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A ética da comunicação
a partir da abordagem
dos conceitos de interesse
e uso da linguagem
Resumo: O objetivo deste texto é apontar elementos para a construção de uma abordagem da ética
da comunicação que se estruture em torno das noções de interesse e de uso reflexivo da
linguagem. Em um primeiro momento, e com base nas considerações feitas por Bourdieu,
destaca-se que toda troca linguística existe como ato de fala dentro de um espaço social que
só encontra validade se afirma os princípios éticos do campo no qual ela é proferida. Em um
segundo momento, explora-se, a partir de Habermas, o modo como interações comunicativas
podem estabelecer passagens entre interesses particulares e coletivos, dentro de processos
práticos de discussão de temas moralmente relevantes para todos. A reflexão que orienta os
dois momentos pretende apontar as possibilidades e os dilemas de uma ética da discussão
quando se leva em consideração os interesses dos agentes sociais envolvidos em processos
de negociação e debate.
Abstract: The communication ethics from the approach of interest and language use concepts. This
article aims at presenting elements for the construction of an approach of communication’s
ethics that is structured around the notions of interest and reflexive use of language. Starting
from Bourdieu’s thoughts, we argue that every linguistic exchange exists as a speech act within
a social space that only finds validity if it affirms the ethical principles of the field in which
they are pronounced. In a second moment it is explored – from Habermas – the way how
communicative interactions can stablish passages amongst private and collective interests,
within practical processes of discussing themes that are morally relevant for the collectivity.
140 MARTINO, L. M; MARQUES, A. A ética da comunicação a partir da abordagem dos conceitos de interesse
e uso da linguagem. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 139-152, jun. 2012.
The reflection that guides both moments intends to show the possibilities and the dilemmas
of an ethics of discussion when the interests of the social agents involved in negotiation and
debate processes are taken into account.
aos sujeitos a capacidade de agir racionalmente e de, a partir de seus interesses parti-
culares, escolher as alternativas de ação que privilegiem o bem comum. Dito de outro
modo, a ação dos sujeitos não estaria prevista ou constrangida por normas prévias, mas
seria fruto de decisões moralmente construídas através do debate e do diálogo.
A citação acima reitera que ações comunicativas não estão descoladas dos interes-
ses particulares dos sujeitos em interlocução. Pelo contrário: é a partir do universo de
compreensões e interesses singulares desses sujeitos que se configura um horizonte am-
pliado e partilhado de sentidos. Pode-se, contudo, questionar até que ponto a discussão
fornece, mesmo, condições paritárias de expressão e contextos de enunciação livres de
desigualdades de poder, dificultando a construção de estratégias voltadas para o alcance
de fins particulares. E, para isso, é importante aproximar a abordagem habermasiana de
uma outra que ressalte as dinâmicas de poder que perpassam as relações comunicativas
e os contextos de mise en scène do discurso. É nesse sentido que a reflexão proposta por
este artigo pretende recuperar a reflexão de Pierre Bourdieu a respeito de uma “ética
do uso da linguagem” estritamente direcionada para o sucesso da ação estratégica dos
sujeitos. Para Bourdieu, o sujeito age e usa a linguagem seguindo as diretrizes e lógicas
de um determinado campo, visando obter um ganho simbólico e reiterando os princípios
que guiam suas escolhas particulares. Neste contexto, usa-se ”campo“ na acepção de
Bourdieu (1980a, 1980b), como espaço social estruturado, no qual agentes em disputa,
que dispõem de um capital simbólico limitado e acumulado no decorrer de sua trajetória
social, buscam as melhores posições e o bônus a elas associado.
Ao refletirmos sobre a ética e a moral no âmbito da Comunicação, não podemos
negligenciar o fato de que tanto os atores sociais quanto os atores mediáticos agem
em contextos marcados por estruturas amplamente centralizadas, baseadas em formas
hierárquicas e assimétricas de comunicação. Tampouco, não podemos nos esquecer de
que os agentes mediáticos estão vinculados a estruturas de poder que reproduzem e re-
novam constantemente um habitus específico. De maneira geral, o habitus é um sistema
de orientação que orienta os indivíduos em suas escolhas. Faz com que os membros de
um mesmo grupo social compartilhem princípios e definições acerca da realidade social.
Dito de outro modo, o habitus refere-se a uma série de disposições pré-reflexivas para
o comportamento prático que orientam as pessoas em um sentido peculiar em todas as
esferas de sua experiência (BOURDIEU, 1980b).
Algumas questões podem ser extraídas dessas considerações: os interesses de um
agente mediático são fruto de sua escolha autônoma ou coincidem com os interesses
142 MARTINO, L. M; MARQUES, A. A ética da comunicação a partir da abordagem dos conceitos de interesse
e uso da linguagem. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 139-152, jun. 2012.
do campo no qual ele se insere? É possível pensar em uma conduta ética sem considerar
as condições e contextos de ação dos indivíduos?
Por sua vez, no que se refere aos processos intersubjetivos de aproximação entre
interesses privados e públicos, salientamos que o desenvolvimento ético e moral das
sociedades contemporâneas deve levar em conta o modo como os sujeitos debatem,
dialogam e negociam suas diferenças, seus interesses, pontos de vista e suas necessidades.
Sob um viés pragmático, do uso da linguagem como forma de ação prática para a busca
do entendimento recíproco, a teoria da ação comunicativa de Habermas (1987), como
salientado anteriormente, pode ser apontada como uma importante contribuição para
pensarmos como indivíduos e grupos questionam, em uma postura ética, os valores e
as bases que ancoram as regras morais que os vinculam, aliando interesses particulares
a interesses coletivos1.
Diante das vertentes problemáticas apresentadas por esses dois autores, este texto
pretende elaborar uma abordagem da ética da comunicação que se estrutura em torno
das noções de linguagem e de interesses. O objetivo dessa aproximação entre Habermas
e Bourdieu não é apontar as dificuldades e impossibilidades de uma construção de
condições igualitárias de acesso à racionalidade comunicativa e de efetiva participação
paritária em debates e diálogos públicos. Nosso intuito é mostrar que as noções de
interesse e de autointeresse são uma componente essencial ao processo de construção
do entendimento entre os sujeitos e, portanto, de uma ética da comunicação.
Em um primeiro momento, e com base nas considerações feitas por Bourdieu, tra-
remos uma reflexão a respeito das possibilidades que o autor entreabre para uma ética
do uso da linguagem. Em um segundo momento, dedicamo-nos a explorar a vertente
de Habermas: o modo como interações comunicativas podem estabelecer passagens
entre interesses particulares e coletivos, dentro de processos práticos de discussão de
temas moralmente relevantes para todos.
Nesse ponto, poder-se-ia sugerir que uma ética do uso da linguagem só é possível
quando se transcendem as estruturas dinâmicas de campo a partir de sua própria
objetivação enquanto práticas incorporadas e reconhecidas pelos sujeitos participantes,
mas também deliberadas livremente – e, por “livremente”, não se entende uma liberdade
absoluta, mas realizada dentro dos parâmetros pensados em vários momentos por
Habermas (1987), que, como se propõe, podem ser articulados aos problemas levantados
até agora sob o signo de Bourdieu.
Utilizo o termo ação comunicativa para a forma de interação social na qual os planos de
ação de diferentes atores são coordenados por meio de uma troca de atos comunicativos,
ou seja, por meio do uso da linguagem orientada para o alcance do entendimento. Na
medida em que essa comunicação serve ao entendimento mútuo (e não à mera influência
mútua), ela assume na interação o papel de um mecanismo de coordenação da ação.
(HABERMAS, 1982, p. 234)
De forma geral, as pessoas precisam desse tipo de interação para examinarem mutu-
amente o que acreditam ser seus “reais” interesses. Mesmo em um debate que almeja
uma negociação paritária sobre o bem comum, a exploração e o esclarecimento dos
interesses pessoais precisam ser levados em consideração. Afinal, “Se membros de um
grupo conseguem somente falar enquanto um ‘nós’ e não enquanto ‘eu’, nem eles nem
os demais participantes serão capazes de descobrir o que está realmente em causa e
construir soluções” (MANSBRIDGE et al, 2010, p. 73).
Sob esse viés, a inclusão do interesse pessoal no processo de debate público
introduz informações que facilitam a obtenção de soluções razoáveis, envolve uma
diversidade de objetivos e opiniões, gera oportunidades de esclarecimento e de transfor-
mação de preferências, além de poder revelar que diferenças aparentes podem esconder
a defesa de uma mesma preocupação com o bem comum. Por essa via, o conflito e a
reflexão coletiva sobre os interesses de cada um pode produzir tanto o autoentendi-
mento quanto o entendimento mútuo. Muitos processos deliberativos, ao almejarem o
entendimento mútuo e a cooperação, acabam, na prática, suprimindo o dissenso e o
desentendimento acerca de quem deve se manifestar, do problema que efetivamente
está em questão e da própria mise en scène dos discursos. Banir o interesse privado ou
o autointeresse da deliberação, como vimos, pode dificultar o envolvimento daqueles
que têm suas preferências fortemente ditadas ou condicionadas por condições hege-
mônicas e institucionais externas (MARQUES, 2009, 2011). Sem o equilíbrio entre os
pontos de vista ético e moral, é possível que aquilo que é definido como bem comum
seja imposto pelos que detêm maior poder de influência.
Considerações finais
Vimos que, apesar de podermos falar em uma ética do uso da linguagem em Bourdieu,
o que se destaca nas reflexões desse autor é uma investigação acerca das condições práticas
de uso da linguagem dentro das possibilidades estabelecidas de antemão pelo campo e
pelo habitus nos quais se situam os sujeitos em interação. Para Bourdieu, o sujeito age e
usa a linguagem de acordo com estratégias que não contrariem as lógicas do campo, tendo
sua ação voltada para a obtenção de maior lucro simbólico, em uma tentativa de reafirmar
os limites e os princípios que guiam suas escolhas. Assim, sujeitos constituídos dentro de
um campo agem movidos por um interesse (que não é pessoal, mas é apresentado como
se fosse) de acumular capital simbólico e de alcançar o sucesso.
Existem inúmeras assimetrias entre as abordagens de Habermas e Bourdieu. De modo
geral, enquanto a ética do discurso apaga as desigualdades em nome de uma comunidade
ideal de comunicação, o campo de Bourdieu procura trazer para o centro da reflexão as
diferenças sociais e as múltiplas tensões que marcam a produção de discursos sociais. Se,
para Habermas, o que garante a validade dos discursos e proferimentos é a troca pública
de razões entre indivíduos localizados diante de um mesmo pano de fundo cultural e
valorativo, para Bourdieu são as regras do campo, previamente definidas e enraizadas nas
ações dos indivíduos que determinam de antemão essa validade. O quadro abaixo busca
sintetizar as principais diferenças entre essas duas abordagens:
HABERMAS BOURDIEU
A ética está presente na discussão A ética é parte do habitus
ÉTICA racional orientada para o incorporado pelo agente em um
entendimento. campo específico.
e trocas discursivas marcadas por tensões e disputas, não elimina os interesses e necessi-
dades particulares das disputas. Pelo contrário: ela tenta encontrar formas de articulá-los
com preocupações coletivas em torno da construção de um bem comum. Todas as situ-
ações de interação se constituem em torno dos interesses dos interlocutores, sejam elas
estabelecidas em espaços sociais que sofrem constrangimentos de regras predefinidas,
sejam situações nas quais as regras não são definidas senão no momento da própria
interação. O interesse dos agentes não é incompatível com uma ética da discussão, nem
tampouco é algo unicamente relacionado à ação estratégica dos parceiros de interação.
Ele é parte integrante da construção de um momento comunicativo e da condição de
entendimento mútuo: se não houver interesse não há sequer a participação no debate.
Uma ética da Comunicação tem que levar em conta que as arenas discursivas das
quais participamos estão situadas em um amplo contexto social, perpassado por relações
estruturais de dominação e subordinação. Além disso, tal ética não pode desconsiderar
que os sujeitos agem tanto em conformidade com regras que visam à equidade (e que
requerem uma breve suspensão das diferenças e das formas de dominação) quanto de
acordo com procedimentos tidos como legítimos e valorizados por um determinado
sistema de orientação. Assim, é essencial termos em mente que a ética da comunicação
se constitui na situação interlocutiva em todas as suas dimensões: da troca discursiva
à constituição do espaço agonístico e desigual de produção do diálogo, de acesso à
linguagem e de distribuição de papéis linguísticos entre os sujeitos.
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Bibliografia