberais,
que enquanto só tinham como oposição os conservadores estavam à
esquerda, entretanto quando os socialistas se organizaram, passaram
a ocupar o centro; e, por fim, à esquerda, os socialistas. O critério aqui
é a postura diante dos ideais revolucionários e da velocidade das mu-
danças. A seguir, o Quadro 1 nos ajuda no mapeamento de localização
dessas posições ideológicas.

Quadro 1
Posições ideológicas

Revolução Francesa
Socialistas (esquerda) Liberais (centro) Conservadores (direita)
Revolucionários Reformistas Reacionários
Acreditavam nos ideais da Revolução Acreditavam nos ideais da Revo- Não acreditavam nos ideais da Revo-
Francesa. lução Francesa. lução Francesa; opunham-se a ela.
Desejavam mudanças profundas e Desejavam mudanças, mas com
Desejavam o retorno da monarquia.
velozes. moderação.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Pelo que conhecemos da história, não é difícil indicar que, das três
posições, foi o liberalismo que se espalhou culturalmente por quase
todas as instituições modernas. Uma de suas construções ideológicas é
a nossa democracia moderna. Geralmente nos referimos à democracia
sem atentarmos para a necessidade de qualquer outro qualificativo.
No entanto, vamos nos referir a ela como democracia liberal, afinal a
maior parte dos regimes democráticos, os quais se consolidaram do
século XIX até os dias atuais, são tidos como democracia liberal, cuja es-
trutura está embasada nos ideais liberais, tais como a defesa do respei-
to à pessoa humana em sua individualidade e da propriedade privada.

Contemporaneamente, as três ideologias apresentadas sofreram


modificações. O liberalismo, por exemplo, possui muitas vertentes, al-
gumas delas estão mais à direita do que ao centro, se confundindo com
posições mais conservadoras. O socialismo, nesse sentido, tem um
perfil parecido, pois há posições mais à esquerda, mais radicais, como
o comunismo, e mais ao centro, como a social-democracia, que é uma
tentativa de unir o melhor dos dois mundos, socialismo e liberalismo.

Em regimes democráticos, o conservadorismo retrocedeu em al-


guns casos, como a dificuldade de encontrar posições que defendam

Educação e democracia 65
nos dias atuais o retorno às monarquias absolutistas. Posturas como
essa – assim como o comunismo, à esquerda – geralmente estão fora
do jogo democrático por se tratarem de radicalismos perigosos.

Os conservadores que se mantêm no jogo democrático não defen-


dem o retorno às monarquias absolutistas, mesmo que, muito comu-
mente, se coloquem à defesa de grupos tradicionais, como líderes na
condução das decisões políticas e econômicas. Dada a complexidade
das distinções, um melhor explicativo deveria usar matizes – uma vez
que em alguns pontos as ideologias se misturam –, mas seguindo o
mesmo movimento desde que essas ideologias se organizaram após
a Revolução Francesa, da esquerda para a direita: comunistas, socialis-
tas, social-democratas, liberais e conservadores. Além disso, em cada
uma dessas matizes, situam-se ainda inúmeras vertentes.

Figura 1
Ideário de luta pela liberdade

Erich Lessing / Art Resource, NY/Wikimedia Commons

A Revolução de Julho de 1830


– momento em que houve
uma série de levantes contra
a monarquia francesa – é
tema dessa obra de Delacroix.
Posteriormente, ela foi
transformada em verdadeiro
símbolo da representação da
luta por liberdade em diversas
partes do mundo.

DELACROIX, E. A Liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela, color.: 260 x 325 cm. Museu do Louvre, Paris.

Conforme abordamos, cada uma das ideologias defendia uma velo-


cidade que deveria ser firmada a mudanças sociais – no caso dos con-
servadores, o desejo era o retorno ao antigo estado monárquico. Porém,
em termos mais práticos, não podemos ignorar que, ao longo dos sécu-
los XIX e XX, uma questão foi mais central nas disputas: o próprio Estado.

Nas versões da esquerda, defende-se uma maior interferência do


Estado na gerência da economia, enquanto nas da direita o Estado

66 Filosofia da Educação
deve buscar a neutralidade, com a regulação da economia sendo feita
pelos próprios agentes econômicos. Isso precisa ser dito porque a ideia
de neutralidade do Estado é um dos maiores problemas nas demo-
cracias liberais; geralmente ela está garantida formalmente (nos dis-
cursos, nas leis, “na letra”, como dizemos), porém, materialmente, nas
ações econômicas, políticas e sociais, ela nem sempre se concretiza. E
isso impacta também as questões educacionais. Voltaremos ao tema
quando apresentarmos as críticas ao pensamento de Habermas.

Por meio disso, notamos que o cenário atual é muito complexo para ter-
mos a pretensão de defini-lo em poucas linhas. De qualquer forma, conse-
guimos apresentar as forças políticas que norteiam os embates ideológicos
desde a Revolução Francesa. Interessa-nos, principalmente, o liberalismo e
sua democracia, uma vez que são seus princípios que coordenam as socie-
dades em que nossos dois filósofos, Dewey e Habermas, produziram suas
ideias. Inicialmente, vamos nos preocupar com Dewey. Veremos que a nos-
sa prévia, delineando posições políticas, também nos ajudará aqui.

3.1.1 John Dewey


Comumente, Dewey é classificado como um pensador liberal, mas Figura 2
não podemos imaginá-lo como um pensador liberal programático, sen- John Dewey

Underwood & Underwood /Wikimedia Commons


do este aquele tipo de filósofo tão comprometido com uma ideologia
política que procura adaptar suas ideias a fim de que não desrespeitem
os dogmas dessa ideologia. Ser um pensador liberal nunca privou Dewey
de interessar-se por aspectos que muitas vezes eram temas apenas dos
pensadores de esquerda, sobretudo os marxistas.

Por exemplo, a questão mais premente para o filósofo foi a desi-


gualdade social, a qual ele entendia ter sido causada pelo desenvolvi-
mento tecnológico mal distribuído. Além disso, o contexto histórico em
John Dewey pode
que Dewey escreve é de grande dificuldade para que leis trabalhistas
ser considerado um
consigam regular o mundo do trabalho nos Estados Unidos. Isso ocorre filósofo político com o
pensamento alinhado ao
nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, quan-
liberalismo.
do as indústrias, nas mãos de um grupo reduzido de financistas, ditam
as regras junto a uma incrível indiferença pelas condições de vida dos
trabalhadores. John Dewey pôde presenciar a exploração de crianças
como trabalhadoras nas fábricas, as péssimas condições de vida e saú-
de dos operários e a falta de indenização de acidentes de trabalho.

Educação e democracia 67
É então que, tocado por esse cenário, Dewey vai produzir muitos de
seus trabalhos, os quais, de alguma maneira, procuram dar respostas
a essas difíceis desigualdades. Não por acaso, o seu pensamento foi o
grande inspirador de um movimento pedagógico renovador e muito im-
portante para a educação brasileira da primeira metade do século XX,
conhecido como Escola Nova. Anísio Teixeira, líder desse movimento e
um dos maiores nomes de nossa educação, foi aluno de John Dewey.
Figura 3
Crianças trabalhando, fotografia de Lewis Hine (1909)

Everett Collection/Shutterstock
Crianças trabalhando em
moinho de algodão. O garoto
descalço teve que subir no
maquinário para alcançar
o local que precisava de
conserto.

Curiosidade Por isso, vale nos debruçarmos um pouco mais sobre o pensamen-
Lewis Hine viajou pelos to desse importante e engajado filósofo. É no seu posicionamento com
Estados Unidos entre
1908 e 1924 fotogra- relação às desigualdades que Dewey procurará opinar como um liberal
fando crianças de várias de tipo peculiar. Como vimos, o liberalismo foi a ideologia mais bem-su-
idades que exerciam
diversas funções, desde cedida em termos de influência por todas as instituições sociais e a que
catadoras de algodão a melhor representou o espírito burguês característico da modernidade.
operadoras de máquinas
nas indústrias. Lewis pro- Como uma ideologia representativa desse espírito, nunca foi incomum
duziu mais de 5 mil fotos. que nas disputas entre interesses de diferentes classes sociais o libera-
O trabalho foi encomen-
dado pelo National Labor lismo estivesse ao lado dos representantes da burguesia em detrimen-
Committee, organização to das classes que dependiam de salário para viver.
criada para combater o
trabalho infantil. Para Dewey, esse liberalismo não servia. O filósofo, embora relu-
tante, procurou alinhar-se ao liberalismo muito mais em função das
promessas de respeito e luta pela liberdade de cada indivíduo. Assim, é
possível ver em Dewey um liberal que não se furta a criticar duramente

68 Filosofia da Educação
o próprio liberalismo, principalmente porque vê nas desigualdades so-
ciais a presença concreta das classes que detêm o poder de exploração
da força de trabalho, por meio de toda a maquinaria tecnológica dis-
ponível. A passagem seguinte evidencia muito bem isso, ao dizer que a
produção tem sido:
cuidada de modo grosseiro e intenso. Acelera-se de modo frenéti-
co o fazer as coisas; e todos os dispositivos mecânicos são usados
para avolumar a massa sem sentido. Como resultado, a maioria
dos trabalhadores não encontra satisfação, nem renovação, nem
crescimento intelectual, nem realização no trabalho… A estupidez
de separar a produção do consumo, do enriquecimento presente
da vida, fica evidente nas crises econômicas, nos períodos de de-
semprego que se alternam com períodos de exercício, trabalho ou
“superprodução”. … O lazer não é o alimento da mente no traba-
lho, nem a recreação; é uma avidez febril por diversões, emoções,
exibições; caso contrário, não há lazer, exceto como um torpor
obtuso. É inevitável a fadiga que se deve, para alguns, à monoto-
nia, e, para outros, ao esforço excessivo para manter o ritmo. Na
sociedade, a separação da produção e do consumo, dos meios e
fins, é a raiz da mais profunda divisão de classes. Estão no controle
aqueles que fixam “metas” para a produção, constituem a classe
dominante aqueles que se encarregam de atividades produtivas
isoladas. Porém, se são oprimidos os últimos, não são verdadeira-
mente livres os primeiros. (DEWEY, 1944, p. 271-272)

Embora longa, a citação é importante, pois evidencia a sensibilidade


de Dewey quanto às contradições do sistema de exploração do traba-
lho de seu tempo. São bem pertinentes as observações a respeito da
separação produção/consumo, a qual ele entende como injusta, pois
os operários só participam da produção ao vender sua mão de obra em
troca de salários baixos, impedindo-os de desfrutar de seu consumo.

Como mencionamos, críticas contundentes como essas dificilmente


eram proferidas por liberais; vinham geralmente de marxistas. Em um pri-
meiro olhar, é possível até compreender Dewey como um pensador de
esquerda, no entanto ele tinha sérias restrições quanto ao pensamento
de Marx. Embora reconhecesse no marxismo como correta a observação
dos graves problemas sociais daquele tempo, não concordava com o ca-
ráter revolucionário presente nas ideias de Karl Marx e Friedrich Engels.
Devemos lembrar o nosso quadro da seção anterior: o pensamento de
esquerda, em suas formas mais radicais, entende que a transformação

Educação e democracia 69
social se dará por meio do enfrentamento entre a classe social explorada
pelo trabalho e aquela que se beneficia dessa exploração.

Para os pensadores mais radicais, propor que alguma transforma-


ção social virá pela bondade dos que detêm os meios de produção, ou
com as mudanças lentas da sociedade em direção a um maior ajuste
na distribuição de riquezas, é apenas uma estratégia liberal para evitar
que o descontentamento dos explorados se manifeste de maneira vio-
lenta, pois a revolução era a mais violenta delas. Dessa forma, Dewey
mantém-se no espectro do pensamento liberal, uma vez que toda a
articulação de sua filosofia procura modos de transformação social por
intermédio de reformas e de revoluções.

Cunha (2001) entende que Dewey é o defensor de um novo libe-


ralismo, o qual precisa se opor às desigualdades e injustiças que a
exploração do trabalho produz, postura que, segundo ele, o velho libe-
ralismo jamais tomou. É aí que entra também a sua visão de democra-
cia. De maneira perspicaz, ele percebe na democracia algo que muitos
de seus companheiros de ideologia ainda hoje não reconhecem: quan-
do na democracia percebemos um alto grau de desigualdade social é
porque suas estruturas estão alicerçadas apenas em um formalismo
vazio. Isso significa que a ideia de igualdade que a democracia propõe
se estabelece apenas formalmente: as leis são promulgadas, mas, na
prática, não conseguem fazer valer a justiça, prevalecendo quase sem-
pre o poder da influência, do dinheiro, dos interesses econômicos dos
mais fortes.

Segundo Cunha (2001, p. 37), Dewey entende que o velho libera-


lismo “agrupa aqueles que relutam em aprovar medidas de ação go-
vernamental que sinalizem qualquer tipo de política social”. Como
resultado, esse velho liberalismo vive uma grave incongruência, uma
vez que, desde seu início, o princípio da liberdade o guia, porém, ao
defender a manutenção do status quo em um contexto social e econô-
mico tão desigual, acaba por promover o aprisionamento das pessoas
mais pobres, estagnadas em seus salários baixos, em suas moradias
ruins, em situações que dificultam projetar expectativas positivas com
relação a uma qualidade de vida melhor. Em cenários assim, a liberda-
de “significa libertar-se da insegurança material e das coerções e re-
pressões que vedam as multidões de participar dos vastos recursos
materiais disponíveis” (DEWEY, 1970, p. 54). Nesse momento, é neces-
sário enfatizar um aspecto fundamental: liberdade para Dewey, então,

70 Filosofia da Educação
não pode estar desacoplada da ideia de busca pela construção de um
mundo mais justo. Aqui, a justiça não deve ser entendida apenas como
igualdade formal, mas em sua materialidade plena, a qual significa uma
melhor distribuição de riquezas.

Ao identificar o seu liberalismo com a denúncia do sistema econô-


mico e a necessidade de lutar para modificá-lo, isso já coloca o libe-
ralismo de Dewey a uma razoável distância do mais tradicional que
ele tanto criticou – embora reconheça que o liberalismo, no passado,
produziu bons frutos, como a conquista da liberdade de expressão e
de pensamento.

O melhor caminho visualizado por Dewey para provocar as transfor-


mações que as democracias liberais precisam promover nas estruturas
Livro
econômicas que as sustentam é a educação. É nesse campo que esse
O livro Da divisão do
filósofo vai exercer uma parte fundamental de sua influência. Para ele,
trabalho social, de Émile
a educação é o mecanismo que as sociedades têm para aprofundar os Durkheim, apresenta as
sociedades pré-capita-
melhores recursos de uma democracia e revisar aqueles que são pre-
listas como sociedades
judiciais à construção de uma sociedade mais igualitária. mecânicas, em que as
pessoas desenvolvem
Em primeiro lugar, Dewey procura entender a própria inteligência de as mesmas tarefas e são
regidas pela força das
um ponto de vista diferente. As teorias liberais acertaram na compreen-
tradições, das crenças
são de que a inteligência é mais do que um conjunto de “hábitos formados e dos hábitos comuns,
e sociedades orgânicas,
com base no passado e na tradição” (CUNHA, 2001, p. 60). Isso fez com
nas quais as funções são
que elas, corretamente, se opusessem à estrutura de um mundo feudal mais bem especializadas
e a força das tradições,
que a própria Revolução Francesa tratou de extinguir. Essas rígidas estru-
menos influente.
turas acabavam impedindo que novos comportamentos e ideias flores-
DURKHEIM, É. São Paulo: Edipro,
cessem. Por isso, até o fim da Idade Média, a ideia de indivíduo (uma das 2016.
ideias centrais da modernidade) não pôde se desenvolver.

Porém, simultaneamente, os liberais não conseguiram elaborar um


conceito de inteligência que não fosse marcado pela ideia de individua-
lidade, de ser humano encerrado apenas em si mesmo. A inteligência foi
entendida como parte da natureza humana, com leis próprias que dotam
cada um dos indivíduos e ignora os aspectos e toda a potencialidade que
essa mesma inteligência pode ter na relação do indivíduo com outros.

Resumidamente, para um conceito mais completo de inteligência, é


necessário levar em consideração que ela se manifesta socialmente. A
interdependência dos indivíduos em sociedade é mais importante do
que qualquer suposta natureza humana que distribui desigualmente a

Educação e democracia 71
inteligência. Isso serve para que Dewey possa criticar projetos pedagógi-
cos que, em síntese, culpabilizam apenas o indivíduo pelo seu fracasso.

Quando um aluno, uma criança, por exemplo, tem um mau desem-


penho escolar, há vertentes pedagógicas que tendem a medir esse fra-
co desempenho com o uso de testes psicológicos e psicopedagógicos.
Nesse caso, a inteligência é medida sob o ponto de vista estritamente
individual. De acordo com Cunha (2001, p. 61):
por essa via, numerosas estratégias de trabalho podem ser colo-
cadas em prática para dotar o aluno daquilo que lhe falta, como
se houvesse um dom que está ali, escondido em algum lugar,
talvez no cérebro, à espera do exercício adequado, para fazê-lo
florescer, ou como se houvesse um defeito em alguma engrena-
gem mental, à espera de conserto.

Mas há uma outra vertente de avaliação, a qual certamente con-


cordará que a criança tem algum deficit em seu aprendizado, porém a
avaliação desse deficit não deverá levar em consideração um universo
tão estrito quanto o anterior. É preciso observar o entorno dessa crian-
ça, sua família e demais grupos de seu convívio: “a premissa, agora, é
que a inteligência é forjada no convívio da criança no ambiente, em
que conta a sua experiência ante a realidade material e social” (CUNHA,
2001, p. 61). A filosofia de Dewey busca fundamentar-se nos princípios
de cooperação, o que a torna, novamente, distanciada de boa parte
das teorias liberais tradicionais, uma vez que elas assumem o caráter
competidor da base econômica que as sustenta, o capitalismo.

Portanto, temos no liberalismo tradicional pressupostos de competi-


ção e, no liberalismo de Dewey, pressupostos de cooperação. Pensan-
do assim, a própria inteligência precisa ser vista sob bases cooperativas.
Dessa forma, a segunda vertente, que buscou ampliar o escopo de inves-
tigação para compreender o problema do deficit da criança, não buscará
soluções a responsabilizando unicamente, mas inserindo o problema no
contexto das relações sociais e experiências dessa criança.

Um pensamento liberal fundado na cooperação e crítico da competi-


ção é realmente uma proposta muito original, mas Dewey consegue evi-
denciar que é possível viver em sociedades concorrentes sem deixar de
criticá-las no que elas têm de mais problemático. Certamente, a tendência
de culpar apenas o indivíduo é ilegítima nos capítulos iniciais do liberalis-
mo; uma estratégia bastante conveniente, pois, ao ter a culpa como um

72 Filosofia da Educação
destino certo, o indivíduo não se atenta ao sistema e suas contradições. A
contradição maior do liberalismo antigo é, justamente, declarar-se defen-
sor universal das liberdades individuais, além de respaldar e encobrir as
estruturas econômicas que produzem o aprisionamento das individualida-
des, privando-as, muitas vezes, dos aspectos materiais mais elementares.

Assim, o pensamento de Dewey tornou-se um alento e um farol para


aqueles espíritos reformistas que se sentiam desconfortáveis com as con-
tradições liberais e a falta de atenção às desigualdades materiais. Surge, as-
sim, não apenas com Dewey, mas muito em função de suas contribuições,
um liberalismo inconformado, engajado e crítico do sistema econômico.

Há autores contemporâneos que atentam para a importância des-


se tipo de postura, observando que o neoliberalismo, construto dos
nossos dias, remonta muito mais aos pressupostos do liberalismo tra-
dicional. É como se, de alguma maneira, nossas sociedades possibili-
tassem uma nova forma de política que se abstém ou que se nega a
pensar nas desigualdades sociais como problemas sérios que precisam
de solução. Para esses autores, o neoliberalismo teria essa natureza,
pois a força econômica das grandes corporações atuais sobrepujaria a
força política dos Estados nacionais e colocaria em primeiro plano seus
interesses e não mais os interesses das coletividades. Vejamos como
Dardot e Laval (2016, p. 62, grifos do original), autores do nosso tempo,
posicionam Dewey nesse contexto:
no entreguerras, esse novo liberalismo terá desdobramentos
importantes nos Estados Unidos. John Dewey, nas conferências
que fez em 1935, reunidas em Liberalismo e ação social, mostrou
a impotência do liberalismo clássico para realizar seu projeto de
liberdade pessoal no século XIX, sendo incapaz de passar da crí-
tica das formas antigas de dependência para uma organização
social inteiramente fundada sobre os princípios liberais [...] para
Dewey, assim como anos antes para Hobhouse, o liberalismo do
século XX não poderia mais contentar-se com os dogmas que
permitiram a crítica da ordem antiga, mas deve colocar-se im-
perativamente o problema da construção da ordem social e da
ordem econômica. É exatamente a isso que se dedicarão – em
sentido oposto – os neoliberais modernos.

Além de sua concepção mais ampla de inteligência, Dewey também


propunha uma educação em que os alunos fossem mais ativos na pro-
dução do conhecimento. A aprendizagem precisa gerar dúvidas, insti-
gar o aluno a resolver problemas. O professor deve saber identificar o

Educação e democracia 73
momento da dúvida, pois é com base nela que o aluno vai utilizar vários
processos mentais, como o levantamento de hipóteses, a análise e a
comparação, elementos esses típicos de uma sociedade que escolheu
a ciência como base de desenvolvimento. Além disso, o aluno torna-se
corresponsável por sua própria formação, mais ciente dos processos
que o envolvem.

Obviamente, o método proposto pelo filósofo torna o ensino mais


desafiador para os educadores, pois exige que o professor esteja pre-
parado a se deparar com situações novas, não previstas nos conteúdos
predeterminados dos livros didáticos. Isso “coloca o professor diante
de situações imprevistas, novas e desconhecidas, exigindo que profes-
sores e alunos compartilhem de fato o processo de construção e não
apenas o de reconstrução e reelaboração do conhecimento” (PEREIRA
et al., 2009, p. 158). É certo que as condições para esse tipo de educação
precisam ser as mais adequadas; um professor com turmas de muitos
alunos dificilmente terá condições de se comprometer com as desco-
Figura 4
Alunos com dúvidas bertas de cada um.

O processo de aprendizado dos O método de Dewey, somado a uma maior participação do aluno
alunos deve envolver a dúvida. na produção de seu próprio saber, pressupunha uma carga de expe-
Assim, o professor compreende
que esse momento é o que gera riências vivas que a escola não estava habituada a oferecer. Podemos
conhecimento. dizer que esse é o importante caráter empírico da filosofia deweyana.
Vejamos a crítica que o filósofo fazia à escola tradicional, acusando-a de
eliminar a maior riqueza do conhecimento: a experiência.

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74 Filosofia da Educação
Quando se diz que aprendemos com a experiência, e com os li-
vros e conselhos dos outros somente na medida em que estes
se relacionam com a experiência, não se trata de meras frases
feitas. Mas a escola alheou-se, isolou-se de tal forma das con-
dições e motivações correntes da vida que o lugar para onde
enviamos as crianças com o fito de lhes incutir a disciplina é o
lugar do mundo onde é mais difícil adquirir experiência – a mão
de toda a disciplina digna desse nome. Só as pessoas limitadas
por uma imagem limitada e rígida da disciplina escolar correm o
risco de menosprezar essa disciplina profunda e infinitamente
mais ampla que se adquire ao participar num trabalho construti-
vo. (DEWEY, 2002, p. 26, grifo do original)

O filósofo não se contenta em fazer essa crítica apenas de modo abs- Filme
trato; seus livros estão cheios de exemplos de como um conteúdo esco- No filme Nenhum a menos,
lar poderia ser imensamente enriquecido com mais empirismo, o que uma menina de 13 anos
de idade precisa substituir
poderia dotar cada aula de aspectos mais interessantes. Suas sugestões seu professor por alguns
procuram adotar exercícios com base nas atividades cotidianas e rotinei- dias. Antes de se afastar,
o docente pede para que
ras. Ele sugere, por exemplo, que uma aula de ensino básico de costura ela não deixe nenhum
possa ser o pretexto para algo que vá além do sentido pragmático dessa aluno abandonar a escola
durante sua ausência. Um
bela atividade, como uma aula com referências à história dessa prática dos alunos, no entanto,
e de inúmeros conhecimentos relacionados a ela. Ou seja, para Dewey deixa de acompanhar as
aulas. A garota, momen-
(2002, p. 28), taneamente professora,
descobre que ele deixou
estas atividades são pretextos para recapitular o desenvolvimen-
o vilarejo em busca de
to histórico do homem. Por exemplo, as crianças recebem em emprego na cidade. Ela,
primeiro lugar a matéria-prima – as fibras de linho, os frutos do então, vai atrás desse
algodoeiro, a lã tal como é extraída do corpo da ovelha (se pu- aluno.

dermos levá-las ao local onde as ovelhas são tosquiadas, tanto Há inúmeras discussões
importantes no filme.
melhor). Em seguida, é feito o estudo destes materiais, do ponto Vamos nos ater a uma
de vista da respectiva adaptação aos usos a que se destinam. Por delas: o cotidiano escolar
exemplo, a fibra de algodão é comparada com a fibra de lã. das crianças muda radi-
calmente quando a jovem
Nesse ponto, o filósofo põe-se no lugar do professor, ao adotar esse professora decide incre-
mentar as aulas por meio
método empírico, invertendo, por alguns momentos, o papel de educa- de atividades em uma
dor: a criança com suas descobertas também é capaz de ensinar. olaria. Os alunos, que
inicialmente se preocu-
Eu não sabia, até as crianças me terem dito, que o motivo para o pavam apenas em copiar
desenvolvimento tardio da indústria algodoeira, quando compa- e decorar conteúdos,
se tornam mais ativos e
rada com a manufatura de tecidos de lã, era o fato de a fibra do participantes. Uma boa
algodão ser tão difícil de separar manualmente das sementes. história para relacionar
Um grupo de crianças trabalhando durante trinta minutos a se- aos aspectos empíricos da
teoria de John Dewey.
parar as fibras de algodão da cápsula e das sementes, conseguiu
extrair menos de trinta gramas. Foi-lhes fácil calcular que uma Direção: Yimou Zhang. China: China
Film Group Corporation, 1998.
pessoa, usando as mãos, não conseguiria descaroçar mais do

Educação e democracia 75
que meio quilo por dia, e compreenderam assim por que motivo
os seus antepassados preferiam as roupas de lã às de algodão.
(DEWEY, 2002, p. 26-27)

Dewey toma o cuidado em sugerir que aulas assim não permane-


çam apenas no seu propósito utilitário – nesse caso, o de ensinar as
crianças a coser. O aspecto utilitário é apenas o primeiro impulso; após
isso, a aula deve expandir-se: vimos no exemplo que as crianças bem
orientadas foram capazes de compreender aspectos históricos da pro-
dução de roupas, fazer cálculos, além de terem chegado a conclusões
por conta própria.

O filósofo não endereçava esse método apenas às crianças. Seu de-


sejo era que todos tivessem acesso a formas mais profundas de co-
nhecimento. Observamos que Dewey não concordava com vários dos
pressupostos políticos mais revolucionários. Com relação ao conheci-
mento, essa postura permaneceu.

Esse pensamento divergia-se dos marxistas, os quais viam que so-


mente o embate entre a luta de classes (patrões versus empregados)
poderia resolver os problemas sociais. Dewey imaginava, por meio dos
mesmos métodos empíricos, que uma educação profunda dos operá-
rios – esses cientes da vastidão de conhecimentos em torno de cada
uma das tarefas que exerciam e historicamente mais conscientes – se-
ria capaz de tornar as relações de trabalho mais harmoniosas e justas.
Os resultados seriam certamente vantajosos para a ideia de democra-
cia que Dewey tinha: pulsante e capaz de promover relações econômi-
cas e sociais mais igualitárias.

3.2 Jürgen Habermas: esfera pública


Vídeo expandida e educação
Agora, vamos conhecer os conceitos de esfera pública, mundo da
vida e sistema, estes desenvolvidos pelo filósofo alemão Jürgen Ha-
bermas. Com base nesses conceitos, veremos como o filósofo valoriza
a capacidade comunicativa, compreendendo-a como a mais legítima
ferramenta das sociedades modernas contra os ataques do sistema à
democracia. Com base nisso, veremos como a educação é afetada e
como reage ao embate mundo da vida versus sistema.

76 Filosofia da Educação
3.2.1 A constituição da esfera pública
Jürgen Habermas é, atualmente, um dos filósofos vivos mais res-
peitado e estudado. Seu pensamento é influente nos estudos políticos,
nas ciências sociais, nos estudos culturais e linguísticos e na educa-
ção. Nascido em 1929, em Düsseldorf (Alemanha), tornou-se, nos anos
1950, assistente de Theodor Adorno, um dos mais importantes filóso-
fos da conhecida Escola de Frankfurt, instituição em torno da qual ou-
tros pensadores eminentes como Max Horkheimer e Herbert Marcuse
estavam ligados.

Figura 5
Theodor Adorno e Max Horkheimer

Jeremy J. Shapiro /Wikimedia Commons


À esquerda, Max Horkheimer,
pensador da Escola de
Frankfurt; à direita, Theodor
Adorno, de quem Habermas
(em segundo plano, à direita)
foi assistente.

A Escola de Frankfurt se notabilizou por ser uma das mais proe-


minentes fontes do pensamento de esquerda no século XX. Assim, as
origens do pensamento de Habermas estão entrelaçadas por essa ine-
gável influência. Porém, ao longo do desenvolvimento do seu pensa-
mento, Habermas buscou uma posição própria, independente, o que
lhe possibilitou ser, em muitos momentos, crítico das ideias marxistas,
mas também do liberalismo. Trata-se de um pensador complexo, cujas
ideias e opiniões não podem ser ignoradas.

Sua primeira grande ideia a qual nos interessa aqui é a de expansão


da esfera pública, que ele explicitou em Mudança estrutural da esfera pú-
blica: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Nesse
texto, observou que já no século XIII, com o início do capitalismo mercan-

Educação e democracia 77
til, a burguesia iniciava o seu próprio processo de construção de espaços
representativos, que mais tarde se tornarão independentes do Estado.
Com a consolidação da produção capitalista, as atividades públicas rela-
tivas à burguesia, as quais até então se delimitavam à economia domés-
tica, tornam-se públicas, no sentido de serem executadas em ambientes
nos quais circulavam pessoas que iam além dos membros da família.

Junto a isso, há o desenvolvimento da imprensa, a qual inicialmente


é aliada do comércio, a fim de publicizar os aspectos positivos e práticos
que pudessem ser utilizados pela população. Com esse desenvolvimen-
to, os intelectuais passam a ser atuantes na imprensa; com isso, o poder
de análise desses últimos os torna capazes de serem críticos das ativi-
dades públicas, sobretudo das atividades do Estado. Estava formada,
assim, o que Habermas chamara de esfera pública burguesa. É por meio
dessa que a sociedade liberal organizou forças para pressionar os Esta-
dos a adotarem políticas públicas de interesse burguês.

Figura 6 Para Habermas, é importante pontuar que junto da esfera pública


Jürgen Habermas nasce o conceito de opinião pública, significando o posicionamento de
Wolfram Huke /Wikimedia Commons

determinado público com a capacidade de reflexão. Contemporanea-


mente, nos parece algo trivial pensar na presença da opinião pública,
mas Habermas se debruçou sobre a gênese desse modo de expressão
social, anterior à Revolução Francesa, em sociedades cujos poderes pú-
blicos eram exercidos somente pelos monarcas. O surgimento da es-
fera pública é importante porque o poder, diante da opinião balizada,
precisa de alguma forma se mostrar, dar respostas e satisfação de suas
ações. Nos séculos em que a burguesia vai se descolando do poder
Filósofo contemporâneo, monárquico (um processo longo, que vai dos séculos XIII ao XVIII), ela
integrou a Escola de Frankfurt,
na qual recebeu influências dos ainda é muito dependente e balizada pelo monarca.
pensamentos esquerdistas.
É somente ao final desse processo, na Inglaterra do século XVIII, que
a opinião pública realmente passa a fazer diferença. Essa diferença
ocorre não só porque a imprensa começa a operar junto dos interes-
ses de um público maior, mas também por haver uma efervescência de
opiniões e de novos comportamentos. Uma nova cultura receptiva ao
debate vai se criando; as mulheres começam a se inserir nas discussões
políticas, além de haver um clima propício para que as manifestações
culturais passem a explorar as possibilidades de lucrar com a cultura –
museus, livrarias e teatros são lugares frequentados por essa camada
da burguesia que se torna mais culta. O resultado é que, diante dessa

78 Filosofia da Educação
efervescência, o conhecimento e a articulação a respeito das ações do
Estado vão se tornando assunto comum.

Enquanto a burguesia crescente dependia fortemente dos poderes


monárquicos, grande parte das ações e decisões do Estado não ganha-
va larga publicidade, afinal não havia um vasto público reivindicando
informações sobre tais decisões. Contudo, a consolidação da esfera
pública muda essa história. O Estado passa a ser solicitado em termos
de informação e satisfação de seus atos, não por decisão própria, mas
porque a opinião pública, uma das marcas da modernidade, é capaz de
pressionar o poder e exigir a publicidade de seus atos. Essa esfera, com
razoável independência do Estado e agora informada (seus cidadãos
leem mais, se informam e consomem mais cultura), torna-se capaz de
pressioná-lo. Essa é, para Habermas, uma das características funda-
mentais das sociedades modernas.

Além disso, não há como negar que de lá para cá esses canais de


expressão se tornaram mais poderosos. Vamos refletir juntos: se pen-
sarmos nos meios de comunicação dos nossos dias, é possível enxergar-
mos neles bastante poder e capacidade de, muitas vezes, intimidarem
os poderes políticos, você não acha? Esse cenário tão típico dos nossos
tempos teve a sua gênese e é sobre ela que Habermas (2014) pensa. Filme
Mas não devemos imaginar que o filósofo só nos fala sobre o papel da Há filmes que se torna-
imprensa, pois o que ele entende por esfera pública é maior do que o ram clássicos explorando
a tensa relação entre
poder jornalístico, embora esse seja um de seus maiores poderes. imprensa e poder político.
Alguns deles, em ordem
Oliveira (2010) lembra que Habermas (2014) encontra aspectos da cronológica, são:
esfera pública já tematizados por outros filósofos antes dele. Um exem- • Cidadão Kane. Direção:
Orson Welles. Estados
plo é Immanuel Kant, sobre o qual Oliveira (2010, p. 786) afirma que:
Unidos: Mercury Produc-
a verdadeira política não pode estar desvinculada da moral, a tions, 1941.

esfera pública deveria mediar as funções políticas entre Estado • Todos os homens do pre-
sidente. Direção: Alan J.
e sociedade e a publicidade deveria ser o princípio a garantir o
Pakula. Estados Unidos:
acordo da política com a moral. Dentro de uma visão iluminista, Walter Coblenz, 1976.
Kant concebe o uso público da razão. Isto é, a discussão ocorre • O quarto poder. Direção:
no seio do povo, a fim de que este seja induzido a se servir de Costa-Gavras. Estados
Unidos: Punch Produc-
sua própria razão.
tions, 1997.

O pensamento de Kant, produzido na Alemanha do século XVIII, já • The Post: a guerra secreta.
Direção: Steven Spiel-
indicava a importância dessa capacidade de expressão a que as socie- berg. Estados unidos:
dades próximas do início da modernidade apontavam. O iluminismo DreamWorks Pictures,
2017.
do qual Oliveira (2010) se refere em Kant parece residir na crença do fi-

Educação e democracia 79
lósofo a respeito dos poderes da razão como guia do desenvolvimento
humano. Por ser uma expressão da razão, no embate entre sociedade
e Estado, a esfera pública, em seu funcionamento pleno, teria a capaci-
dade de garantir à sociedade respostas mais próximas de seus desejos
e suas necessidades por parte do Estado.

3.2.2 Mundo da vida, sistema e educação


A mesma crença positiva de Kant nos poderes da razão está pre-
sente na obra de Habermas (2012), Teoria do agir comunicativo: sobre
a crítica da razão funcionalista, considerada por muitos o livro mais im-
portante do filósofo. Inicialmente, queremos destacar dele dois aspec-
tos: a racionalidade e a linguagem. Dezenove anos distanciam Mudança
estrutural da esfera pública de Teoria do agir comunicativo, mas nesse
último estão presentes as principais preocupações, essas já menciona-
das no livro de 1961. O projeto de Habermas, desde o início, visava dar
destaque à razão, pois, segundo o filósofo, esta é a principal ferramen-
ta de que a sociedade dispõe para resolver seus maiores conflitos. Essa
é uma característica que precisa ser ressaltada, visto que o século XX é
pródigo em desconfiar dos poderes da razão. Os próprios filósofos da
Escola de Frankfurt foram críticos severos do que eles chamaram de
razão instrumental, cujos resultados nos levaram, por meio do desen-
volvimento tecnológico, sem maiores considerações acerca dos limites
éticos humanos, a duas catastróficas guerras mundiais.

Michel Foucault e toda a filosofia pós-estruturalista também foram


bastante céticos quanto ao potencial da racionalidade. Muitos indicam
o século XX como o caminho final do arco iluminista que teria sido
muito otimista, nos séculos XVIII e XIX, com o potencial da ciência e da
razão, imaginando estas como o caminho de redenção da civilização
moderna. Já no século XX, inúmeras filosofias passaram a desvelar o
lado obscuro desse otimismo e a criticar severamente qualquer crença
mais robusta à razão. Porém, Habermas insiste em encontrar na razão
o melhor dos nossos caminhos.

Para esse filósofo, diferentemente do pessimismo frankfurtiano, a


razão não se orienta apenas por interesses técnico-instrumentais, mas
também por interesses emancipatórios. A razão teria nos proporciona-
do a capacidade de entendimento, por meio do que Habermas chama
de ação comunicativa. Como humanos, por intermédio da razão, tería-

80 Filosofia da Educação
mos, ao longo de nosso processo de desenvolvimento, adquirido com-
petências que nos permitiriam produzir entendimentos. Esse processo
de entendimento seria resultado de nossa linguagem, sempre mediada
pela comunicação, cuja natureza é intersubjetiva e interativa. Assim, a
maior possibilidade de resolução dos conflitos humanos teria no diálo-
go a chance mais robusta de entendimento.

Agora entendemos melhor porque Habermas (2014) procura desta-


car o surgimento da esfera pública (e seu resultado maior, a opinião pú-
blica) como uma marca do desenvolvimento civilizacional: pois aponta
justamente para o exercício da opinião e do diálogo bem-informado. Em
geral, quando nos referimos à passagem da Idade Média para a moder-
nidade, é a ferocidade com que os seres humanos tentam resolver seus
conflitos, representada sobretudo na Revolução Francesa, que ganha
destaque. Para Habermas, como vemos, a marca distintiva do nascimen-
to da sociedade moderna é o aprimoramento da capacidade de diálogo
e o desenvolvimento de espaços para que isso ocorra.

Para entendermos como tudo isso se relaciona à questão da edu- Saiba mais
cação em Habermas, precisamos ainda compreender como ele define Um exemplo simples, mas
importante: Habermas
o conflito entre o que chama de sistema e mundo da vida, dois de seus (2014) nos mostra
conceitos mais importantes e famosos. O texto de Mühl (2011, p. 1.039) como foi dura a luta dos
jornais contra os poderes
nos oferece uma boa ideia desses conceitos e o que eles envolvem: instituídos. No entanto, a
imprensa conseguiu, em
Sistema e mundo são duas esferas que se opõem; mas ao
1834, no parlamento in-
mesmo tempo são interdependentes, constituindo um complexo glês, que tribunas fossem
que determina a forma de ser da sociedade moderna. O mundo criadas para que os repór-
teres pudessem acompa-
sistêmico, apesar de se apresentar como oposto ao mundo vital,
nhar os debates políticos.
tem sua origem vinculada ao mundo da vida e se mantém, ainda Você consegue perceber
que de forma parasitária, dependente do agir comunicativo. O o quanto isso representa?
mundo sistêmico é decorrente da racionalização do mundo da Até então, dificilmente
a imprensa teria acesso
vida e surge como um mecanismo redutor de carga que pesa a esses espaços, mas
sobre o agir comunicativo diante do esgotamento dos outros quando eles passaram a
mecanismos de controle social. À medida que ele se torna mais ser garantidos, a própria
população que consumia
complexo, tende a romper seus vínculos com o mundo da vida,
esses jornais poderia ter
a substituir a comunicação pela linguagem por mecanismos de acesso aos debates.
controle técnicos sob os auspícios do dinheiro e do poder, em
detrimento dos demais componentes do mundo da vida. Quan-
do o sistema se torna independente do mundo da vida e mais
complexo, a dinâmica da influência entre ambos se modifica. Da
situação inicial, em que o mundo da vida determina a estrutura
sistêmica, com a complexificação social, os papéis se invertem e
o sistema passa a reger o mundo da vida. Disso decorre o pro-
cesso que Habermas chama de “colonização do mundo da vida”,

Educação e democracia 81
cujo sintoma mais representativo é a instrumentalização e a res-
trição progressiva da comunicação através do domínio técnico
e da violência estrutural. Em decorrência, o mundo da vida, de
uma instância central, transforma-se em periférica diante da do-
minação que o sistema regido pelo dinheiro e pelo poder passa
a exercer. A educação, intimamente atrelada ao mundo da vida,
não deixa de sofrer as consequências de tal condicionamento.

Nesse conflito inerente à condição moderna, vemos que a comunicação


e a disposição para o entendimento ficam comprometidas diante do avanço
sistêmico sobre o mundo da vida. O sistema tem mecanismos que facilitam
o seu desenvolvimento e autorreprodução, são eles: o dinheiro e o poder.

O dinheiro tem a capacidade de dominar a economia, o poder e a


política. Esses dois mecanismos também são usados pelo sistema para
tentar controlar o mundo da vida. Quando o sistema atinge a sua capa-
cidade, gera um resultado danoso à sociedade em que os mecanismos
do sistema estão voltados para a proteção do próprio sistema, quando
poderiam estar voltados para as reivindicações das necessidades de
cada sociedade.

O domínio sistêmico, além disso, gera consequências mais subje-


tivas. Com relação à racionalidade, tão importante para Habermas, é
importante lembrar que no mundo da vida a racionalidade comunica-
tiva é determinante. Nela é que estão as grandes ferramentas de co-
municação que impulsionam os seres humanos ao entendimento. Mas
quando o sistema passa a pressionar o mundo da vida, um de seus
resultados é substituir a racionalidade comunicativa por sua raciona-
1 1
lidade sistêmica , a qual influi na produção dos valores culturais e na
No texto usamos o termo consciência moral das sociedades.
racionalidade sistêmica,
mas, de uma forma mais A racionalidade sistêmica, portanto, não é interessante como pro-
técnica e precisa, essa ra-
cionalidade é chamada de
dutora de valores humanos, até porque sua natureza está voltada aos
racionalidade instrumental. interesses do dinheiro e do poder. Alguém poderia pensar: mas que
mal há em ser orientado por esses dois mecanismos? É preciso lembrar
que boa parte do pensamento social do século XX foi teorizada acerca
disso. Podemos pensar, por exemplo, na obra de Max Weber e Theo-
dor Adorno, duas influências inegáveis de Habermas, que está voltada
para o problema da reificação – tipo de racionalidade por trás dos me-
canismos que Habermas apresenta, ao se tornar sistêmico, que tende
a fomentar relações sociais e humanas reificadas, o que, de maneira
simplificada, significaria transformar essas relações, e a própria subje-

82 Filosofia da Educação
tividade humana, identificadas cada vez mais no caráter inanimado das
coisas e dos objetos que nos circundam.

Em vez de potenciais relações afetivas e solidárias, tenderíamos a


nos relacionar com outros humanos como nos relacionamos com coi-
sas e objetos. No trecho a seguir, podemos constatar como a presença
da manifestação do mundo da vida sem interferências sistêmicas ca- Filme
racteriza as relações mais solidárias e muito menos conflitivas: O filme Preciosa: uma
história de esperança nos
Na dimensão do espaço social, a integração social do mundo permite ver na figura da
da vida assegura a conexão das novas situações a estados de personagem principal
dois ambientes distintos.
mundo existentes, ou seja, ela cuida para que haja a coordena-
O primeiro, opressor, em
ção de ações por meio de relações interpessoais legitimamente que Claireece “Preciosa”
reguladas e pereniza a identidade dos grupos numa medida ade- Jones sofre todo tipo de
violência: é violentada
quada à prática cotidiana. E, nesse processo, a coordenação das
pelo próprio pai, sofre
ações e a estabilização das identidades grupais são medidas pela bullying na escola etc.
solidariedade dos membros. (HABERMAS, 2012, p. 257) O segundo refere-se à
escola alternativa que ela
Mas nem sempre a escola pode ter ambientes acolhedores. Em passa a frequentar. A pro-
fessora e os alunos são
muitos casos, a educação não fica de fora do círculo ameaçador que muito mais receptivos, e
é o avanço sistêmico sobre o mundo da vida. Quanto a esse aspecto, isso causa uma mudança
profunda em seus desejos
Mühl (2011, p. 1040) nos lembra que “a escola é uma dessas institui- e suas expectativas para
ções que, no entender de Habermas, serve para incorporar a raciona- o futuro. O filme tematiza
vários problemas sociais:
lidade sistêmica atualmente dominante. Ao fazer isso, ela educa para racismo, homofobia,
a subserviência, reforça o controle e produz, em última instância, a gordofobia, abuso físico e
psicológico. Para nossos
própria violência”. propósitos, podemos nos
ater ao contraste entre as
duas escolas frequenta-
Figura 7 das por Preciosa no filme
Criança vítima de bullying e em como a solidarieda-
de pode afetar positiva-
mente a vida das pessoas.

Direção: Lee Daniels. Estados


Unidos: Lee Daniels Entertainment;
Smokewood Entertainment, 2009.

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po Educação e democracia 83
Habermas entende que, diante dos entraves proporcionados pela in-
vasão sistêmica, a reprodução dos aspectos centrais do mundo da vida
tem nas psicopatologias uma das consequências mais graves. A violência
é uma das possíveis expressões sociais dessas patologias, que pervade
a sociedade de modo geral. Assim, os muros da escola não são capazes
em contê-la, uma vez que essa se dá sistemicamente.

De todas as violências, a mais ameaçadora à educação parece ser a


do interesse econômico sobre ela, pois acaba tornando-a uma merca-
doria e, muitas vezes, reproduzindo, sem uma percepção mais profun-
da de sua missão social, a competitividade, a lucratividade e o princípio
da eficiência. Não queremos dizer aqui que tais elementos, em um
mundo como o nosso, não devam estar presentes. No entanto, é muito
perigoso quando somente eles encampam os projetos escolares, sem
que nenhuma reflexão social e humanística possa dar-lhes algum sen-
tido e somente um lugar entre muitos. Conforme Mühl (2011, p. 1.041),
“a educação passa a ser valorizada quase tão somente com um recurso
de ascensão econômica, ficando para um segundo plano sua validade
enquanto recurso de qualificação subjetiva”.

Apenas um exemplo: é muito comum em nossas sociedades o pen-


samento de que estudamos para “sermos alguém na vida”. Mas o que
é exatamente esse “alguém” que imaginamos? Em muitos casos, trata-
-se de uma pessoa bem-sucedida. Esse é o tipo de pensamento que
exclui todos os outros benefícios humanos, intelectuais e sociais que a
escolarização pode fornecer. E o que significa esse pensamento? Que
a invasão sistêmica não está distante de nós; devemos nos lembrar de
que ela também age em nossa subjetividade, (re)formando desejos e
expectativas que temos de nós e dos outros.

3.3 Limitações do modelo habermasiano


Vídeo Apesar do cenário difícil que Habermas traça ao evidenciar o avanço
sistêmico por todo o mundo da vida, ele não deixa de acreditar na pro-
messa de emancipação humana e no desenvolvimento da democracia.
O instrumento maior para que isso seja alcançado é a própria razão,
mas a que brota diretamente do mundo da vida, seu espírito solidário
e sua inerente razão comunicativa. Se a escola renunciar à sua missão
humanística e ceder por completo aos interesses do poder e do dinhei-
ro, ela não será mais capaz de produzir o saber necessário para po-

84 Filosofia da Educação
tencializar a razão comunicativa. É também dos bancos escolares que
uma razão ordenada e direcionada humanisticamente pode formar os
futuros cidadãos atuantes como pessoas capazes de exprimir e reivin-
dicar as necessidades sociais mais legítimas, de identificar e separar a
necessidade solidária do interesse pecuniário.

Mas será que a capacidade comunicativa é suficiente para resolver os


problemas sociais que a racionalidade sistêmica produz? De certa forma,
esse é um dos questionamentos que costumam surgir contra a teoria de
Habermas. A respeito disso, vamos considerar a crítica de Luis Felipe Mi-
guel, um de nossos mais destacados cientistas políticos. Para ele, o modelo
comunicativo proposto por Habermas, fundado na razão comunicativa, tem
a crença de que “pode nos orientar em direção à superação dos nossos
dilemas morais e à correta fundamentação das normas que regem nossa
vida em comum” (MIGUEL, 2014, p. 66). O ponto essencial de Miguel é que
essa crença habermasiana precisa ser posta em dúvida, não por aquilo que
ela deseja, a possibilidade de entendimento pelo debate, mas porque ela
ignora certos aspectos muito presentes na política, idealizando-a.

Segundo o cientista político, Habermas apresenta uma visão da


“‘boa política’, caracterizada pela discussão livre das questões de in-
teresse coletivo” (MIGUEL, 2014, p. 67). Devemos lembrar que Miguel
faz referência ao que expusemos na seção anterior a respeito da for-
mação da esfera pública, que ocorreu de maneira mais consistente
nos séculos XVIII e XIX na França, na Alemanha e, principalmente, na
Inglaterra.

Para Miguel, Habermas incorpora a imagem na qual eram debatidos


os problemas políticos das sociedades anteriores à nossa e a transfere
para todo e qualquer debate. O problema é que:
os cafés ingleses são o emblema desse mundo; neles, os estra-
nhos – homens, uma vez que as mulheres não ingressavam nes-
ses espaços – conversavam entre si, em pé de igualdade, sem
distinções de status ou de posição, assumindo que os problemas
públicos interessavam a todos e podiam ser discutidos, de forma
legítima, pelos cidadãos privados. A imprensa funcionava como
elo entre os múltiplos debates travados nos diferentes cafés ou
salões. Contra o pano de fundo desse ideal normativo, Haber-
mas lamenta a decadência atual da esfera pública, manipulada
por estratégias publicitárias. (MIGUEL, 2014, p. 67)

Porém, para um autor como Miguel, a realidade da política nas de-


mocracias liberais em todos os tempos, desde que elas se organizaram,

Educação e democracia 85
é formada por muitas assimetrias de poder, o que impede qualquer
idealização da democracia em torno da ideia de igualdade. Se isso for
levado em consideração, e Miguel estiver correto, as democracias não
são um debate entre iguais. Em outras palavras, aqueles que decidem
efetivamente no jogo democrático talvez possam ser equiparados pelo
poder e pelas capacidades cognitivas, intelectuais e econômicas. Mas
muitos daqueles sujeitos que imaginamos estarem representados na
democracia na verdade não estão, ou estão sub-representados.

Por exemplo, podemos dizer que, atualmente, as mulheres conquis-


taram um espaço na política, mas, mesmo inseridas nela, é incorreto
imaginar que sua representatividade seja a mesma que a dos homens.
Conforme Miguel (2014, p. 204) ressalta:
a participação política das mulheres é limitada por fatores mate-
riais e simbólicos que prejudicam a sua capacidade de postular
candidaturas, reduzem a competitividade daquelas que se can-
didatam e atrapalham o avanço na carreira política daquelas que
se elegem. Principais responsáveis pela gestão das unidades do-
mésticas e pelos cuidados com as crianças, as mulheres dispõem
de menos tempo livre, recurso crucial para a ação política.

Ainda que possamos dizer “as mulheres em seus papéis políticos


Figura 8
Mulheres na política usam seu direito de fala, são capacitadas e dialogam em pé de igualda-
de com os homens”, isso não é verdade, pois quando consideramos vá-
rios outros aspectos, vemos que essa condição continua sendo muito
desigual. Isso não ocorre somente com as mulheres, mas com muitos
outros grupos.

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Pre

86 Filosofia da Educação
Com isso, a comunicação é, para Habermas, o ponto central de ca-
pacidade de conflitos, porém, para Miguel, há muitos outros aspectos
a serem considerados. É esse tipo de consideração que a perspectiva
de Habermas não faz e, por isso, o modelo de razão comunicativa con-
tinua a trabalhar com uma imagem ideal. Habermas, principalmente,
em suas obras posteriores, abandona a tensão entre a colonização
do mundo da vida pelo avanço sistêmico e toma a “ação comunicativa
como garantidora, em última instância, da integração da sociedade, em
um modelo em que as tensões entre os diferentes tipos de racionali-
dade e as esferas sistêmica e do mundo da vida tornam-se bem mais
brandas (ou mesmo desaparecem)” (MIGUEL, 2014 , p. 68).

Uma visão como a de Miguel (2014), portanto, entende que a razão


comunicativa não é o instrumento capaz de resolver as graves tensões
que habitam nossas democracias; essa é, na verdade, fruto da idealização
da capacidade de diálogo entre “iguais” a qual somos levados a imaginar.

Assim, encerramos com uma tentativa de fusão entre as duas vi-


sões. Se Habermas estiver certo quanto ao avanço sistêmico e Miguel
quanto à idealização das capacidades comunicativas humanas e da
própria democracia, a escola e os educadores precisam pensar a este
respeito: que métodos poderiam ser adotados para que a escola con-
seguisse oferecer, em seus conteúdos, um modelo menos idealizado
de democracia, a fim de capacitar seus alunos a pensarem em como
torná-la mais solidária?

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A educação, como vimos, enfrenta grandes desafios desde que se
consolidou como uma necessidade universal. No entanto, quando ela
não está ameaçada por concepções que desejam se apossar com o
único intuito de absoluta mercantilização, são as instituições que lhe
dão respaldo. É preciso lembrar de que nem a escola tampouco a
democracia são constituídas definitivamente.

Geralmente, tendemos a nos contentar com as promessas formais,


das quais as nossas sociedades estão cheias, mas, dificilmente, paramos
para analisar se elas estão sendo realizadas de maneira efetiva. Precisa-
mos ter isso em mente, pois tanto a escola quanto o sistema democrático
estão e estarão continuamente no centro de disputas, interesses e ideo-
logias. Nisso eles são muito parecidos.

Educação e democracia 87
Todos aqueles que se interessam por educação, ou trabalham com
ela, têm como obrigação estarem atentos a essas disputas e informados
para, se concordarmos com Habermas, saberem identificar que forças e
interesses estão em jogo; se são forças que contribuem para a solidarie-
dade ou se são mais um movimento do avanço sistêmico sobre nós.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Discorra sobre como o empirismo do pensamento de John Dewey
pode ser compreendido como uma contribuição à democracia.

2. Como o empirismo na obra de Dewey está relacionado à visão


pedagógica?

3. Como o avanço da racionalidade sistêmica, tal como definido por


Habermas, ameaça a educação?

4. Qual a discordância maior de Luis Felipe Miguel com a teoria de


Habermas?

5. O que é reificação?

REFERÊNCIAS
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HOUASSIS, A. (org.). Houassis eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva. 2009. [CD-ROM].
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OLIVEIRA, V. A. R. de. Resenha de mudança estrutural da esfera pública: investigações
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WALLERSTEIN, I. M. The modern world-system IV: centrista liberalism triumphant, 1789-
1914. Oakland: University of California Press, 2011.

88 Filosofia da Educação
4
Educação e descentramento
O presente capítulo foca sua discussão em torno da ideia do
descentramento – conceito utilizado por Stuart Hall, importante pensa-
dor das condições que mudaram a história do Ocidente nas últimas
décadas. Para Hall, um dos aspectos basilares das mudanças ocorridas
se deu em torno dos desafios impostos à manutenção das identidades
sociais na contemporaneidade. Vamos, então, compreender o que é
o descentramento, como ele incide sobre os sujeitos e que efeitos ele
produz na educação.
Por fim, com a filósofa Martha Nussbaum, vamos ver o quanto essas
mudanças contemporâneas ameaçam a educação e, principalmente, as
disciplinas ligadas às humanidades. O mundo que se encontra cada vez
mais dependente da ciência e da tecnologia não tem buscado, no mesmo
ritmo, o embasamento teórico e humano necessário para compreender e
educar suas sociedades, diante de tão fortes mudanças.

Objetivos de aprendizagem

Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:


• entender como a identidade é definida pela perspectiva
do pós-modernismo;
• acompanhar os questionamentos que a pedagogia
histórico-crítica brasileira permite fazer a noções de iden-
tidade e sujeito pós-modernos;
• compreender as ameaças ao ensino das humanidades, no
contexto pós-moderno, segundo Martha Nussbaum.

Educação e descentramento 89
4.1 Descentramento, reflexividade e educação
Vídeo A questão da identidade é um problema complexo e um desafio
para as ciências humanas de modo geral. A essência dessa discussão
se dá em torno das características que definem um sujeito – as que
mencionamos aqui vão para além dos traços físicos. É muito comum
que nos definamos baseados em profissões, por exemplo, “ele é um
médico” e “ela é uma advogada”. Porém, ainda existem maneiras mais
amplas de nos definirmos, como as nacionalidades (brasileiro, egípcio
etc.) e etnias (por exemplo, anuak, ianomâmi, entre outras).

O que buscamos apontar é que, em várias situações, nós recorre-


mos a características que nos definam, nos situem e nos distingam de
outras pessoas e grupos. Esses aspectos, como vimos, podem dizer
respeito à profissão, nacionalidade, etnia ou, ainda, língua, religião etc.
Assim, entendemos que não são apenas as nossas características físi-
cas que nos individuam e nos singularizam; socialmente, há inúmeros
recursos para que façamos isso.

Foi pensando sobre isso que Stuart Hall (1932–2014), um pensador


nascido na Jamaica e falecido na Inglaterra, asseverou que nossas identi-
dades culturais (aquelas a que nos referimos anteriormente) estão sendo
fragmentadas: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram
o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito uni-
ficado” (HALL, 2005, p. 7). Segundo o autor, portanto, o sujeito moderno
tinha muito mais facilidade em se identificar para si e para os outros, o
que resultava em um indivíduo com menos desafios para se autocom-
preender e para ser reconhecido e acolhido no seu grupo social.

Em palavras simples, para Hall, a identidade cultural no passado foi


mais estável – estabilidade é o termo adequado. Ele define a identidade
dos sujeitos no início do processo histórico que resultou no que somos
hoje. Para ele, assim como para muitos pensadores de diferentes áreas,
a modernidade é um ponto divisor na história humana. E é respeitando
esse ponto que Hall nos apresenta três concepções de identidade, que
marcaram a história do início da modernidade até hoje; são elas:

I. o sujeito do Iluminismo;

II. o sujeito sociológico;

III. o sujeito pós-moderno.

90 Filosofia da Educação
Vamos ver em que consiste cada uma dessas definições.

O sujeito do Iluminismo, como o próprio nome sugere, foi gestado


ao longo desse período histórico que culminou na Revolução Francesa
e marcou o início da modernidade (ou Era Moderna, como apresentam
os manuais de história). O sujeito desse período estava baseado em
uma visão de identidade em que o indivíduo era compreendido como
autocentrado, uno, racional e autônomo. Segundo Hall (2005, p. 10), o
“centro” desse sujeito “consistia num núcleo interior, que emergia pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda
que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou ‘idêntico’ a
ele – ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era
a identidade de uma pessoa”.

Hall, ainda, observa que esse sujeito é muito individualista, o que


significa que as capacidades e características de definição de uma
pessoa não dependiam de nada além do que já estivesse dado desde o
nascimento. As mesmas características culturais acompanhariam esse
mesmo sujeito, definindo-o sem grandes variações ao longo da vida.
Quando afirmamos, também, que esse sujeito era dotado das capa-
cidades de consciência, razão e ação, não podemos esquecer que as
principais correntes sociais e econômicas da modernidade estão, da
Livro
mesma forma, surgindo nesse momento. As teorias liberais pressu-
O Romantismo na arte
põem firmemente esse tipo de sujeito. é um movimento que se
coloca como crítica dos
O fracasso ou o sucesso econômico, por exemplo, é esclarecido
pressupostos liberais,
assim: se o indivíduo empobreceu, a explicação para tal fato não deve que, na verdade, vão
ser os dominantes em
ser encontrada nas estruturas sociais que se modificaram, nos novos
praticamente todas as so-
ares da história, no regime econômico ou no político; a razão para isso ciedades modernas, uma
vez que o liberalismo,
ter acontecido é do próprio sujeito, afinal está pressuposto que ele é
enquanto visão filosófica,
dotado plenamente de consciência e razão, logo as suas ações e o re- política e econômica,
torna-se hegemônico
sultado delas estão sob total responsabilidade do próprio sujeito.
nessas sociedades. Uma
obra contundente, que
Não por acaso, o liberalismo é também uma forma de compreender
questiona a configuração
o mundo com base na valorização do individualismo – a defesa das política da época, é Os
Miseráveis. O livro conta a
liberdades individuais nasce com ele, do mesmo modo que ocorre com
história de Jean Valjean,
a culpabilização plena do indivíduo em casos como o exemplificado. um homem pobre, que,
após roubar um pão, é
O segundo tipo de sujeito que Stuart Hall nos apresenta é o sujeito condenado a cinco anos
de prisão.
sociológico, o qual reflete a crescente complexidade das sociedades
HUGO, V. França: A. Lacroix,
modernas. Essa concepção de sujeito passa a desconfiar do caráter Berboeckhoven & Ce., 1862.
individualista presente nas sociedades do início da modernidade. Essa

Educação e descentramento 91
nova configuração tem, portanto, o entendimento “de que este nú-
cleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era
formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’, que
mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura –
dos mundos que ele/ela habitava” (HALL, 2005, p. 11).
1
Muitos autores, no
Vemos, então, que a identidade que representa o sujeito sociológi-
entanto, discordam que co é mais complexa em relação ao sujeito do Iluminismo – se este se
estamos vivendo em
uma era que superou
via como uno e estável, agora começa a perceber que parte de seus
a modernidade e, por gostos, percepções e valores é herdeira de sua relação com os grupos
isso, evitam o termo
pós-modernidade, como é
sociais próximos dele. Desse modo, já não é possível falar em caráter
o caso de Giddens (1991), individualista da identidade, uma vez que se começa a perceber a pre-
que usa a expressão mo-
dernidade tardia. Bauman
sença e a influência de um núcleo que vai para além do indivíduo na
(2001) também evita o formação de sua identidade: o sujeito é, também, o que são os grupos
termo e prefere se referir
a essa etapa como mo-
de sua convivência.
dernidade líquida. Já Hall
acaba oscilando entre os
Mas esse processo de identificação do sujeito com outros grupos
termos pós-modernidade e não para por aí; no desenrolar da história, ele continua se complexifi-
modernidade tardia. Mas,
independentemente de
cando. Ao estágio mais intricado dessa relação, Hall relaciona o sujeito
se ter ou não superado a pós-moderno, de quem ele afirma: “o sujeito, previamente vivido como
modernidade, a descrição
de todos os autores
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmen-
citados tem muitos ele- tado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algu-
mentos em comum, o
que nos permite ver o
mas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2005, p. 12). Se,
momento atual como no início do período moderno, o sujeito era estável e uno, agora, no
tendo características bem
específicas. Ao longo do
fim desse arco histórico, para Hall, o sujeito é bastante fragmentado.
capítulo, preferiremos, A fragmentação do sujeito contemporâneo é uma característica apon-
quando possível, o termo
pós-modernidade.
tada por inúmeros pensadores; ela tem tanta relevância que muitos
acreditam que estamos, baseados na fragmentação do sujeito, em uma
1
nova era, batizada, de modo geral, de pós-modernidade .

Figura 1
Representação do sujeito sociológico O sujeito sociológico é
influenciado pelos grupos
sociais próximos a ele,
herdando opiniões, gostos e
valores.
Andrii Yalanskyi/
Shutterstock

92 Filosofia da Educação
Temos, portanto, até aqui, a caracterização dos três tipos de sujeito
a que Hall faz referência. Vamos apresentar, resumidamente, essas ca-
racterísticas a seguir, para uma melhor visualização:
Fim da Idade Média/Início Metade do século XIX aos Dos anos 1970 aos dias

Tah Design/Shutterstock
da Idade Moderna anos 1970 atuais

Sujeito do Iluminismo Sujeito sociológico Sujeito pós-moderno


Uno, estável, centrado. Não autônomo, não Muito fragmentado. Várias
Autônomo, dotado das autossuficiente. Formado na identidades (às vezes
capacidades de razão, relação com outras pessoas contraditórias).
consciência e ação. (mediadoras de valores,
sentidos e símbolos).

Há uma especial consideração de Giddens (1991) que nos ajuda a


compreender a transição de sujeitos apontada por Hall. Ela se dá, sobre-
tudo, em função das mudanças ocorridas nas nossas noções de tempo
e espaço. O autor observa que, nas sociedades pré-modernas, espaço
e tempo coincidiam amplamente – isso ocorria em função de que as
dimensões espaciais da vida social, para a maioria da população, eram
sempre governadas por atividades localizadas, o que se refere àquelas
que exigiam interação face a face. As atividades cotidianas e relações
sociais da maior parte das pessoas, em cada lugar, demandavam a pre-
sença física de outros indivíduos desse mesmo local.

Mas, na modernidade, a interação face a face vai dando lugar a ou-


tro tipo de interação, que não exige que as mesmas atividades e rela-
ções sociais se deem com a necessária presença de todos no mesmo
tempo e lugar. Segundo Giddens (1991, p. 27),
o advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do
tempo fomentando relações entre outros “ausentes”, localmente
distantes de qualquer situação dada ou interação face a face. Em
condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fan-
tasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e
moldados em termos de influências sociais bem distantes deles.
O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente
na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas
que determinam sua natureza.

Educação e descentramento 93
O que precisamos entender, na citação de Giddens, é a distinção que
ele faz entre a pré-modernidade, em que há a cultura da “presença” (a
interação face a face é uma marca distintiva desse período), e a moder-
nidade, na qual a interação face a face vai, aos poucos, sendo dispen-
sada, de modo a gerar a cultura da “ausência”. Talvez essa discussão
nos pareça ainda muito abstrata; vamos, então, buscar exemplos mais
concretos, até para que possamos perceber o quanto as alterações nas
nossas noções de tempo e espaço contribuem para a transformação
dos três tipos de sujeitos apontados por Hall.

Para Giddens (1991), as mudanças tecnológicas foram fundamentais


para a desvinculação entre tempo e espaço. Um bom exemplo é
pensarmos no desenvolvimento técnico das comunicações. O século XX,
por exemplo, conheceu pelo menos três revoluções nessa área, simbo-
lizadas pelo rádio, pela TV e pela internet. John Thompson, um dos mais
notáveis teóricos das comunicações no mundo, nos ajuda a apresentar
esse cenário. Ele explica que:
o advento da telecomunicação trouxe uma disjunção entre o
espaço e o tempo, no sentido de que o distanciamento espacial
não mais implicava o distanciamento temporal. Informação
e conteúdo simbólico podiam ser transmitidos para distân-
cias cada vez maiores num tempo cada vez menor; quando a
transmissão telegráfica foi instalada, as mensagens eram rece-
bidas em menos tempo do que era necessário para codificar e
decodificar a informação. O distanciamento espacial foi aumen-
tando, enquanto a demora temporal foi sendo virtualmente eli-
minada. (THOMPSON, 1998, p. 36, grifos do original)

Você percebe a importância do que Thompson está apontando? Aos


poucos, com o desenvolvimento de maneiras cada vez mais comple-
tas de transmissão de informação e entretenimento, todo o conteú-
do informacional que elas nos apresentam foi tendo um alcance cada
vez maior, “o distanciamento espacial foi aumentando” e o tempo de
transmissão, para os inúmeros lugares onde a informação chegava,
foi diminuindo drasticamente. Com a internet, por exemplo, é possível
que pessoas de várias partes do mundo assistam a uma transmissão
de um evento esportivo ou a uma série da Netflix simultaneamente.

A essa possibilidade, Thompson vai, apropriadamente, chamar de


simultaneidade não espacial. Ele lembra que, em períodos históricos
mais antigos, a simultaneidade pressupunha a localidade: a ideia de

94 Filosofia da Educação
presenciar, simultaneamente, algum evento exigia que as pessoas esti-
vessem no mesmo local.

Outro aspecto explorado por Thompson com relação ao desenvol-


vimento das comunicações e da mídia contemporânea, em especial,
é a modificação na nossa percepção do passado e da história. Antes
do desenvolvimento das indústrias de mídia, o que as pessoas tinham
como referência ao passado se devia muito à troca de conteúdo sim-
bólico por meio de interações face a face. Nesse sentido, para essas
culturas, a narração de histórias importava muito, uma vez que ajudava
a moldar a imaginação e o conhecimento sobre o passado histórico dos
povos que estavam para além das fronteiras locais.

Para firmarmos bem a distinção entre a nossa imaginação hoje


e a de povos que não conheceram as mídias digitais, poderíamos
perguntar “e hoje, como as mídias nos influenciam?”. Segundo o pró-
prio Thompson, a compreensão que fazemos do passado é cada vez
mais dependente da inevitável e contínua expansão de um reservató-
rio de conhecimentos, interpretações e imagens que nos chegam por
intermédio das mídias – ele chama esse fenômeno de historicidade me-
diada. Segundo o autor,
muitos indivíduos nas sociedades ocidentais hoje chegaram ao
sentido dos principais acontecimentos do passado, e até dos
mais importantes acontecimentos do século XX (as duas guerras
mundiais, a revolução russa, o holocausto, etc.), principalmente
através de livros, jornais, filmes e programas televisivos. À medi-
da que se recua no passado, fica cada vez mais difícil que os indi-
víduos tenham chegado ao sentido dos acontecimentos através
de experiências pessoais ou de relatos de testemunhas transmi-
tidas em interações face a face. A tradição oral e a interação face
a face continuam a desempenhar um papel importante na elabo-
ração de nossa compreensão do passado, mas elas operam cada
vez em conjunto com um processo de compreensão que se serve
cada vez mais do conteúdo simbólico presente nos produtos das
indústrias da mídia. (THOMPSON, 1998, p. 38)

Devemos perceber que a análise de Thompson não descarta a in-


teração face a face; esta continua existindo, porém agora há também
a ação das mediações por intermédio da mídia. Houve um tempo em
que o grande volume de troca de informações, interpretações e senti-
dos simbólicos ocorria apenas pela interação face a face. Assim, o autor
não propõe uma rivalidade entre essa interação e a interação mediada,

Educação e descentramento 95
mas chama a atenção para o fato de que essa segunda é uma realidade
cada vez mais presente e influente sobre nosso conhecimento. É pre-
ciso observar que Thompson (1998) não cita a internet, pois, na época
de seu texto, a popularização da internet estava apenas engatinhando;
entretanto, em seus trabalhos posteriores, ele já a considera, em grande
parte, como mais um tipo de interação mediada.

Artigo

https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/153199

Recomendamos o artigo A interação mediada na era digital, de 2018, do pró-


prio autor Thompson, em que ele faz uma atualização do tema, incorporan-
do a internet à discussão e encontrando, em certas modalidades de uso da
rede, um outro tipo de interação: a mediada on-line.
Acesso em: 16 jul. 2021.

Feitas essas observações, vamos seguir um pouco mais na compreen-


são de como esses avanços, em termos de interação, incidem sobre a
mudança de sujeito que nos informa Hall. Primeiro, é preciso observar
que, se a influência da interação mediada se desse apenas sobre nos-
sa imaginação e memória histórica, talvez pudéssemos considerá-la de
modo mais específico e limitado.

No entanto, Thompson (1998) nos alerta sobre como a interação me-


diada influencia, em grande parte, a nossa troca simbólica no presente.
Segundo ele, nosso conhecimento – a maneira como interpretamos e
nos relacionamos com o mundo a nossa volta no tempo presente – é
também muito influenciado pelos novos tipos de interação. A esse fenô-
meno Thompson dá o nome de mundanidade mediada. Vamos avaliar,
por um momento, a contundência dessa ideia.

Se Thompson estiver correto, não só nossa memória é perpassada pe-


las novas mídias e suas formas de interação, mas também a maneira como
nos relacionamos com o mundo presente; possivelmente, as expectativas
que lançamos para o futuro estejam, igualmente, sob a mesma influência.
Thompson (1998, p. 38-39) define essa situação complexa assim:
se a mídia alterou a nossa compreensão do passado, criou
também aquilo que poderíamos chamar de “mundanidade me-
diada”: nossa compreensão do mundo fora do alcance de nossa
experiência pessoal, e de nosso lugar dentro dele, está sendo
modelada cada vez mais pela mediação de formas simbólicas.
Esta difusão dos produtos da mídia nos permite em certo sen-
tido a experiência de eventos, a investigação de outros e, em

96 Filosofia da Educação
geral, o conhecimento de um mundo que se amplia para muito
além de nossos encontros diários. Os horizontes espaciais de
nossa compreensão se dilatam grandemente, uma vez que eles
não precisam estar fisicamente aos lugares onde os fenômenos
ocorrem. Tão profunda é a medida em que nossa compreen-
são do mundo foi modelada pelos produtos da mídia hoje que,
quando viajamos pelo mundo para lugares mais distantes como
visitante ou turista, nossa experiência vivida é muitas vezes pre-
cedida por um conjunto de imagens e expectativas adquiridas
através de nossa prolongada exposição aos produtos da mídia.
Mesmo naqueles casos em que a nossa experiência de lugares
distantes não coincide com nossas expectativas, o sentimento
de novidade ou surpresa muitas vezes confirma o fato de que
nossa experiência vivida foi precedida por uma série de ideias
preconcebidas e derivadas, pelo menos em parte, das palavras e
imagens transmitidas pela mídia.

A citação é longa, mas nos ajuda na interpretação dos fenômenos


que estamos buscando compreender. Por isso, vamos explorar mais as
ideias expostas pelo autor.

Para ele, essa nova configuração tecnológica é muito positiva, pois


enriquece as nossas experiências, que, de outra maneira, seriam sem-
pre muito localizadas e conduzidas apenas pelas formas de interação
presenciais. É importante que Thompson consiga apontar aspectos
positivos dessa cultura da ausência que é a interação mediada, uma
vez que parte considerável do pensamento do século XX entendeu o
desenvolvimento das comunicações com muita desconfiança.

Os trabalhos da Escola de Frankfurt (principalmente na figura de


Theodor Adorno), por exemplo, apontam para o desenvolvimento da
mídia como uma ameaça de dominação cultural, por meio do conteúdo
produzido pelos países mais poderosos economicamente, que vendem
seu estilo de vida para um mundo que passa a sonhar com esse esti-
lo, mas não pode realizá-lo. Porém, o trabalho de Thompson, apesar
de não descartar a correção, em alguns aspectos, do tipo de análise
frankfurtiana, continua a apostar na ideia de que as vantagens do de-
senvolvimento das formas de entretenimento e informação nos dota
de benefícios que superam as possíveis consequências negativas.

Como citamos, para Thompson (1998, p. 39), “os horizontes espa-


ciais de nossa compreensão se dilatam grandemente, uma vez que eles
não precisam estar fisicamente aos lugares onde os fenômenos ocor-

Educação e descentramento 97
rem”, o que significa que a nossa capacidade de compreensão, de in-
formação e, até mesmo, de comunicação acaba sendo potencializada
devido a tudo isso. Quando comparamos os cidadãos de sociedades
pré-modernas aos das sociedades atuais, é evidente a vantagem que
temos, em função de as nossas potencialidades imaginativas, informa-
cionais e compreensivas terem se expandido, enfim, da mundanidade
mediada.

Tudo isso significa, então, que nossos estilos de vida e nossas


expectativas sobre que tipo de vida queremos ter estão sob o espectro
abarcado pela mundanidade mediada. Culminamos em um ponto cen-
tral: a influência de toda essa abertura informativa, que, em um clique,
nos põe em contato com conhecimentos do mundo inteiro em tempo
real. Essa influência é marcante para a transformação dos sujeitos, até
a chegada do sujeito pós-moderno.

Você lembra que de um sujeito unificado, o do Iluminismo, chegamos


ao sujeito pós-moderno, cujas principais características são a sua mul-
tiplicidade e sua dificuldade de se definir como estável? Embasados no
que Thompson diz, podemos inferir que parte da responsabilidade pela
instabilidade do sujeito pós-moderno é a suscetibilidade dele aos apelos
da mídia. Vamos entender isso com base em um exemplo simples.

Se você fizer uma rápida pesquisa na internet, vai descobrir que, entre
os anos de 2020 e 2021, houve uma oferta repentina de boinas mascu-
linas, que, por muito tempo, estiveram à venda, mas eram consumidas
por um público pequeno e bem específico. Por que então, de repente,
ocorreu uma explosão na procura desse artigo? O motivo está em uma
2 série da Netflix
2
chamada de Peaky Blinders. A trama conta a história
A série começou sendo de uma família de gangsters agindo na Inglaterra pós-Primeira Guerra
exibida, primeiro, em
2013 pela BBC, depois
Mundial. Entre as peças de roupa que situam os personagens naquele
pela HBO e, a partir de momento histórico estão as boinas. Pressupõe-se que a admiração do
2017, pela Netflix.
público masculino em torno da história que a série conta tenha produ-
zido a grande busca por esse item no mercado de moda atual – alguns
sites, inclusive, anunciam o produto como “boinas estilo Peaky Blinders”.

Provavelmente, essa não é a primeira vez que um público grande se


identifica com alguma série, filme, artista, atleta, enfim, com alguma ce-
lebridade, e passa a incluir, em suas referências de moda, objetos que
o vinculem à figura admirada. Isso significa que, muitas vezes, pode-
mos nos identificar não somente com tipos de roupa, mas com estilos

98 Filosofia da Educação
de vida que não estão próximos de nós. Isso é um fenômeno mundial,
ou seja, a identificação com objetos simbólicos
3
que venham de longe, 3
por meio de eventos (esportivos, políticos, artísticos etc.), filmes, séries, Devemos entender por
objetos simbólicos aque-
músicas, entre outros, ocorre em qualquer lugar onde haja a possibi- les cujo valor está para
lidade desse intercâmbio de informações, viabilizado pelos meios de além do material, tendo,
então, valor naquilo que
comunicação e de transporte atuais. representam. Eles podem,
dessa forma, representar
Referimo-nos a um exemplo simples anteriormente, mas podemos uma mensagem política,
mencionar a adoção de algo que esteja para além das boinas, como de incorporação ou desa-
pego de valores morais,
comportamentos e valores. Nesse sentido, Giddens (1993) trata da de protesto etc.
adoção de novos comportamentos envolvendo sexo e matrimônio. O
autor se refere a um estudo dos anos 1980, em que garotos e garotas
foram consultados sobre o início da vida sexual. A pesquisa revelou
que os rapazes não sabiam falar de sexo com algum comprometimen-
to de futuro; eles falavam sobre episódios sexuais esporádicos, “como
desempenho heterossexual precoce ou conquistas sexuais diversas”
(GIDDENS, 1993, p. 59). Já as garotas, para as mesmas perguntas, con-
tavam histórias de angústia e de entusiasmo pelas relações íntimas.
Segundo a pesquisa, essas histórias pareciam, de algum modo, a de
novelistas profissionais, dados os detalhes e a complexidade da nar-
rativa; portanto, as moças pareciam estar muito mais envolvidas na-
queles momentos íntimos relatados do que os garotos. No entanto,
parece que, apenas uma década depois, esse comportamento femini-
4
no já mudou , e essa alteração, ainda que lenta, tem relação direta 4
com a influência simbólica que nos chega de outros lugares. Observe- A análise de Giddens
não para aqui. No livro A
mos aqui como Giddens (1993, p. 63) destaca esse aspecto como um transformação da intimi-
dos fundamentos da mudança: dade: sexualidade, amor
e erotismo nas sociedades
em uma sociedade altamente reflexiva, assistindo televisão e modernas (GIDDENS,
lendo, elas entram em contato e ativamente procuram nume- 1993), ele mostra estágios
mais avançados que
rosas discussões sobre sexo, relacionamentos e influências que
envolvem o processo de
afetam a posição das mulheres. Os elementos fragmentários da emancipação feminina,
ideia do amor romântico a que estas garotas se aferram, buscan- baseada na capacidade de
do deter um controle prático de suas vidas, não estão mais intei- esse público refletir (com
toda a informação que
ramente ligados ao casamento. lhe chega: revistas, livros,
programas de TV etc.)
Para Giddens (1993), assim como para Thompson (1998), as pessoas sobre as diferenças das
de hoje podem pensar melhor sobre a educação que receberam e so- condições sociais entre os
gêneros que conquistou.
bre as tradições herdadas da família, dos amigos e de indivíduos mais
velhos, que as fizeram acreditar que determinados comportamentos
e valores são corretos e outros não. Toda a informação e o entreteni-

Educação e descentramento 99
mento a que estamos submetidos diariamente não funcionam apenas
como algo para nos distrair, mas sim como uma espécie de palco, em
que novos comportamentos, ideias, roupas e modos de pensar e agir
vão nos sendo apresentados e, à luz deles, acabamos avaliando e os
colocando em comparação com nossas vidas. Nesse trajeto, podemos
abrir mão de coisas que fazem parte de nossa bagagem existencial e
trocá-las por alguns desses novos elementos que passam diante de nós
nesse palco diário de informação e entretenimento.

Agora já podemos melhorar a definição do sujeito pós-moderno, re-


tratado por Stuart Hall. Lembra-se de que uma de suas características
é a instabilidade? De acordo com o que discorremos com Giddens – e
antes com Thompson –, se ele estiver correto, realmente se torna mui-
to difícil exigir coerência absoluta e estabilidade definitiva de qualquer
sujeito mergulhado em um mundo em que até valores e comporta-
mentos nos são exibidos todos os dias, quase como mercadorias, os
quais acabam, muitas vezes, enriquecendo o que somos e, outras ve-
zes, confrontando o que somos – em um momento diferente, ainda,
podem acabar modificando o que somos.

Filme Em função das novas informações a que vamos tendo acesso


No filme A vida em preto
constantemente, para autores como Hall, Thompson e Giddens, não
e branco, a vida de uma é possível defender a ideia de que as nossas identidades sejam tão
pacata e inocente cidade
é perturbada com a
estáveis quanto as dos sujeitos das sociedades pré-modernas ou, até
chegada de um casal de mesmo, dos sujeitos do Iluminismo. Algum grau de instabilidade
irmãos que trazem consi-
go novos comportamen-
permanente é a marca do sujeito pós-moderno. Por isso, também,
tos, chamando a atenção esses autores não acreditam que o sujeito contemporâneo seja unifica-
de parte dos jovens do
local. Aos poucos, esses
do, pois ele pode ter várias identidades, inclusive algumas delas contra-
jovens vão entrando em ditórias, como expõe Hall (2005).
contato com livros, qua-
dros e músicas e acabam Agora que tecemos um razoável perfil do sujeito pós-moderno, po-
mudando radicalmente.
O surgimento das cores
demos mencionar um dos aspectos que mais preocupa Stuart Hall.
no filme é uma metáfora Para ele, as mudanças culturais que a modernidade proporcionou,
muito bem realizada para
simbolizar o processo de
sendo capaz de estruturar o sujeito fragmentado dos dias atuais, o
mudança. No entanto, sujeito pós-moderno, desafiam o tipo de reconhecimento identitário
estas não ocorrem sem
conflitos, pois a outra par-
mais importante para a preservação dos territórios nacionais: a iden-
te da cidade se organiza tidade nacional. Isso porque, se as teorias que expusemos estiverem
para tentar barrá-las.
corretas, é possível que, cada vez mais, as pessoas possam buscar
Direção: Gary Ross. Estados Unidos:
proximidade e identificação com valores, pessoas, conhecimentos e
New Line Cinema, 1998.
culturas que venham de outros lugares. Isso que acabamos de definir

100 Filosofia da Educação


é o que Giddens chama de desencaixe – outro conceito importante
para nosso estudo.

Segundo Giddens (1991, p. 29), desencaixe refere-se “ao ‘deslocamento’


das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação
através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. O autor coloca o ter-
mo deslocamento entre aspas justamente porque não se trata de desloca-
mento físico, mas sim de informação até os lares das pessoas em várias
partes do mundo (extensões indefinidas de tempo-espaço).

Para Hall, o perigo pode estar no fato de que as pessoas, hoje, po-
dem se identificar com os aspectos já apresentados anteriormente e
“abandonar” sua cultura local, isto é, os valores que circulam em suas
cidades e países de origem. De certo modo, se isso ocorre, as culturas
locais vão se esvaziando, de modo a enfraquecer as identidades na-
cionais. Hall entende, também, que todo o processo cultural que apre-
sentamos até aqui é resultado do processo de globalização. Sobre a
globalização e o seu aspecto cultural, Hall (2005, p. 69) retrata:
que impacto tem a última fase da globalização sobre as iden-
tidades nacionais? Uma de suas características principais é a
“compressão espaço-tempo, a aceleração dos processos globais,
de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias
mais curtas, que os eventos em um determinado lugar têm um
impacto imediato sobre as pessoas e lugares situados a uma
grande distância.

Para o autor (HALL, 2005, p. 69, grifos do original), há, nisso tudo,
três consequências sociais possíveis:
• As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado
do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno
global”.
• As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou parti-
cularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização.
• As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identida-
des – híbridas – estão tomando seu lugar.

Hall procura analisar com cuidado cada uma das possíveis conse-
quências desse processo. Mas o que nos interessa é pensar de que modo
toda essa mudança cultural, que representa o sujeito pós-moderno, in-
cide sobre a educação brasileira. Se considerarmos como corretas as
análises dos autores apresentados até aqui, podemos refletir, desde já,
sobre quais tipos de desafio são lançados à nossa educação. Faremos

Educação e descentramento 101


isso preliminarmente; ainda, nesse sentido, a seção seguinte nos ajudará
a aprofundar essa discussão, uma vez que nela encontraremos algumas
ressalvas às teses de Hall, Giddens e Thompson, o que ampliará o esco-
po dos desafios que a educação brasileira tem pela frente.

A primeira grande questão a ser levantada é o desafio que a


escola tem para se tornar atraente. Diante da instabilidade do sujeito
pós-moderno – a qual resulta, em grande parte, de influências culturais
que chegam a todo momento de outras partes do mundo e por vias
digitais –, a escola, que nem sempre busca ou tem condições materiais
para se renovar, precisa se tornar tão atraente quanto a cultura digital
que seduz os alunos. Algumas procuram fazer isso, mas não entenden-
do que essa cultura “invasora” seja sua inimiga, e sim buscando, por
exemplo, incorporar o uso de celulares e computadores como forma de
auxílio às pesquisas dos alunos. Há relatos importantes de ações reali-
zadas com sucesso nesse sentido.

Figura 2 De qualquer modo, há sempre riscos de insucesso, pois


Aluna com material digital o uso desse material em sala pode ser também motivo
para dispersão, afinal estamos falando de sujeitos
pós-modernos. Então, como escolher temas que
garantam o interesse coletivo,
visto que a instabilidade do

Os alunos devem se interessar


pela escola do mesmo
modo (ou até mais) que são
seduzidos por equipamentos
eletrônicos.

Syda Productions/Shutterstock

102 Filosofia da Educação


sujeito certamente reflete na dificuldade de garantir a coesão dos inte-
resses em sala? O professor precisa estar ciente de que será desafiado
a todo instante por múltiplos interesses, sendo que a muitos desses ele
não terá como responder, dada a complexidade do mundo atual, as li-
mitações de tempo e a incapacidade de individualização de atendimento
ao aluno. Apesar de algumas escolas permitirem essa individualização –
geralmente, elas são elitizadas do ponto de vista econômico –, para boa
parte das escolas brasileiras ela é inviável.

Além disso, a individualização do ensino, por mais bem intenciona-


da que pareça, nem sempre gera os resultados sociais esperados. Em
um mundo cada vez mais fragmentado, pois é constituído de sujeitos
também fragmentados, a escola precisa manter uma de suas mais im-
portantes missões, que é a socialização. Há métodos que incentivam
a individualização do ensino e incitam o aluno por intermédio de pro-
jetos que ele vai produzir (baseado em seus interesses e, claro, naquilo
que se refira à disciplina e ao tema por ela tratado) e conduzir até o
desfecho satisfatório.

Bujes e Rosa (2012) nos alertam que, em muitos casos assim, a escola
não faz mais do que repetir os interesses empresariais de uma economia
cada vez mais neoliberal. Nesse sentido, a escola abdica de seu espírito
independente e crítico, formando apenas uma maior quantidade de mão
de obra futura. Não significa que esse também não seja um dos objeti-
vos da escola – o preparo para o mercado de trabalho –, mas ela pode e
deve ir além dele. Muitos outros objetivos, tão importantes quanto esse
ou até mais, precisam se concretizar por meio do pilar institucional que
a escola tem sido para as sociedades modernas.

Outra questão muito relacionada com a anterior é o fato de que


a inquietude parece ser um signo de nosso tempo, e não apenas dos
alunos. Isso precisa ser dito porque, às vezes, os professores se sentem
desmotivados – alguns culpam a si mesmos e às suas aulas. É preciso
ponderar essa situação.

Giddens tem outro conceito, que talvez nos traga algum alento, o
qual ele chama de reflexividade. A reflexividade consiste “no fato de
que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas
à luz da informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando
assim constitutivamente seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 45). Isso sig-
nifica que toda a nossa vida social está sob a luz da possibilidade de

Educação e descentramento 103


mudança a qualquer momento, pois hoje temos uma avalanche de in-
formação e análise a respeito de nossas práticas sociais, que se renova
e tende a nos fazer mudar em muitos aspectos, como comportamen-
tos, ideias, modos de nos relacionarmos com o outro etc. Para o autor,
essa é a característica mais distintiva da pós-modernidade (lembrando
que Giddens prefere o termo modernidade tardia) e tem resultado em
um avanço considerável na tolerância a modos de existência que, por
séculos, foram impedidos de se manifestar – por exemplo, questões
religiosas, sexuais, raciais, étnicas, de gênero, culturais etc.

Embora Giddens entenda que a reflexividade gera esses avanços, ele


observa que novos problemas podem ser criados. Isso porque, uma vez
que a reflexividade nos leva a uma reorientação dos conceitos, ela cria
impasses e embates com muitas formas de pensar e existir, fundadas
nas tradições, que, muitas vezes, reagem. Além disso, o autor procura
ser ponderado na ideia de avanço, pois as modificações que a reflexivi-
dade opera nunca nos levam a um lugar seguro, no sentido de que este
poderia apontar um conhecimento certo e definitivo: a qualquer mo-
mento, novos conhecimentos podem suplantar aquilo que gostaríamos
que fosse definitivo e gerar novas mudanças e instabilidade.

Diante desse cenário, o qual vale para qualquer sujeito que viva nas
sociedades reflexivas (independentemente de idade, sexo ou religião),
somos obrigados a aprender a viver sob o signo do errático, isto é, do
que não pode garantir certezas. Giddens (1991, p. 46) pode nos escla-
recer melhor sobre esse aspecto:
a modernidade é constituída por e através de conhecimento
reflexivamente aplicado, mas a equação entre conhecimento
e certeza revelou-se erroneamente interpretada. Estamos em
grande parte num mundo que é inteiramente constituído através
de conhecimento reflexivamente aplicado, mas onde, ao mesmo
tempo, não podemos nunca estar seguros de que qualquer ele-
mento dado deste conhecimento não será revisado.
5
Hall (2005) lembra que
Assim, temos como resultado a instabilidade e a insegurança, além
algumas das reações se do espírito conflitivo que essas mudanças provocam nos comporta-
dão em forma de funda-
mentalismos (religiosos ou
mentos e modos de vida mais tradicionais que resistem – em alguns
5
étnicos), em várias partes casos, até violentamente . O professor precisa entender, portanto,
do mundo, na tentativa de
afirmação do tradicional
que parte da inquietude em sala é reflexo do nosso tempo, não sendo
e da anulação dos valo- culpa de aulas, às vezes, carinhosa e exaustivamente elaboradas. É difí-
res pós-modernos.
cil para todos nós, porque saímos de um mundo cujos conhecimentos

104 Filosofia da Educação


e formas de viver buscavam ser perenes, quase infensos à ideia de mu-
dança, para um outro mundo, diferente, em que a mudança é inerente.

Mas deixaremos para discutir outros desafios à educação em


tempos de sujeitos pós-modernos na próxima seção, quando alguns
questionamentos serão adicionados.

4.2 Limitações da reflexividade sob a


análise da pedagogia histórico-crítica
Vídeo
O pensamento de Zygmunt Bauman (1925–2017) também se preo-
cupou com questões próximas das que acompanhamos até o momen-
to. Ele, igualmente, viu nas sociedades contemporâneas o signo da
instabilidade. Para Giddens e Thompson, apesar de todos os contra-
tempos que o desencaixe e a reflexividade podem produzir, os benefí-
cios superam os prejuízos. Para estes autores, o sujeito pós-moderno
precisa ser compreendido sobretudo naquilo de bom que as socieda-
des puderam produzir. No entanto, Bauman teve o olhar atento para
os aspectos mais disjuntivos das sociedades reflexivas.

Bauman (2013) defende que os jovens, hoje, só não são vistos como
dispensáveis porque podem ser considerados uma potencial contribui-

Figura 3
Mídias digitais em um celular

Prod
ucti
on P
erig
/Sh
utte
rsto
ck

Educação e descentramento 105


ção ao consumo. Obviamente, ele está nos remetendo a todas as discus-
sões importantes, que ocorreram no pensamento social do século XX,
acerca do mundo do trabalho. No desdobramento dessa história, muitos
grupos se viram dispensados de suas funções profissionais – alguns pela
crescente mecanização das indústrias e outros em função da dificuldade
de atualização diante de um mundo de mudanças.

Bauman, então, observa que hoje os poderes econômicos que di-


recionam os olhares nos jovens os pensam como um novo mercado a
Glossário ser comodificado e explorado. Para o pensador, estamos imersos em
comodificado: de uma cultura que comercializa todos os aspectos da vida das crianças e
commodities, é um
termo da economia; dos jovens. Tudo isso é possibilitado por meio do uso das redes sociais
bens de consumo que e das novas mídias digitais, sendo o telefone celular a principal delas.
são comercializados nas
bolsas de valores. Aqui temos em Bauman, portanto, alguém que está atento ao mesmo
tipo de apelo que os autores anteriores; porém, tanto Giddens quan-
to Thompson fazem uma análise em que os aspectos econômicos não
parecem ter um peso capaz de distorcer os benefícios que as novas
mídias deveriam nos oferecer.

Para esses dois autores, as mídias nos oferecem conteúdos que não
só nos tornam diferentes, como também mais capazes de reflexão.
Com Bauman, porém, todos esses aspectos precisam ser considera-
dos à luz dos interesses financeiros que comandam essas tecnologias.
Para um pensador como ele, tecnologias novas, que concentrem nelas
a capacidade de poder e de manipulação, estão sempre sob o domínio,
ou risco de domínio, de grupos que não têm como interesse principal o
6 desenvolvimento humano .
6

Esse tipo de abordagem


lembra os trabalhos Enquanto Giddens e Thompson veem no fluxo informativo da moder-
da Escola de Frankfurt. nidade algo que pode, até determinado ponto, ser libertador, Bauman,
Bauman recorda muito
a discussão de Jürgen podemos afirmar, é mais pessimista. Esse último, inclusive, sugere que
Habermas acerca do con- o termo globalização é enganador e muito impreciso; sua sugestão é
flito entre mundo da vida
versus sistema. O sistema que usemos o vocábulo glocalização. Para Bauman (1999), o termo pre-
são os conglomerados de cisa ser mudado porque a globalização só tem condições, realmente,
tecnologia e comunicação,
que não poupam esforços de se realizar para uma parcela da população mundial; já para a outra
para atrair e manipular. parcela resta a localização – que aqui significa incapacidade de desloca-
mento. Assim, apesar de todos serem permeados pelos apelos da mídia
e pelos discursos que incitam à mudança, que chegam por intermédio
de todo tipo de produto cultural como vimos, apenas uma parcela tem
capacidade material para se lançar com liberdade aos apelos.

106 Filosofia da Educação


Os demais, embora também sejam tocados pelos mesmos apelos,
acabam se frustrando, porque se enchem de sonhos e esperanças, mas
não têm condições financeiras para tornar esses sonhos algo palpá-
vel. Nesse sentido, Bauman propõe que é possível entender as divisões
sociais por meio da ideia de nômade. Para ele, existem dois tipos de
nômades: primeiro, aqueles que realmente podem bancar os seus so-
nhos pós-modernos e viajar sem encontrar muitas fronteiras ou barrei-
ras; já o segundo tipo é representado pelos que só têm a possibilidade
da viagem virtual, que lhes chega pelas imagens e pelos estilos de vida
mais variados. Com relação à organização das divisões, Bauman (1999,
p. 96, grifo do original), relata o seguinte:
aliás, os mundos sedimentados nos dois pólos, no alto e no pé
da nova hierarquia da mobilidade, diferem acentuadamente;
também se tornam cada vez mais incomunicáveis entre si. Para
o Primeiro Mundo, o mundo dos globalmente móveis, o espaço
perdeu sua qualidade restritiva e é facilmente transposto tanto
na sua versão “real” como na versão “virtual”. Para o segundo
mundo, o da “localidade amarrada”, daqueles impedidos de se
mover e assim fadados a suportar passivamente qualquer mu-
dança que afete a localidade onde estão presos, o espaço real
está se fechando rapidamente. É um tipo de provação que se
torna ainda mais penosa pela insistente exibição na mídia da
conquista do espaço e do “acesso virtual” a distâncias que per-
manecem teimosamente inacessíveis na realidade efetiva.

Assim, quando abordamos a inquietude, no final da seção anterior,


talvez não seja ela, em sua totalidade, uma consequência dos pode-
res positivos e da reflexividade, como acreditam Giddens e Thompson.
Talvez, se concordarmos com Bauman, parte de toda essa inquietude
seja a frustração, a qual tem atingido muitas pessoas por meio de todo
esse fluxo informativo que só aumentou desde a modernidade até a
pós-modernidade. Mobilizamos, então, o pensamento de Bauman, ain-
da que muito sucintamente, para apresentar uma leitura crítica com re-
lação aos poderes da reflexividade em um mundo como o que vivemos.

Queremos agora mobilizar um pensamento mais próximo de nós,


que vem da escola histórico-crítica, capaz de nos auxiliar fortemente. A
tradição histórico-crítica na educação brasileira tem reunido, ao longo
de décadas, alguns dos melhores pensadores da educação brasileira. O
termo pedagogia histórico-crítica foi criado pelo principal pensador
dessa corrente: Dermeval Saviani.

Educação e descentramento 107


Para Saviani (1999), a pedagogia histórico-crítica se constrói na tentati-
va de superar o que ele classifica como pedagogias crítico-reprodutivistas.
Estas têm algum caráter crítico, ou seja, ao menos percebem os condicio-
nantes sociais que incidem sobre a educação brasileira como um todo,
mas não carregam em seu programa a possibilidade de que a educação
possa, de algum modo, transformar a sociedade e, por isso, acabam ape-
nas reproduzindo as condicionantes sociais vigentes.

Saviani, por sua vez, deixa bem claro, em sua visão de escola, que
essa importante instituição moderna tem no seu interior as mesmas
oposições presentes na sociedade como um todo. A divisão de classes,
7 7
marca inconteste das sociedades contemporâneas capitalistas, está
Inconteste porque a visão
também presente na escola. Para Saviani (1999), as classes dominantes
pedagógica da pedagogia
histórico-crítica tem, no não têm interesse algum na mudança da estrutura educacional, uma vez
marxismo, um de seus
que, do modo como ela se encontra, as estruturas de domínio permane-
principais fundamentos, e
no pensamento de Marx a cem sem ser contestadas – em muitos casos, não são nem identificadas.
luta de classes é o motor
da história. Sendo assim, a teoria crítica deve se desenvolver com base no inte-
resse dos grupos dominados, “assumindo a escola como um instrumen-
to de luta contra a marginalidade, o que significa engajar-se no esforço
para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível
nas condições históricas atuais” (SANTOS, 2018, p. 46). Por isso, há o jul-
gamento às pedagogias crítico-reprodutivistas referidas – embora elas
identifiquem a cisão social, não se organizam programaticamente com a
intenção de mudá-la. Além disso, a pedagogia histórico-crítica faz ques-
tão de se diferenciar das pedagogias tradicionais e das novas quanto à
posição do professor e à do aluno no processo de aprendizado.

Nas pedagogias tradicionais, o ensino está todo concentrado no


professor, e o aluno tem uma posição passiva diante do conteúdo que
lhe é apresentado; já nas novas pedagogias, o aluno passa a ser o cen-
tro da atenção. Saviani (1999, p. 77) situa a Escola Nova – movimento de
meados do século XX, considerado uma grande renovação e o princípio
de democratização da escola no Brasil – como o ponto de transição e
aquela que conseguiu apontar os problemas da educação tradicional:
“parte-se da crítica à pedagogia tradicional (pedagogia bancária) carac-
terizada pela passividade, transmissão de conteúdos, memorização,
verbalismo etc. e advoga-se uma pedagogia ativa, centrada na iniciativa
dos alunos, no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos”.

108 Filosofia da Educação


No entanto, essa mesma Escola Nova é criticada por Saviani, sob a
alegação de que as propostas democráticas dessa pedagogia não se rea-
lizaram (com exceção da pedagogia de Paulo Freire, a qual Saviani se re-
fere como Escola Nova Popular). A crítica desse autor nos interessa porque
aquilo que ele acredita superar, por intermédio da pedagogia histórico-crí-
tica, pode nos oferecer algumas respostas para o que discutimos até aqui
com relação ao descentramento, uma vez que a essência da pedagogia
histórico-crítica é justamente tornar claro o seu eixo conteudístico, que
pode ser entendido por nós como uma possibilidade de centramento.

A crítica de Saviani à Escola Nova é mais uma direcionada à incapaci-


dade desse movimento de se resguardar dos arranjos políticos, comuns
à sociedade, que buscam usar os mais refinados meios para a educa-
ção dos mais abastados e criam dificuldades para que esses mesmos
meios se democratizem e possam ser utilizados em larga escala:
se o credo escolanovista se torna predominante e toma conta das
cabeças dos professores, é inevitável o surgimento de pressões
no sentido de que a Escola Nova se generalize. Se o escolano-
vismo pressupõe métodos sofisticados, escolas mais bem equi-
padas, menor número de alunos em classe, maior duração da
jornada escolar; se se trata de uma escola mais agradável, capaz
de despertar o interesse dos alunos, de estimulá-los à iniciativa,
de permitir-lhes assumir ativamente o trabalho escolar, por que
não implantar esse tipo de escola exatamente para as camadas
populares onde supostamente a passividade, o desinteresse, as
dificuldades de aprendizagem são maiores? (SAVIANI, 1999, p. 78)

Vimos que talvez não se trate de desinteresse, e sim de uma inquie-


tude, com base nos conteúdos, nas sugestões, nas expectativas e nos
sonhos que vêm de fora da localidade de onde as pessoas residem.
Mas, para a pedagogia histórico-crítica, se defrontada pelo cenário
que apresentamos até o momento, com o sujeito pós-moderno, assim
como para Bauman, haverá a preocupação de distinguir quem são as
pessoas mais afetadas negativamente pelo avanço das tecnologias e
pelos efeitos sociais e psíquicos que elas podem produzir.

Logo, ao fazer essa distinção, certamente sua preocupação central é


propor maneiras de levar às populações mais afetadas uma educação
de qualidade, o que só pode ser feito por meio da consideração do
conteúdo como o pilar central do processo educativo. Saviani (1999)
defende que isso ocorra em cinco passos.

Educação e descentramento 109


O primeiro é comum a alunos e professores, que é o encontro
entre eles. Esse encontro pressupõe que suas posições não sejam as
mesmas com relação à compreensão (conhecimento e experiência)
da prática social. Assim, a compreensão do docente é uma “síntese
precária”, embora ele tenha uma compreensão razoável das práticas
sociais quando unidas a uma proposta pedagógica; ademais, essa com-
preensão, no momento em que se inicia o encontro do professor com
os seus alunos, é sempre precária, pois ele não conhece ainda o nível
de compreensão de cada um. Já a compreensão dos alunos é sempre
sincrética (confusa e caótica), pois, apesar de suas experiências, “sua
própria condição de alunos implica uma impossibilidade, no ponto de
partida, de articulação da experiência pedagógica na prática social de
que participam” (SAVIANI, 1999, p. 80).

O segundo passo, chamado de problematização, não pode se referir


à apresentação de novos conhecimentos pelo docente; deve-se detec-
tar as questões que precisam ser resolvidas e, em consequência, qual
conhecimento é necessário dominar. O terceiro passo, que nos inte-
ressa bastante, diz respeito ao que Saviani chama de instrumentalização;
trata-se de se apropriar de instrumentos práticos e teóricos, fundamen-
tais para o equacionamento dos problemas detectados na prática social:
como tais instrumentos são produzidos socialmente e preserva-
dos historicamente, a sua apropriação pelos alunos está na de-
pendência de sua transmissão direta ou indireta por parte do
professor […] Trata-se da apropriação pelas camadas populares
das ferramentas culturais necessárias à luta social que travam
diuturnamente para se libertar das condições de exploração em
que vivem. (SAVIANI, 1999, p. 81)

Temos até aqui, então, o encontro entre aluno e professor e o


ajuste, baseado na avaliação, que o docente deve fazer para saber o
nível de conhecimento de seus alunos. Depois, há o conhecimento do
8 8
problema e a definição dos saberes necessários para sua resolução .
O quarto e quinto
passos defendidos por
O terceiro passo, por sua vez, é essencial porque Saviani defende que,
Saviani serão explicados após ter o conhecimento do problema a ser discutido, o repertório que
posteriormente, após
compreendermos o que
vai permitir a busca por uma solução é o conjunto de conhecimentos
Bauman evidencia sobre produzidos historicamente e compartilhados. Ou seja, para Saviani
essa ideia.
(1999), esses alunos precisam ter acesso ao conhecimento formal.
Santos (2018, p. 50) reitera essa posição: “a seleção dos conteúdos es-
colares deve, portanto, considerar a garantia aos alunos da assimilação

110 Filosofia da Educação


da experiência histórico-social de gerações. Não serão quaisquer con-
teúdos, mas sim, os conhecimentos historicamente sistematizados em
suas formas mais desenvolvidas”.

Por isso, o conteúdo é o centro da pedagogia histórico-crítica; ela


não faz rodeios quanto a isso. Independentemente das classes sociais
de que os alunos são originários, a escola precisa se concentrar em ga-
rantir que a eles seja ensinado o que a humanidade assegurou de me-
lhor em termos de conhecimentos científicos, éticos, técnicos, artísticos
etc. Isso porque, como Saviani compreende, é esse o saber que lhes
será exigido fora da escola e garantirá uma socialização mais efetiva.

Voltemos ao sujeito pós-moderno. Vimos o quanto a instabilidade


pode adentrar a sala de aula e discutimos o quanto ela pode angustiar
os professores. Mas temos, na pedagogia histórico-crítica, uma proposta
muito bem estruturada, que não nega ter um centro e dele não ceder.
Os conteúdos capazes de resolverem os problemas que a escola propõe
são os conteúdos formais, e é neles que o professor deve se concen-
trar. Dessa forma, o sujeito pós-moderno pode ser um problema, e os
aspectos relacionados a isso podem ser discutidos em sala. No entan-
to, aquilo que pode dar mais consistência às discussões já está forma-
lizado pela escola; logo, é necessário saber canalizar esses conteúdos
e levá-los à discussão e ao aprendizado dos alunos. O que não pode
ocorrer é a escola se deixar invadir pelas angústias pós-modernas e, de
maneira livre, imaginar que alunos conduzam seus próprios projetos.

O professor, democraticamente, precisa saber conduzir os alunos


diante dos problemas do consumo ou do desejo dele, de personalida-
des que se transformam ou de olhares que perderam o interesse nas
aulas, enfim, dos problemas que a fragmentação moderna produz ao
conhecimento formal e ao contato com o que de melhor a humanida-
de produziu no que diz respeito a conhecimentos. Se Bauman estiver
certo e os grandes interesses econômicos só se importarem com os
jovens com base em sua capacidade de consumo, a escola precisa sa-
ber problematizar a origem de tantos desejos fragmentados, para que
o aluno possa encontrar respostas para algumas de suas angústias.
Podemos comentar uma passagem de Bauman, pois ela ilustra bem
o que afirmamos acerca do desejo e como ele nem sempre significa
libertação, podendo ser, na verdade, o seu oposto: prisão.

Educação e descentramento 111


Bauman (1999) faz uma comparação entre duas mulheres, ambas
vivendo sob os mesmos apelos midiáticos pós-modernos. Uma delas,
no entanto, é cosmopolita e bem resolvida financeiramente. O autor
observa que ela não tem residência fixa, dada a sua condição de pa-
lestrante, pois viaja para todas as partes do mundo e recebe muito bem
pelo que faz. Embora sem residência fixa, sente-se à vontade em qual-
quer lugar, visto que todos os hotéis em que fica têm o mesmo padrão
de luxo. Ela sabe, então, onde fica o interruptor elétrico, já conhece o
cardápio etc., tanta a sua familiaridade com aquele tipo de ambiente. A
outra mulher, Michele, uma jovem, é descrita assim por Bauman:
aos 15 seu cabelo era num dia ruivo, depois preto, em seguida
eriçado em estilo afro, logo cortado em caminhos de rato, aí en-
trançado, então raspado rente ao crânio, cintilante… A cor de
seus lábios era escarlate, depois púrpura, em seguida preta. O
rosto ia de uma palidez de fantasma ao tom de pêssego, fican-
9 do depois bronzeado como se tivesse sido banhado em metal.
Em uma outra passagem, Perseguida por sonhos de fuga, saiu de casa aos 16 para viver
Bauman (1999, p. 91) com o namorado, que tinha 26… Aos 18 voltou para a casa da
expõe: “os consumidores mãe, com dois filhos… Sentou-se no quarto de onde fugira três
são primeiro e acima de
tudo acumuladores de
anos antes, agora com as antigas fotos de astros pop já desbota-
sensações, são coleciona- das na parede. Disse que se sentia como uma velha de cem anos.
dores de coisas apenas Experimentou tudo o que aquela vida podia oferecer. Nada mais
num sentido secundário
restava. (SEABROOK, 1985, p. 59 apud BAUMAN, 1999, p. 99-100)
e derivativo”. Podemos
supor que Bauman está
nos afirmando que, em
Essa passagem ilustra o quanto os apelos midiáticos do mundo
um mundo pós-moderno, pós-moderno podem ser vividos de maneiras distintas, dependendo
como o nosso, o obje-
de vários fatores – aqui cabe ressaltar dois, o aspecto econômico e o
tivo e prazer maior do
consumidor é gostar da psíquico. Esses apelos, da maneira que nos chegam, multifacetados,
sensação de estar sempre sem que conheçamos sua origem e tampouco suas intenções , podem
9

desejando algo novo, e


não aquilo que compra- exercer efeitos inesperados em nós. De certa forma, é possível afirmar
mos (afinal se já compra- que não temos controle total sobre eles, não sabemos exatamente o
mos, se já é nosso, não
pode mais ser desejado, que a soma desses apelos vai formar em nós em termos de desejo e
ficamos até frustrados um frustração. O exemplo de Michele talvez nos revele isso. Essas últimas
pouco depois, uma vez
que o prazer do consumo
referências ao trabalho de Bauman foram feitas para que compreen-
não vem da posse do dêssemos o engajamento explícito de uma proposta como a da peda-
objeto e, assim, precisa-
gogia histórico-crítica, que certamente sabe que a escola está plena da
mos desejar algo novo,
reiniciando o ciclo do presença de histórias como a de Michele.
desejo e do consumo in-
definidamente). O truque Nesse sentido, questões como consumo, mídia, interesses das gran-
é este: nos manter dese- des corporações em torno do nosso perfil de consumo nas redes so-
jando continuamente.
ciais etc. podem se tornar interessantes aos alunos, do ponto de vista

112 Filosofia da Educação


investigativo, bem como um caminho de acesso fecundo para a busca de
respostas a esses problemas no conhecimento formalizado pela escola.
Apenas para que fechemos a apresentação dos cinco passos que
Saviani propõe, trazemos agora o quarto passo, que se refere ao que
ele chama de catarse: após o aluno ter tido acesso, com a condução
cuidadosa do professor, aos conhecimentos necessários, chega o mo-
mento de expressar de modo elaborado o entendimento da prática
social que necessitava de solução: “trata-se de efetiva incorporação
dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ati-
vos de transformação social” (SAVIANI, 1999, p. 81, grifo nosso). E o
quinto passo é a chegada do aluno ao nível sintético: “neste ponto, ao
mesmo tempo que os alunos ascendem ao nível sintético em que, por
suposto, já se encontrava o professor no ponto de partida, reduz-se a
precariedade da síntese do professor, cuja compreensão se torna mais
e mais orgânica” (SAVIANI, 1999, p. 81).
Por fim, resta observar que, para a pedagogia histórico-crítica, a
fragmentação já está pressuposta, ao menos no nível sincrético em
que o aluno se encontra quando se inicia na escola; mas, segundo
essa mesma pedagogia, a fragmentação pode ser transformada e a
escola pode centrar o sujeito, ao menos naqueles conhecimentos que
lhes serão importantes como ser humano e cidadão. É óbvio que há
inúmeras possibilidades de contra-argumentação para os teóricos da
pós-modernidade usarem, mas não é nosso escopo no momento. Para
encerrarmos, vale uma reflexão do próprio Saviani (1999, p. 87):
entendo, pois, que o processo educativo é passagem da desigual-
dade à igualdade. Portanto, só é possível considerar o processo
educativo em seu conjunto como democrático sob a condição
de se distinguir a democracia como possibilidade no ponto de
partida e a democracia como realidade no ponto de chegada.
Consequentemente, aqui também vale o aforismo: democracia é
uma conquista; não um dado. [...] se para os alunos a percepção
dessa possibilidade é sincrética, o professor deve compreendê-
-la em termos sintéticos. Isto porque o professor deve antever
com uma certa clareza a diferença entre o ponto de partida e
o ponto de chegada, sem o que não será possível organizar e
implementar os procedimentos necessários para se transformar Glossário
a possibilidade em realidade. Diga-se de passagem que esta ca- esboroar: reduzir(-se) a
pacidade de antecipar mentalmente os resultados da ação é a pequenos fragmentos, a
pó; desfazer(-se), desmo-
nota distintiva da atividade especificamente humana. Não sendo
ronar(-se), pulverizar(-se)
preenchida essa exigência cai-se no espontaneísmo. E a especifi- (HOUAISS, 2009).
cidade da ação se esboroa.

Educação e descentramento 113


Do educador, exige-se o preparo, item essencial, pois é deste a an-
tevisão que organiza e conduz o aluno até que este se torne também
mestre de seu próprio saber. E, mais que tudo, o professor precisa
desejar tornar possível a “passagem da desigualdade à igualdade”, vi-
ver a democracia em seu sentido mais amplo, na vida e na profissão,
porque é esse desejo que, ao fim, iguala aluno e professor. Dos docen-
tes do campo das humanidades, exige-se um desejo ainda maior, pois,
ao que parece, os desafios são enormes. Veremos na seção seguin-
te o quanto todo o descentramento pós-moderno ameaça os saberes
da filosofia, das artes e das línguas. Quem nos afirma isso é a filósofa
norte-americana Martha Nussbaum.

4.3 Martha Nussbaum e as


Vídeo humanidades em risco de extinção
A referência a Martha Nussbaum surge, ainda que brevemente, ba-
seada na discussão anterior e na preocupação da pedagogia histórico-
-crítica de fazer com que a escola consiga educar o aluno com base no
conhecimento formal, que vem se acumulando desde que nos torna-
mos uma civilização. Embora Nussbaum não esteja ligada à tradição
dos filósofos aqui discutidos, ela produziu, em um livro recente, uma
reflexão muito oportuna: o risco real de extinção que o ensino das hu-
manidades corre.

Nesse livro, Sem fins lucrativos, a eminente filósofa norte-americana faz


uma defesa da importância das humanidades como um elemento funda-
mental para a construção de sociedades democráticas. Já no início de seu
texto, ela aponta, de maneira contundente, afirmando se tratar de “uma
crise que, como um câncer, passa em grande parte despercebida”, a crise
da educação (NUSSBAUM, 2015, p. 3). De acordo com seu diagnóstico,
obcecados pelo PNB, os países – e seus sistemas de educação estão
descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis
para manter viva a democracia. Se essa tendência prosseguir,
todos os países logo estarão produzindo gerações de máquinas
lucrativas, em vez de produzirem cidadãos íntegros que possam
pensar por si próprios, criticar a tradição e entender o significado
dos sofrimentos e das realizações dos outros. É disso que depen-
de o futuro da democracia. (NUSSBAUM, 2015, p. 4)

114 Filosofia da Educação


Impressiona a proximidade do seu diagnóstico com autores como
Bauman e Saviani, por exemplo. É, portanto, uma pensadora da tradi-
ção liberal, que costuma fazer mais críticas à cultura do que à economia
e, mesmo assim, vemos a autora deixando muito evidente a tensão
que existe, em nossas sociedades, entre educação e economia. Ao que
parece, uma educação de qualidade pode se refletir também na forma
como as pessoas se posicionam no mundo e interagem com seus ape-
los econômicos. Para Nussbaum (2015), é necessário compreender a
razão pela qual as várias disciplinas estão sendo preteridas para darem
mais espaço a outras, cujo principal resultado é possibilitar que os inte-
resses financeiros possam lucrar mais.

É importante observar como a autora põe em evidência as poten-


cialidades das humanidades – potencialidades que raramente são
expostas em um quadro maior para a sociedade. Por exemplo, é co-
mum que, em telejornais, os quais são ainda, em grande parte, respon-
sáveis pela formação da opinião pública, haja divulgação dos índices
de crescimento econômico, o que funciona como um indicativo de pro-
gresso social. Mas convenhamos: o crescimento econômico é o único
responsável por qualquer suposta ideia de progresso? Obviamente
que não. Nós poderíamos encontrar muitos outros critérios; porém, é
sempre o aspecto econômico que está atrelado à ideia de progresso.
Pensando nisso, Nussbaum (2015, p. 14) expressa:
de acordo com esse modelo de desenvolvimento, o objetivo da
nação deve ser o crescimento econômico. Esqueça a igualdade,
distributiva e social, esqueça os pré-requisitos necessários de
uma democracia estável, esqueça a qualidade das relações ra-
ciais e de gênero, esqueça o aperfeiçoamento de outros aspectos
de vida do ser humano que não estejam completamente ligados
ao crescimento econômico.

Assim, aos poucos, Nussbaum nos demonstra o quanto os critérios


e interesses econômicos já se apossaram de boa parte da educação e,
nessa lógica, apenas as competências que são capazes de gerar retorno
econômico vão sendo assentadas, em um movimento que parece na-
tural, mas não é, entre aquelas que valem a pena serem estudadas.
Entretanto, é preciso compreender que as humanidades são capazes
de refletir sobre o significado social, ético e utilitário de cada uma das
outras atividades e competências.

Educação e descentramento 115


Filme Se com as humanidades essa tarefa é hercúlea, difícil, imaginemos
A citação da filósofa sem o apoio dessas disciplinas. No entanto, parece que é essa a inten-
Martha Nussbaum
ção, uma vez que o desaparecimento das humanidades pode significar
lembra algo de O grande
ditador, filme clássico de também o desaparecimento da capacidade analítica e crítica com re-
Charlie Chaplin. No filme,
lação às artimanhas que buscam escravizar os indivíduos em torno de
o personagem principal
faz um discurso que se tarefas obscuras e mal remuneradas:
tornou antológico, pela
denúncia social e exis- porém, os educadores que defendem o crescimento econômico
tencial que faz; sua fala não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma
parece se direcionar a percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente
uma sociedade em que a
educação humanística há
perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para exe-
muito se perdeu. Assim, cutar programas de desenvolvimento econômico que ignoram a
o discurso desse filme desigualdade. É mais fácil tratar as pessoas como objetos manipu-
tem inspirado artistas de
láveis se você nunca aprendeu outro modo de enxergá-las. Como
todas as esferas.
disse Tagore, o nacionalismo agressivo precisa anestesiar a cons-
Direção: Charlie Chaplin. Estados
Unidos: United Artists, 1940.
ciência moral; portanto, precisa de pessoas que não reconhecem
o indivíduo, que repetem o que o grupo diz, que se comportam e
veem o mundo como burocratas dóceis. A arte é uma grande ini-
Música miga dessa estupidez, e os artistas (a não ser que estejam comple-
Vale a pena ouvir a música
tamente intimidados e corrompidos) não são servos confiáveis de
de Paolo Nutini, chamada nenhuma ideologia, mesmo que ela seja basicamente boa – eles
Iron Sky, que tem o discur- sempre pedem que a imaginação ultrapasse seus limites habituais
so completo do filme de
Chaplin inserido em uma e veja o mundo de novas maneiras.(NUSSBAUM, 2015, p. 24)
de suas partes.
Vale ressaltar, ainda, a atenção que Nussbaum dá à literatura e às
Disponível em: https://
www.youtube.com/ artes. Segundo ela, os cidadãos não conseguem se relacionar com a
watch?v=ELKbtFljucQ&ab_ complexidade do mundo apenas por meio do conhecimento factual e da
channel=PaoloNutini. Acesso em:
16 jul. 2021. lógica. Uma terceira qualidade que deve ser explorada é a imaginação
narrativa; por meio dela, é possível se colocar no lugar de uma pessoa
diferente e se tornar um intérprete inteligente da história desse indi-
víduo, compreendendo a emoção, os pensamentos e os desejos dela.
Nesse sentido, a literatura, o cinema e as artes em geral podem contri-
buir para o desenvolvimento de nossa noção de alteridade e de nossa
capacidade de respeito ao próximo:
é extremamente fácil considerar que o outro não passa de um
corpo – o qual, então, pensamos poder usar para os nossos
objetivos, sejam eles prejudiciais ou benéficos. Enxergar uma
alma naquele corpo representa uma conquista, e essa conquista
é sustentada pela poesia e pelas artes, que pedem que nos ma-
ravilhemos com o mundo interior daquela forma percebida por
nós – e, também, que nos maravilhemos com nós mesmos e com
nossas profundezas. (NUSSBAUM, 2015, p. 102)

116 Filosofia da Educação


Finalizamos ressaltando o quanto a autora converge, em suas preo-
cupações, com os outros filósofos. Isso pode estar nos afirmando, de
modo evidente, que a educação tem responsabilidade fundamental
com a formação crítica de seus alunos, bem como que tem os meios
capazes de fazê-los compreender melhor a realidade que os circunda,
os interesses que desejam cooptá-los e a possibilidade de torná-los
mais centrados, humanos e sensíveis às lutas e dificuldades do outro.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Neste capítulo, tivemos a oportunidade de ser apresentados aos
conceitos de descentramento, desencaixe e reflexividade. Vimos também
o quanto os aspectos sociais que envolvem esses conceitos são comple-
xos em sua compreensão. A escola pode ter um papel essencial, no sen-
tido de evitar que o descentramento se torne motivo de desinteresse e
dispersão, e um outro mais importante ainda na introdução desses alu-
nos ao conhecimento historicamente produzido e compartilhado.
Além disso, com Martha Nussbaum, vimos o enfraquecimento da pre-
sença das humanidades nas sociedades pós-modernas – isso é um fenô-
meno mundial – e o quanto ele impacta a própria ideia de democracia e
socialização saudáveis. Esperamos que essa reflexão sirva para entender-
mos que aquilo que se enfraquece é a presença das humanidades nos
bancos escolares, devido aos interesses que as querem de fato esqueci-
das, mas não a capacidade dessas disciplinas de nos tornarem melhores,
mais reflexivos, sensíveis e críticos.

ATIVIDADES
Vídeo 1. Sobre a seguinte observação: “o professor precisa entender, portanto,
que parte da inquietude em sala é reflexo do nosso tempo, não sendo
culpa de aulas, às vezes, carinhosa e exaustivamente elaboradas”.
Que atitude(s) o professor pode ter em sala de aula com relação à
inquietude? Especifique.

2. Como a escola pode se tornar tão ou mais atrativa do que as mídias


digitais? Discorra.

3. Apresente três características que diferenciem a pedagogia tradicional


da pedagogia nova. Especifique-as.

Educação e descentramento 117


4. Quando Dermeval Saviani traz os cinco passos na relação
aluno-professor em sala de aula, ele diferencia o nível sincrético do
sintético. Exemplifique essa diferenciação.

5. Por que o desenvolvimento das mídias é visto por John Thompson


como algo muito positivo? Explique.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BAUMAN, Z. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BUJES, M. I. E.; ROSA, J. de M. Discursos curriculares da formação docente, projetos de
trabalho e seus elos com a racionalidade neoliberal. Revista Horizontes, v. 30, n. 2, p. 7-18,
jul./dez. 2012.
GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: Unesp, 1993.
HALL, S. A. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HOUAISS, A. (org.). Houaiss eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. [CD-ROM].
NUSSBAUM, M. C. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades. São
Paulo: Martins Fontes, 2015.
SANTOS, R. E. O. Pedagogia histórico-crítica: que pedagogia é essa? Revista Horizontes,
v. 36, n. 2, p. 45-56, maio/ago. 2018.
SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas: Autores Associados, 1999.
THOMPSON, J. B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis:
Vozes, 1998.

118 Filosofia da Educação


5
Educação e currículo
O objetivo deste capítulo, em sua primeira seção, é apresentar as ideias
fundamentais do que ficou conhecido como pedagogia crítica. O autor
escolhido para essa apresentação é o teórico norte-americano Michael
Apple. Na seção seguinte, vamos apresentar ideias que se contraponham
e discutam as propostas de Apple. Enquanto Apple é um conhecido e res-
peitado representante da pedagogia crítica, cujas bases epistemológicas
estão centradas em pressupostos modernos, as ideias pedagógicas que
fazem crítica a ele são pertencentes a correntes do pós-estruturalismo e
do pós-modernismo. Sendo assim, teremos a oportunidade também de
conhecer um pouco melhor os conceitos que definem esses movimentos.

Objetivos de aprendizagem
Com o estudo deste capítulo, você será capaz de:
• entender a atuação das ideologias na disputa pelo currículo
na escola;
• compreender que forças ideológicas disputam a educação
contemporânea;
• acompanhar as importantes discussões no campo das
ciências e da filosofia que podem servir como parâmetros
de decisão nos impasses criados em função de disputas
ideológicas.

5.1 Michael Apple: currículo e


demandas educacionais
Vídeo
Michael Apple é um dos mais respeitados representantes do que
podemos classificar como pensamento educacional crítico. Embora ele
seja norte-americano, sua vivência educacional extrapola as frontei-
ras de seu país. Sempre muito preocupado com a educação e com os
fatos que vão além dos muros escolares e ajudam a definir o caráter

Educação e currículo 119


educacional das nações, ele já percorreu vários países a fim de conhe-
cer outras realidades educacionais e compará-las ao que ocorre nos
Estados Unidos.

Apple já esteve no Brasil, na Argentina e até mesmo em campos de


refugiados durante a guerra da antiga Iugoslávia. Ele é o exemplo do
que poderíamos chamar de intelectual engajado, e esse engajamento
vem de sua constatação das profundas desigualdades existentes nas
sociedades contemporâneas, que afetam a educação de várias formas,
impedindo que muitas escolas em diversos lugares do mundo possam
ambicionar a excelência no ensino. Mas é também desse seu engaja-
mento que vem a esperança de que os contextos sociais futuros pos-
sam transformar a educação, fazendo com que funcione efetivamente
como o pilar principal do desenvolvimento humano.

Esse espírito crítico e combativo, também esperançoso, de Apple


conseguiu perceber, mesmo na situação limite que é uma guerra, a ri-
queza e a importância da educação para certas sociedades. Essa duali-
dade de quem não renuncia à análise crítica e faz questão de carregar
também o otimismo pode ser expressa em sua experiência na Iugoslá-
via, em que ele nos apresenta um exemplo comovente e inspirador ao
mesmo tempo. Apple recorda que os refugiados, assim que foram abri-
gados (em barracas do exército em péssimas condições), organizaram
duas frentes: distribuição de alimentos e escolas, ambas compreendi-
das como essenciais para eles.
Para nós que pretendemos responder à pergunta-título deste
livro, esses refugiados enfatizaram com essa atitude que para
eles não pode haver uma sociedade de respeito sem um sistema
educacional democratizado. Diante disso, nos resta dizer que ou
eles estavam possuídos por uma consciência mítica e não tinham
ideia do que estava acontecendo ou temos de admitir que sua
identidade e esperança por um futuro melhor estava intima-
mente ligada ao respeito profundo pela educação, que lhes dava
esperança na tragédia. A educação não se relacionava apenas
a emprego, mas à identidade de cada um deles. Independente-
mente se esses refugiados eram religiosos ou não, a educação
escolar e a educação de forma geral eram parte central de suas
identidades. (APPLE, 2018, p. 17)

Michael Apple é também professor de Currículo e Instrução e Estu-


dos de Política Educacional na Universidade de Wisconsin, EUA. Suas
contribuições para o pensamento educacional vêm desde os anos 1970,

120 Filosofia da Educação


chegando até nossos dias. Entre seus trabalhos mais importantes es-
tão Ideologia e currículo (1979), Educação e poder (1982) e Educando à
direita (2001). Seus textos são lidos por estudantes, pedagogos, soció-
logos e filósofos da educação do mundo inteiro e têm sido importantes
para o alargamento da compreensão dos interesses que disputam a
educação, sobretudo naquilo que pode ser considerado um de seus
tesouros: o currículo.

Se há embates na educação, e há, podemos dizer que o campo mais


disputado tem sido o da composição curricular, em todas as modalida-
des e níveis. A batalha travada nesse campo frequentemente tem sido
motivada por convicções ideológicas, as quais, imagina-se, conduzem
grande parte do conteúdo escolar e são também bastante responsá-
veis pelo tipo de caráter civilizatório dos cidadãos que se formam e
depois vão atuar como membros política e economicamente ativos na
sociedade. O nome de Apple surge aqui então para nos informar me-
lhor a respeito dessas disputas, uma vez que ele é um dos grandes
especialistas nessa temática.

5.1.1 A reprodução contestada


É muito comum a leitura de que a escola serve como uma instituição
responsável pela reprodução social e cultural que molda as formas de
pensar e agir dos estudantes de acordo com os padrões estabelecidos
pelos grupos econômicos e políticos dominantes em cada sociedade.
No entanto, para Michael Apple essa é uma forma simplista demais
para ser considerada verdadeira. Isso porque o ambiente escolar é
bem mais complexo, o que impede que imaginemos essa espécie de
circuito que se inicia com o estabelecimento dos padrões vigentes de
uma sociedade e termina com todos os alunos pensando e se compor-
tando de acordo com esses padrões ao final de seu ciclo escolar.

Pensar assim é pensar deterministicamente, ou seja, uma forma


pouco sofisticada para dar conta de um sistema complexo de relações.
Assim, apesar de admitir que a lógica dos valores das classes domi-
nantes procura prevalecer sobre as demais, é preciso entender que
“o campo educacional é também social e, portanto, se constitui em
territórios contestados, onde grupos dominantes se veem obrigados
a não somente difundir e transmitir seus pressupostos ideológicos,
como também, a convencer seus dominados da validade e legitimação

Educação e currículo 121


destes pressupostos” (NOGUEIRA, 2019, p. 121). O que Apple procura,
então, é admitir a escola como lugar onde realmente há o embate de
valores, mas sabendo que esse embate é mais intrincado do que pres-
supõem certas correntes teóricas.

Nogueira (2019) nos lembra que os valores defendidos por esses


grupos hegemônicos não podem prevalecer de maneira direta, uma
vez que a escola é um espaço social e está carregada de vivências que
trazem consigo outros valores, o que imediatamente ativa a possibili-
dade de questionar e resistir à investida dos valores hegemônicos.

Figura 1
Escola como espaço de vivências

Rawpixel.com/Shutterstock
Escola vista como um espaço de trocas de experiências e aprendizado que sempre se renova e
nunca está presa a um padrão preestabelecido.

Para Michael Apple, a atenção ao modo de questionamento dos estu-


dantes é fundamental, já que isso distancia sua abordagem de análises
funcionalistas, em que “a ordem é assumida e o desvio a esta ordem
é considerado problemático” (APPLE, 2012, p. 12). A análise funcionalis-
ta oferece uma imagem equivocada do ambiente escolar, uma imagem
que mostra a ordem das coisas, no entanto essa ordem vem do fato
de que todos os elementos desviantes são desconsiderados do quadro.
Apple se afirma, então, em uma análise que não desconsidere os desvios
à ordem estabelecida, pois ela pode ser muito mais fiel à real dinâmica
social no interior de uma escola.

122 Filosofia da Educação


Mais do que uma coerência funcional, onde todas as coisas fun-
cionam agradavelmente para manter uma ordem social basica-
mente sem mudanças, esta análise aponta para a reprodução
contestada para as relações fundamentais de uma sociedade,
que permitem a ela reproduzir-se a si mesma, mas somente na
forma de uma ordem social dominante e subordinada (isto é, an-
tagonista, não funcional). (APPLE, 2012, p. 12-13)

Com esse tipo de análise, Apple procura, assim, desligar-se de uma


das maiores críticas feitas aos defensores do pensamento educacional
crítico, que contribuíram, à sua maneira, para compreender a escola de
maneira mais ampla, mas que, ao final, acabam chegando à conclusão
de que o ambiente escolar é tão somente um simples reprodutor da
ordem hegemônica. Vimos na última citação que Apple pretende que
sua análise seja capaz de oferecer, ao final, a forma social dominante,
mas também a forma subordinada (ou como nos diz a citação, a “re-
produção contestada”, aquela que resiste, no interior da própria escola,
à imposição da forma dominante). É preciso, portanto, estar atento à
reprodução e à reprodução contestada.

Toda escola, em suas tessituras complexas de relações, em maior


ou menor grau, acabam nos revelando essas duas dimensões. Temos
que evitar cometer o engano de imaginar que a reprodução contestada
se manifesta somente por meio da violência. Essa contestação pode
se dar em vários níveis, podendo vir por meio de questionamentos,
brincadeiras, negação em realizar alguma tarefa – e, algumas vezes, em
forma de violência.

O importante é que o professor saiba identificar também nos atos


de contestação algum tipo de comunicação (de insatisfação, indigna-
ção, antagonismo pleno), uma vez que é possível que nesses atos se
encontre como razão a resistência à ordem estabelecida, que muitas
vezes pode estar violando valores diferentes: “são mais prováveis a
reinterpretação do estudante, quando muito somente uma aceitação
parcial, e frequentemente uma rejeição total das concepções plane-
jadas e não planejadas das escolas. Claramente, as escolas precisam
ser vistas de uma forma mais complexa do que a simples reprodução”
(APPLE, 2012, p. 13).

É importante observar também que, por sua proposta de análise,


conforme vista nos parágrafos anteriores, Michael Apple pretende
questionar toda uma tradição de teóricos do currículo que o precede-

Educação e currículo 123


ram na sociedade norte-americana. Segundo o próprio Apple, desde
a década de 1920, com Franklin Bobbitt, até os anos 1960, com Ralph
1 1
Tyler , essa tradição procurou embasar suas propostas de currículo
A análise desses nomes em características essencialmente técnicas, o que facilitava a defesa de
importantes da educação
e suas propostas pedagó-
que os currículos possuíam neutralidade. Com a concentração apenas
gicas estão expostas de nas características técnicas, eram excluídas todas as questões de or-
maneira mais aprofun-
dada no Capítulo 4 do
dem social, cultural ou política.
livro Ideologia e currículo
(APPLE, 1982).
Além disso, a conveniência dessa escolha técnica “forçava o dire-
cionamento da visão dos educadores para a racionalidade e eficiência”
(NOGUEIRA, 2019, p. 122). Apple evidentemente não acredita na ideia de
neutralidade com relação aos conteúdos curriculares, sendo esse o prin-
cipal motivo de sua crítica à tradição que o antecedeu. Para ele, a supos-
ta neutralidade do currículo é apenas uma forma escolhida para garantir
a neutralidade dos educandos e, de certa forma, da própria sociedade:
o fato de que os métodos que nós empregamos tiveram suas raí-
zes na tentativa da indústria de controlar o trabalho e melhorar a
produtividade, no movimento eugênico popular, e em particular
nos interesses de grupos de status e classe, foi tornado invisí-
vel pela incrível falta de visão histórica no campo da educação.
(APPLE, 2012, p. 11)

A observação de Apple vale para avaliar os mecanismos que con-


trolaram a educação antes dele, mas parece servir também a casos re-
centes. Segundo ele, os educadores são parte essencial no trabalho de
convencimento e de legitimação dos valores hegemônicos na escola;
sem eles, esse mecanismo não funcionaria. Cabe uma observação aqui:
muitos dos problemas identificados por Apple, como a questão da su-
posta neutralidade (que serve apenas para neutralizar as potenciais
revoltas e críticas ao status quo) e a falta de visão histórica daqueles
que trabalham na educação, foram resultado de um recorte histórico
do autor.

Nem sempre é fácil reconhecer os grupos, os valores e os interes-


ses políticos, culturais e econômicos que estão em jogo quando somos
nós os atores da história. Mas é importante, como educadores, alunos
ou pessoas interessadas no assunto, buscarmos informação e conhe-
cimento a respeito dessas questões e construirmos aquilo que faltou
nas gerações que Apple critica: visão histórica. Nogueira (2019, p. 121)
parece concordar com a observação de Apple acerca do papel dos edu-
cadores nesse processo:

124 Filosofia da Educação


no cotidiano escolar pode-se observar, e até mesmo sentir, os
efeitos dos mecanismos de convencimento ideológico e dos
jogos de poder e resistência que ali se constituem. Numa escola
pública, espaço de conflito e contestação, o código educacional
oferecido aos alunos é o código pertencente às classes dominan-
tes, e podemos enxergar a olhos nus, crianças e jovens tentando,
às vezes, sem sucesso, assimilar o código legítimo; e outras tan-
tas crianças e jovens se negando e resistindo a assimilação deste
código (re)produzido como legítimo e culturalmente valorizado
pela sociedade.

Mas não devemos nos enganar, pois apesar de tudo isso, para Apple
as escolas são lugares não somente de subordinação; elas funcionam
também como espaços de resistência, a qual, como vimos, expressa-se,
muitas vezes, como contestação. Apple também nos fala da presença
de um currículo oculto nas escolas. Por currículo oculto, o autor entende
o enfoque das instituições de educação em “normas e valores que são
implícita porém efetivamente transmitidos pelas escolas e que habitual-
mente não são mencionados na apresentação feita pelos professores
dos fins ou objetivos” (APPLE, 1982, p. 127). Vamos, a partir de agora,
tentar explorar melhor essa definição importante de Apple.

Para o autor, existem em todas as sociedades suposições ideológi-


cas tácitas, e são elas as responsáveis por manter a hegemonia de um
grupo sobre os demais. Essas suposições funcionam como regras; na
maior parte do tempo, elas são inconscientes. Aliás, essa inconsciência
é fundamental para que elas organizem e legitimem as atividades de
muitos indivíduos como sendo as mais corretas e aquelas que se en-
caixam perfeitamente no que diz respeito ao comportamento desses
indivíduos no quadro geral de expectativas sociais sobre eles.

O respeito a essas regras garante a ordem social. Para Apple, existem


dois tipos de regras: as constitutivas (ou básicas) e as de preferência.
• As regras básicas são como as regras de um jogo; os parâmetros
que elas estabelecem dão forma ao jogo, e a ação desse jogo se
dá com base no que definem essas regras.
• As regras de preferência representam as opções que o jogo ofe-
rece. Apple pede para que pensemos no jogo de xadrez, por
exemplo.

As regras básicas, que dificilmente se manifestam em nossa


consciência, nos permitem diferenciar o xadrez do jogo de damas, por

Educação e currículo 125


exemplo. Nós não pensamos sobre o que os diferencia, apenas nos
posicionamos diante do tabuleiro com as peças dispostas e já sabemos
de que jogo se trata. Então, temos diversas possibilidades de lances e
escolhas (preferências), de acordo com as regras do jogo em questão.

Figura 2
Jogo de xadrez

totojang1977/Shutterstock
Uma vez tendo iniciado o jogo
de xadrez, no nosso exemplo,
há uma série de possibilidades
de movimentos: o peão pode
se mover para a frente e as
torres, para o lado ou para a
frente. Perceba que a todo
momento acionamos essas
regras em nossa consciência
para executar o próximo lance.

A sociabilidade também pode ser definida pela relação entre essas


regras. Apple nos lembra que uma das regras básicas é a confiança.
Quando dirigimos, confiamos que o carro que vem no sentido contrá-
rio não vá quebrar essa regra. Perceba que não ficamos a todo mo-
mento checando se isso ocorreu ou não – a confiança está muito bem
2 assentada e internalizada em nós e funciona praticamente sem que
Para Apple, a ideia de tenhamos consciência de que ela está presente. Se fosse diferente, di-
conflito é importante, ficilmente dirigiríamos, pois a cada carro que viesse em direção oposta,
uma vez que ele está
interessado também nos iríamos precisar parar pela falta de confiança.
comportamentos que
resistem, que expressam Então, essa é uma regra básica do trânsito (e da sociabilidade) que
desacordo e questionam permite que atentemos para outras questões enquanto dirigimos. Uma
a ordem. A essência da
palavra conflito no contex- regra semelhante, segundo Apple, é a que estabelece os limites legíti-
to de Apple parece ser a 2
mos do conflito em uma sociedade: “as regras do jogo implicitamente
de questionamento.
determinam as fronteiras das atividades em que as pessoas se empe-
nham ou não, os tipos de questões a serem formuladas, e a admissão
ou rejeição das atividades de outros” (APPLE, 1982, p. 132).

126 Filosofia da Educação


Observe que Apple está se referindo às regras constitutivas aqui.
Estabelecidas, então, as fronteiras de que nos fala a citação, por via
das regras constitutivas, temos agora uma série de possibilidades den-
tro de seus limites: podemos recorrer às cortes de justiça, mas não as
bombardear; podemos discutir, mas não duelar; e assim por diante
(aqui Apple está se referindo às regras de preferência).

Assim, chegamos ao centro do raciocínio do autor. Ele entende que


para o tipo de sociabilidade que construímos, a regra básica quanto ao
conflito parece ser a de que ele é inerente e fundamentalmente mau e
que devemos nos esforçar para eliminá-lo de dentro das instituições,
sendo que na verdade deveríamos entender o conflito e a contradição
como forças que movimentam a sociedade.

Mas alguém poderia contestar a afirmação de Apple observando


que há muitas escolas que incorporam o debate, a contraposição e o
confronto de ideias como algo rotineiro e que está presente com fre-
quência nas aulas. Apple concorda com isso, mas pontua que mesmo
que essas escolas trabalhem o conflito dentro dos parâmetros implici-
tamente estabelecidos, há poucas tentativas de estabelecer os parâme-
tros próprios. Segundo Apple (1982, p. 132),
o currículo oculto nas escolas serve para reforçar as regras que
cercam a natureza e os usos do conflito. Estabelece uma rede de
suposições que, quando interiorizadas pelos estudantes, deter-
minam os limites da legitimidade. Esse processo é realizado não
tanto pelos exemplos explícitos que mostram o valor negativo
do conflito, mas pela ausência quase total de exemplos que mos-
trem a importância do conflito intelectual e normativo em áreas
de conhecimento. O fato é que essas suposições são obrigatórias
para os estudantes, desde que em nenhum momento as suposi-
ções são expressas ou questionadas. Pelo próprio fato de serem
tácitas, de se fundamentarem não no topo, mas na base de nossa
mente, aumenta a sua potência como aspectos da hegemonia.

Para Apple, então, esse tipo de procedimento, que silencia quanto a dis-
cussões acerca do valor do conflito, ajuda a potencializar a crença de que o
conflito é sempre ruim e que, por isso, precisamos evitá-lo – inclusive deixan-
do de falar e discutir a seu respeito. Como isso se faz sem nenhuma expli-
citação, acabamos internalizando esse “cuidado” com o conflito como uma
regra básica, que, como já vimos, funciona sem que tenhamos consciência
dela, o que a torna extremamente eficiente na limitação que estabelece.

Educação e currículo 127


Mas qual é o motivo para Apple insistir, então, na ideia de conflito?
Há algo de produtivo nisso? Bem, se você conhece quem faria essas
perguntas após a exposição das ideias de Apple ou se você mesmo já
as fez, isso pode significar o quão introjetada em todos nós está a re-
gra que estabelece, tacitamente, o conflito como algo essencialmente
mau. Embora na maioria das vezes não percebamos isso, quando al-
guma regra social tácita é quebrada pela fala ou pelo comportamento
de alguém ou, ainda, por algum fato, é comum que as reações a essa
violação sejam enfáticas e indignadas. Nesse caso, não é diferente: por
que alguém insistiria na importância de algo que sabemos ser prejudi-
cial? Há algo produtivo nisso? Para Michael Apple, há! Vamos procurar
entender o porquê?

Para Apple, a primeira questão que justifica o conflito é a capacidade


de mudança que ele impõe à sociedade. Segundo Apple (1982, p. 147),
alguns teóricos sociais tomaram a posição de que “a sociedade
não é basicamente uma ordem em funcionamento harmonioso
como um organismo social, um sistema social ou uma estrutura
social estática”. Pelo contrário, são características dominantes a
mudança contínua nos elementos e a forma estrutural básica da
sociedade. Os conflitos são os produtos sistemáticos da estrutu-
ra em mudança de uma sociedade e pela sua própria natureza
tendem a levar ao progresso. A “ordem” da sociedade, portanto,
passa a ser a regularidade da mudança. A “realidade” da socie-
dade é conflito e fluxo, não um sistema funcional fechado. […]
Os conflitos devem ser encarados como uma dimensão básica
e em geral benéfica da dialética de atividade a que se denomina
sociedade.

O conflito aparece para Apple, portanto, como um veículo que induz


a mudanças. Além disso, tais mudanças é que possibilitariam o pro-
gresso dessa sociedade. Aqui é bem provável que Apple esteja pensan-
do em progresso em um sentido bem amplo – não apenas progresso
material, mas em várias esferas da vida humana. No entanto, na maio-
ria das vezes, quando uma ideia como essa ganha alguma visibilidade
social maior, ela está sujeita a receber pressões a fim de calá-la, uma
vez que não faz parte, como já vimos, dos pressupostos básicos das
regras sociais.

128 Filosofia da Educação


Figura 3
Conflito e mudança

maxsattana/Shutterstock
Filme
Todas as mudanças estão sujeitas a gerar conflitos, pois colocam em jogo o tradicional e o
usual. No entanto, elas são extremamente necessárias para o desenvolvimento dos indivíduos e O filme Malcolm X é um
das sociedades. grande exemplo para
pensarmos acerca de
O próprio Apple faz referência a isso quando lembra que na socie- nossa discussão sobre as
regras constitutivas. Por
dade americana, nas últimas décadas, o movimento negro ganhou vi-
algum tempo, o discurso
sibilidade e conquistou espaços sociais até então não imaginados, com de Malcolm X contra o
racismo de sua sociedade
base nessa ideia de conflito, utilizando a noção de que era preciso se
foi bastante radical.
organizar como movimento e lutar politicamente por mais reconheci- Depois de sua conversão
ao islamismo, no entanto,
mento. Mas mesmo esse progresso foi mantido sob controle. As figuras
essa radicalidade abran-
mais expostas desse movimento foram aquelas que tiveram destaque dou. Muito tem sido dito a
respeito do tom radical de
mais por suas mensagens de harmonia, ao passo que as figuras mais
seu discurso, considerado
conflitivas, igualmente importantes, foram obscurecidas pela história um fator preponderante
para que outros líderes
ensinada na escola, nas mídias e em outros mecanismos capazes de
negros norte-americanos
ativar a memória de uma sociedade. se tornassem ícones dos
movimentos sociais que
Também se poderia apontar para a expansão agora manifesta do eclodiram principalmente
material histórico sobre o negro em que figuram aqueles negros a partir dos anos 1960. A
que se mantiveram dentro dos limites considerados legítimos (re- figura de Malcolm X, ao
contrário, passou por um
gras constitutivas) de protesto ou que progrediram nos campos
processo de obscureci-
aceitos da economia, atletismo, educação ou arte. Em geral, não mento histórico.
se encontra referência a Malcom X, a Marcus Garvey ou a outros
que formularam uma crítica forte aos modos vigentes de controle Direção: Spike Lee. EUA: 40 Acres
and a Mule Filmwoks, 1992.
e atividade econômicos e culturais. (APPLE, 1982, p. 146-147)

Educação e currículo 129


Outra questão lembrada por Apple se refere ao fato de que como a
lei constitutiva relativa ao conflito está sempre nos fazendo associá-lo,
inconscientemente, a aspectos negativos, instituições fundamentais
como a escola procuram evidenciar o conflito como uma infração de
lei ou regra. Porém, dificilmente são apontados os aspectos conflitivos
pelos quais muitas leis foram criadas. Dessa forma, “deveria ficar claro
que o conflito conduz não apenas à infração da lei, mas é, com efeito,
criação da lei” (APPLE, 1982, p. 149). Se atentarmos para as leis ambien-
tais, por exemplo, é preciso frisar que elas não foram criadas antes dos
conflitos de interesses que existem em torno de territórios e ecossis-
temas existentes. Elas foram criadas em função da existência anterior
desses conflitos.

Além disso, os conflitos são capazes de expandir nossa consciência


com relação aos problemas sociais não resolvidos em nossa sociedade,
o que pode nos levar também a ações que colaborem para a superação
de certas realidades. Apple (1982, p. 149) observa que esse aspecto
torna conscientes as regras mais básicas que governam a ativi-
dade sobre a qual há conflito, mas que estavam ocultas. Ou seja,
desempenha a função singular de possibilitar aos indivíduos
que vejam os imperativos ocultos engastados nas situações que
atuam para estruturar suas ações, libertando parcialmente os
indivíduos para que criem padrões de ações relevantes a um
grau que em geral não é possível. Essas propriedades de cria-
ção de leis e ampliação de consciência, mantidas pelas situações
de conflito apresentam, conjugadas, um efeito muito positivo.
Desde que o conflito acarreta inerentemente novas situações
que em alto grau são indefinidas pelas suposições anteriores,
atua como um estímulo para o estabelecimento de normas de
atividades novas e possivelmente mais flexíveis ou circunstan-
cialmente pertinentes. Obrigando literalmente a atenção cons-
ciente, as questões são definidas e novas dimensões podem ser
exploradas e esclarecidas.

Apple, portanto, nos apresenta pelo menos três aspectos positivos


do conflito como experiência social. Reafirmamos aqui o que foi obser-
vado na nota 2 deste capítulo: o sentido que Apple dá a conflito é bem
capturado pelo termo questionamento, uma vez que ele está pensando
no contexto escolar. É preciso compreender que nem sempre conflitos
se referem a situações de violência física – embora, no âmbito mais am-
plo das sociedades contemporâneas, tais conflitos também existam e,
enquanto conflitos, também podem nos oferecer as características que

130 Filosofia da Educação


Apple aponta. Apenas para tornar mais pedagógico nosso texto, eis as
três características apontadas por Apple:

Quadro 1
Avaliação de conflito

Conflito Características Veredito


1. Dimensão tácita
Avaliado pelo senso comum O conflito é mau
(regras constitutivas)

1. Mudanças
Avaliado por Michael Apple 2. Criação de leis O conflito é produtivo
3. Ampliação da consciência
Fonte: Elaborado pelo autor.

Devemos perceber aqui a importância do trabalho teórico. A dimen-


são tácita permaneceria tácita se ninguém fosse capaz de identificá-la
e falar a seu respeito. Parte desse trabalho é o que Michael Apple está
fazendo, mas isso se torna ainda mais potente quando educadores
passam a incorporar tais reflexões a suas próprias percepções da rea-
lidade. É esse tipo de resultado que justifica a importância do trabalho
teórico.

Na próxima seção, veremos que Apple aponta os professores como


coparticipes na manutenção da dimensão tácita que caracteriza o currí-
culo oculto. Mas muitas vezes é o exercício teórico – para um educador,
esse exercício é a leitura de bons filósofos da educação – que nos tira
dessa posição passiva e conivente com determinadas práticas cotidia-
nas e nos lança em um caminho mais ativo e capaz de mudar, para
melhor, as estruturas educacionais que nos cercam.

5.1.2 Oposição à ideia de conflito


Para finalizar a breve apresentação de algumas das ideias mais im-
portantes de Michael Apple, acreditamos ser pertinente comentar al-
guns dos obstáculos que o nosso autor identifica como impedidores da
mudança das regras constitutivas a respeito do conflito. A primeira de-
las se refere ao que vimos como currículo oculto. Para Apple, o currícu-
lo oculto é uma realidade nas escolas; além disso, o autor faz questão
de lembrar que para o pleno funcionamento do currículo oculto, faz-se
necessária a colaboração dos professores.

Assim, os professores são fundamentais na consolidação dos te-


mas e valores presentes no currículo oculto: “o corpo formal do co-

Educação e currículo 131


Saiba mais nhecimento escolar e o currículo oculto frequentemente corporificam
As assimetrias sociais nem compromissos ideológicos” (APPLE, 2012, p. 37). As categorias que os
sempre são claras, pois educadores empregam para pensar, planejar e avaliar a vida escolar
funcionam de modo tácito,
não só na escola, mas em costumam ser parciais, mas não porque isso seja deliberado, mas
quase todas as esferas, porque o currículo sempre se põe como neutro, sendo que na verdade
inclusive a política. Hollanda
(2011, p. 15) resume bem ele está apoiado nas assimetrias sociais existentes. O resultado é que
essa ideia: “as justificações as escolas acabam não rompendo com os privilégios sociais; são man-
das elites para o lugar pri-
vilegiado que ocupam são tenedoras deles, tomando “a forma e o conteúdo da cultura e do co-
indiferentes aos critérios nhecimento de grupos poderosos e os definindo como conhecimento
reais de sua formação e
sustentação [...], elas não legítimo a ser repassado e preservado” (APPLE, 2012, p. 38).
denunciam a riqueza, o
nascimento ou o mérito
Além desse aspecto para a manutenção das regras constitutivas,
pessoal como definidores Apple também se refere ao que ele chama de modernização conserva-
da sua condição de elite:
estes marcadores sociais
dora. Apple vem identificando, desde o fim dos anos 1970, a ação de
operam de modo tácito e grupos organizados que têm procurado influenciar demais as discus-
escapam ao discurso po-
lítico”. Vale também ler os
sões sobre currículo nos Estados Unidos (mas também em outras par-
Capítulos 1 e 2 do trabalho tes do mundo), influência essa que tem sido bem-sucedida em muitos
Dominação e resistência:
desafios para uma política
dos casos.
emancipatória.
Segundo o autor, o problema é que as intervenções e reivindicações
MIGUEL, L. F. São Paulo: Boitempo,
desses grupos buscam paralisar as potenciais chances de uma educa-
2018.
ção mais próxima de valores entendidos como contemporâneos. Basi-
camente, quatro grandes grupos compõem a revolução conservadora:
Livro
neoliberais, neoconservadores, populistas autoritários e uma parcela
Preconceito linguístico já
teve mais de 50 edições
da classe média. Cada um desses grupos tende a reivindicar aspectos
no Brasil, pois se tornou específicos, que, no conjunto, perfazem quase a totalidade das pres-
leitura obrigatória para os
que querem conhecer as
sões conservadoras sobre a escola. Apple (2003, p. 13) define assim os
relações de poder que per- grupos e alguns dos seus objetivos:
meiam nossa linguagem
cotidiana, noções linguísti- o primeiro grupo é o que eu chamo de neoliberais. Estão pro-
cas e a forma como o ensi- fundamente comprometidos com mercados e com a liberdade
no da língua portuguesa foi
enquanto “opção individual”. O segundo grupo, os neoconser-
por muito tempo realizado.
A obra mostra como a ver- vadores, tem a visão de um passado edênico e quer um retorno
são da língua portuguesa à disciplina e ao saber tradicional. O terceiro é o que eu chamo
considerada padrão recebe de populistas autoritários – fundamentalistas religiosos e evan-
esse reconhecimento mais
pelo prestígio das classes
gélicos conservadores que querem um retorno a (seu) Deus em
sociais que a utilizam do todas as nossas instituições. E, por fim, os desenhistas de mapas
que propriamente por e especialistas em dizer se chegamos ou não ao nosso destino,
algum critério que a defina
são membros de uma fração particular da nova classe média de
como tendo mais correção,
riqueza ou precisão. gerentes e profissionais qualificados.
BAGNO, M. São Paulo: Edições A escola, em vários momentos da história, acaba por ser foco cen-
Layola, 1999.
tral de uma série de críticas sociais que, na verdade, referem-se a ou-

132 Filosofia da Educação


tros setores, como o econômico. Mas esses setores transferem essa
culpa ao sistema de ensino, não diretamente, mas por meio de
pressões sobre o Estado. A forma mais ou menos organizada que es-
ses setores e outros, ligados aos grupos citados anteriormente, colo-
cam-se como agentes predominantes da pressão sobre o Estado
ocorre sobretudo em momentos de crise econômica ou política: “por
trás de todas estas acusações está um ataque às normas e aos valores
igualitários. [...] em essência a ‘democracia demais’ – cultural e política
– é vista como uma das principais causas de ‘nosso’ declínio econômi-
co e cultural” (APPLE, 2003, p. 42).

A escola, por ser a instituição-chave no ensino e divulgação das


questões culturais, acaba sendo penalizada. Para o grupo dos neo-
liberais, a educação é entendida como um produto, e como produto
precisa ser organizada para esse fim. Como o próprio Apple diz, para
os neoliberais o mundo é, em essência, um enorme supermercado,
e a educação é vista apenas como mais um produto, como um pão,
uma televisão ou um carro. Por essa lógica, o cidadão passa a ser en- Figura 4
tendido apenas como um consumidor. Educação como mercadoria

Apple entende que o risco maior com o funcionamento desse


tipo de lógica é o risco à democracia, que deixa de ser entendi-
da como um conceito político e passa a ser vista como um
conceito econômico: “a melhor forma de batizar
a mensagem destas políticas é o que poderia ser
chamado de ‘particularismo aritméticoʼ, onde o in-
divíduo isolado – enquanto consumidor – é destituí-
do de classe, de raça e de gênero” (APPLE, 2003, p.
46). Isso significa que as categorias que funcionam

c
como importantes marcadores de identidade dos

to
rs
tte
grupos que participam das reivindicações e dos embates políticos
hu
/S
m

(classe, gênero etc.) não interessam; são descartadas ou ignoradas.


de
cig

Para as escolas, mais especificamente, o particularismo aritmético


A educação vista como
resulta em, pelo menos, duas ações de mercado: mercadoria é um mal à
sociedade, pois essa visão
• A primeira se refere a propostas muito utilizadas de aprendiza- exclui a preocupação com a
do para trabalho e educação profissionalizante. formação do ser humano como
sujeito e a educação passa a
• A segunda diz respeito a planos de financiamento estudantil e a ser vista apenas como outra
forma de lucro.
políticas de vouchers.

Educação e currículo 133


Para Apple, o que está por trás disso é o plano de submeter as esco-
las à disciplina da competição de mercado – de modo geral, essas estra-
tégias objetivam transferir dinheiro do Estado para a iniciativa privada.

É preciso dizer aqui que não se trata de desqualificar a importância


das atividades econômicas em nossas sociedades. No entanto, é pre-
ciso pensar muito a respeito de tornar a educação sinônimo de regras
para competir no mercado. Não se propõe uma educação generalista
por acaso; ela é proposta justamente para que possam ser ensinados
valores mais plurais do que aqueles que o mercado exige – valores
inclusive que permitam que eles mesmos sejam contestados.

Voltemos aqui às regras constitutivas. Valores de mercado não


reagem bem a críticas severas dos produtos que estão à venda. Você
já imaginou se nossa cultura escolar começasse a estimular regras
constitutivas mais voltadas à divergência e à crítica? Somente uma
cultura mais democrática e mais amplificada, que contenha valores
mais plurais, é capaz de conduzir um novo direcionamento das re-
gras constitutivas.

Apple (2003, 2012) nos oferece diversos exemplos e análises da


presença dos quatro grupos citados por ele; seus livros costumam
nos apresentar a uma série de relatos e fatos que ajudam a tornar
suas conclusões mais fundamentadas empiricamente. Por ora, vamos
nos ater ao que foi exposto até aqui. Agora, muito ao estilo do que o
próprio Apple aprovaria, precisamos expor algumas críticas ao seu
modelo de educação e, para isso, escolhemos alguns autores que já
fazem isso há algum tempo no Brasil.

5.2 Currículo e demandas


Vídeo educacionais no Brasil
Na seção anterior, vimos, por meio de Michael Apple, como as forças
que disputam espaço nos currículos escolares são organizadas. Apple
aponta para um fenômeno que tem ocorrido há tempos nos Estados
Unidos e tem se espalhado para outros países do mundo, que são as
forças conservadoras buscando espaço cada vez maior nos currículos.
Para um autor como Apple, tais forças precisam ser vistas como uma
ameaça às possibilidades de alargamento do potencial libertador da
educação, tal como idealizado no início da modernidade.

134 Filosofia da Educação


Não precisamos necessariamente concordar com o autor, mas pre-
cisamos nos conscientizar de que seu pensamento é uma contribui-
ção original à educação; filósofos, sociólogos e pedagogos de vertente
mais progressista têm se debruçado sobre seus livros e dali extraído
enormes lições. Sendo assim, é suficiente que entendamos sua obra
como incontornável, como é a obra de qualquer pensador que tenha
contribuído para o progresso da educação, e que saibamos de sua
existência, para que nos sirva quando nossas necessidades teóricas se
fizerem presentes.

Um autor como Apple, engajado e de orientação progressista, po-


deria nos fazer imaginar que tem nos autores conservadores seus
maiores adversários, mas não é o que tem acontecido, pelo menos em
terras nacionais. O tipo de literatura que mais tem confrontado as te-
ses de Apple vem de parte dos teóricos do pós-estruturalismo. Vamos,
a partir de agora, entrar em contato com algumas dessas ideias, para
que possam, inclusive, contrabalançar este capítulo. Certamente esse
é um procedimento que o próprio Apple aprovaria. Uma vez que seu
pensamento (ou aspectos importantes de seu pensamento) foi expos-
to, nada mais democrático do que apresentarmos algumas das ideias
que questionam, respeitosamente, suas ideias.

Um dos nomes importantes no pensamento educacional brasileiro


das últimas décadas é o de Tomaz Tadeu da Silva. Em alguns de seus
trabalhos, encontramos referências e comentários à obra de Apple.
Tomaz Tadeu reconhece o valor do pensamento crítico de Apple e lem-
bra que o pensador norte-americano desenvolve o conceito de hege-
monia, herdado principalmente do italiano Antonio Gramsci, mas que
no caso de Apple surge como um conceito mais dinâmico: os grupos
dominantes precisam permanentemente de esforços para a manuten-
ção ideológica de sua dominação.

Por isso é que para Apple é tão importante a discussão do currículo


na escola, uma vez que ele é foco central do interesse de tais grupos,
que precisam renovar seus valores de dominação com base no que a
escola ensina – na seção anterior, vimos a presença de quatro gran-
des grupos que buscam fazer isso em momentos de crises políticas e
econômicas. Em autores mais tradicionais, a hegemonia é entendida
como um resultado direto das condições econômicas; os grupos mais
poderosos economicamente garantem a hegemonia cultural. Apple,

Educação e currículo 135


portanto, procura fugir nessa relação direta. Na escola, esses grupos
batalham pela hegemonia.

Quando Apple diz que os professores são também responsáveis


pela reprodução da ideologia dominante, não podemos esquecer que
o autor também pontua que, para toda condição de dominação, há
sempre uma resistência, seja ela por parte de alguns professores que
não colaboram para a manutenção dos valores dominantes, seja por
parte de alunos que criam saídas originais para evitar esses valores
ou, ainda, que resistem diretamente ao conhecimento e aos valores
impostos. Mas vimos também na seção anterior que a força das regras
constituintes torna muitos desses conhecimentos e valores difíceis de
identificar e, por isso, de contestar.

5.2.1 Pós-modernismo e pós-estruturalismo


Apesar do reconhecimento da obra de Apple, Tomaz Tadeu da Sil-
va tem feito críticas importantes que merecem ser destacadas. Em
primeiro lugar, é importante situarmos a obra desse autor. Ela está
predominantemente filiada ao que conhecemos por pós-estruturalis-
mo. É importante também que se diga que, muitas vezes, o pós-es-
truturalismo e o pós-modernismo têm sido confundidos, pois os dois
tipos de discurso abarcam certas áreas comuns. De qualquer forma,
vamos apresentar características dos dois movimentos, uma vez que
as críticas ao tipo de análise como a de Apple têm vindo dos dois cam-
pos próximos.

O pós-modernismo estabelece um franco diálogo com o que se


costumou entender por modernismo. O modernismo pode ser com-
preendido por meio de pelo menos dois matizes:
• O primeiro deles refere ao movimento artístico do fim do século
XIX, que perdura pelo menos até a década de 1940.
• O segundo está estruturado em torno da ideia filosófica e histó-
rica de modernidade, que se inicia com a Revolução Francesa e
se estende até meados do século XX.

É possível dizer que, nas duas acepções, o modernismo tem como


característica fundamental a crença nos poderes redentores do co-
nhecimento, da ciência e da superação dos valores tradicionais por
meio do exercício da crítica. É sobre esse cenário, portanto, que o pós-

136 Filosofia da Educação


-modernismo surge. O prefixo pós já nos indica a ideia de superação.
O pós-modernismo então se desenvolve por meio da noção de supera-
ção e distanciamento dos valores modernos.

Se o modernismo tinha como figura central a certeza – do conheci-


mento como instrumento redentor, da superação de crenças incapazes
de resistir à crítica e do infalível poder da razão como desdobramento
incontornável das promessas iluministas –, o pós-modernismo se in-
surge justamente como projeto de questionamento às certezas. O pós-
-moderno vem então marcado pela ideia de incerteza.

Uma das certezas questionadas pelo pós-modernismo se dá em re-


lação a conceitos totalizantes. As grandes narrativas que prometem a
emancipação do sujeito moderno por meio da razão, do trabalho ou da
ciência acabam sendo postas em dúvida. Em Moreira (1997, p. 10), en-
contramos um bom resumo das ideias que dirigem o pós-moderno em
seu questionamento às crenças modernas: “a) o abandono das grandes
narrativas; b) a descrença em uma consciência unitária, centrada; c) a
rejeição da ideia de utopia; d) a preocupação com a linguagem e com a
subjetividade; e) a visão de que todo discurso está saturado de poder;
f) a celebração da diferença”.

Além disso, é possível entender o pós-modernismo como uma ma-


neira de olhar para o mundo de modo muito menos otimista, se com-
parado ao modernismo. Um dos elementos mais fortes na composição
desse pessimismo é a constatação de que a ciência e a tecnologia (que
se desenvolvem como os grandes trunfos da modernidade) foram pre-
ponderantes nas duas guerras mundiais, uma das quais só foi encerra-
da em função da detonação de duas bombas atômicas.

Muitos pós-modernos entendem, por exemplo, que a pós-moder-


nidade é o desvelamento do lado sombrio das “luminosas certezas”
da modernidade. Giddens (1991), por exemplo, até evita o termo pós-
-moderno, por achar que esse período é apenas o desdobramento das
incertezas modernas que não tinham se desenvolvido ainda. Por essa
razão, ele prefere o termo modernidade tardia no lugar de pós-moderno.

Já o pós-estruturalismo se opõe, como é possível inferir, ao estru-


turalismo, que possui uma origem mais específica: os estudos sobre
a linguagem. O ponto inicial pode ser identificado como os estudos
de Ferdinand de Saussure no campo da linguística estrutural. Ribeiro,
Veloso e Zanardi (2016, p. 261) resumem bem o elemento essencial da

Educação e currículo 137


Saiba mais abordagem estruturalista; ela corresponde “à ênfase em investigações
Veja o conceito de científicas dos fenômenos, no intuito de revelar leis internas de um sis-
descentramento em A
identidade cultural na pós- tema determinado. Nesse sentido, quaisquer fenômenos devem ser
-modernidade, de Stuart analisados a partir de um todo estrutural”.
Hall, completamente
devedor da interpretação Embora seja um movimento heterogêneo, em que os pensadores
pós-estruturalista de
sujeito. vão buscar objetos específicos de análise, é possível dizer que, como
HALL, S. Rio de Janeiro: DP&A, no pós-modernismo, a desconfiança a certas ideias totalizantes dirige o
2005. movimento. A ideia de um sujeito pleno, autônomo e puramente racio-
nal é descartada. Essa ideia, que tanto influenciou autores e filósofos
desde o início da modernidade, acaba se esgotando no pós-estrutura-
lismo. E é aqui que pós-modernismo e pós-estruturalismo se encon-
tram: na crítica à ideia de sujeito moderna e às certezas desse sujeito.

Há dívidas enormes para com dois mestres da dúvida: Sigmund


Freud e Friedrich Nietzsche, nomes importantes do pensamento do
século XIX, mas que foram ter sua influência reconhecida (principal-
mente Nietzsche) a partir desses dois movimentos “pós”. Essa crítica
ao sujeito aparece nas leituras do indivíduo moderno como um sujeito
descentrado e cada vez mais fragmentado. São pensadores fundamen-
tais para o pós-estruturalismo Gilles Deleuze, Jacques Derrida e Michel
Foucault, tendo em comum a influência do filósofo Friedrich Nietzsche.

Temos configurado, ainda que brevemente, o terreno em que serão


Filme
feitas as principais críticas às ideias de Michael Apple. Como dissemos, a
O filme Clube da Luta já crítica de Tomaz Tadeu da Silva é uma cujas fontes estão no pensamento
se tornou um clássico do
cinema. Sua importância pós-estruturalista e pós-modernista (quando esse pensamento coincide
reside na maneira como com os propósitos pós-estruturais). A primeira e principal discordância
o personagem principal,
interpretado por Edward de Tomaz Tadeu com a pedagogia crítica de uma forma geral, mas que
Norton, sendo incapaz vê em Apple o principal representante, é a noção de sujeito.
de tolerar sua própria
personalidade, comple- A ideia de sujeito centrado e autônomo, capaz de identificar cla-
tamente passiva com
relação aos papéis sociais ramente suas próprias decisões, parece não fazer mais sentido para
que lhe foram dados, teorias contemporâneas. Além disso, ao compreender o sujeito ainda
cria um alter ego, Tyler
Durden (Brad Pitt), dono pelos modelos da modernidade, as categorias formadas por esse su-
de uma personalidade jeito também acabam sendo distorcidas, não mais correspondendo às
impulsiva, mas que parece
compreender de maneira realidades contemporâneas.
mais profunda, irônica e
violenta as contradições Ribeiro, Veloso e Zanardi (2016, p. 267) fazem um comentário im-
da vida social. portante a esse respeito, observando que, em uma de suas críticas,
Direção: David Fincher. EUA: Tomaz Tadeu faz referência a duas premissas fundamentais às teorias
20th Century Fox, 1999.
críticas: “a ideia de que existe uma sociedade, no singular, e a visão de

138 Filosofia da Educação


que a teoria crítica formará a consciência crítica dos sujeitos para mo-
dificar essa sociedade, no singular”.

Ora, se se admite que os sujeitos contemporâneos são altamente


fragmentados, é possível supor também que sua capacidade de agre-
gação social seja também fragmentada. Nesse sentido, sendo a capaci-
dade de agregação dos sujeitos pós-modernos tão instável quanto eles,
seria arriscado dizer que a escola representaria a sociedade, uma vez
que estaríamos diante de inúmeras potenciais sociedades, mais frag-
mentárias e instáveis. Mas a crítica mais contundente se dirige mes-
mo à ideia de sujeito. Teorias críticas como as de Apple ainda estariam
presas a uma pretensão que deveria ter sido descartada já há algum
tempo – a segunda premissa.
A persistente consigna que tem estado no centro de todas as
vertentes dessa pedagogia pode ser sintetizada na fórmula “for-
mar a consciência crítica”. Pode-se variar a fórmula, substituin-
do o verbo por “produzir”, “educar”, “desenvolver”; o substantivo
por “cidadão”, “pessoa”, “homem”, “sujeito”, “indivíduo” e o ad-
jetivo por “consciente”, “reflexivo”, “participante”, “informado”,
“integral”, entre tantas outras possibilidades. O pressuposto é,
entretanto, sempre o mesmo: que existe algo como um núcleo
essencial de subjetividade que pode ser pedagogicamente mani-
pulado para fazer surgir o seu avatar crítico na figura do sujeito
que vê a si próprio e à sociedade de forma inquestionavelmente
transparente, adquirindo, no processo, a capacidade de contri-
buir para transformá-la. (SILVA, 2000, p. 13).

Aqui se percebe que a crítica de Tomaz Tadeu à pedagogia crítica de


Apple é a crítica que todas as teorias que demonstram algum traço de
essencialismo têm recebido nas últimas décadas. Ao suporem que seja
possível fazer um cálculo do alcance da própria efetividade, tais teorias,
ainda elaboradas com base em concepções modernas de sujeito, incor-
reriam em erro gravíssimo, uma vez que os sujeitos modernos e suas
subjetividades não são mais alcançados por discursos totalizantes.

Sendo assim, tais teorias, para um pensador como Tomaz Tadeu,


seriam absolutamente ineficazes e ultrapassadas. Ribeiro, Veloso e
Zanardi (2016, p. 268) fazem uma observação importante aqui: o teóri-
co crítico, grupo do qual Apple é um exemplo, para Tomaz Tadeu,
seria uma espécie de “super-herói crítico”, aquele que de modo
imponente, surge para transferir aos pobres mortais, a dita
“consciência crítica” que transformará a sociedade, no singular.

Educação e currículo 139


Ao que parece há nessa ideia um elemento de imposição e au-
toritarismo, na medida em que esse sujeito seria o dono de
uma verdade redentora e que, portanto, deveria ser transmi-
tida aos outros.

Outra crítica tem sido recorrente acerca dos autores marxistas e


neomarxistas (a teoria crítica de Apple pode ser classificada como neo-
marxista); além de ineficazes, uma vez que elas não mais se conectam
às identidades contemporâneas (pós-modernas), anunciam-se sempre
com uma postura autoritária, imaginando que podem ser modelos teó-
ricos para as lutas sociais contemporâneas.

Por fim, devemos pontuar um último aspecto, que é o da defesa


das pedagogias críticas. Na verdade, o tipo de crítica feita por Tomaz
Tadeu não é exclusiva às teses de Apple. Desde pelo menos o fim dos
anos 1960, esse tipo de crítica tem se desenvolvido. Os teóricos críticos,
embora admitindo a necessidade de atualização com relação às noções
de sujeito, não entendem a crítica da mesma forma. Para eles, os mo-
vimentos pós-modernos, ao se colocarem dessa forma, podem estar
fazendo o papel de movimentos conservadores.

É preciso, portanto, compreender melhor no pós-modernismo o


que ele traz de novidade e atualização sobre a compreensão dos su-
jeitos pós-modernos. E esse movimento oferece ideias realmente ino-
vadoras. Mas é também necessário entender que a utopia de produzir
sociedades futuras e melhores não pode deixar de existir. As teorias

Livro críticas dificilmente abandonariam os ideais utópicos. Ribeiro, Veloso


e Zanardi (2016, p. 273) vão nessa direção também; para eles, a teoria
Terry Eagleton é um dos
autores fundamentais crítica ainda tem muito a oferecer, mas pode se beneficiar de algumas
para o tipo de discussão
críticas lançadas pelo pós-estruturalismo: “necessitamos de teorias
que se estabeleceu neste
capítulo, especialmente que articulem a diferença, o particular, mas também precisamos com-
por meio da leitura do
preender como as relações nas quais as diferenças são constituídas
livro Depois da teoria: um
olhar sobre os estudos operam, como parte de um conjunto mais amplo de práticas sociais,
culturais e o pós-moder-
políticas e culturais”.
nismo. Seu estilo didático
e profundo nos faz com- Chegamos ao fim das principais críticas endereçadas à pedagogia
preender muitos aspectos
que envolvem as disputas crítica de Michael Apple, que na verdade são muito contundentes aos
entre as teorias modernas modos de pensar que tomam como base a noção moderna de sujeito.
e pós-modernas.
De qualquer modo, a pedagogia crítica tem sido, por décadas, exemplo
EAGLETON, T. Rio de Janeiro: de uma das formas mais aguerridas do pensamento pedagógico preo-
Civilização Brasileira, 2015.
cupado com as desigualdades sociais.

140 Filosofia da Educação


Não se pode imaginar que teóricos como Michael Apple ou Henry
Giroux (outro teórico crítico que merece ser estudado) não tenham ao
longo de suas carreiras acadêmicas refletido acerca das críticas ende-
reçadas a eles. A obra desses pensadores, se lida cronologicamente,
vai evidenciar o desenvolvimento de suas ideias já com assimiliação e
a resposta às críticas. É importante que você, como estudante, busque
essas referências, estude-as e futuramente possa também fazer suas
escolhas teóricas.

5.3 Reflexão filosófica e o papel do


Vídeo educador na contemporaneidade
Nas seções anteriores, vimos o embate ideológico que se realiza em
busca de protagonismo nos conteúdos curriculares de uma sociedade.
A luta se dá entre os vários grupos que defendem que seus valores e
conhecimentos sejam bem representados. Nem sempre esse embate
ocorre de maneira explícita. O próprio conceito de Michael Apple de
currículo oculto foi desenvolvido para apontar a forte presença tácita
de inúmeros saberes relacionados a grupos dominantes nas socieda-
des de uma forma geral. Vimos também que nenhuma teoria é capaz
de se colocar de maneira hegemônica nas discussões sobre currículo.

Embora a obra de Apple seja muito respeitada, há outras vertentes


teóricas que dela discordam em muitos aspectos, e é isso que gostaría-
mos de considerar nestas últimas páginas do capítulo; queremos refletir
um pouco a respeito dos embates entre correntes teóricas que às vezes
parecem impossibilitadas de chegar a um consenso. A falta de consenso
não é algo incomum nas discussões teóricas. Nossa reflexão pressupõe
uma visão filosófica sobre os vários aspectos aqui discutidos; assim, va-
mos lançar também algum juízo sobre as próprias teorias discutidas.

O trabalho fundamental do filósofo da educação é se informar sobre


as teorias que embasam a prática cotidiana dos educadores e, se possí-
vel, emitir juízos sobre elas, ainda que esses juízos nem sempre sejam
feitos para condená-las ou referendá-las. A realidade pode ser abordada
de inúmeras formas. O que as teorias procuram fazer é criar formas de
compreender a realidade, explicá-la e propor soluções quando forem
necessárias. Assim como há inúmeras teorias, há, por consequência,
inúmeras formas de compreender a realidade.

Educação e currículo 141


Por sua vez, o filósofo, como alguém um pouco mais experiente
nesse jogo de variantes da realidade e seus problemas, procura as-
pectos dessas teorias que precisam ser destacados a fim de, imagina-
-se, orientar aquelas pessoas que se relacionam com a educação de
alguma forma. No capítulo em questão, é importante observar como
as teorias pós-modernistas e pós-estruturalistas têm ganhado espaço
e como as mais tradicionais e que remontam a algum pensamento
utópico, como é o caso da obra de Michael Apple, parecem perder sua
capacidade de influência.

Karl Mannheim (1893-1947), famoso pensador húngaro, em seu tex-


to mais importante, Utopia e Ideologia, faz uma consideração que nos
ajuda a compreender a mudança no eixo das influências teóricas como
a apresentada no fim do parágrafo anterior. Mannheim (1987) faz uma
distinção importante entre ideologia e utopia. Pare ele, ambas produ-
zem formas de ver e pensar o mundo que não correspondem à reali-
dade, mas a ideologia é produzida pelos grupos mais influentes de uma
sociedade para tornar turva a compreensão da realidade.

É importante observar que geralmente esse sombreamento da reali-


dade não é um exercício consciente, o que de certa forma turva a com-
preensão da realidade para todos os grupos, inclusive para aquele que
é a suposta fonte da ideologia vigente. Ainda que esse processo seja in-
consciente, ele é vantajoso para tais grupos dominantes, uma vez que a
realidade passa a ser vista e compreendida por meio de sua ideologia, o
que garante a manutenção da ordem social que privilegia esses grupos.
A ideologia vista desse modo é, portanto, a força inconsciente que tra-
balha para evitar mudanças sociais vantajosas para os demais grupos.

A utopia, por sua vez, também é uma forma de ver e pensar o mun-
do que não corresponde à realidade. Mas, diferentemente da ideologia,
essa visão incorpora elementos que propõem a mudança da realidade.
O seu fim último, é possível dizer, é a transformação e a superação das
injustiças e das desigualdades que caracterizam a ordem vigente. Em
geral, as ideologias dominam o presente, afinal elas são instrumentos
para a manutenção da ordem atual, e as utopias têm como horizonte o
futuro: o rompimento e a transformação das injustiças está sempre por
se realizar. Mannheim (1987, p. 169, grifo do original) descreve assim a
relação entre esses dois modos de ver o mundo:
no curso da história, o homem ocupou-se com mais frequência
dos objetos que transcendiam o alcance de sua existência que dos

142 Filosofia da Educação


objetos que eram imanentes a esta, e apesar disto, as formas reais
e concretas da vida real se edificaram sobre a base de estados de
espírito “ideológicos”, incongruentes com a realidade. Semelhante
orientação incongruente se tornou utópica, quando tendeu, por
acréscimo, a destruir a ordem vigente. Portanto, os representan-
tes de certa ordem não assumiram em todos os casos uma ati-
tude hostil para com as orientações que transcendiam a ordem
existente. Mas se esforçaram bastante em controlar as ideias e os
interesses transcendentais dentro de uma situação dada, interes-
ses e ideias que não tinham possibilidade de realização dentro da
ordem prevalecente, e em reduzi-los à impotência, de tal modo
que se concretizaram num mundo para além da história e da so-
ciedade, de onde não podiam afetar o status quo.

Mannheim, como se vê, chama a atenção para o “problema” das uto-


pias: sempre vigiadas, o futuro para o qual elas apontam precisa ser
bem indeterminado; essa é a única forma de se tornarem aceitáveis. É
preciso chamar a atenção para isso porque o pensamento de Michael
Apple, por estar calcado em projetos teóricos entendidos como utópi-
cos, parece sofrer um pouco desse efeito. Propostas teóricas que re-
montam a ideias mais comunitárias, unificadoras e igualitárias parecem
encontrar dificuldades em sociedades caracterizadas como pós-moder-
nas. Afinal, tais sociedades se tornam cada vez mais segmentadas.

No século XX, por exemplo, foi possível pensar que as grandes con-
tradições e injustiças poderiam ser resolvidas com base na noção de
classes, em que trabalhadores precisavam lutar, organizados, contra os
interesses de conglomerados econômicos. Mas já no fim do século XX,
a fragmentação de gostos, de objetivos e de estilos de vida parece ter
trazido dificuldades para esse tipo de discurso, que conseguia imaginar
uma classe homogênea e com objetivos comuns.

Essa fragmentação tem sido a força dos discursos pós-modernos,


que apontam para a dificuldade de encontrar elementos que possam
agregar pessoas e sociedades em objetivos comuns. É possível, por-
tanto, que a ascensão, e até a hegemonia, das teorias pós-modernas
esteja também muito relacionada às mudanças nos padrões culturais e
econômicos de nossos tempos.

Como nos tornamos uma sociedade de consumidores, a volatilida-


de e a tendência à mudança contínua dos produtos, como é comum
na economia de mercado, parece emprestar sua forma a nossa ma-

Educação e currículo 143


neira de viver. Assim, até os relacionamentos, segundo Bauman (2001,
p. 171, grifo do original), estão sujeitos a se tornar produtos:
a presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e des-
regulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura
final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve
e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento
dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que
esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver
junto”, com todas as atitudes disso decorrentes e consequências
estratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coa-
bitação e da possibilidade de que a associação seja rompida a
qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida
a necessidade ou o desejo.

Podemos, inclusive, ir mais longe. Não somente os relacionamentos


parecem estar sujeitos a determinações do mercado; a própria corpo-
ralidade é fonte de tais determinações. Safatle (2015, p. 217), pensando
também na tendência à mudança contínua de produtos a que o sujeito
(consumidor) pós-moderno está exposto, vê no corpo de cada sujeito
os resultados desse apelo incessante à mudança:
a segunda modalidade de representação diz respeito ao corpo
como interface e superfície de reconfiguração que coloca o su-
jeito diante da instabilidade de personalidades múltiplas e da
des-identidade subjetiva. É o caso das campanhas da PlayStation,
nas quais o corpo deixa de ser concebido com um limite entre o
sujeito e o mundo para ser uma interface de conexão. A questão
da autoidentidade, tão ligada à noção de integridade do corpo,
modifica-se necessariamente.

Desse modo, nosso comportamento parece, em alguma medida, repli-


car a segmentação do mercado e a grande oferta de produtos. As teorias
que procuram evidenciar as dificuldades que as sociedades contemporâ-
neas possuem de organização em torno de objetivos comuns e da pró-
pria fragmentação do sujeito têm mostrado uma aceitação melhor, que
se dá, claro, pelos importantes aspectos que tais teorias discutem. Aqui,
lançamos um questionamento: outro motivo para sua boa aceitação não
estaria ligado ao que Karl Mannheim aponta como ideologia?

Para autores como Eagleton (1997), por exemplo, muitos aspectos das
teorias modernas, tão criticadas pelos pós-modernos, continuam existin-
do, e nós continuamos precisando de teorias totalizantes, que não se mi-
rem apenas na fragmentação do sujeito moderno. Não foram os antigos

144 Filosofia da Educação


problemas, portanto, que desapareceram; foi o nosso discurso que mu-
dou. Nossas teorias mudaram. O pensamento de Michael Apple é uma
tentativa de apreender a realidade ainda com base em categorias mais
totalizantes, por exemplo, as lutas de classes, que têm como sustentáculo
teórico o marxismo, que por sua vez aponta para a utopia.

O que vemos é que nosso tempo desacreditou das utopias. No en-


tanto, esse desacreditar foi muito conveniente para as mesmas injustas
estruturas políticas e econômicas que ainda habitam nossas socieda-
des, e é daí que vem o nosso questionamento. Talvez a própria mu-
dança no interesse teórico (teorias pós-modernas no lugar de teorias
modernas) seja um modo de as sociedades manterem uma certa vigi-
lância sobre as utopias, como nos alertou Karl Mannheim.
Livro
Se isso estiver correto, significa que teorias como as de Michael
Falamos muito em
Apple, ainda que não tão prestigiadas como foram outrora, continuam utopias, mas, como vimos,
sendo importantes, talvez até fundamentais, pois esse declínio no inte- nosso tempo desconfia
muito delas. Assim, talvez
resse que elas despertam não se deve à incompetência de suas análi- seja possível dizer que
ses, mas à nossa opção por teorias que não proponham a mudança da uma leitura mais em
consonância com a atua-
ordem ou o desafio ao status quo por meio da educação. lidade seja a de distopias.
Enquanto as utopias
Por fim, observamos que há contemporaneamente autores que de apontam para sociedades
maneira muito convincente têm questionado a ideia de sujeitos e so- futuras melhores que
as atuais, as distopias
ciedades fragmentadas. Um exemplo muito interessante é o excelente apontam para sociedades
trabalho de Castells (2015), no qual o autor, que é um dos maiores es- futuras piores do que as
atuais. Fahrenheit 451 é
pecialistas na relação entre sociedade e meios de comunicação, admite uma das distopias mais
uma certa fragmentação dos sujeitos pós-modernos que compõem o famosas já escritas. O livro
fala de uma sociedade
público das propostas de entretenimento midiático atual, mas observa futura em que os livros
que há também elementos que possuem caráter de agregação comple- são proibidos e todo o
pensamento crítico foi
to, não fragmentado. Para Castells, há uma relação entre o global e o banido.
local e entre o total e o fragmentário, sem excluir qualquer uma dessas
BRADBURY, R. São Paulo: Globo,
categorias. Castells (2015, p. 171, grifos do original) nos mostra como
2007.
isso ocorre com base em quatro conceitos:
A globalização cultural se refere à emergência de um conjunto de
valores e crenças específicos que são, em grande medida, com-
partilhados por todo o planeta.
A identificação cultural se refere à existência de conjuntos especí-
ficos de valores e crenças nos quais grupos humanos específicos
se reconhecem. A identificação cultural é em grande parte resul-
tado da geografia e da história da organização humana, mas ela
pode também ser formada com base em projetos específicos de
construção de identidade.

Educação e currículo 145


O individualismo é o conjunto de valores e crenças que dá priori-
dade à satisfação das necessidades, desejos e projetos de cada
sujeito individual na orientação de seu comportamento.
O comunalismo é o conjunto de valores e crenças que coloca o
bem coletivo de uma comunidade acima da satisfação individual
de seus membros. Nesse contexto, a comunidade é definida como
o sistema social organizado em torno do compartilhamento de
um subconjunto específico de atributos culturais e/ou materiais.

O texto de Castells nos mostra como a identificação cultural e o in-


dividualismo estão de acordo com a ideia de fragmentação e individua-
lização cada vez maior da cultura e dos sujeitos contemporâneos. Mas
a globalização cultural e o comunalismo nos mostram que valores e
crenças se sobrepõem a qualquer fragmentação e conseguem reunir/
evidenciar que as pessoas e as sociedades ainda são capazes de se
identificar com certos valores comuns.

Isso apenas reforça a nossa defesa de que teorias que trabalham com
categorias totalizantes, como a obra de Michael Apple, não podem ser
descartadas como obsoletas, uma vez que elas ainda discutem de manei-
ra correta temas muito caros à educação. Acreditamos que o educador
precisa compreender a complexidade das tentativas teóricas de apreen-
são da realidade. Cada uma dessas tentativas nos ajuda a entender a ri-
queza e as potencialidades de novas compreensões do valor da educação
e de todos os seres humanos envolvidos por cada uma delas.

CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Ao longo deste capítulo, tivemos a oportunidade de entrar em conta-
to com ideias pedagógicas muito influentes na educação brasileira. Se a
pedagogia crítica não é hoje a corrente mais influente, ela conquistou em
certo passado recente essa posição. Mas não devemos imaginar que ela
esteja esquecida, até porque os eventos políticos, econômicos e culturais
da última década parecem apontar para o ressurgimento de pedagogias
com propostas mais totalizantes e que se mantenham críticas.
O sistema escolar brasileiro, com todas as suas peculiaridades, desi-
gualdades, contradições e complexidades, exige um aporte teórico imen-
so que nos ajude a compreender essa realidade multifacetada. Por essa
razão, procuramos apresentar as ideias seminais de Michael Apple e ou-
tras que buscam questioná-lo. Esperamos que essa discussão entre teo-

146 Filosofia da Educação


rias possa resultar em um pequeno painel no qual você possa visualizar
possibilidades de aplicação.

ATIVIDADES
Vídeo 1. O que é reprodução contestada?

2. O que diferencia a análise de Michael Apple de análises funcionalistas?

3. O que Michael Apple nos fala acerca da ideia da neutralidade dos


conteúdos do currículo escolar?

4. Para Apple, quais são os aspectos positivos em torno da ideia de


conflito?

5. Cite uma crítica do pensamento pós-moderno e pós-estruturalista às


posições de Michael Apple.

REFERÊNCIAS
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Cortez; Instituto Paulo Freire, 2003.
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CASTELLS, M. O poder da comunicação. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
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HOLLANDA, C. B. Teoria das elites. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
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pós-modernos e pós-estruturais da teoria curricular. Currículo sem Fronteiras, v. 16, n. 2,
p. 255-282, maio/ago., 2016.
SAFATLE, V. O Circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São
Paulo: Cosac Naify, 2015.
SILVA, T. T. Monstros, ciborgues e clones: os fantasmas da pedagogia crítica. In: SILVA,
T. T. Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.

Educação e currículo 147


RESOLUÇÃO DAS ATIVIDADES
1 Filosofia, Educação e Ciência
1. Como podemos responder à seguinte pergunta: o que é filosofia?
Isso depende da filosofia em questão, mas podemos dizer que é
possível construir uma resposta com certa objetividade, desde que
saibamos que ela é assim objetiva para satisfazer nossos fins didáticos.
Desse modo, podemos definir a filosofia como sendo uma atividade
intelectual, a qual visa colocar sob investigação nossas crenças, de
modo a validá-las ou não, por meio de métodos racionais propostos
pelos filósofos.

2. O que é filosofia da educação? Qual é a sua importância nas


escolas?
O sistema escolar funciona sobre uma base teórica, a qual orienta os
professores em todas as disciplinas. Além da matéria específica de
cada um deles, há sempre um ou alguns métodos adotados pelos
docentes para ajudar a fluência do aprendizado, como a comunicação
entre professores e alunos, a compreensão mais fácil dos conteúdos,
as questões disciplinares etc. Nesse sentido, a filosofia da educação
nas escolas serve de base para repensar as metodologias que estão
sendo aplicadas, quais são boas e quais devem ser substituídas.

3. Por que a areté da cultura primitiva grega não encontrou a


mesma aceitação nos tempos de Sócrates e Platão?
Porque as cidades gregas tornaram-se mais abertas ao comércio e à
influência de outros povos. Foi naquele mesmo momento histórico que
Atenas desenvolveu a sua democracia, que, aliás, tornou-se referência
para a história política do ocidente. Sendo assim, a areté aristocrática
e guerreira da primeira cultura grega não correspondia mais ao perfil
cosmopolita e de maior tolerância que tinha a democracia ateniense.

4. Como Nietzsche entendeu a presença da metafísica na história


da civilização ocidental?
Nietzsche entendeu que o platonismo foi incorporado pelo nascente
cristianismo. A distinção platônica entre a realidade sensível –
corruptível, material, instável – e a inteligível – perfeita, imutável e
verdadeira –, com a clara preferência pela segunda, foi o elemento
de agregação entre a visão de mundo religiosa cristã e a filosofia
de Platão. Com isso, criou-se uma metafísica potencializada, que

148 Filosofia da Educação


condenava tudo que fosse ligado ao corpo, à matéria e à realidade
aparente. Nietzsche condenou essa visão metafísica e procurou
valorizar tudo o que ela desvalorizou ao longo de sua história.

5. Por que é possível dizer que percebemos a realidade de uma


maneira muito parecida que as outras pessoas pertencentes à
mesma sociedade?
Porque, se pensarmos que uma parte considerável de nossas
percepções é formada socialmente, devemos levar em consideração
que, desde o nascimento, herdamos uma linguagem comum, social,
que nos faz pensar e perceber o mundo sob uma única perspectiva.
Esse aspecto reforça o que Berger e Luckmann (1991) chamam de
atitude natural.

2 Educação e dispositivos de poder


1. Por que Esparta é um modelo inspirador para Rousseau?
Comente.
Porque essa cidade conseguiu, segundo Rousseau, consolidar uma
sociedade com poucas desigualdades, hábitos de vida muito simples e
sem apreço ao luxo.

2. Que características permitem dizer que a percepção a respeito


da infância na Idade Média e início da Era Moderna era muito
diferente da percepção contemporânea? Discorra.
Na Idade Média, a criança após seus 6 ou 7 anos de idade era
percebida como um pequeno adulto. Contemporaneamente, a
percepção é de que a infância ocupa uma fase especial da vida, que
exige cuidados específicos, como educação e projetos pedagógicos
específicos para crianças.

3. O que é o estado de natureza? Defina.


É uma abstração proposta por alguns filósofos modernos, como
Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, com o intuito
de usar a imaginação filosófica para responder a questões sobre a
natureza humana, principalmente à questão de se o ser humano em
seu estado mais primitivo é essencialmente bom ou ruim.

4. Como o estado de natureza está vinculado ao pensamento


pedagógico para Rousseau?
Rousseau estabelece um paralelo entre o ser humano em estado de
natureza, ainda bom, ingênuo e não influenciado pelas facilidades
modernas, com a criança a ser educada. Por isso, a educação que

Resolução das atividades 149


Rousseau propõe, já na primeira infância, é orientar a criança a
disciplinar progressivamente os desejos para que, quando chegar à
idade adulta, não seja seduzida pelos apelos do luxo e do conforto das
sociedades de seu tempo.

5. Por que Foucault não aceitaria a sugestão de Rousseau acerca


da importância da utilidade como garantia de sociedades mais
justas?
Principalmente porque, nas sociedades modernas, o princípio da
utilidade é usado para sujeitar silenciosamente os homens em relação
aos interesses econômicos e políticos.

3 Educação e democracia
1. Discorra sobre como o empirismo do pensamento de John Dewey
pode ser compreendido como uma contribuição à democracia.
O empirismo no método educacional leva ao aproveitamento mais
intenso da prática escolar e da exploração de objetos e processos
em sala. Esse enriquecimento da prática leva à necessidade do
desdobramento dos fatos históricos e ao aprofundamento da história
das práticas que envolvem nosso cotidiano. Dewey acreditava que assim
os trabalhadores, os cidadãos, mediante esse contato mais intenso
com a história, estariam também mais aptos a opinar na democracia.

2. Como o empirismo na obra de Dewey está relacionado à visão


pedagógica?
Para Dewey, a escola tradicional é pouco dinâmica e não explora as
possibilidades do enriquecimento educacional que experiências
práticas podem oferecer. Por isso, ele recomenda que os
conhecimentos que têm apenas um caráter utilitário na escola passem
a explorar empiricamente o que está sendo ensinado e coloquem os
alunos em contato direto com os elementos materiais que compõem
o conhecimento.

3. Como o avanço da racionalidade sistêmica, tal como definido


por Habermas, ameaça a educação?
A única racionalidade do sistema é instrumental; os seus objetivos
e valores são regidos pela ideia de acumulação. Desse modo, ela
acaba transformando a educação apenas em uma mercadoria. A falta
de solidariedade é uma das características mais comuns quando a
racionalidade sistêmica se apossa da educação.

150 Filosofia da Educação


4. Qual a discordância maior de Luis Felipe Miguel com a teoria de
Habermas?
Luis Felipe Miguel acredita que Habermas idealiza a democracia e
que sua ideia de razão comunicativa talvez não tenha eficácia se
considerada a política em sua forma mais pragmática, que impede a
percepção das assimetrias de poder existentes na democracia real.

5. O que é reificação?
A reificação, no sentido que Habermas e outros nomes importantes do
pensamento social dão ao fenômeno, é retirar das relações humanas
a afetividade, os valores solidários e os interesses mútuos, restando
apenas objetivos imediatos e de caráter exploratório.

4 Educação e descentramento
1. Sobre a seguinte observação: “o professor precisa entender,
portanto, que parte da inquietude em sala é reflexo do
nosso tempo, não sendo culpa de aulas, às vezes, carinhosa e
exaustivamente elaboradas”. Que atitude(s) o professor pode
ter em sala de aula com relação à inquietude? Especifique.
O professor precisa, em primeiro lugar, estar informado e conectado
a seus alunos. Ele necessita extrair as razões dessa inquietude,
analisá-las e buscar trazê-las para as atividades como debates,
produções de texto, atividades culturais – o teatro, por exemplo.

2. Como a escola pode se tornar tão ou mais atrativa do que as


mídias digitais? Discorra.
Claro que para essa questão não há resposta fácil. Mas uma possibilidade
é trabalhar com características das mídias, por exemplo, desafiar os
alunos para elaborar mensagens sintéticas, como no Twitter, e explorar
a capacidade de estabelecer relações, por meio da linguagem e escrita,
de amizade, como se faz no Facebook. Se a escola tiver recursos
audiovisuais, é possível explorar a produção de vídeos nos moldes do
Instagram etc.

3. Apresente três características que diferenciem a pedagogia


tradicional da pedagogia nova. Especifique-as.
A pedagogia tradicional focava a figura do professor, já a nova
centra-se no aluno; na tradicional, o aluno tinha papel passivo, já a
pedagogia nova exige do aluno mais participação; por fim, enquanto
a tradicional era mais focada na memorização de conteúdos, a nova
busca a aplicação prática dos conteúdos.

Resolução das atividades 151


4. Quando Dermeval Saviani traz os cinco passos na relação
aluno-professor em sala de aula, ele diferencia o nível sincrético
do sintético. Exemplifique essa diferenciação.
O nível sincrético é aquele em que os alunos se encontram no processo
inicial de aprendizagem; eles trazem consigo uma série de informações,
mas ainda sem muita organização e compreensão do sentido delas no
mundo do conhecimento. Já o nível sintético determina o ponto final
no processo de aprendizagem, quando o aluno já é capaz de organizar
e dar sentido a todo o conhecimento aprendido na escola, unido
àquele que ele já tinha de sua vivência anterior e ao longo de todo o
seu período de escolaridade.

5. Por que o desenvolvimento das mídias é visto por John


Thompson como algo muito positivo? Explique.
Thompson entende que o desenvolvimento das mídias tornou os
indivíduos mais informados e capacitados para exercerem seus papéis
sociais, além de expandir nosso conhecimento de mundo, de outros
lugares e da nossa imaginação – inclusive, até nossa capacidade de
autoconhecimento tornou-se maior.

5 Educação e currículo
1. O que é reprodução contestada?
Michael Apple observa que os grupos dominantes em uma sociedade
buscam impor seus conhecimentos e valores ensinados em sala de
aula por meio do currículo. Embora isso ocorra, sempre há grupos,
de professores ou alunos, que resistem a essa imposição. A essa
resistência dá-se o nome de reprodução contestada.

2. O que diferencia a análise de Michael Apple de análises


funcionalistas?
Michael Apple procura atentar não somente para os elementos da
educação que reforçam a ordem estabelecida, mas também para os
códigos, as contestações e as ações desviantes na escola, o que, segundo
ele, pode resultar em uma visão mais realista da dinâmica escolar.

3. O que Michael Apple nos fala acerca da ideia da neutralidade


dos conteúdos do currículo escolar?
O autor discorda frontalmente dessa ideia. Segundo ele, na tradição
pedagógica de seu país, essa ideia sempre prevaleceu, mas ela
é falaciosa. De acordo com Apple, a questão serve apenas para
neutralizar as potenciais revoltas e críticas ao status quo; nenhum
conteúdo é neutro e desinteressado.

152 Filosofia da Educação


4. Para Apple, quais são os aspectos positivos em torno da ideia
de conflito?
O conflito, entendido como questionamento, é responsável direto por
mudanças sociais, pela criação de leis e pela ampliação da consciência.

5. Cite uma crítica do pensamento pós-moderno e pós-


estruturalista às posições de Michael Apple.
O pós-modernismo e o pós-estruturalismo são movimentos que
possuem como marca central a desconfiança sobre ideias totalizantes.
Segundo os pós-estruturalistas, o pensamento de Michael Apple
preserva ainda categorias totalizantes, como a ideia de sujeitos
centrados e autônomos (visão típica da modernidade, e não da
pós-modernidade).

Resolução das atividades 153


Código Logístico ISBN 978-65-5821-058-0

I000214
9 786558 210580

Filosofia da Educação
Sandro Teixeira

Sandro Teixeira

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