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UFABC: 2022_3

ESZU029-17 História da Cidade e do Urbanismo


(TPI 4-0-4)

Prof. Dr. Gilson Lameira de Lima

Aula 07 novembro 2022


A revolução industrial e a cidade moderna 2: crise
sanitária e urbanismo.
A Gênese do Urbanismo Moderno

O Urbanismo tal como conhecemos, que se pretende uma ciência dos


estabelecimentos humanos, nasce dos desdobramentos da Revolução Industrial.
Esta revolução, que começa na Inglaterra, lança toda uma população operária nas
cidades, que não estão preparadas para acolhê-las.

As Teorias fundadoras do Urbanismo:

• Pré-Urbanismo: um conjunto de iniciativas de pensadores políticos sociais do final do


século XVIII e primeira metade do século XIX, que se colocam em oposição da cidade
decorrente do liberalismo econômico, onde a formação do proletariado urbano ocorre
em um ambiente de exploração selvagem e intensa precarização das condições de vida
do trabalhador urbano. São pré-urbanistas as experiências utópicas de Charles Fourier,
Jean Baptiste Godin e Robert Owen.

• Urbanismo: se opõe ao pré-urbanismo essencialmente porque ele é feito, não de


experimentalistas, mas de profissionais que visam colocar em prática suas ideias,
ancoradas na dinâmica do processo industrial, resguardando a dignidade da dimensão
humana. São expoentes dessa abordagem, George-Eugène Haussmann1, Idelfonso
Cerdá, Tony Garnier, Ebenezer Howard e Arturo Soria y Mata.

(1) Não era urbanista, mas Administrador e prefeito de Paris.


A cidade moderna

Pudemos observar que a Era Moderna resultou da acumulação de poder político pela
burguesia mercantil e manufatureira, lastreado pelo poder econômico. Esse fato foi
viabilizado pela liberdade para produzir e comercializar, resultando na construção de
Estados Nacionais, que expressavam os interesses dessa nova classe econômica. A
profunda mudança no modo de produção, em sua perspectiva industrial, teve como
contrapartida a expulsão das populações do campo e sua concentração nas cidades,
gerando uma nova classe social – o proletariado urbano, com interesses
irrecorrivelmente contraditórios aos da burguesia, detentora dos meios de produção e
voltada à acumulação de capital.
A cidade moderna

Conforme anteriormente exposto, a superexploração da força de trabalho, não


distinguindo homens de mulheres e crianças, em jornadas aviltantes de até 16 horas de
trabalho ao dia, condições insalubres e riscos permanentes de acidentes se somavam à
precarização alimentar e de moradia.
Neste cenário, a monarquia parlamentarista, representando exclusivamente os
interesses do capital, submetiam a nova classe operária à condição de viver
simplesmente para reproduzir a sua força de trabalho em cidades desorganizadas,
caóticas, poluídas, além de muito feias.
As cidades expressavam essa nova realidade e passavam a representar um extraordinário
desafio, de como alcançar a funcionalidade requisitada pela indústria, oferecendo
condições dignas de vida à classe trabalhadora. Responder a essa indagação motivou
proposições variadas de pré-urbanistas, experimentalistas, denominados utópicos e
profissionais que ao refletirem sobre o fenômeno da cidade industrial e formularem
proposições teóricas, criaram uma nova ciência, o urbanismo, que representará a cidade
pós-liberal.
A origem das concepções utópicas é o livro Utopia do
escritor inglês Thomas More, publicado em 1516. Este
livro descreve uma sociedade ideal, que possibilita
igualdade e justiça para todos.
Esse título passou a designar todo pensamento que
defendesse a igualdade social, sem apontar claramente
o caminho para se chegar a ela.
Sugere a impossibilidade de aplicação de um modelo.
Assim, não chegou a constituir uma doutrina, pois o que
os utópicos pregavam eram modelos idealizados.

Thomas More, em 1516, criou a ideia de utopia ao descrever uma ilha imaginária com
uma sociedade perfeita em todos os sentidos. O surgimento desse gênero literário, tão
próximo da história, da filosofia e da política, está ligado ao processo burguês de
racionalização da vida. O Renascimento sintetizou um grande experimento de
racionalização da vida humana. Para construir a sua sorte e o destino da humanidade, os
homens daquela época fixaram normas de conduta e quiseram regulamentar cada
aspecto da vida prática. A lógica desta idéia levou à construção de critérios
universalmente válidos para cada atividade, com normas, regras e códigos: surgiram assim
os tratados sobre o perfeito cortesão, sobre o perfeito ministro, sobre o perfeito homem
do mundo. (Carlos Eduardo Ornelas Berriel)
Charles Fourier2 Os utopistas ou pré-progressistas

Fourier defendia a reorganização da sociedade baseada


no conceito de justiça social.
Segundo ele a sociedade deveria ser agrupada de
acordo com as preferências e aversões de seus
membros e estes ficariam divididos em associações de
indivíduos, as quais ele deu o nome de Falange. Cada
Falange se situaria em um Falanstério, que seriam
cooperativas, onde produtores industriais, agrícola e
trabalhadores produziriam juntos.
Cada trabalhador iria produzir o que quisesse e o
trabalho passaria a ser visto como algo bom, mas que
cada um ganhasse conforme a sua participação e a sua
função. Mas, não reconheceu o significado da
contradição de interesses entre que detém os meios de
produção e quem produz (luta de classes), despejando
todo o seu trabalho na boa vontade e generosidade da
burguesia.
(Gurgel, A. P.:Mynayev:1967, 24-27)
Charles Fourier
(2) François Marie Charles Fourier (1772-1837) foi um socialista francês da primeira parte do século XIX, um dos pais do
cooperativismo. Foi também um crítico ferino do economicismo e do capitalismo de sua época, e adversário da industrialização, da
civilização urbana, do liberalismo.
Os utopistas ou pré-progressistas
Charles Fourier

O Falanstério de Fourier em perspectiva. As áreas rurais e os jardins não estão representados.

Para Fourier, no lugar dos vastos centros que absorvem as populações, as aldeias, as
casas, construídas ao azar no mapa, mal distribuídos, mal traçados seus limites, tão
incoerentes em sua distribuição geral como em sua organização particular, a humanidade
deve estar agrupada por "comunidades", regulares pelo número de seus habitantes, por
sua ordem interior e pelas condições de equilíbrio na relação com outras comunidades,
obedecendo todas a leis análogas.
O termo “Falange", significa uma ideia de conjunto, de unidade, de vontade e de objeto.
A Falange deveria ser composta de cerca de 400 famílias (1600 ou 1800 pessoas, com uma
média de densidade das famílias de 4,5 pessoas).
Os utopistas ou pré-progressistas: Charles Fourier

As bases desta associação são:

1.º Todos os habitantes da comunidade, ricos e pobres, formariam parte da associação; o


capital social constituiria os imóveis de todos e os móveis e capitais investidos por cada um
à sociedade;

2.º Cada associado em troca de seus investimentos, receberia ações que representassem o
valor exato do que fosse investido;

3.º Toda a ação teria hipoteca sobre a parte dos imóveis que representasse e sobre a
propriedade geral da sociedade.

4.º Todo o associado (seria associado ainda quando não possuísse ações nem capital
algum) deveria concorrer à exploração do bem comum, com o seu trabalho e com o seu
talento;

5.º As mulheres e as crianças entrariam na sociedade com o mesmo título que os homens; e

6.º O beneficio anual, depois de satisfeitos os gastos comuns, seria repartido


proporcionalmente segundo as três faculdades produtivas: capital, trabalho e "talento".
Os utopistas ou pré-progressistas: Charles Fourier

Para Fourier o plano de uma cidade deveria considerar três anéis concêntricos:
- O primeiro contém o conjunto de equipamentos de interesse de toda a comunidade.
- O segundo deveria conter os arrabaldes e as grandes fábricas.
- O terceiro conteria as avenidas e o subúrbio.

E ainda:
• Fim do tabuleiro de
xadrez monótono.
• Ruas curvas para
evitar uniformidade.
• Praças ocupando
1/8 da superfície;
• Ruas arborizadas
(árvores variadas).
• Compartilhamento
do espaço por ricos
e pobres.

Os três anéis seriam separados por paliçadas, relvas e jardins que não deveriam cobrir
a visão.
Jean Baptiste Godin3

"Familistério" foi o nome dado por Godin às construções para habitação


que fez construir para os seus operários e suas famílias a partir de 1859
e até 1880, provavelmente com base em planos do arquiteto fourierista
Victor Calland. Inspirou-se diretamente no Falanstério de Fourier mas,
como faria sempre, efetuou uma alteração na teoria para a adaptar às
suas próprias ideias e sobretudo para a tornar mais realizável. A primeira
etapa, a mais urgente, era segundo Godin a de melhorar as condições de
alojamento e de vida das famílias, atribuindo-lhes condições
"equivalentes às riquezas". Esta expressão designa o conjunto de
condições de conforto e de salubridade que a burguesia tinha através do
dinheiro e que os membros do Familistério poderiam doravante atingir
pela cooperação. Higienista convicto, Godin incluiu nos seus
Estátua de Jean-Baptiste
"equivalentes à riqueza" tudo o que poderia assegurar a salubridade do André Godin frente ao
alojamento. A luminosidade dos apartamentos, a circulação do ar, o Familistério.
acesso à água potável em cada piso, são todos elementos fundamentais
que eram garantidos pela arquitetura própria dos edifícios.

(3) Em 1846 o industrial Godin instalou-se em Guise para fundar uma empresa de utensílios de aquecimento e de cozinha, os famosos
fogões Godin, dos quais foi o inventor. Fabricados em ferro fundido, difundiam muito melhor o calor que os antigos modelos em folha
metálica, e permitiram que Godin, de origens modestas, fizesse rapidamente fortuna e se impusesse num mercado em plena expansão.
Mas ele, como simples operário, conservou a memória das terríveis condições de vida e laborais dos assalariados da indústria, que
pôde também constatar numa viagem que fez pela França entre 1835 e 1837. Godin vai então usar a sua fortuna para melhorar a vida
dos seus empregados, e propor as suas soluções para o problema da miséria dos operários.
Discípulo de Charles Fourier, entrou em contato com a "escola societária" e, em 1854, investiu um terço da sua fortuna numa tentativa
de implantação de uma colônia falanstéria no Texas, EUA.
O Familistério de Godin em Guise, no norte da França,
inspirada nos Falanstérios propostos por Charles Fourier na
sua obra "A harmonia universal e o falanstério".
Os utopistas ou pré-progressistas: Godin

Familistério de Godin em Guise


Os utopistas

O Familistério de Godin foi


uma tentativa de aplicação
das teorias socialistas
utópicas.
Com a intenção de
concretizar suas ideias sócio-
políticas, Jean-Baptiste
Godin decidiu comprar, em
1859, 18 hectares de um
terreno onde mandou
construir um complexo
arquitetônico de habitações
para operários. À medida
que o projeto se foi
consolidando, passou-se a
chamar de Palácio Social a
toda a construção.
Gerido de uma perspectiva
empresarial, ainda que
segundo um espírito
comunitário (de acordo com
as teorias sociais de Saint-
Simon e Owen, além de
Fourier), o familistério durou
até 1968.
Os utopistas ou pré-progressistas
Robert Owen4

Filho de uma família de modestos artesãos, foi operário desde


os 10 anos de idade. Após galgar diferentes degraus da
produção, tornou-se diretor de importantes indústrias
escocesas de fiação em Manchester e, aos 30 anos, era co-
proprietário e gerente de uma fábrica de algodão em New
Lanark, que havia sido fundada em 1785. Ali reduziu a jornada
de trabalho para 10,5 horas diárias — um avanço para a
época, já que a jornada de trabalho de um típico operário
têxtil era de 14 a 16 horas.
Preocupou-se ainda com a qualidade de vida dos seus
empregados, construindo casas para as famílias dos operários,
o primeiro jardim da infância do Reino Unido e a primeira
cooperativa.
Propunha comunidades semi-rurais de 500 até 3.000 habitantes, autossustentáveis.
Considerava a educação obrigatória como o principal instrumento para autonomia dos
indivíduos.

(4) Robert Owen (1771-1858) foi um reformista social galês, considerado um dos fundadores do socialismo e do
cooperativismo. Foi um dos mais importantes socialistas utópicos.
Os utopistas ou pré-progressistas: Owen
Vila modelo de New Lanark, Escócia
• Comunidade de 1.200 habitantes criada em 1799.
• Autossuficiência através do cooperativismo agrícola e industrial.
Os utopistas ou pré-progressistas: Owen

New Lanark é uma vila ao lado do rio Clyde, 40 km a sudoeste de Glasgow na Escócia. A
vila foi fundada em 1786 por David Dale, que construiu moinhos de processamento de
algodão e casas para os trabalhadores. David Dale construiu a vila em parceria com o
inventor e empreendedor inglês Richard Arkwright, tirando proveito da energia potencial
do rio para o processamento do algodão.
A vila foi posteriormente adquirida pelo genro de David Dale, Robert Owen, que constituiu
uma vila utópica fornecendo uma série de benefícios, na época inexistentes, aos
trabalhadores.

Aldeia de New Lanark Moinhos e ponte de vidro.

Detalhe da roda d'água no local


do antigo moinho número quatro.
Os utopistas ou pré-progressistas: Owen
New Harmony, EUA

Criada pela Harmony Society, em 1814, a cidade foi originalmente conhecida como
Harmony. Robert Owen comprou a cidade em 1825, com a intenção de criar um nova
comunidade utópica e rebatizou-a de New Harmony. Foi um fracasso econômico e foi
dissolvida em 1829.
Em 1830 ocorre uma epidemia de
cólera em Londres, estimulando o
crescimento da sensibilidade sobre a
precariedade da qualidade de vida
da população na cidade industrial.
Como decorrência, a década de 1840
foi marcada por um conjunto de
sindicâncias sobre a qualidade de
vida nas maiores cidades inglesas.

A cidade caótica aliada à baixa


qualidade de vida dos trabalhadores
urbanos resulta numa expectativa de
vida, média, abaixo de 30 anos,
decorrente de má alimentação e
pouco descanso. Nesse cenário a
produtividade no trabalho decai
tornando a cidade pouco funcional,
contrariando, com isso, o interesse
do capital.
No final da primeira metade do
século XIX a burguesia tem sua
hegemonia arranhada pela forte
tensão capital x trabalho e com a
ascensão de regimes não liberais na
França, com Napoleão III, sobrinho
de Napoleão Bonaparte, Bismarck
na Alemanha e conservadores na
Inglaterra.
O crescimento das tensões com o operariado urbano, agora se expressando como classe
social, combinada à centralização do poder nesses países, resulta em protagonismo do
poder público para mediar o interesse da maioria da população e agir sobre o espaço da
cidade, claramente disfuncional para a acumulação do capital.
Nesse sentido, em 1848 são aprovadas as primeiras leis sanitárias na Inglaterra, com o
objetivo de levar condições mínimas de salubridade às moradias populares, através da
implantação de redes de água, coleta de esgotos e, mais tarde de redes de eletricidade e
gás, além de melhorias na infraestrutura de circulação.
Nesse contexto o poder público estabeleceu regulamentos e passou a planejar e gerir os
espaços urbanos. Paris e Barcelona irão expressar, a partir do início da segunda metade do
século XIX, essa nova situação.
Higienismo [Ver Apêndices I: Urbanismo e saúde
pública e II: Grandes epidemias da história.]

https://pt.wikipedia.org/wiki/Higienismo

O higienismo é uma doutrina que nasceu na primeira metade do século XIX,


quando os governantes começaram a dar maior atenção à saúde e à moral dos
habitantes das cidades. Considerava-se que a doença era um fenômeno social que
abarcava todos os aspectos da vida humana. A necessidade de se manterem
determinadas condições de salubridade no ambiente da cidade mediante a
instalação de adução e tratamento da água, esgotos, iluminação nas ruas e assim
poder controlar as epidemias foram dando forma a esta corrente.

Até o início do século XIX, as condições de superlotação dos domicílios urbanos e a


pobreza que afetava grande parte da população das cidades provocavam
epidemias agravadas pela desnutrição. Os médicos começaram a denunciar as
condições de vida como causa principal das enfermidades.
Em Viena, o médico J.P. Frank publicou A miséria do povo, mãe de enfermidades, obra
que teve grande repercussão e provocou a adesão de outros médicos, que
contribuíram para introduzir o higienismo na medicina, visando erradicar doenças
como o cólera e a febre amarela.
Higienismo

Até 1850 houve apenas algumas tentativas individuais, sobretudo de médicos, de cuidar
da saúde da população urbana. Buscava-se a origem das doenças em fatores ambientais.
Era necessário proteger três elementos básicos: o ar, a água e o solo. Imaginava-se que
em quantidade e qualidade adequadas, esses elementos poderiam afastar os miasmas,
como se chamavam então os "vapores ou organismos malignos" que, segundo se
acreditava, desprendiam-se dos corpos dos enfermos ou das sustâncias em
decomposição, minando a saúde dos habitantes das cidades.
Assim, o poder público passou a adotar algumas estratégias como aterrar os charcos e
afastar indústrias, matadouros e cemitérios das áreas centrais da cidade.
Posteriormente, o movimento estendeu-se também à esfera privada, proclamando-se a
necessidade de instalar sanitários nas casas, regulamentando-se a altura mínima dos
tetos e as condições de ventilação natural dos ambientes, recomendando-se também a
limpeza periódica das casas.
Higienismo

Logo, a partir das pesquisas de Koch e principalmente de Pasteur, descobriu-se que a


verdadeira causa das doenças estava relacionado a microorganismos e não a
emanações de sustâncias em decomposição. A higiene passa, assim, a ser uma
questão social. As novas teorias fornecem uma base propriamente científica ao
higienismo. Começa a ser feita a análise bacteriológica e o tratamento da água com
cloro. Instalam-se redes de esgotos, banheiros públicos, realiza-se a coleta de lixo,
utilizam-se escarradeiras contra a tuberculose, entre outras medidas de profilaxia.
As teorias higienistas tiveram grande influência sobre o urbanismo numa época em
que as cidades se industrializavam. Muitos arquitetos, urbanistas e governantes,
aderiram às novas teses. Tratava-se sobretudo de abrir as cidades intra muros. O
higienismo, assim, evolui para o sanitarismo urbanista, iniciando-se no mundo um
processo inédito de reabilitação das cidades para compatibilizar a funcionalidade
requisitada pela indústria com novos padrões de habitabilidade que afastassem as
deseconomias resultantes da urbanização selvagem. O plano Haussmann para Paris
implantado entre 1853 e 1869 e o plano de Cerdá para Barcelona, implantado a partir
de 1860 são emblemáticos desse novo momento, que irá viabilizar a cidade como
espaço privilegiado de reprodução do capital, apoiado numa nova ciência emergente:
o urbanismo.
Plano Haussmann / Paris

https://historiaartearquitetura.com/2018/11/01/a-
paris-de-haussmann/

A cidade de Paris foi uma cidade labiríntica de agitadas ruas medievais com traçado
urbano que remonta aos tempos dos gauleses e romanos, quando ainda se chamava
Lutécia. Ela teve seu traçado urbano remodelado completamente em meados do século
XIX, durante o governo do imperador francês Napoleão III. Este nomeou, para seu chefe
de Departamento de Paris, George-Eugène Haussmann, o grande responsável pela
reforma urbana. Haussmann era administrador público e não tinha formação em
arquitetura ou planejamento urbano. Paris era uma cidade insalubre e malcheirosa em
1853, quando o imperador deu instruções a Haussmann para reconstruir a cidade com
grandes avenidas e rede de esgoto. Para isso, regiões inteiras deveriam ser demolidas e
requalificadas. O desejo de Napoleão III e Haussmann era fazer de Paris uma nova Roma.
O antigo general governante que se fez imperador, Napoleão Bonaparte, tio de Napoleão
III, havia iniciado a construção do Arco do Triunfo, depois da vitória em Austerlitz, em
1805, que se mantem como um dos símbolos mais famosos da França.
Plano Haussmann

Detalhe do traçado na nova


avenida da Ópera e as
demolições que seriam
realizadas.

Dois fatores foram decisivos para dar começos às obras. O primeiro era evitar futuros
levantes revolucionários, como os de 1827, 1849 e 1851, quando foram levantadas
barricadas na cidade, e devido à reação armada da esquerda e dos operários contra o
desejo de Napoleão III de continuar no poder, não mais como presidente eleito
diretamente nas eleições da Segunda República, proclamada em 1848, mas como
imperador dos franceses. As largas avenidas e boulevares tinham um objetivo
importante dentro do contexto das revoluções do século XIX. As amplas vias
permitiam que tropas do governo se movimentassem livremente para manter a
ordem em tempos revolucionários, de forma a evitar as barricadas e demais
distúrbios. Os exércitos e a polícia podiam posicionar suas artilharias de forma a
conter as aglomerações que porventura pudessem ocorrer.
Plano Haussmann

O outro fator determinante foi uma segunda epidemia de cólera que resultou em
dezenove mil vítimas, aproximadamente. Com o traçado medieval da cidade, as casas eram
amontoadas e insalubres, as ruas eram estreitas e os funestos sistemas de esgotos corriam
muitas vezes a céu aberto, juntando-se a superpopulação do centro da cidade. Essa
insalubridade, revoltas e péssimas condições de vida foram tema da grande obra de Victor
Hugo, Os Miseráveis. Um pouco antes, como nos recorda Louis Mumford, em A cidade na
história, Londres já vinha promovendo investimentos públicos significativos em obras
preventivas nas margens do rio Tamisa, que estavam putrefatas e contaminadas.
Em Paris, o plano incluía a demolição de cerca de dezenove mil prédios históricos e a
construção de outros trinta e quatro mil novas edificações. As antigas ruas foram
substituídas por amplas vias, de arquitetura eclética e neoclássica, em tons pastéis,
alinhados e dentro de proporções uniformizadas. Foram construídos grandes parques, um
novo sistema de esgoto, um novo aqueduto para a água potável, rede de gás subterrâneo
para iluminação pública e privada, fontes e banheiros públicos. Novas estações de trem
foram construídas, bem como o ícone do ecletismo mundial, a Opera de Paris. As avenidas
radiais, saindo do Arco do Triunfo, caracterizam o plano de Haussmann.
Plano Haussmann. L`etoile: avenidas irradiadas a partir do arco do triunfo, de Napoleão.
Paris, depois de Haussmann.
Plano Haussmann
São abertos parques e jardins públicos: Jardin des Tulleries, Palais Royal, Parc Montsouris.
Surge a figura do quarteirão que é determinado pelo sistema viário – neste caso o
quarteirão é residual, configurado a partir do que ‘sobra’ depois de definido o traçado
viário, tornando-se um elemento complexo formado por lotes de formato irregular. São
definidas leis de ocupação: cada lote é perpendicular à rua e não tem a mesma medida
padrão; os edifícios passam a ter leis de padronização para as fachadas; a tipologia
urbana segue um catálogo pré-definido, passam a ter unicidade arquitetônica; as galerias
e passagens passam a ter função comercial – multifuncionalidade do quarteirão e
abrigam cafés e lojas. São definidas áreas especiais para as estações ferroviárias.

Ìlle de la citè

Divisão de Paris em 20 arrondissements


Rio Sena (distritos) – a linha mais grossa define o
antigo cinturão alfandegário do século XVIII.
Plano Haussmann

A Ìlle de la Cité se transforma no


coração da cidade, passando a ser uma
área militar e administrativa. Na
reforma de Paris, foram destruídos 49
Km de ruas estreitas antigas,
construídos 165 Km, de novas vias, foi
implantado o sistema de esgoto
(considerado até hoje um dos
melhores do mundo e que atende à
cidade toda).
A Paris de Haussmann, é a Paris que
conhecemos hoje.

Palácio parisiense construído na época de


Haussmann – padronização de fachadas..
Plano Haussmann

Rue des Moineaux


em 1860 antes da A Avenue de
abertura da Avenue l’Opéra na
de l’Opéra. atualidade.

Haussmann transformou Paris em vinte anos, quando foi forçado a deixar o cargo em
1870. Seus projetos continuaram sendo seguidos até os anos 1920. Porém, Haussmann
também foi criticado, pois demolira a Paris antiga e tradicional, não sendo poupado por
críticos, jornalistas e desenhistas de sua época. Os projetos de Haussmann foram sem
precedentes pelo fato de ter conseguido resultados com padrões elevados e uniformes em
tão pouco tempo, dentro do contexto do ecletismo da segunda metade do século XIX. A
altura padrão não ultrapassava seis andares. Foram abertos espaços para os parques
públicos e estações de trens dentro da cidade. Edifícios históricos importantes foram
preservados, como as igrejas antigas. Uma das obras primas foi a construção da Ópera por
Charles Garnier, inaugurada em 1875, um dos mais emblemáticos edifícios da arquitetura
eclética francesa. Diversas cidades seguiram o modelo de Paris, como Buenos Aires, Rio de
Janeiro, Nova York e Belo Horizonte.
Cerdá / Plano de expansão de Barcelona
https://arquitetandoblog.wordpress.com/2009/05/29/idelfonso-cerda-plano-de-
expansao-de-barcelona/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_Cerd%C3%A1#/media/Ficheiro:Eixample_aire.jpg

Idelfonso Cerdá (1815-1876) possuía formação em Engenharia com aprofundamento


em sistema viário. Em 1854, propõe o plano para expansão da cidade de Barcelona, na
Espanha onde defende a ideia de projetar ao máximo os limites da cidade. A concepção
morfológica de seu plano é baseada na reforma de Paris, com avenidas largas.
Cerdá escreve o primeiro Tratado sobre Urbanização onde faz uma análise urbana da
cidade. Neste Tratado, discorre sobre temas como a capacidade das edificações, o
funcionamento viário, a circulação e a clareza do traçado.
Pla Topogràfic de Cerdà 1855
Cerdá / Plano de expansão de Barcelona

Plano de um conjunto de
dois quarteirões da trama
Cerdá extraído de um
folheto publicado em
1863. Corresponde ao
setor localizado entre a
Gran Vía e a Diputación, e
entre Roger de Lauria e
Gerona, então nomeado
com letras e números: M
y N, 31, 32 y 33.

Para o concurso do Plano de Barcelona, realiza estudo topográfico da área considerada


para a expansão, idealiza esquema de urbanização com vegetação, leva em
consideração o clima da região, dando início a esse tipo de estudo nos projetos
urbanísticos. Na sua forma de pensar o urbanismo, preocupa-se em como pensar a
cidade e no que pensar primeiro destacando conceitos fundamentais como:
homogeneidade, coerência espacial, circulação, convívio social (enfatizando a
preocupação com quem vai habitar a cidade). Além desses aspectos, Cerdá realiza
estudo de qualidade ambiental e adota traçado retilíneo.
Cerdá / Plano de expansão de Barcelona

Evolução da estrutura das quadras


desde o Plano até o presente.

Design e agrupamento das quadras.

Evolução da altura dos edifícios.


Cerdá / Plano de expansão de Barcelona

Diagrama da operação dos cruzamentos


incluídos no Plano Cerdá.

Esquema da luz
Dimensões das
solar nos
quadras
quarteirões.
padronizadas.
Cerdá / Plano de expansão de Barcelona

Seção de rua da expansão,


como apareceu no projeto.

O Plano para Barcelona foi colocado em prática e, essa é a primeira vez que se utiliza o
termo ‘urbanização’. Cerdá cria uma metodologia processual enfatizando aspectos
relacionados à questão da coordenação dos aspectos espaciais e físicos, funcionalidade,
destacando relações sociológicas, econômicas e administrativas da cidade; lembrando
que vários fatores influenciam a cidade e isso define quais serviços deverão ser
fornecidos. A partir desses aspectos, fez uma relação dos edifícios com o número de
usuários (exemplo: hospital para tantas pessoas que moram perto do edifício). Cerdá
concebe, assim, o conceito de Unidade de Vizinhança , que iremos encontrar quase um
século depois em Brasília. Em relação à tipologia a ser adotada, Cerdá defende que
deveria ter uma única fisionomia, com ocupação periférica do lote e o miolo sendo
utilizado para jardins. Os edifícios deveriam ter sempre o mesmo gabarito de altura e
chanfrados nas quinas.
A proposta multiplica a cidade em quase seis vezes. Cerdá adota traçado quadriculado,
cria no centro uma grande diagonal que corta todo o tecido da cidade com uma avenida
que tem quase seis vezes o tamanho do antigo núcleo. Não se preocupa em criar um
centro administrativo, pois para ele, o território tem que ser homogêneo e todos os
locais devem possuir o mesmo valor. Não concentra prédios públicos e administrativos,
espalha por toda a cidade os edifícios destinados a essas funções, valorizando por igual
os setores e bairros. “Congela” a cidade medieval e só prolonga a avenida ligando-a aos
bairros novos projetados, descartando assim, qualquer tipo de demolição ou
desapropriação do antigo núcleo, enfatizando a preservação do lugar.
Cria áreas de parques e permeia todo o plano por praças e parques. Cria uma grelha
ortogonal definida em estruturas rígidas que se desenvolvem a partir de módulos
quadrados (grelha 9×9 –com várias formas de ocupação), cria hierarquia de vias
relacionando-as diretamente à tipologia habitacional, com limite de ocupação da
quadrícula.
A circulação representa um meio fundamental de facilitar o contato e a relação entre
pessoas e o quarteirão, produz uma ruptura formal com a ocupação periférica das
quadras. A ocupação da superfície é definida a partir da habitação, que deve ocupar no
máximo 2/3 da área do quarteirão, o restante do terreno deve ser ocupado apenas por
jardins. Define duas formas de ocupação periférica do lote: em forma de L ou de U.

Ildefonso Cerdà, Plano para


Barcelona, 1859. Ilha-tipo.
Fonte TARRAGÓ CID, Salvador.
Catálogo da exposição Cerdà
Entre 1876 e 1886 ocorre o desenvolvimento da expansão da cidade. A especulação
imobiliária faz pressão e a quadrícula definida por Cerdá, passa a ser ocupada
totalmente fugindo do plano inicial e descartando as áreas verdes internas, destinadas
aos jardins.

Barcelona atual.
Tony Garnier

https://pt.wikipedia.org/wiki
/Tony_Garnier
Tony Garnier. Grandes matadouros do Mercado de la Mouche 5(1906 - 1932)

Tony Garnier ( 1869 - 1948) foi um arquiteto e urbanista francês que, em 1904, elaborou
um projeto de cidade para Lyon, como Trabalho de Conclusão de Curso. Seu projeto foi
publicado em 1919 com o título A Cidade Industrial. Além de ser uma proposta ousada,
pela primeira vez na história alguém fazia um projeto utópico detalhado de uma cidade
industrial. A setorização foi um dos princípios que nortearam sua proposta urbanística,
dessa forma as áreas de indústria, habitação, lazer, cultura, administrativo
(governamental), seriam instâncias bem delimitadas no espaço de sua cidade. Garnier
pertence ao grupo de teóricos do urbanismo intitulados como utópicos ou utopistas.
(5) O desenvolvimento do projeto durou dois anos e meio. Este complexo programa tem duas funções: matadouros e um mercado de
gado. Organização horizontal, separação de funções, racionalização da circulação, são os princípios que orientam o estabelecimento do
plano global em um vasto terreno de 23.000 m2. Os edifícios são organizados de acordo com dois eixos ortogonais, formados pela rua
coberta e pelo corredor, na direção das operações: estação, cais, estábulos, mercado, matadouros, salas de abate e serviços. Desde 1914,
os matadouros de La Mouche foram unanimemente aclamados pelos críticos como uma das realizações contemporâneas mais inovadoras
e contribuíram fortemente para a notoriedade de Garnier.
Tony Garnier

Principais características das proposições urbanísticas de Tony Garnier:

• A maioria das cidades seria organizada em torno e em função da indústria;


• Preocupação com a salubridade;
• Áreas verdes entre as casas e caminhos de pedestres fora das vias de circulação de
veículos;
• Traçado da cidade através de linhas retas;
• Estabelecimentos públicos localizados no centro da cidade;
• Escolas distribuídas pela cidade, junto a setores comunitários e proposição de
escolas profissionalizantes voltadas às demandas de mão de obra da indústria; e
• Conceito de polo industrial cercado por cinturão verde.

Para dispor as construções na cidade buscou-se levar em conta as necessidades


materiais e morais do indivíduo, então se criou regulamentos para manter a qualidade
de vida humana.
As divisões da casa deveriam corresponder aos regulamentos e cada habitação
deveria dar acesso para a construção localizada atrás, criando um passeio público que
permitiria o acesso em qualquer sentido desejado dentro da cidade.
Tony Garnier

Normas gerais:

• Na habitação os dormitórios devem ter pelo menos uma janela orientada para o
sul, bastante grande para que haja luz no cômodo todo;
• Os pátios maiores e menores, quer dizer, os espaços, fechados por paredes, que
servem para iluminar ou para arejar, estão proibidos. Qualquer espaço deve ser
iluminado e ventilado pelo exterior;
• Dentro das habitações, as paredes, o chão, etc., serão de materiais lisos, com os
ângulos arredondados.
• Lotes definidos em 15 x 15m, sempre com um dos lados dando pra rua.
• A superfície construída deve ser sempre inferior à metade da superfície total.
• Não deve haver muros separando os lotes.
• O solo da cidade é visto em conjunto, como um grande parque.
• O espaço entre duas habitações é pelo menos igual à altura da construção situada
ao sul.
• Ruas ortogonais, sentido norte-sul e leste-oeste. Há hierarquia entre as vias.
Tony Garnier
Esquema de zoneamento da cidade industrial de Tony Garnier
Tony Garnier - Habitação padrão bairro operário
Tony Garnier - Vista de quadra residencial, casas padronizadas sem muros.
Tony Garnier - Cité Industrielle (1901-1904)

Em Lyon suas primeiras incumbências foram o seu famoso projeto de abatedouros, um


grande hospital, um estádio municipal, uma exposição internacional. E em 1917 teve
este trabalho publicado em dois volumes, com 164 pranchas, sob o título Une cité
industriel - Étude pour La Construccion des Villes.
Ebenezer Howard
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ebenezer_Howard

Foi um pré-urbanista inglês. Tornou-se


conhecido por sua publicação Cidades-Jardins
do Amanhã (Garden Cities of Tomorrow), de
1898, na qual descreveu uma cidade
utópica em que pessoas viviam
harmonicamente juntas com a natureza. A
publicação resultou na fundação do movimento
das Cidades-Jardins. As primeiras experiências
práticas ocorreram na Inglaterra, no início do
século XX. Em 1902 seu trabalho foi reeditado
com o título Garden Cities of Tomorrow.
Howard em seus estudos, formulou a seguinte
questão: “Para onde as pessoas irão?” Então,
considerou três possibilidades, como resposta:
a cidade inchada, o campo vazio, ou a cidade-
campo.
Ebenezer Howard
O propósito de Howard se apresenta segundo a concepção dos três magnetos, a seguir:
Ebenezer Howard
Para Howard as cidades-jardim deveriam ser autossuficientes e alcançar equilíbrio entre
indústria e agricultura. Propunha que 1/6 do território fosse ocupado por moradias e
indústrias e o restante destinado à agricultura, localizando em torno do núcleo urbano,
um cinturão verde, de produção agrícola.
Arranjo de pequenas
comunidades articuladas.
A cidade deveria ter
uma estrutura
radial, com 6
grandes boulevards
em direção ao
centro.
Ebenezer Howard
Letchworth, Inglaterra (1904)

Em 1899 Howard funda a Associação


das Garden Cities.
Em 1903 adquire Letchworth, e
convida os arquitetos Parker e
Umwin para projetar uma cidade,
que atingiu grande êxito, chamando
a atenção dos jornais de Londres.
A atmosfera na cidade era diferente
das cidades convencionais,
alcançando 26.000 habitantes em
1962.
Ebenezer Howard
Welwyn, Inglaterra (1920)
Welwyn / padrões urbanos
Welwyn
Arturo Soria y Mata A CIDADE LINEAR • tem como
característica mais marcante o
desenvolvimento em linha,
geralmente com uma via central que
funciona como estrutura principal, em
torno da qual se desenvolvem ramos
secundários. • está ligada em muitos
aspectos à questão do transporte e a
crescente importância ao sistema
viário no planejamento da cidade
industrial • Em sua concepção inicial,
Nasce em Madrid • Ele foi educado de com Soria y Mata, esteve ligada ao
maneira autodidata. • Em 1882, o primeiro movimento higienista e de igual
artigo de Arturo Soria sobre o imaginário da maneira à questão dos bairros
cidade-linear é publicado • A partir de 1886 operários . • Desde a década de 1880,
dedicou-se a este projeto, sob a influência das Soria y Mata acreditava que sua
ideias de Spencer e Ildefonso Cerdá. • Suas cidade poderia se estender pelo
ideias foram construídas como bairro território se ligando a outras e até a
experimental na periferia de Madrid, diferentes países, em uma grande
Espanha, em 1894. rede urbana.
Projeto inovador, resolveria os problemas de higiene, superlotação e transporte das
cidades. Consistia de:
• Construção de uma cidade a partir de uma ou mais cidades puntiformes existentes;
• Rede de triangulação formada entre os interstícios, dedicada às indústrias e
agricultura.

Teoria das cidades lineares


Exemplo de uma cidade linear integrando duas
cidades aglomeradas, ou seja, uma Cidade Linear
moderna unindo duas cidades pontuais antigas.
Exemplo de proposta de projeto:
Rua central com largura mínima de 40 metros e em seu centro com uma estrada de ferro
elétrica.
Nesta rua central seriam concentrados os serviços públicos para os cidadãos e as casas
dos moradores.
Arturo Soria y Mata

Em 1894 tem início a


construção de um anel
ferroviário no entorno de
Madrid. Dificuldade para a
desapropriação de terras
implica na perda da
regularidade do projeto e
dificuldades financeiras,
forçam redução a 5 km do
experimento.
A noção de cidade linear foi utilizada no modernismo a partir do final da década de 1920
embora a interpretação da cidade linear varia segundo cada um dos autores.
Ernst May desenvolve a relação cidade/indústria proposta por Miliutin no seu projeto
para a cidade soviética de Magnitogorsk.
No pós-guerra Lúcio Costa adota o partido linear no desenvolvimento do plano piloto de
Brasília e depois na Barra da Tijuca.
Kenzo Tange, em 1960, apresenta um plano monumental de cidade sobre a baía de Tóquio.
Apêndice I: Urbanismo e saúde pública
Como as epidemias moldaram o urbanismo das metrópoles ocidentais

Anne Chemin, reportagem publicada por Le Monde, 20-06-2020. (tradução de André Langer).

A Covid-19 modifica a face das cidades. E não é a primeira vez que isso acontece:
desde Hipócrates, saúde e habitação nunca deixaram de dialogar.
Será que um dia seremos capazes de identificar a crise global ligada à Covid-19 na
fisionomia das cidades? Ela deixará marcas nas faixas de pedestres, na largura das calçadas
ou no número de ciclovias? Modificará a maneira como percorremos diariamente a cidade?
Esta é a esperança de todos aqueles que, diante do coronavirus , invocam as virtudes do
urbanismo. Criação de ciclovias, estreitamento das pistas de rolamento, ruas adaptadas aos
pedestres: para incentivar os moradores a respeitarem o princípio do distanciamento físico,
muitos prefeitos, em Paris, Winnipeg (Canadá) ou na Cidade do México, estão desenhando
com pequenos toques uma nova trama urbana. Para circular sem entrar em
contato, Bogotá implantou, assim, no auge da crise, 117 quilômetros de ciclovias. Nova
York e Calgary (Canadá) fecharam avenidas para a circulação de veículos,
enquanto Auckland (Nova Zelândia) e Milão (Itália) prometeram ampliar as
calçadas. Paris não deve ficar para trás: a prefeita Anne Hidalgo propõe aumentar o número
de ruas e faixas de pedestres reservadas para bicicletas. Porque exige espaço, a Covid-19
remodelou, em poucos meses, delicadamente o urbanismo das grandes metrópoles do
planeta: com a pandemia, arranjos que ontem pareciam ousados se tornaram realidade.
Apêndice I

Esse diálogo frutífero entre a medicina e a habitação é muito antigo. “A saúde tem sido
um determinante importante no nascimento do urbanismo”, resume o arquiteto Albert
Lévy, pesquisador do Laboratório de Arquitetura, Cidade, Urbanismo e Meio Ambiente
(Lavue, CNRS), autor de Ville, urbanisme et santé. Les trois révolutions (Ed. Pascal,
2012).
Desde o século V a.C., Hipócrates explora, no tratado Des airs, des eaux et des lieux, as
relações entre doenças e meio ambiente. “Para aprofundar a medicina, é preciso
primeiro considerar as estações do ano, conhecer a qualidade das águas, dos ventos,
estudar as várias condições do solo e o modo de vida dos habitantes”, escreve o médico
da Antiguidade.
Para o filósofo Thierry Paquot, esse tratado é o primeiro vestígio do diálogo entre a
saúde e a cidade. “Ainda não se trata de uma epidemia e menos ainda de urbanismo –
essa palavra só será inventada no final do século XIX, na Espanha, para entrar na nossa
língua em 1910 –, mas Hipócrates é o primeiro a prestar atenção à dimensão sanitária
do habitat. Segundo ele, é necessário afastar-se de terrenos fétidos e inférteis, pois
podem causar doenças. Também deve ser dada prioridade a fontes de água de
qualidade e locais arejados, pois a brisa expulsa os miasmas. A saúde, para os gregos, é
mais do que um bem-estar físico: é uma harmonia com o cosmos”.
Importância da qualidade do ar Apêndice I
Quatro séculos mais tarde, os trabalhos realizados em Roma por Augusto mostram que
as preocupações com a saúde alimentavam a reflexão sobre a cidade desde o início da
era cristã. Para evitar que as ruas se transformassem em “caldo de cultura”, nas palavras
de Françoise Biotti-Mache, o imperador construiu aquedutos, fontes, reservatórios e
torres de água. Graças ao “nível de higiene que os banhos termais e os esgotos mantêm
na população”, as epidemias começam a ficar mais raras, relata a historiadora, em 2010,
em um artigo publicado na revista Études sur la mort.
Após um longo eclipse, as ideias hipocráticas renascem timidamente na Idade Média. Na
esteira de Hipócrates e de seu colega Galeno, os médicos do século XIII insistem na
importância da qualidade do ar na prevenção de doenças: os “miasmas”, essas
emanações mefíticas que reinam na cidade medieval, são responsáveis por todas as
patologias. “Conforme o ar é bom ou deteriorado, as cidades são saudáveis ou doentes”,
resume o médico Aldebrandin de Siena, em sua Régime du corps, obra composta em
1256.
Em um mundo marcado pela renovação urbana, os médicos começam a se interessar
pelos problemas de saúde da cidade. As características “tectônicas e meteorológicas” dos
locais permitem, segundo eles, definir suas “predisposições mórbidas”, nas palavras do
historiador François-Olivier Touati. “A cidade acha um meio para se integrar nas
considerações mais amplas sobre a qualidade emprestada aos locais, de acordo com a
exposição ao sol e aos ventos, a altitude, a natureza do solo, a disposição dos relevos
circundantes, a proximidade marinha ou lacustre”, escreve em um artigo publicado em
2000 pela revista Histoire Urbaine.
Água corrente e evacuação dos resíduos Apêndice I
Devastadas pela peste a partir de 1347, as cidades medievais eram cloacas
nauseabundas, onde assolavam a disenteria e o tifo. Touati resume sua insalubridade em
algumas imagens: a queda fatal, em 1131, do herdeiro designado pelo rei da França,
porque seu cavalo tropeçou em um porco em um subúrbio de Paris; a repulsa, em 1186,
de Philippe Auguste que, debruçado sobre uma janela de seu palácio parisiense, decidiu
pavimentar as ruas fedorentas da capital; a leitura etimológica do monge Rigord, que, no
século XII, acreditava que Lutèce significa “cidade do lodo” (em latim lutum).
Ninguém sabe ainda como as doenças infecciosas são transmitidas, mas todos
pressentem que a cidade deveria ceder àquilo que ainda não é chamado de higiene. A
partir do século XI, os ofícios mais poluentes – açougueiros, curtidores, lavadores de lã,
tintureiros, escamadores e vendedores de tecidos – foram convidados a se estabelecer
nos subúrbios. Essa reorganização espacial, prossegue Touati, faz da “água corrente (rio
ou córrego) o principal meio de evacuação do lixo, direcionando os habitantes para
outras fontes de alimentação destinadas ao uso doméstico: poços, fontes, tanques”.
No século XIII e no início do século XIV, esse esforço em favor da evacuação dos resíduos
se acentua. “Regulamentos municipais e corporativos, ordenamentos reais ou senhoriais
ordenam a limpeza “na frente da (sua) casa”, o desbloqueio de canais e sarjetas e o
depósito do lixo em “montes de lixo” um pouco separados”, sublinha Biotti-Mache.
Interrompido pela Guerra dos Cem Anos, o movimento foi retomado no século
XVI: Francisco I retomou e continuou a pavimentação de Paris por iniciativa de Philippe
Auguste, proibiu a criação de porcos nas ruas e ordenou a escavação de fossas debaixo
dos prédios para nelas depositar o lixo.
“Higienismo” Apêndice I
No entanto, foi senão no final do século XVIII, e especialmente no século XIX, que o
“higienismo” triunfou. As condições insalubres das cidades atingiram seu auge: com a
revolução industrial, a poluição das oficinas e fábricas instaladas em áreas urbanas somou-
se à sujeira doméstica. “O amontoamento de trabalhadores em ambientes insalubres
favorece o desenvolvimento de epidemias que a medicina não consegue conter – cólera,
varíola, sarampo, escarlatina, febre tifoide”, destaca Albert Lévy.
Esse desastre sanitário acaba preocupando os Estados. “No final do século XVIII, as elites
políticas estão cada vez mais preocupadas com o estado de saúde da sua população,
enfatiza Stéphane Frioux, mestre de conferências em história contemporânea
na Universidade Lyon-II. ‘Não há riqueza que não venha dos homens’, disse no século XVI o
filósofo Jean Bodin. O ditado é ainda mais verdadeiro dois séculos depois, no início da
revolução industrial! A França, que precisa de uma mão de obra saudável para desenvolver
sua economia, esboça uma política sanitária: em 1778, foi criada uma Sociedade Real de
Medicina”.
Se a guerra contra as doenças infecciosas é declarada, no início do século XIX, nada
sabemos sobre bactérias e bacilos que só serão descobertos por Louis Pasteur e Robert
Koch no final do mesmo século. Os médicos pensam, como Hipócrates, que as doenças
circulam no ar: para combater as epidemias, é necessário caçar os miasmas, dispersar os
odores mórbidos, favorecer a circulação do vento. “Essa luta obsessiva contra a corrupção
do ar estava presente entre os utópicos do século XIX, observa Thierry Paquot.
O Familistério, fundado por André Godin em Guise, no norte da França, possui assim um
elaborado sistema de ventilação natural”.
Apêndice I
A partir do final do século XVIII, esse “neohipocratismo” influenciou profundamente a
organização das grandes cidades ocidentais. “A arquitetura então adota crenças
espacialistas, sublinha Lévy. O espaço e o meio ambiente são usados como pharmakon,
isto é, remédios para prevenir ou até curar doenças infecciosas. Essa reviravolta foi iniciada
pelo arquiteto francês Pierre Patte: em um tratado publicado em 1769, ele estabeleceu os
primeiros marcos de uma preocupação com o saneamento das cidades, que seria o credo,
algumas décadas depois, do Barão Haussmann [1809-1891].

“A invenção das redes”


“Em Lyon, o arquiteto Jacques-Germain Soufflot instalou uma cúpula central no topo
do Hôtel-Dieu para facilitar a renovação do ar, acrescenta Stéphane Frioux. Para combater
os miasmas, muitas autoridades urbanas decidiram mudar os cemitérios e abrir parques
ou calçadas, como em Londres. Eles também procuram impermeabilizar as ruas para
impedir a estagnação das matérias orgânicas – a palavra “macadame” faz referência ao
nome do engenheiro escocês [John Loudon McAdam] que inventou esse tipo de
pavimento, por volta de 1820”.
Essa aliança entre a medicina e a cidade está no centro das políticas implementadas no
século XIX pelos prefeitos do Sena. Sob a Monarquia de Julho, o conde
de Rambuteau (1781-1869) adere a um ideal higienista que será adotado por Haussmann.
Apêndice I
“A doutrina é simples: nada deve estagnar, os fluxos devem circular constantemente,
continua Albert Lévy. Para que a cidade seja ventilada, o ar deve passar por amplas
avenidas e grandes jardins, e não mais por ruelas estreitas. Para evitar a putrefação das
matérias orgânicas, responsável por miasmas mórbidos, o lixo deve ser coletado e a água
das ruas evacuada rapidamente para canaletas laterais e esgotos: é a invenção das redes”.
Esses trabalhos de higiene, que transformam a fisionomia das grandes cidades, reduzem
muito as doenças infecciosas, mas não acabam com todas as epidemias. No início do século
XIX, o cólera provocou estragos: em 1832, causou mais de 100 mil mortes – incluindo a do
presidente do Conselho, Jean Casimir-Perier. A luta contra esse mal vindo do subcontinente
indiano sela a parceria entre a saúde e a organização o da cidade: porque destrói as ilhotas
insalubres do centro histórico da capital, a epidemia inspira uma política de reabsorção dos
casebres operários, o que transforma a paisagem parisiense.

Luta contra as condições insalubres


Em Paris, a geografia do cólera confunde-se de fato com a da pobreza. “A distribuição das
mortes por profissão é um índice em 1832, mas a confirmação era óbvia em 1849: as
categorias mais modestas (porteiros, alfaiates, sapateiros, diaristas, classificadores,
limpadores de chaminés, pedreiros, etc.) são as mais afetadas”, constata René Le Mée, em
artigo publicado em 1998 pela revista Population. “Em nossas cidades, o que resta da Idade
Média, essas ruas pequenas e tortuosas, esses armários estreitos, essas câmaras
mortíferas, ainda são os focos de todas as nossas epidemias”, escreveu em 1838 um médico
do Hospital da Piedade.
Apêndice I

Para combater a insalubridade, o governo de Cavaignac criou, em 1848, um Comitê


Consultivo de Higiene Pública da França, que abrigou um dos fundadores da medicina
social francesa, Louis René Villermé. Dois anos depois, a Assembleia adotou por
unanimidade uma lei que obrigava os proprietários, sob pena de multa, a reformar as
casas de aluguel. “Desde que se passou a atribuir a disseminação do cólera a miasmas ou a
emanações ou a gases nocivos, é evidente que se torna necessário interessar-se, nas áreas
urbanas primeiro, pelas condições insalubres que geram focos infecciosos”, continua Le
Mée.
Ninguém ainda sabe disso, mas esse urbanismo higienista baseia-se em uma ilusão médica
que não se dissipará senão no final do século. A partir da década de 1860, o francês Louis
Pasteur e o alemão Robert Koch mostram que as epidemias não “flutuam” no ar, como
imaginava Hipócrates, mas que estão ligadas a agentes infecciosos que se transmitem com
mais frequência durante os contatos.
Apêndice II: Grandes epidemias da história
Grandes epidemias e pandemias marcaram a história da humanidade, em todos os
períodos, e dizimaram diferentes povos. Neste texto, vamos mostrar algumas epidemias e
pandemias que atingiram o homem na Antiguidade, no Medievo e na fase contemporânea
da história, bem como as suas consequências.

Pandemia x epidemia
Antes de conhecermos as epidemias e pandemias que marcaram a história mundial, é
importante nos atentarmos para as diferenças entre os conceitos de epidemia e
pandemia. Uma epidemia faz referência a doenças que se disseminaram por uma região
geográfica limitada, como uma cidade. Já o termo pandemia é utilizado para se referir a
uma doença que se espalhou por um espaço geográfico muito grande, como um
continente.

Grandes epidemias e pandemias da história


A história da humanidade não é marcada apenas pelos grandes impérios, grandes guerras
e o avanço material e tecnológico do homem no tempo, mas também pelas grandes
doenças que afetaram os mais diversos povos.
As epidemias e pandemias que aconteceram e foram registradas ao longo da história
causaram momentos de grande tensão e foram catalisadores de transformações em
alguns casos. São acontecimentos que colocaram sociedades inteiras sob ameaça e, por
isso, são objetos de estudo dos historiadores. Vamos conhecer algumas delas?
Apêndice II
Peste de Atenas (430-427 a.C.)
A partir do verão de 430 a.C., a cidade de Atenas, uma das grandes cidades da
civilização grega, foi atingida por um surto epidêmico. A epidemia foi registrada pelo
grego Tucídides, historiador que também relatou a Guerra do Peloponeso. A doença
teve um grande surto entre 430-429 a.C., enfraqueceu-se durante 428 a.C. e ganhou
força novamente a partir de 427 a.C.

Os relatos deixados por Tucídides falam que a doença iniciou-se na zona portuária de
Atenas e espalhou-se pelo resto da cidade. Os casos começaram a aparecer bem no
início da Guerra do Peloponeso e tiveram um efeito fulminante nas tropas atenienses.
O autor J. N. Hays fala que uma tropa de Hoplitas formada por 4 mil homens presenciou
a morte de 1.050 deles|1|.
Dado o contexto em que essa doença se iniciou em Atenas, os estudiosos do assunto
chegaram à teoria de que a grande circulação de pessoas por causa da guerra facilitou a
disseminação da enfermidade. Os sintomas foram descritos por Tucídides:

[…] Em geral, o indivíduo no gozo de perfeita saúde via-se subitamente preso dos seguintes sintomas: sentia em
primeiro lugar violenta dor de cabeça; os olhos ficavam vermelhos e inflamados; a língua e a faringe assumiam
aspecto sanguinolento; a respiração tornava-se irregular e o hálito fétido. Seguiam-se espirros e rouquidão.
Pouco depois a dor se localizava no peito, acompanhada de tosse violenta; quando atingia o estômago,
provocava náuseas e vômitos com regurgitação de bile. Quase todos os doentes eram acometidos por crises de
soluços e convulsões de intensidade variável de um caso a outro. A pele não se mostrava muito quente ao tato
nem também lívida, mas avermelhada e cheia de erupções com o formato de pequenas empolas (pústulas) e
feridas|2|.
Apêndice II

Acredita-se que a doença nunca tinha atingido a cidade de Atenas, haja vista a
violência pela qual ela acometeu a população local. Existem alguns estudiosos que
afirmam que a enfermidade teve grande impacto nas mulheres grávidas. Os relatos de
Tucídides deixam a entender que o desespero da população criou um quadro de
desrespeito às leis e, à medida que as preces religiosas não eram atendidas, a religião
também começou a ser alvo desse desrespeito.
Apesar de ter sido conhecida como “peste de Atenas” e o nome sugerir que se tratou
de um surto de peste bubônica, os estudiosos sugerem que a doença que atingiu a
cidade grega não foi essa. Um estudo conduzido no começo do século XXI com base
em ossadas de uma vala comum encontrada chegou à conclusão da ocorrência de
febre tifóide, mas há outros estudos que apontam a ocorrência de tifo.
Existem ainda teorias que sugerem doenças como varíola e sarampo e que até 35% da
população ateniense possa ter morrido|1|. Acredita-se, também, que a doença possa
ter se disseminado para outros locais a partir de Atenas. Outras pestes aconteceram na
Antiguidade, como a peste de Siracusa, em 395 a.C., e a peste Antonina, que atingiu
Roma em 166 d.C.
Apêndice II
Peste negra (1347-1353)
As epidemias e pandemias não ficaram reclusas à Antiguidade e estenderam-se por
outros períodos também, como a Idade Média. Esse período da história
presenciou uma das maiores pandemias da humanidade, a de peste bubônica, que
recebeu o nome de peste negra e é tradicionalmente conhecida por ter dizimado, pelo
menos, cerca de 1/3 da população europeia.
A peste negra designa uma doença transmitida para os seres humanos por meio
de pulgas de ratos contaminados com a bactéria Yersinia pestis (*). Acredita-se que a
origem dessa doença tenha sido a China ou alguma região da Ásia Central e que a
peste negra não foi o primeiro surto de peste bubônica de que se tem conhecimento.
Existem relatos de doenças parecidas com a peste bubônica na Bíblia, como um relato
que fala de uma doença causada por ratos que atingiu os filisteus. Já no período
medieval, houve peste bubônica no Império Bizantino, atingindo sua capital,
Constantinopla, entre 541 e 544. Nesse contexto, ela ficou conhecida
como peste Justiniana.
(*) Yersinia pestis (anteriormente denominada Pasteurella pestis) é um cocobacilo gran-negativo, em forma de
bastonete, imóvel e sem esporos. É um organismo anaeróbio facultativo que pode infectar o ser humano por via
da pulga Xenopsylla cheopis. A bactéria é a causa da doença peste, que pode assumir uma de três formas: peste
pulmonar, peste septicémica ou peste bubônica. Estas três formas foram responsáveis por diversas epidemias de
elevada mortalidade ao longo da História, entre as quais a Praga de Justiniano e a Peste Negra, que dizimou um
terço da população europeia e a "Terceira Pandemia" originária da China em finais do século XIX que matou cerca
de 10 milhões de pessoas. Estas pestes tiveram provavelmente origem na China, tendo sido transmitidas para a
Europa através das rotas comerciais. A Y. pestis foi descoberta em 1894 por Alexandre Yersin, um médico franco-
suiço do Instituto Pasteur, durante uma epidemia de peste em Hong Kong.
Apêndice II

A peste bubônica chegou à Europa em 1347 e foi levada para lá por comerciantes
genoveses que fugiam de Caffa, uma colônia genovesa na Crimeia que estava sendo
atacada por tropas tártaras do Canato da Horda Dourada. A cidade de Caffa estava
sitiada quando os tártaros começaram a lançar cadáveres contaminados com a doença
para dentro dos muros.
À medida que a peste se espalhou por Caffa, os genoveses fugiram, levando a doença em
seus navios. Assim, a peste alcançou Constantinopla, depois, a Sicília, chegou a Marselha,
Península Itálica e, daí, espalhou-se por toda a Europa. Esse surto de peste bubônica
estendeu-se até 1353 e causou a morte de milhões de pessoas.
Uma vez que um ser humano contrai a peste bubônica, ela pode ser transmitida por via
respiratória (chamada de peste pneumônica), o que facilitou a disseminação da doença
por todo o continente europeu. Tanto as cidades como os campos foram atingidos,
embora as cidades, pela maior aglomeração de pessoas, tenham sofrido mais. A peste
bubônica recebeu esse nome por causa dos bubões (=adenite: inflamação de glândulas)
que apareciam em algumas partes do corpo dos que adoeciam.
Os relatos da época falam que a doença trouxe pânico e fez com que muitos fugissem das
grandes cidades como forma de se proteger. Aqueles que tinham dinheiro e propriedades
fora das cidades fugiram para essas propriedades e se esconderam por lá. Os relatos
também falam que a ordem política, em alguns locais, ruiu, porque as autoridades ou
haviam morrido pela doença, ou não tinham mais meios de governar.
Apêndice II
Os médicos da época não tinham ideia do que causava a doença, mas perceberam
que o isolamento era uma forma de evitar que a peste se propagasse ainda mais.
Assim, pessoas começaram a se isolar em suas casas, e os doentes mantinham
contato só com os médicos. A quantidade de mortos era tão grande que os ritos
funerários começaram a ser abandonados.
A peste bubônica foi uma doença recorrente na Europa por todo o século XIV e
existiu até 1720, quando houve um surto da doença em Marselha. Acredita-se que,
somente no século XIV, a peste bubônica tenha causado a morte de, pelo menos, 1/3
da população europeia, embora historiadores, como Le Goff, apontem que tenha
causado a morte de, pelo menos, metade da população da Europa, chegando até a
2/3 em alguns locais|3|.
Por fim, existem estudos que indicam que a peste bubônica possa ter causado a
morte de até 50 milhões de pessoas no continente europeu somente no período
entre 1347 a 1353|1|.
Apêndice II
Gripe espanhola (1918-1919)
O começo do século XX também ficou marcado por uma pandemia que atingiu todos
os continentes do planeta e causou a morte de, pelo menos, 50 milhões de pessoas.
Essa doença ficou conhecida como gripe espanhola, sendo causada por uma
mutação do vírus influenza, e afetou, inclusive, o Brasil.
Apesar do nome, a gripe espanhola não surgiu na Espanha. Acredita-se que ela
tenha surgido na China ou nos Estados Unidos. De toda forma, os primeiros casos
foram registrados em um acampamento militar chamado Fort Riley, que estava
instalado no estado do Kansas (EUA). O primeiro paciente de que se tem
conhecimento foi o soldado Albert Gitchell.
A doença surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial e aproveitou-se do grande
deslocamento de soldados e das aglomerações causadas pela guerra para se
disseminar pelo mundo. Houve três ondas de contágio, que se estenderam de 1918
a 1919. A segunda onda ficou conhecida como a de maior capacidade de
contaminação e foi a mais mortal.
A gripe espanhola espalhou-se por todos os continentes do planeta. A medicina do
começo do século XX não sabia o que a causava, porque a tecnologia da época não
permitia que os microscópios enxergassem o vírus responsável pela enfermidade.
Usava-se aspirina para combater alguns dos sintomas, mas o exagero no uso dessa
medicação mostrou-se nocivo. A doença causava infecções que atingiam órgãos
como o pulmão, mas não existiam antibióticos na época para combatê-las.
Apêndice II
Os sintomas da gripe espanhola eram os de uma gripe comum, como febre, tosse,
coriza, dores de cabeça e dores no corpo. Os casos mais complicados, como
mencionado, causavam infecções nos pulmões, levando os pacientes a desenvolverem
pneumonia.
Como era causada por um vírus, a doença era transmitida pela via respiratória
facilmente. Locais que implantaram medidas de prevenção baseadas
no isolamento social conseguiram passar pela gripe espanhola com efeitos reduzidos. Já
os que não seguiram as medidas de isolamento acabaram sofrendo duramente com a
doença e acumulando mortos todos os dias.
Aqui no Brasil a gripe espanhola chegou em setembro de 1918, por meio dos
passageiros de uma embarcação inglesa que atracou em três cidades: Recife, Salvador e
Rio de Janeiro. Grandes cidades, como São Paulo, sofreram bastante com a doença.
Acredita-se que ela tenha contaminado, pelo menos, metade da população paulistana.
No Brasil, como em outras partes do mundo, medidas de isolamento foram tomadas
com o decreto do fechamento de escolas, repartições públicas e alguns tipos de
comércio. Ao todo, 35 mil pessoas morreram de gripe espanhola no Brasil.
Apêndice II

Ebola (2013-2016)
Em 1976, foram identificados, pela primeira vez, casos de doença pelo vírus ebola,
doença causada pelo vírus de mesmo nome (ebola). Esse vírus foi identificado em
regiões do Sudão e da República Democrática do Congo, ambos países do continente
africano. Acredita-se que uma espécie de morcego seja a transmissora do vírus.
A ebola é uma doença grave e capaz de matar tanto seres humanos quanto primatas.
Recentemente, entre 2013 e 2016, causou um surto epidêmico em regiões da África
Ocidental. Esse surtou chamou a atenção da Organização Mundial da Saúde e de muitos
países – alguns deles, inclusive, chegaram na época a decidir pelo fechamento de suas
fronteiras para pessoas vindas daquela região.
A doença manifesta-se com os seguintes sintomas: febre, dor de
cabeça, vômitos e diarreia. Os pacientes mais graves podem apresentar
graves hemorragias, as quais afetam partes do corpo como intestino e útero. O
contágio acontece quando uma pessoa tem contato com restos de animais
contaminados pelo vírus.
A partir do momento em que um ser humano contrai ebola, o vírus pode ser
transmitido para outras pessoas por meio de secreções, como saliva, sangue, fezes,
urina e sêmen. A ebola atuou majoritariamente no continente africano e aproveitou-se
da pobreza de muitas das regiões desse continente.
Apêndice II

A falta de condições sanitárias ideais acaba tornando muito mais fácil a rápida
disseminação do vírus. O último surto epidêmico de ebola atingiu países
como Libéria, Serra Leoa e Guiné, infectando 28.454 pessoas, das quais 11.297
faleceram|4|.
Em 2018, um novo surto foi registrado na África, atingindo a República Democrática do
Congo. Até o presente momento, esse surto registrou quase 4 mil casos e mais de 2.200
mortes. Em 2014, houve uma suspeita de caso de ebola no Brasil, mas esse caso foi
descartado por exames.

Outras epidemias ao longo da história


Os quatro casos mencionados neste texto são apenas alguns exemplos das grandes
epidemias que afetaram a humanidade. Obviamente, existe uma infinidade de outras
epidemias e pandemias que aconteceram ao longo da história e citaremos algumas
delas a seguir:
Pandemia de aids (1980 até a atualidade);
Pandemia de Sars (2002-2004);
Epidemia de varíola no Japão (735-737);
Pandemias de cólera (ao longo do século XIX);
Epidemia de cólera no Haiti (2010 até a atualidade);
Epidemia de febre amarela em Nova Orleans (1853).
Apêndice II

Notas
|1| HAYS, J.N. Epidemics and pandemics. Their impacts on Human History. Austin, Texas:
Fundação Kahle, 2005.
|2| REZENDE, Joffre Marcondes de. À Sombra do Plátano: crônicas de História da
Medicina. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 75.
|3| LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 228.
|4| SAMPAIO, João Roberto Cavalcante e SCHÜTZ. Gabriel Eduardo. A epidemia de
doença pelo vírus de Ebola de 2014: o Regulamento Sanitário Internacional na
perspectiva da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/grandes-epidemias-da-historia.htm

SILVA, Daniel Neves. "Grandes epidemias da história"; Brasil Escola. Disponível em:
https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/grandes-epidemias-da-historia.htm.
Acesso em 11 de outubro de 2020.
Apêndice III
Infecção e higiene antes da teoria microbiana: a
história dos miasmas.
https://www.ghtc.usp.br/server/pdf/ram-Miasmas-Sci-Am.PDF

A teoria errada que salvou milhões de vidas


Lilian Al-Chueyr Pereira Martins Roberto de Andrade Martins

Costuma-se afirmar que a medicina só se tornou “científica” após o desenvolvimento da teoria


microbiana das doenças, na segunda metade do século XIX. Antes disso, não eram conhecidas as
causas das doenças e não era possível preveni-las de forma adequada. No entanto, alguns dos
resultados atribuídos à teoria microbiana, como muitas práticas de higiene, saneamento e o uso de
anti-sépticos, vieram de uma fase anterior. Uma das correntes mais antigas da medicina associava as
epidemias a certas impurezas existentes no ar, denominadas miasmas. Supunha-se que os miasmas
se originavam a partir de exalações de pessoas e animais doentes, emanações dos pântanos, de
dejetos e substâncias em decomposição. Sua presença era detectada através do mau cheiro.
Acreditava-se que ao impedir a propagação dos maus odores, seria possível prevenir ou evitar as
epidemias. Curiosamente, essa teoria “não-científica”, que se tornou especialmente popular no
século XVIII e início do século XIX, foi responsável pelo surgimento do movimento higienista desse
período, que salvou milhões de vidas. Paradoxalmente, a teoria microbiana das doenças, que estava
“cientificamente correta”, dificultou a descoberta de alguns dos processos de transmissão das
enfermidades, além de criar fortes obstáculos para a compreensão de doenças que não são causadas
por microorganismos, mas pela carência de vitaminas. Os abusos devidos ao excesso de confiança
nessa teoria levaram à morte milhões de pessoas.
Apêndice III
Os miasmas na Antigüidade A palavra “miasma” vem do grego miasma, que significa impureza ou
mancha. No teatro grego, um assassino – uma pessoa que havia derramado sangue – se tornava
impregnado por um miasma, uma mancha ou impureza, um sinal maldito da morte, que o
acompanhava para sempre. Durante a Antigüidade, a medicina grega centralizava-se na idéia de que
a saúde estava relacionada ao equilíbrio de humores no organismo, mas também considerava as
influências do ar. Obras datadas dos séculos V e IV a.C., que integram o Corpus Hippocraticus,
indicam a influência dos ares e dos lugares sobre o desenvolvimento do feto, a constituição dos
temperamentos, a gênese das paixões, as formas de linguagem e o gênio das nações. Para
Hipócrates, as epidemias podiam se originar de mudanças do ar, principalmente de variações de
temperatura e de umidade – uma alteração puramente física. O miasma seria algo diferente: uma
impureza existente no ar, que podia produzir doenças e pestes. Desde a Antigüidade, a transmissão
de doenças pelo contato físico era chamada de “contágio”. Pelo contrário, a transmissão de doenças
pelo ar (miasmas) era chamada de “infecção”. Nas grandes epidemias que ocorreram na
Antigüidade, as pessoas evitavam se aproximar dos doentes, para não serem contaminadas; e
temiam adoecer respirando o ar que vinha dos cadáveres ou de pessoas atingidas pela peste.
Essa idéia não era uma simples hipótese, mas algo mais profundo, alicerçado em instintos. Temos
uma reação natural de queremos afastar-nos de coisas e lugares sujos e malcheirosos. Essa atitude
foi conscientizada e sistematizada em várias ocasiões, na religião e no pensamento médico.

A podridão como causa das doenças


Autores medievais europeus, como Isidoro de Sevilha, continuaram a se referir à transmissão de
doenças pelo contato e também pelo “ar corrompido” ou estragado. Algumas vezes supunha-se que
a infecção da atmosfera era produzida pelos astros – especialmente pelos cometas.
Apêndice III
Foi entre os pensadores islâmicos que a teoria da corrupção do ar atingiu maior desenvolvimento,
durante a Idade Média. Dentre eles destacou-se o médico Ibn Sina, mais conhecido como Avicena
(980-1037). Em seu livro Cânon da medicina ele atribuiu muitas doenças à podridão. As “febres
pestilenciais” seriam produzidas pelo apodrecimento da água ou da atmosfera. A água estagnada ou
dos pântanos, alterada pela podridão, assim como corpos de cadáveres, produziriam vapores
malignos, transportados pelos ventos para outros lugares. As pestes surgiriam por esse ar úmido e
turvo, sendo mais raras no tempo seco.
De acordo com essa interpretação, a prevenção das doenças era feita reduzindo-se a umidade do
corpo, para dificultar seu apodrecimento. Por isso, Avicena limitava banhos, bebidas e alimentos
úmidos. Ele considerava importante “refrigerar” as casas e “corrigir o ar”. “Corrigir o ar” significava
produzir bons odores, impedindo sua putrefação. Para isso, deviam ser feitas defumações com
sândalo, cânfora, mirra e outras substâncias aromáticas; a casa devia também ser borrifada com
vinagre. Note-se que a prática de queimar incenso e mirra para purificar o ambiente (e também como
oferenda religiosa) existiu em todos os povos orientais.
Inspirando-se em Avicena ou na tradição mais antiga, a escola médica de Salerno, no século XIII,
produziu a obra Regimen sanitatis Salernitanum onde são descritos cuidados contra os ares infectados,
com maus odores, capazes de produzir doenças. O texto afirma: “É certo que a infecção vem
principalmente pelo cheiro”. Devia-se por isso viver longe de qualquer lugar de onde pudesse surgir o
ar infectado: água podre, cavernas, excrementos, etc.
Através dessas e outras obras, a idéia de que os maus cheiros podiam produzir doenças se popularizou
e continuou a ser aceita durante o Renascimento. O ar corrompido era considerado como um
importante fator nas epidemias. Entretanto, essa não era a principal doutrina médica. Predominava a
concepção da tradição hipocrática-galênica de que as doenças eram produzidas por um desequilíbrio
dos quatro humores do corpo humano (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra).
Apêndice III

Os miasmas no período moderno


A Europa, da Idade Média até poucos séculos atrás, era um continente sujo. Ao contrário do que
ocorrera na antiga Roma, limpeza e banhos eram a exceção. Não havia esgotos nas cidades, as
imundícies e o lixo eram atirados à rua. Em situações de maior perigo, como nas pestes,
recomendava-se a limpeza das imundícies lançadas nas ruas, acender fogueiras nas esquinas pela
manhã e à noite, nelas queimando substâncias aromáticas, purificar as roupas (arejando-as e
passando-as sobre o fogo – não se mencionava a necessidade de lavá-las), manter os porcos, os
cachorros e os gatos longe das casas, purificar e perfumar as residências. Em meados do século
XVII, alguns médicos utilizaram uma roupa especial que cobria todo o corpo, para protegê-los da
peste, com um “bico” contendo substâncias aromáticas para purificar o ar que respiravam.
Durante o século XVII a palavra “miasma” voltou a ser utilizada, integrada aos idiomas modernos,
para representar o ar corrompido. Havia, no entanto, outros termos que tiveram longo uso, como
a expressão italiana “mal’aria”, ou seja, ar ruim. Ela era utilizada especialmente para descrever
vapores que subiam de pântanos ou de água parada e que pareciam causar uma febre
intermitente mortal. As febres produzidas pelos pântanos foram estudadas por Giovanni Maria
Lancisi (1654-1720), um médico de Roma, que diferenciou o miasma da “mal’aria”. Em 1717,
Lancisi descreveu os miasmas como certas influências nocivas emanadas dos charcos. Para ele,
havia um único tipo de miasma, capaz de produzir diferentes efeitos, dependendo das
circunstâncias e das pessoas atingidas por ele. A “malária” seria uma das muitas doenças
produzidas pelo “mau ar”, mas seria um tipo especial de efeito do miasma.
Apêndice III
As melhorias sanitárias No decorrer dos séculos XVII e XVIII o asseio pessoal não incluía banhos,
normalmente considerados perigosos para a saúde. Lavavam-se o rosto, as mãos e os pés. Eram
utilizados perfumes fortes, para disfarçar os maus odores corporais. No século XVIII a situação
melhorou gradualmente, especialmente entre as mulheres, e os perfumes passaram a ser mais
suaves. Nessa época foram inventados os bidês, que auxiliavam na higiene corporal.
As casas não costumavam ter banheiros. O sistema de esgotos nas cidades era precário. Era comum
que as pessoas fizessem suas necessidades fisiológicas em seus quartos, dentro de potes, que
depois eram esvaziados em qualquer lugar. Um decreto real, em 1780, proibia os habitantes de
Paris de lançar água, urina, fezes e lixo de suas janelas para as ruas.
A situação era pior nos hospitais e prisões. O inglês John Howard (1726-1790) informou o
Parlamento sobre as condições sanitárias das prisões o que fez com que este promulgasse uma lei
estabelecendo regras para melhorá-las. Uma das medidas adotadas foi a ventilação das celas que,
anteriormente eram muitas vezes totalmente fechadas. Ele também chamou a atenção para a
necessidade de aprimorar as condições sanitárias da população em geral. A preocupação com
limpeza e ventilação nos hospitais diminuiu muito a mortalidade – que chegava a 50% na maioria
deles.
Algumas medidas gerais estavam sendo tomadas nas maiores cidades, em fins do século XVIII. Havia
recolhimento de lixo das ruas, que era levado para fora do perímetro urbano. Os cemitérios, que
ficavam ao lado das igrejas, foram sendo desativados, sendo criados outros em lugares mais
distantes. Os matadouros de animais foram também deslocados para fora das cidades. Aos poucos,
as principais fontes de maus odores estavam sendo controladas. Os resultados mais importantes
desse movimento sanitário foram sendo implantados gradualmente, ao longo do século XIX – tudo
isso sendo motivado apenas pelo desejo de libertar as pessoas dos cheiros pútridos, que poderiam
transmitir doenças.
Apêndice III
No final do século XVIII começaram a ser estudadas substâncias químicas capazes de impedir a
decomposição das substâncias orgânicas e os maus odores. Foram chamadas de “anti-sépticas”,
isto é, contrárias à putrefação (septikos, em grego). Acreditava-se que essas substâncias podiam
destruir os miasmas e purificar os ambientes.
Louis Bernard, barão de Guyton de Morveau (1737-1816), companheiro de pesquisas de Lavoisier,
foi um dos investigadores dessas substâncias e descobriu que o cloro e seus compostos (como o
“ácido muriático oxigenado”) tinham forte efeito contra a putrefação. Aconselhava seu uso nas
enfermarias dos hospitais e outros lugares com aglomerações de pessoas, como meio de destruir
os vapores nocivos. Na passagem do século XVIII para o século XIX, o uso dos compostos de cloro
sob forma gasosa foi testado e comprovado em hospitais e outros locais onde havia epidemias. O
uso de compostos clorados (como nossa “água sanitária”) também vem dessa época. Surgiu uma
forte preocupação com a qualidade da água, que deveria ser inodora. Era possível eliminar os
odores da água pela fervura; porém, quando isso era inviável, utilizavam-se ácidos e carvão em pó,
que eliminavam os maus odores. Através dessas e outras medidas práticas, adotadas no final do
século XVIII e início do século XIX, a teoria dos miasmas levou a uma grande melhora nas condições
sanitárias e de higiene na Europa, reduzindo muito as pestes e doenças transmissíveis.

A teoria microbiana
Desde a Antigüidade surgiram esporadicamente especulações de que certas doenças poderiam ser
produzidas por seres vivos invisíveis Em 1835 o advogado italiano Agostino Bassi (1773-1856)
mostrou de forma conclusiva que a muscardina, uma doença dos bichos-da-seda, era produzida
por um fungo microscópico. No ano seguinte, o médico francês Alfred Donné (1801-1878)
detectou a presença de um microorganismo, o Trichomonas vaginalis, numa doença venérea.
Vários outros pesquisadores começaram a associar microorganismos a doenças, mas geralmente
sem identificar o agente e sem estabelecer uma relação causal.
Apêndice III

Alguns exemplos importantes foram a descoberta de vibriões nos dejetos de doentes com
cólera, por Félix Pouchet (1800-1872), em 1849; e a identificação do bacilo causador do antraz
(ou carbúnculo) dos carneiros, por Casimir Davaine (1812-1882) e Pierre Rayer (1793-1867), em
1850.
Na década de 1860, seguindo a trilha aberta por essas pesquisas anteriores, surgiram os
primeiros estudos de Louis Pasteur (1822-1895) sobre a relação entre doenças e
microorganismos. Porém, foi apenas na década de 1870 que os estudos rigorosos de Robert
Koch (1843-1910) estabeleceram as regras de investigação desse tipo de hipótese. No decorrer
da segunda metade do século XIX, a teoria microbiana das doenças foi gradualmente aceita pela
maioria dos médicos e pelo público. A teoria microbiana conviveu durante algum tempo com a
teoria dos miasmas, sendo influenciada pela mesma. Em meados do século XIX houve grandes
epidemias de cólera na Europa, matando milhões de pessoas. Autoridades médicas, como
William Farr (1807- 1883), tinham certeza de que sua causa era um miasma. Pasteur fez parte de
uma comissão que procurou identificar o modo pelo qual essa doença era transmitida, e –
provavelmente influenciado pela teoria dos miasmas – tentou encontrar no ar algum
microorganismo que fosse responsável pela mesma. Nada encontrou. Depois, descobriu-se que
o cólera era transmitido principalmente pela água.
Um dos defensores dos miasmas nesse período foi o químico francês François Jules Lemaire
(1814-1886) que estudou, na década de 1860, substâncias anti-sépticas como benzina, alcatrão
e ácido carbólico (fenol). Mostrou que esse ácido destruía microorganismos, impedia a
putrefação e curava a sarna. As pesquisas de Lemaire tiveram aspectos práticos importantes,
pelo estudo de anti-sépticos que foram depois utilizados em grande escala (por exemplo, em
esgotos).
Apêndice III
Embora fosse guiado pela teoria dos miasmas, Lemaire também começou a pensar que os
microorganismos poderiam ter um papel na transmissão de doenças. Unindo as duas teorias,
imaginou que o miasma seria simplesmente um ar cheio de microorganismos. Fez vários
experimentos interessantes, que confirmaram suas expectativas – por exemplo, encontrou grande
quantidade de micróbios no ar de um dormitório militar, cheio de soldados, à noite. No entanto, as
pesquisas de Lemaire não se enquadram dentro dos padrões rigorosos da pesquisa microbiana, de
Koch. Ele acreditava que não existiam miasmas específicos: o ar estragado (ou repleto de
microorganismos) poderia produzir qualquer doença.
Nas últimas décadas do século XIX a teoria dos miasmas já tinha sido quase totalmente abandonada,
e seus resultados práticos (como a desinfecção dos hospitais por compostos de cloro) foram
incorporados às práticas relacionadas à teoria microbiana. Muitos pensam, atualmente, que o uso
dos anti-sépticos foi uma conseqüência das descobertas de Pasteur – mas isso é um erro histórico.

As vitaminas
No final do século XIX, após os grandes sucessos da teoria microbiana das doenças, parecia que,
depois de milênios, a Medicina havia encontrado finalmente um caminho seguro, científico, para seu
desenvolvimento. As pesquisas mais cuidadosas haviam mostrado que algumas doenças eram
causadas por microorganismos. Entretanto, passou-se a acreditar que todas as doenças eram
causadas por eles, o que levou a grandes erros, como no caso do estudo do beribéri nos séculos XIX-
XX. Sabe-se atualmente que o beribéri é uma doença causada por deficiência da vitamina B no
organismo e que se não for tratada adequadamente pode levar à morte. Ela é freqüente nas
populações que se alimentam com arroz polido (arroz branco), pois o processo de polimento retira a
película que contém a vitamina B deste cereal. O beribéri surgia com freqüência em prisões,
hospitais, asilos e navios. Isso sugeria tratar-se de uma doença contagiosa.
Apêndice III
Pela sua gravidade, o beribéri foi muito estudado, na época. Influenciados pela teoria
microbiana bastante difundida a partir da década de 1880, vários médicos encontraram... o
micróbio do beribéri. Em nosso país, o mais entusiasta defensor da teoria parasitária do beribéri
foi o diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda (1846-1915), que publicou a partir de
1883 vários trabalhos em que descrevia o Bacillus beribericus (que não existe). Diversos
pesquisadores do exterior tais como Ogata Masanori e Wallace Taylor no Japão (1886), F. J.
Cornelissen e J. Sugenoya na Índia (1886) e Cornellius Pekelharing (1887), também na Índia,
chegaram a conclusões semelhantes às de Lacerda. Cada um deles, no entanto, observava
micróbios diferentes. Procurou-se então impedir a transmissão desse suposto microorganismo e
foram tomadas medidas de desinfecção dos locais onde a doença era epidêmica. Essas medidas
não surtiram efeito e milhares de pessoas continuaram a morrer, a cada ano, enquanto os
cientistas estudavam o micróbio do beribéri.
Outros pesquisadores, menos obcecados pela teoria microbiana, pensaram em explicações
diferentes da doença. Surgiam indícios de que se tratava de uma enfermidade cuja origem era
alimentar, mas ninguém percebia claramente qual era a deficiência, na época. Como a doença
aparecia quase exclusivamente em pessoas que se alimentavam com grandes quantidades de
arroz, esse alimento começou a ser considerado o vilão da história. Em 1880, o médico
Kamehiro Takaki (1849-1920), do Hospital Naval de Tóquio, convenceu-se de que o problema era
a pequena quantidade de proteínas ingeridas pelos marinheiros. Para solucionar essa deficiência
introduziu mais carne, mais vegetais e, em algumas refeições, cevada no lugar do arroz. Houve
uma grande redução do beribéri na Marinha japonesa e a hipótese de Takaki parecia ter sido
confirmada. No entanto, o médico holandês F. J. van Leent notou que os marinheiros europeus
que haviam sido levados para a Ásia, embora tivessem uma quantidade adequada de proteína
em sua alimentação, também adquiriam a doença.
Apêndice III
Foi um acaso que sugeriu o caminho de pesquisa que acabou levando ao sucesso. A comissão
científica holandesa, chefiada por Pekelharing, depois de identificar o suposto microorganismo do
beribéri e prescrever medidas de desinfecção inúteis, havia retornado à Europa. Enquanto
Christiaan Eijkman, um dos assistentes de Pekelharing, analisava o beribéri surgiu uma doença
semelhante no galinheiro que era mantido no laboratório. A primeira suposição que ocorreu ao
pesquisador foi que se tratava de uma enfermidade microbiana infecciosa, mas não foi
encontrado nenhum microorganismo. Depois de poucos meses, repentinamente, a doença
desapareceu.
Eijkmann constatou que, durante a epidemia, as galinhas estavam sendo alimentadas com restos
de arroz cozido trazidos do hospital militar. No entanto, o antigo cozinheiro foi substituído e seu
sucessor não permitia mais que o arroz fosse levado para as galinhas. Então, a doença havia
desaparecido. O pesquisador realizou então alguns experimentos e notou que galinhas
alimentadas exclusivamente com arroz branco cozido ficavam doentes depois de poucas semanas.
Porém, se fossem alimentadas com arroz não polido (integral), isso não acontecia. Além disso,
verificou que as aves doentes podiam se recuperar, com a mudança da dieta. Concluiu que existia
algum “princípio antineurítico” no arroz integral, capaz de curar a doença; mas a própria causa da
doença continuava obscura para ele. Devido a isso o resultado de Eijkmann não foi aplicado a
seres humanos, que continuaram morrendo.
Apenas 20 anos depois dos estudos iniciais, Eijkmann retomou a investigação do papel da nutrição
no beribéri. Dois de seus auxiliares, Adolphe Vorderman (1844-1902) e Gerrit Grijns (1865-1944),
começaram a obter importantes resultados. Uma análise estatística de várias prisões de Java, feita
por Vorderman, mostrou que em muitas delas as pessoas eram alimentadas com arroz branco,
mas em outras eram alimentadas com arroz integral. As do primeiro grupo tinham 300 vezes mais
casos de beribéri do que as do segundo.
Apêndice III

Grijns, por outro lado, fez experimentos que mostraram que outros alimentos, além do arroz
integral, podiam curar o beribéri – tanto em galinhas quanto em pessoas. Concluiu que a causa do
beribéri era a falta de alguma substância que existia na película do arroz integral e em alguns
outros alimentos. Foi necessária, no entanto, uma série de estudos, com a contribuição de
diversos pesquisadores, antes que o trabalho de Grijns fosse confirmado e se identificasse que
substância era essa. Porém, a partir de 1910, antes da identificação da vitamina B, foram tomadas
medidas para evitar que a população continuasse a ser alimentada maciçamente com arroz
branco e outros alimentos semelhantes.

A sabedoria da incerteza
Essa longa história mostra como é difícil a construção do conhecimento. É importante refletir
sobre o contraste entre alguns aspectos da teoria dos miasmas e da teoria microbiana. À primeira
vista pode parecer que a crença nos miasmas foi um grande erro, que atrasou o surgimento da
medicina científica; e a teoria microbiana das doenças foi a descoberta do verdadeiro caminho
para a prevenção das doenças transmissíveis. No entanto, vimos que a teoria errada levou a um
movimento sanitário que melhorou muito a situação de saúde da população, nos séculos XVIII e
XIX, conduzindo à descoberta de substâncias anti-sépticas e processos de desinfecção de
ambientes que salvaram milhões de vidas. Por outro lado, a teoria microbiana das doenças (que
consideramos correta) levou a grandes erros, atrasando a descoberta da causa de doenças como o
beribéri e ocasionando milhões de mortes. Quando uma teoria se mostra excessivamente valiosa
– como ocorreu nesse caso – ela pode impedir as pessoas de vislumbrarem qualquer alternativa.
Muitas vezes a incerteza pode ser uma atitude mais sábia.
Apêndice III

PARA CONHECER MAIS:

· MARTINS, Roberto A.; MARTINS, Lilian A.-C. Pereira; FERREIRA, Renata R.; TOLEDO, Maria
Cristina F. Contágio: história da prevenção das doenças transmissíveis. São Paulo: Moderna,
1997.
· CARPENTER, Kenneth J. Beriberi, white rice, and vitamin B: a disease, a cause, and a cure.
Berkeley, CA : University of California Press, 2000.
· CIPOLLA, Carlo M. Miasmas and disease: public health and the environment in the pre-
industrial age. New Haven : Yale University Press, 1992.
Fontes consultadas:
GURGEL, A. P. Utopias socialistas: panorama do urbanismo pré-progressista.
Anotações de aula. FAU_UNB. Brasília, s.d.
FERREIRA, B. A. Tony Garnier e a cidade industrial. Encontro de Ensino,
Pesquisa e Extensão. Universidade do Oeste Paulista – UNOESTE, Presidente
Prudente, 2014.
https://thau2ufes.blogspot.com/2018/05/urbanismo-4-tony-garnier-e-cidade.html

http://professor.pucgoias.edu.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/17497/materi
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https://statics-submarino.b2w.io/sherlock/books/firstChapter/115145621.pdf
https://brasilescola.uol.com.br/historiag/cercamentos-revolucao-industrial-
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%A9culo%20XVIII

https://www.algosobre.com.br/historia/revolucao-industrial-origens.html

https://escolaeducacao.com.br/formacao-das-monarquias-nacionais/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_agr%C3%ADcola_brit%C3%A2nica
https://www.google.com/search?q=Paris+plano+haussmann&sxsrf=ALeKk01TmyvH
nk9ERz7fimDcQtZHyWAZvg:1603286070972&tbm=isch&source=iu&ictx=1&fir=pDf
DqJc1qz9alM%252CEws3pQMStsyQcM%252C_&vet=1&usg=AI4_-
kTvlfeJjWrjWEmB3BNM8O3LTLtkwA&sa=X&ved=2ahUKEwjm3u6F4sXsAhWoJrkGHc
gEDU0Q9QF6BAgKED8&biw=1242&bih=597#imgrc=X9q3N-
jAju6PwM&imgdii=odSOF_Ld7_sz5M

Bibliografia de referência:

CANABRAVA, Alice P. O Desenvolvimento da Cultura do Algodão na Província de São


Paulo (1861-1875). - 2. ed. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
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ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Boitempo. São
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HUBERMAN, Leo. ​História da Riqueza do Homem​. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1986.
MARX, Karl. O Capital. Livro 1. - 2. ed - São Paulo: Boitempo, 2017.
OVERTON, Mark. Agricultural Revolution in England: The transformation of the agrarian
economy 1500-1850. Cambridge University Press. 1996
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Questões:

1. Por que os modelos de cidade propostos por Charles


Fourier, Jean Baptiste Godin ou Robert Owen não se
traduziram em referências concretas para a cidade
moderna?
2. Por que o Plano Haussmann pode ser implantado com
sucesso em Paris, apesar de sua escala e enorme impacto
sobre a vida da população da cidade?
3. Ao contrário dos Utopistas, as proposições de Cerdá,
Garnier, Howard e Sorya y Mata influenciaram a
organização e desenvolvimento da cidade moderna. O que
elas têm em comum?

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