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São Bernardo de Claraval

Sermões sobre o

Cântico dos Cânticos


Sermões I a XII

Primeiro Sermão

I – Divisão da doutrina dos três livros de Salomão


II – Quem deve dedicar-se à sua leitura
III – Questões sobre o início do Cântico dos Cânticos
IV – Sobre o título do Livro e a diversidade dos Cânticos
V – Cânticos morais daqueles que se convertem a Deus
VI – Singularidade do Cântico Nupcial

1 A vós, irmãos, devem ser expostas outras coisas que aos seculares, ou, ao menos, de
outra maneira. Aquele que na sua forma de ensinar adota o modelo do Apóstolo, a eles dá
leite e não comida. Mas também ensina com seu exemplo ao apresentar alimentos mais
sólidos aos espirituais, quando diz: “Falamos, não com a linguagem do saber humano, mas
sim com a doutrina do Espírito, explicando temas espirituais a homens espirituais”. E,
igualmente: “Falamos de uma sabedoria entre os perfeitos”, como, sem dúvida, julgo que já
sois, a não ser que vos tenhais ocupado em vão durante tanto tempo, em busca das coisas
espirituais, dominando vossos sentidos e meditando dia e noite a lei de Deus. Portanto, abri
a boca, não para beber o leite, mas para comer o pão. Salomão nos oferece um esplêndido e
mui saboroso pão: refiro-me ao livro intitulado Cântico dos Cânticos. Se vos agrada, vamos
pô-lo sobre a mesa e parti-lo.

2 Se não me engano, a graça de Deus vos ensinou, suficientemente, a conhecer este


mundo e desprezar suas vaidades, e isso pelas palavras do Livro do Eclesiastes. E o Livro
dos Provérbios? Nele não achastes a doutrina necessária para emendar e formar vossa vida
e vossas inclinações? Portanto, já saboreados esses dois Livros, nos quais recebestes da
arca do amigo os pães emprestados, aproximai-vos também deste terceiro pão, a fim de que
experimenteis uma melhor bebida.
Dois são os vícios, pelo menos os mais nocivos, que lutam contra a alma: o vão
amor do mundo e o excessivo amor de si mesmo. Esses dois Livros combatem essa dupla
peste: um, com o instrumento da disciplina, corta toda tendência desordenada e todo
excesso da carne; outro, com a luz da razão, sagazmente ilumina o falso brilho de toda
glória mundana, discernindo-o, verdadeiramente, do ouro da verdade. Em suma: entre todos
os cuidados humanos e desejos terrenos, opta por temer a Deus e guardar seus
mandamentos. E com toda razão, porque esse temor é o princípio da verdadeira sabedoria; e
essa fidelidade é a sua culminância, pois consta que a autêntica e consumada sabedoria
consiste em afastar-se do mal e fazer o bem. Aliás, afastar-se do mal, ninguém pode fazê-lo
perfeitamente sem o temor de Deus, e nem fazer o bem sem guardar os mandamentos.

3 Superados, pois, esses dois vícios com a leitura de ambos os livros, encontramo-nos
já preparados para assistir a este sagrado e contemplativo diálogo que, por ser fruto de
ambos, só pode ser confiado a espíritos e ouvidos puros.

II

A não ser assim, se antes não se domou a carne com o esforço da ascese,
submetendo-a ao espírito, e nem se desprezou a opressiva ostentação do mundo, é indigno
que o impuro se aplique nesta santa leitura. Como a luz inutilmente invade os olhos cegos
ou fechados, assim o homem animal não percebe as coisas que são do Espírito de Deus.
Porque o Espírito Santo educador foge da falsidade de toda vida incontinente, e jamais terá
parte com a vaidade do mundo, porque é o Espírito da verdade. Pois, que união pode haver
entre a sabedoria que vem do alto e a sabedoria deste mundo, que é loucura diante de Deus,
ou a sabedoria da carne que é inimiga de Deus? Julgo, pois, que já não terá motivos de
murmuração o amigo que de passagem esteja entre nós, quando tiver comido este terceiro
pão.

4 Mas, quem o partirá? Aqui está o pai de família: reconhecei o Senhor no partir do
pão. Quem mais idôneo? Certamente, não serei eu que tenha a arrogância dessa temeridade.
Dirigi-vos a mim, sim, mas não o esperais de mim, porque eu sou um dos que esperam o
alimento do meu espírito, mendigando como vós o pão da minha alma. Na verdade, pobre e
indigente, bato à porta daquele que abre – e ninguém fecha –, diante do profundíssimo
mistério deste diálogo. Os olhos de todos esperam em ti, Senhor!. As crianças pedem pão,
mas ninguém lho dá. Tudo esperam da tua bondade. Ó Senhor piedoso, parte o teu pão aos
famintos, ainda que seja com minhas mãos, se for do teu agrado, mas com o teu poder.

III

5 Indica-nos, te suplico, quem diz, a quem diz e de quem se diz: Que me beije com
beijos de sua boca? Que modelo de início é esse, tão repentino e surpreendente, bem mais
próprio de um permeio? Expressa-se de tal modo que parece haver previamente encetado
um diálogo com uma pessoa que é posta em cena, a quem, sem mais, pede um beijo. E se
mendiga ou exige que lhe beije, esse que não sabemos quem é, por que pede expressamente
que se lho dê com sua própria boca, como se todos os que se beijam não o fizessem com a
boca, ou se servissem da boca de outro e não da sua? Tampouco diz: “Que me beije com
sua boca”, mas algo muito mais insinuante: com um beijo de sua boca.
Delicioso poema que se inicia pedindo um beijo! Assim nos cativa esta Escritura
com seu doce semblante e nos provoca que a leiamos. Ainda que nos custe trabalho
penetrar nos seus segredos, com eles se consegue nosso deleite; e que não nos fadigue a
dificuldade de aprofundá-los, se já nos encanta com a suavidade da linguagem. Na verdade,
quem não se sentirá fortemente atraído por esse princípio sem princípio, e a novidade desta
linguagem num livro tão antigo? Concluamos, pois, que se trata de uma obra composta, não
por puro engenho humano, mas por arte do Espírito Santo, a qual, embora de difícil
compreensão, é um deleite procurá-la.

IV

6 Mas, e o título? Esqueceremos dele? De maneira alguma! Não desperdiçaremos


nem um só acento, pois nos foi ordenado recolher os pedacinhos que sobraram, para que
nada se perca. Este é o título: Começa o Cântico dos Cânticos de Salomão. Em primeiro
lugar, observai como o nome de Pacífico – que é o significado de Salomon – convém ao
princípio do livro que começa por um sinal de paz, que é o beijo; observai também como os
convidados a compreender esta Escritura que assim se inicia são unicamente os espíritos
pacíficos, os que se mantêm livres de toda agitação viciosa e de preocupações tumultuosas.

7 Por último, o título não diz somente Cântico, mas Cântico dos Cânticos. Não o
tomeis como uma insignificância, porque encontrei na Escritura muitos cânticos, e não me
recordo de nenhum que assim se denomine. Cantaram os israelitas um cântico ao Senhor
por sua libertação da espada e do jugo do Faraó, quando, por duplo prodígio, do mar os
resgatou e, portentosamente, os vingou. Todavia, se não recordo mal, seu cântico não é
designado como Cântico dos Cânticos. A Escritura o registra assim: Os israelitas cantaram
este cântico ao Senhor. Cantou também Débora, cantou Judite e cantou a mãe de Samuel;
também cantaram alguns profetas. E nenhum cântico se chamou Cântico dos Cânticos.
Por outra parte, verás que, se não me equivoco, todos cantaram alguma graça
recebida, para eles ou para os outros; por exemplo, o triunfo de uma vitória, a libertação de
um perigo, a concessão de algum benefício desejado. Cantaram muitos, cada um por
motivos diferentes, a fim de não ser ingratos diante dos dons de Deus, como está escrito:
Louvar-te-á, quando lhe concedas benefícios. Mas este rei Salomão, único por sua
sabedoria, sublime por sua glória, esplêndido por sua riqueza, protegido com a paz, não
necessitou receber esses favores que inspirassem seu cântico. Nem a Escritura mesma,
nunca, parece insinuá-lo.

8 Divinamente inspirado cantou as glórias de Cristo e da Igreja, o dom do amor


divino e os mistérios das bodas eternas; deixou manifestos os anseios da alma santa, e seu
espírito transportado compôs um poema em amorosos versos, porém, de caráter simbólico.
Na realidade, êmulo de Moisés, também escondia o rosto, fulgurante como o seu, porque
naquele tempo ninguém podia contemplar essa glória com o rosto descoberto. Creio que
esse poema nupcial assim tenha sido intitulado por causa de sua singular excelência. Com
razão se chama expressamente Cântico dos Cânticos, como é chamado Rei dos Reis e
Senhor dos Senhores o destinatário a quem se dirige.

9 Aliás, vós, se apelais para vossa experiência, não cantais também ao mesmo Senhor
um cântico novo, porque fez maravilhas na vossa fé que venceu o mundo, tirando-vos da
fossa fatal e do charco de lodo? De novo, quando assentou vossos pés sobre a rocha e
firmou vossos passos, é de crer que subisse à vossa boca um cântico novo, um hino a nosso
Deus, pela nova vida que vos concedeu. Se Ele perdoou vossos pecados quando vos
arrependestes e, além disto, prometeu premiar-vos, não exultais de gozo com a esperança
dos bens futuros e, entusiasmados, não cantais nos caminhos do Senhor que sua glória é
grande? Quando a algum de vós se fez luz em algum trecho difícil da Escritura – por sua
obscuridade –, ao saborear o alimento do pão celestial, não se sentiu inspirado a cantar um
cântico de júbilo e louvor de uma multidão em festa? Enfim, continuamente experimentais
em vós a necessidade de renovar, cada dia, vossos cantos pelas vitórias que diariamente
conseguis em vossas batalhas e esforços, os quais nunca cessam para os que vivem em
Cristo, lutando contra a carne, o mundo e o diabo, porque a vida do homem sobre a terra é
uma milícia.
Quantas vezes se supera uma prova, se domina um vício, se afasta um perigo
iminente, se descobre o laço do caçador, se cura, de repente e totalmente, uma paixão velha
e inveterada, ou, pela graça de Deus, se consegue, por fim, uma virtude muito desejada e
mil vezes solicitada, não ressoa outras tantas, com diz o Profeta, a ação de graças ao som de
instrumentos, e se bendiz a Deus em seus dons e tantos benefícios? Do contrário, será
julgado como ingrato no último dia todo aquele que não foi capaz de dizer a Deus: No
lugar do meu exílio, vossas leis eram objeto dos meus cantares.

10 Julgo que já haveis descoberto em vós mesmos aquilo que no Saltério recebe o
nome de Cânticos Graduais, e não Cântico dos Cânticos, pois à medida que avançais na
peregrinação que cada qual dispôs em seu coração, entoais cânticos de louvor e glória de
quem vos anima. Doutro modo, não vejo como poderia cumprir-se este verso do Salmo:
Brados de alegria e de vitória ressoam nas tendas dos justos; ou aquela preciosa e tão
espiritual recomendação de Paulo: Expressai-vos entre vós com salmos e cânticos
inspirados, cantando e tocando com toda a alma, para o Senhor.

VI

11 Mas há um cântico que por sua singular sublimidade e doçura supera,


merecidamente, a todos que temos mencionado e a qualquer outro: Chamá-lo-ia, com todo
direito, o Cântico dos Cânticos, porque vem a ser o fruto mesmo de todos os outros. Trata-
se de um cântico que só a unção pode ensinar e só a experiência pode aprendê-lo. O que
goza dessa experiência o identificará; o que não a tem, que arda em desejo de possuí-la, não
tanto para conhecê-la, como para experimentá-la.
Não é um som da boca, mas um júbilo do coração; não uma inflexão dos lábios, mas
uma cascata de gozos, uma harmonia, não de vozes, mas de vontades. Não se escuta de
fora, nem ressoa em público; só a escuta aquele que a canta e aquele a quem se dedica, isto
é, o esposo e a esposa. É simplesmente um canto nupcial que canta os virginais abraços
entre os espíritos, a unidade de vidas, o afeto e o amor da mútua identificação.

12 Finalmente, é incapaz de cantá-lo ou escutá-lo uma alma imatura e ainda neófita,


recém-convertida do mundo, mas é para um espírito já avançado em sua formação, que,
com a ajuda de Deus, cresceu em seus progressos até chegar à idade perfeita e, por assim
dizer, madura em anos para desposar-se. Falo de anos, não como decurso do tempo, mas
como acúmulo de méritos. Assim será idônea para as núpcias celestes com o esposo, tal
como, em seu devido lugar, o descreveremos com a dedicação que merece.
A hora já passou e urge que caminhemos ao trabalho manual, conforme o exige
nossa pobreza e nosso gênero de vida. Amanhã, em nome do Senhor, prosseguiremos com
o que dizíamos sobre o beijo, porque o sermão de hoje foi ocupado pelo título do Cântico.

Segundo Sermão

I – O desejo com que os Padres suspiravam por Cristo, que é o primeiro beijo
II – O único e singular beijo do Homem, Cristo Jesus, que é o segundo beijo
III – O mistério de Cristo revelado antigamente, que é o terceiro beijo
IV – A presença de Cristo manifestada na carne, que é o quarto beijo; o sinal de Acaz

1 Freqüentemente penso no ardente desejo dos Padres, suspirando pela presença


carnal de Cristo, o que me leva a ficar compungido e confundido em mim mesmo. Neste
momento, dificilmente posso conter as lágrimas, tendo vergonha da tibieza e do torpor
destes miseráveis tempos. Porque, qual de nós, diante dessa graça, sente um gozo
semelhante ao desejo com que se abrasavam – só pela promessa! – aqueles santos
antecessores nossos? Sim, são muitos os que se alegrarão na próxima celebração da
Natividade! Mas, oxalá fosse pelo seu Nascimento! Aquele ardente desejo e o afeto de sua
devota espera evocam-me este grito: Que me beije com beijos de sua boca! Todos os que
então podiam ser espirituais sentiam intensamente no seu coração quanta graça se
derramaria naqueles lábios! Por isso, exclamavam como que falando com o desejo de sua
alma: Que me beije com um beijo de sua boca!; e, ardentemente, ansiavam não se ver
frustrados em partilhar tão grande suavidade.

2 Cada um daqueles santos dizia a si mesmo: Para que ouvir tanto palavrório dos
Profetas? Melhor que me beije com beijos de sua boca o mais belo dos filhos dos homens.
Já não mais escuto Moisés: sua boca e sua língua gaguejam; os lábios de Isaías são
impuros; Jeremias não sabe falar porque é uma criança, todos os profetas são como mudos.
Não, não, que me fale aquele que eles anunciavam! Que ele mesmo me beije com beijos de
sua boca! Não mais quero que me falem os seus intermediários, porque são como águas
tenebrosas, densas nuvens, mas ele mesmo me beije com beijos de sua boca, para que o
encanto de sua presença e as correntes de água de sua admirável doutrina se me convertam
em fonte que jorre para a vida eterna.
Se ele, por fim, ungido pelo Pai com o óleo da alegria entre todos os seus
companheiros, se dignasse beijar-me com beijos de sua boca, não derramaria sobre mim sua
graça mais copiosa? Sua palavra viva e eficaz é para mim um beijo, não um simples contato
dos lábios que, às vezes, interiormente, é mera paz fictícia e sim a mais íntima efusão do
gozo que penetra até os secretos mais profundos. Mas, sobretudo, é como uma maravilhosa
intercomunhão de identidade entre a luz suprema e o espírito por ela iluminado, pois aquele
que se une ao Senhor torna-se com ele um só espírito. Por isso, com razão, visões e sonhos
não recebo, representações e enigmas não desejo, e mesmo as espécies angélicas me
desagradam. Porque, a tudo isso o meu Jesus, com sua figura e beleza, supera-o
incomparavelmente. Portanto, a ninguém mais mendigarei que me beije com beijos de sua
boca: nem anjo, nem pessoa alguma.

II

Tampouco pretendo que ele mesmo me beije com sua boca, pois essa felicidade
única e este singular privilégio permanecem reservados exclusivamente à natureza humana
que ele assumiu; mas, humildemente limito-me a pedir-lhe que me beije com beijos de sua
boca, como algo comumente concedido aos que podem dizer: todos nós recebemos da sua
plenitude.

3 Atendei: No primeiro caso, a boca que beija é o Verbo que se encarna; quem recebe
o beijo é a carne assumida pelo Verbo; e o beijo que consuma o que beija e o beijado resulta
ser a pessoa composta por ambos: o mediador entre Deus e os homens, o Homem Cristo
Jesus. Por esta razão nenhum santo se atreveu, jamais, a dizer: “Que me beije com sua
boca”, mas somente com beijos de sua boca. Reconheciam essa prerrogativa como algo
exclusivo daquele a quem o Verbo beijou ardentemente com um beijo nunca interrompido,
ao estreitar-se corporalmente com ele toda a plenitude da divindade.
Feliz e surpreendente beijo por sua admirável concessão, beijo que é muito mais que
simples pressão dos lábios: é Deus se unindo ao homem. Com o contato dos lábios se
intenta expressar a mútua identificação de sentimentos; mas com este outro beijo, essa
união das duas naturezas associa o humano ao divino, estabelecendo a paz entre o céu e a
terra. Ele é a nossa paz, ele que de dois povos fez um só . Por isso, os santos do Antigo
Testamento suspiravam por esse beijo, pressentiam que achariam gozo e exultação onde se
escondem os tesouros da sabedoria e da ciência, e também desejavam receber de sua
plenitude.

4 Sinto que vos agrada o que digo, mas escutai ainda outra interpretação.
III

Aqueles santos não ignoravam que, já antes da vinda do Salvador, Deus acariciava
desígnios de paz sobre a humanidade mortal. Revelava aos profetas, seus servos, todos os
desígnios sobre os homens, ainda que, muitas vezes, eles nãos os compreendessem.
Naquele tempo a fé era rara na terra, e vacilante a esperança, também naqueles que
esperavam a redenção de Israel. Aqueles que a pressentiam, anunciaram que Cristo viria em
carne humana, e, com ele, a paz. Assim, um deles dizia: Ele será nossa paz quando vier à
nossa terra. E mais: apregoavam que os homens, por seu intermédio, com toda segurança
recuperariam a graça de Deus, tal como se lhes havia revelado. João, o Precursor do
Senhor, compreendeu que a promessa se havia cumprido em seu tempo, e testemunhou
assim A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo, e agora, por experiência, todo o povo
cristão sabe que é verdade.

5 Porém, anunciavam a paz, mas como demorava a chegada daquele que podia
estabelecê-la, vacilava a fé do povo, pois não havia quem o libertasse e salvasse. Os
homens se queixavam dessa demora, vendo que não aparecia o Príncipe da Paz, anunciado
que fora, desde séculos, pela boca de seus santos profetas; não confiavam em suas
promessas e imploravam o sinal da reconciliação prometida: o beijo. E se porventura
levantava alguém do povo, gritava assim aos mensageiros da paz: Até quando nos deixarás
na incerteza? Há já muito tempo que nos prometeis a paz, e não chega; anunciais alívio e
só reina a confusão. O mesmo disseram muitas vezes, e de mil maneiras, os mensageiros a
nossos pais, e estes a nós: Paz, paz, e não há paz. Se Deus quer me convencer, que me beije
com beijos de sua boca! Este sinal da paz será primícia dessa paz que repetidamente
promete por seus mensageiros, mas não a manifesta. Como posso continuar confiando em
suas palavras? É preferível que o confirme com obras. Que o Senhor prove a veracidade
dos seus mensageiros – se realmente o são! –, apresentando-se com eles em pessoa, como
tantas vezes o tem prometido; do contrário, serão totalmente inúteis. Enviou seu servo, pôs
seu bastão, mas o menino ainda não fala nem respira. Se o Profeta mesmo não vem e me
beija com beijos de sua boca, não me levantarei, não ressuscitarei, não sacudirei o pó, não
respirarei esperança.

6 Mas, não esqueçamos: Aquele que se apresenta como nosso mediador diante de
Deus é o Filho de Deus e verdadeiro Deus. E que é o homem para que pense nele, que é o
filho do homem para que se cuide dele? Com que confiança posso me atrever a me colocar
nas mãos de tão soberana majestade? Donde eu, terra e cinza, posso presumir que Deus
cuida de mim? Só sei que ele ama seu Pai, não necessita de mim e nem de meus bens.
Então, que prova me resta para saber se é meu mediador?
Se, como assegurais, é verdade que Deus decretou o perdão e pensa ser ainda mais
complacente, que faça já a aliança de paz e grave em mim um pacto perpétuo com o beijo
de sua boca. A fim de que as palavras que saem de seus lábios não sejam sem valor, que se
aniquile, que se humilhe, que se incline e me beije com beijos de sua boca. Para intervir
como mediador neutro entre ambas as partes – e nenhuma o considere suspeito –, que o
Filho de Deus, Deus mesmo, faça-se homem, faça-se filho do homem o Filho de Deus, e
ficarei tranqüilo com esse beijo de sua boca. Aceito, seguro, o Filho como mediador diante
de Deus, pois o reconheço válido também para mim. Já não mais duvidarei dele, pois é meu
irmão, é carne minha. Confio que não poderá desprezar-me, sendo osso de meus ossos e
carne de minha carne.

7 Assim, desde séculos, com seus lamentos, exigiam este sagrado beijo, isto é, o
mistério da Encarnação, à medida que a fé extinguia-se, cansada de tão longa e pesada
expectativa. Também o povo infiel, vencido pelo tédio, murmurava contra as promessas de
Deus. Não é invenção minha, pois também vós o reconheceis pelas Escrituras. Certamente
são suas estas queixas e verdadeiras murmurações: Manda, torna a mandar; espera, volta a
esperar; um pouco aqui, um pouco ali. Suas são também aquelas palavras numa oração
transpassada de piedade: Dá, Senhor, recompensa aos que pacientemente vos esperam, a
fim de que vossos profetas sejam achados fiéis; e também: Renova, Senhor, os desejos que,
em teu nome, expressaram os antigos profetas. Daí procedem aquelas promessas tão ternas
e consoladoras: O Senhor virá sem tardar, ainda que tarde; espera-o que há de chegar; e
noutro lugar: Já está próxima a sua hora de chegar, seus dias não tardarão; e põe na boca
do Messias prometido: Como um rio, derramarei sobre ela a paz, e como uma torrente
transbordante, a glória das nações. Palavras que claramente manifestam a força
comovedora dos profetas e a desconfiança dos povos. Assim, enquanto o povo murmurava
e vacilava na fé, segundo o oráculo de Isaías, os mensageiros da paz choravam
amargamente.
A vinda de Cristo tardava, e o gênero humano como que se consumia em desespero,
considerando-se desprezado por causa de sua condição frágil e mortal. Por isso, os santos,
plenamente seguros do espírito que os possuía, desejavam que sua generosidade fosse
confirmada com a presença corporal de Cristo, e suplicavam um sinal de paz como alívio a
fracos e incrédulos, e assim não desconfiassem da graça da reconciliação com Deus, tantas
vezes prometida.

8 Ó, raiz de Jessé, que te alças como estandarte para os povos, quantos profetas e reis
desejaram te ver e não viram!

IV

Simeão foi o mais feliz de todos, ele que alcançou uma longa velhice por causa de
uma grande misericórdia. Desejava, ardentemente, ver esse sinal desejado; viu, e ficou
repleto de alegria. E após ter recebido o beijo da paz, morreu em paz, profetizando
claramente que Jesus nascera para ser um sinal de contradição. E assim foi, de fato. Quando
surgiu o sinal de paz, tropeçou com a oposição dos que odeiam a paz, pois a paz é para os
homens de boa vontade; aos malévolos é pedra de tropeço e pedra de escândalo. Por isso,
Herodes se perturbou e, com ele, Jerusalém inteira: veio à sua casa, mas os seus não o
receberam.
Ditosos aqueles pastores que velavam à noite, porque mereceram contemplar esse
sinal. Já então se ocultava dos sábios e entendidos, e se revelava aos pequenos. Também
Herodes quis vê-lo, mas não o mereceu por sua má vontade. O sinal da paz era dado
somente aos homens de boa fé; a Herodes e aos seus sequazes, unicamente se lhes dará o
sinal do profeta Jonas. Mas aos pastores o anjo lhes diz: Dou-vos este sinal, a vós, os
humildes, os submissos, os que não pensais em grandezas, que velais dia e noite e meditais
a lei do senhor. Dou-vos este sinal. Que sinal? O que prometiam os mensageiros, o que os
povos reclamavam, que os profetas anunciavam, isso mesmo acaba de consumá-lo o Senhor
Jesus, e o revela a vós, a fim de que os incrédulos recebam a fé, os fracos a esperança e os
santos a sua segurança. Dou-vos este sinal. Sinal de que? De perdão, de graça, de paz, e paz
que não terá fim. Isto é o sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e posto
numa manjedoura. Mas nele há um Deus reconciliando o mundo consigo. Morrerá por
vossos pecados, ressuscitará para vossa justificação, e, justificados pela fé, permanecereis
em paz com Deus. É esse sinal de paz que um Profeta outrora propunha ao rei Acaz que
pedisse ao seu Deus e Senhor, seja no alto dos céus, seja no fundo da habitação dos mortos.
Mas aquele rei ímpio recusou, não crendo que com esse sinal pudesse reconciliar-se na paz,
o mais sublime com o mais baixo; que ao descer o Senhor à mansão dos mortos, estes
foram salvos com o beijo santo para receber o sinal da paz, e para que os espíritos celestes
participassem de suas delícias eternas quando regressassem aos céus.

9 Mas temos de concluir o sermão. Resumindo tudo o que temos dito, ficou claro que
esse beijo santo foi concedido ao mundo por dois motivos: para devolver a fé aos fracos e
culminar as aspirações dos santos; e que, em definitivo, o beijo como tal não é senão o
Mediador entre Deus e os homens, o Homem Cristo Jesus e Deus, que vive e reina com o
Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.
Terceiro Sermão

I – O primeiro beijo moral, que se recebe nos pés


II – O segundo beijo, que se recebe nas mãos
III – O terceiro beijo, que é o da boca

1 Hoje abrimos o livro da experiência. Voltai-vos para vós mesmos e que cada qual
escute na sua consciência o que vamos dizer.
Gostaria de saber se algum de vós recebeu o dom de, sinceramente, poder dizer:
Que me beije com beijos de sua boca! Em verdade, nem todos podem dizer isso. Só quem
haja recebido, ao menos uma vez, da boca de Cristo o beijo espiritual voltará a desejar essa
experiência pessoal, e a repetirá com prazer. Creio que ninguém pode saber o que é isso
senão quem experimentou. É um maná escondido e só o que o saboreou quererá mais; é
uma fonte selada que não se abre a estranho; só quem dela bebe sempre terá sede.
Escutai alguém que o experimentou e vede como insiste: Devolve-me a alegria de
teu Salvador. Que tal coisa não ocorra, arrogar-se uma alma como a minha, carregada de
pecados e escravizada pelas próprias paixões, que ainda não experimentou as delícias do
espírito, ignorante e absolutamente inexperiente dos gozos mais íntimos.

2 Todavia, a quem se acha nessa situação, mostrarei seu lugar junto ao Salvador. Não
cometa a temeridade de acercar-se à boca de tão sereníssimo Esposo, mas prostre-se
comigo, timidamente, aos pés do severíssimo Senhor e, tremendo, com os olhos em terra e
não no céu, como o publicano. Não aconteça que seus olhos, acostumados já às trevas, se
deslumbrem com a glória e sejam ofuscados por seus astros; porque, feridos por esse
insólito esplendor, ver-se-iam envoltos na cegueira de uma obscuridade muito mais
impenetrável.
Tu, quem quer que sejas, não consideres vil e desprezível o lugar onde a santa
pecadora se despojou de seus pecados para revestir-se de santidade. Ali mudou sua pele a
mulher da Etiópia e, recuperando uma nova brancura, dizia com verdade e confiança, aos
que a injuriavam: Sou morena mas sou formosa, filhas de Jerusalém. Não imaginas a que
meios recorreu ou com que méritos o conseguiu? Dir-te-ei já em seguida.
Chorou amargamente e exalou profundos suspiros desde suas mais íntimas
entranhas e, agitada interiormente por salutares soluços, vomitou todo o fel de seu coração.
Acorreu pressurosa ao médico celestial, porque sua palavra corre velozmente. A palavra de
Deus não é uma bebida medicinal? Sim, é, e é também forte e eficaz, sondando o coração e
as entranhas. Enfim, a palavra de Deus é viva e eficaz, mais penetrante do que uma espada
de dois gumes, atingindo até a divisão da alma e do espírito, das juntas e medulas, e
discerne os pensamentos e intenções. A exemplo desta ditosa penitente, prostra-te também
tu, desditosa, e deixarás de sê-lo; prostra-te também tu em terra, abraça seus pés, cobre-os
de beijos, rega-os com tuas lágrimas, não para lavá-lo, mas a ti mesma, e assim serás como
ovelha de um rebanho tosquiado, recém-saído do banho. Não te arrisques a levantar teu
rosto abatido de vergonha e tristeza, até que tu mesmo escutes estas palavras: Os teus
pecados estão perdoados; levanta-te, levanta-te cativa filha de Sion, levanta-te e sacode o
pó que te cobre.

II
3 Recebido em seus pés o primeiro beijo, não presumas imediatamente levantar-te
para receber o beijo da boca; mas, gradualmente ser-te-á dado outro beijo intermediário, na
mão. Escuta por quê: se Jesus me diz os teus pecados estão perdoados, de que isso me
serve se não deixo de pecar? Deixei a minha túnica, mas, se volto a pô-la, o que me
adianta? Lavei os pés, mas se volto a sujá-los, de que vale os ter lavado? Manchado com
toda a classe de vícios, jazia num charco de lodo; mas, sem dúvida, será pior voltar a cair
nele. Recordo-me do que disse aquele que me curou: eis que ficaste curado; já não peques,
para não te acontecer coisa pior.
Mas, aquele que me provocou o desejo de arrepender-me, deve me dar também
força para conter-me; porque se volto a desenfrear-me, meu fim será pior do que o começo.
Por muito penitente que seja, ai de mim, se ele retira de mim a sua mão, porque sem ele
nada posso fazer. Nada, digo eu, nem me arrepender, nem me conter. Por isso o que
aconselha o Sábio: Não multipliques as palavras da tua oração. Temo que o Juiz corte a
árvore que não dá bom fruto. Reconheço que não viverei feliz com minha primeira graça,
pela qual me arrependo de todos os meus pecados, se não recebo a segunda: dar bons frutos
de penitência e não voltar ao vômito, como o cão.
4 Todavia, terei de pedir e receber tudo isso sem precipitar-me por chegar ao mais
sublime e sagrado. Não quero chegar de repente ao cume: quero subir lentamente. Porque
assim como a impudência do pecador desagrada a Deus, a modéstia do penitente lhe é
agradável. Ganharás muito mais se te contentares com o que tens, sem te preocupares com
o que te ultrapassa. Dos pés à boca é um largo passo, e nada fácil; nem é oportuno dá-lo.
Ainda coberto de pó, como atrever a acercar-te de sua sagrada boca? Arrancado ontem da
lama, como hoje apresentar-te diante do seu glorioso rosto? Utiliza as mãos para consegui-
lo; elas te purificarão e te erguerão.
Como podem erguer-te? Dando motivos para que te atrevas. Quais? A beleza da
continência e os frutos de uma digna penitência, como são as obras de piedade. Isso te
alçará do monturo à esperança de atrever-te a algo mais sublime. Assim, recebido esse dom,
já beija sua mão, isto é, dá glória a seu nome e não a ti mesmo. Dá uma vez, dá sempre,
pelos pecados perdoados e pelas virtudes recebidas. Do contrário, como poderás te defender
destas palavras do Apóstolo: O que tens que não hajas recebido? E se recebeste, por que te
orgulhas como se não as tivesse recebido?

III

5 Com estes dois beijos, já tens, então, uma dupla experiência do favor divino e, por
certo, ousarás a algo mais santo. Pois, quanto mais cresças em graça, tanto mais dilatar-se-á
tua confiança. Amarás mais ardentemente e baterás à porta com mais confiança, para obter
aquilo de que sentes falta. Porque ao que bate, se lhe abrirá.
Espero que com estes sentimentos, há não te seja negado o mais maravilhoso de
todos os beijos, porque é o supremo favor e a mais sublime doçura. Este é o caminho, este é
o processo. Primeiro caímos prostrados aos seus pés e choramos o que temos feito diante do
Senhor que nos fez; depois buscamos a mão que nos levante e fortaleça nossos joelhos
vacilantes. Por fim, quando, à força de oração e lágrimas o temos conseguido, ousamo-nos
levantar nossa cabeça até sua gloriosa boca, temendo e tremendo, não só para contemplar,
mas também para beijar o Ungido do Senhor, alento de nossa boca ao qual nos unimos com
o ósculo santo, para sermos, por sua graça, um só Espírito com ele.

6 A ti, Senhor Jesus, para ti tende o meu coração: Minha face te busca, tua face
buscarei, Senhor. Com efeito, pela manhã me deste a conhecer tua misericórdia, quando,
todavia prostrado no pó, beijei teus sagrados vestígios e perdoaste minha vida desordenada.
Depois, ao avançar do dia, alegraste a alma do teu servo quando, ao beijar a tua mão,
concedeste-me a graça de viver retamente. Que me resta agora, bom Senhor, senão que te
dignes consentir que eu beije tua boca, na plenitude do meio-dia e com o fogo do Espírito, e
assim saciar-me de gozo em tua presença? Indica-me, ó delicadeza e calma infinita, indica-
me onde apascentas o teu rebanho, onde o levas a repousar ao meio-dia!
Irmãos, é bom estarmos aqui, mas o trabalho de cada dia nos chama. Avisam-me
que acabam de chegar alguns, e isso me obriga, não a terminar, mas a interromper este
agradável sermão. Sairei eu mesmo a acolher nossos hospedes; não aconteça que deixemos
de cumprir os deveres da caridade que pregamos. Assim, também nós não teremos de
escutar: eles falam, mas não fazem. Entretanto, irmãos, orai a fim de que o Senhor aceite as
palavras que pronuncio para vossa edificação e para louvor e glória de seu nome.
Quarto Sermão

I – O que é o beijo recebido nos pés


II – O que é o beijo recebido nas mãos
III – Deus tem pés, mãos e boca, por efeito, não por natureza; todo ser deve a Deus sua existência

1 O sermão de ontem estava centrado numa espécie de tríplice progresso da alma,


representado nos três beijos. Recordais? Hoje devo prossegui-lo na medida em que Deus,
na sua bondade, se digne ajudar os pobres.
Falamos, se recordais, do beijo que se recebe nos pés, nas mãos e na boca,
correspondendo, cada beijo, a um estado distinto. Com o primeiro se consagram os
começos da nossa conversão; o segundo se concede aos que nela vão avançando; e o
terceiro é uma exclusiva experiência para os perfeitos, que são poucos. Somente com esse
que mencionamos em terceiro lugar começa a passagem da Escritura que nos propomos
comentar. E, por esta razão, acrescentamos os outros dois beijos. Vós julgareis se valeria a
pena fazê-lo. Estranharia que não houvesse ocorrido a vós mesmos. Efetivamente teve de
pensar noutra classe de beijos que se diferenciam do beijo da boca aquele que disse: Que
me beije com beijos de sua boca!. Se bastava que simplesmente dissesse “que me beije”,
por que recorreu a uma inusitada expressão e acrescentou “com beijos de sua boca”? Não
nos mostra assim que o beijo que solicitava é o sumo, mas não o único? Porque entre nós
sempre nos expressamos de outra maneira: “beija-me”, ou: “dá-me um beijo”. Ninguém
acrescenta: “com tua boca”, ou “com beijos de tua boca”. Quando vamos nos beijar, não
aproximamos nossa boca? Mas não no-lo pedimos mutuamente. Por exemplo, aquele que
nos narra o beijo que o traidor deu ao Senhor, diz simplesmente: E o beijou. Não
acrescenta: “com sua boca”, nem “com um beijo de sua boca”. Do mesmo modo costumam
dizer todos quantos escrevem ou falam.
Essas três afeições ou progressos da alma só conhecem claramente aqueles que têm
experiência, isto é, os que chegam a perceber o perdão dos seus pecados, ou a graça de
fazer o bem, ou a presença mesma daquele que os perdoou e ajudou, ainda que seja só com
as limitações inerentes ao nosso frágil corpo.

2 Agora escutais com mais detalhes a razão pela qual chamei beijos ao primeiro e ao
segundo. Como todos sabemos, o beijo é sinal de paz. Portanto, se como a Escritura diz:
são vossos pecados que criam separação entre vós e Deus, afastemos do nosso meio o que
nos separa, e reinará a paz. Conseqüentemente, se por nossa penitência nos reconciliamos
arrancando o pecado que nos enfrenta, o que é o perdão que recebemos senão isso que
temos chamado “um beijo de paz”? Agora só podemos recebê-lo nos pés, porque nossa
satisfação deve ser humilde e modesta, para corrigir-nos de nossa soberba.

II

3 E quando nos movemos nesse ambiente tão agradável da graça que nos envolve,
para viver mais ordenadamente e manter mais dignas relações com Deus, podemos, já com
maior confiança, levantar a cabeça do pó e beijar a mão do benfeitor, como é costume. Com
uma condição: não buscar nossa glória pelo bem recebido, mas a daquele que no-lo deu,
nem atribuirmos seus dons a nós, mas a ele. Porque se vives orgulhoso de ti mesmo, e não
do Senhor, serás acusado de beijar a tua mão, e não a dele. E isso, como diz o santo Jó, é o
maior crime, pois equivale a negar Deus. Portanto se, como atesta a Escritura, o que busca a
sua própria glória busca sua mão, também é lícito afirmar que quem busca a glória do
Senhor beija a mão de Deus. O mesmo acontece nesta vida: os servos que ofenderam os
seus senhores costumam beijar seus pés quando lhes pedem perdão; mas os pobres beijam a
mão dos ricos quando recebem sua esmola.

III

4 Em verdade, Deus é espírito e uma substância simples que não necessita de


membros corporais. Talvez por isso alguém negue haver recebido algo semelhante, e me
exija que lhe mostre as mãos e os pés do Senhor para provar o que afirmo sobre o beijo dos
pés e das mãos. E o que me responderia se eu lhe exigisse o mesmo sobre a boca de Deus
para demonstrar que a Escritura se refere a Deus quando fala do beijo da boca? Porque, se
tem boca, também tem pés e mãos. E se tem boca para ensinar os homens, também tem
mãos para dar alimento a todos os viventes, e pés para pô-los sobre a terra como seu
estrado, diante dos quais se prostram os pecadores da terra, convertidos e humilhados.
Isso o aplicamos a Deus, fixando-nos nos efeitos, não em sua natureza. Graças a isso
encontramos em Deus estímulos para nos arrependermos, temerosamente, e para
prostrarmo-nos com toda humildade; para servi-lo generosamente, renovando-nos com
maior firmeza; para contemplá-lo com gozo e descansar nos êxtases. Aquele que tudo
governa é tudo para todos, embora, propriamente, não é nada disso.
Pois em si mesmo é uma luz inacessível e sua paz supera toda inteligência, sua
sabedoria não tem limitee sua grandeza é sem fim, e ninguém pode vê-lo e continuar vivo.
Mas não é um ser distante de cada um de nós, posto que todos recebem dele o ser, e sem ele
tudo se reduz a puro nada. Pasmai-vos ainda mais: nada está mais presente e é mais
incompreensível do que ele. Há alguém tão presente em toda criatura? E, no entanto, há
alguém mais incompreensível que o ser de todas as coisas? Eu diria que Deus é o Ser de
todos os seres, não porque estes sejam o que ele é, mas porque é origem, caminho e meta de
todo ser. Portanto ele é o ser e criador de todo o criado, mas causal, não material. Dessa
maneira sua majestade se digna ser para todas as suas criaturas aquilo que são: vida para
todo vivente, luz para toda razão, força para todo virtuoso, glória para todo vencedor.

5 Ele que com uma única palavra criou todos os seres materiais e espirituais não
necessita de instrumento corporal algum para criá-los, governá-los, regê-los, movê-lo,
incrementá-los, renová-los e consolidá-los. As almas humanas necessitam de um corpo com
sentidos corporais para expressarem-se mutuamente e subsistir. Não assim o Onipotente!
Basta-lhe sua vontade, a cuja disposição, célere, atua sua eficiência, tanto para criar, como
para organizar os seres ao seu beneplácito. Exerce seu poder sobre o que quer, quanto quer
e sem se valer da submissão dos membros corporais. Ou crês que necessita da cooperação
dos sentidos para contemplar sua própria criação? Nada absolutamente se lhe oculta e nem
pode fugir de sua luz, presente em todo lugar. Tampouco precisa recorrer aos sentidos para
conhecer qualquer coisa. Não só conhece tudo sem necessidade de corpo: também sem ele
se deixa conhecer pelos puros de coração.
Estou me repetindo muito para que tudo fique mais claro. Talvez seja melhor deixá-
lo para amanhã, porque já não o permite a urgência de acabar o sermão.

Quinto Sermão

I – Sobre as 4 classes de espíritos e de que modo necessitam um corpo: o animal, o homem e o anjo
II – Sobre a questão do corpo angélico
III – Como o espírito, que é Deus, não necessita de corpo, nem para si, nem para outro

1 Há quatro classes de espíritos. Sabeis quais são: o animal, o nosso, o angélico e o


que criou os três. Todos eles necessitam de um corpo, ou da semelhança de um corpo, para
si ou para dirigir-se a outro, ou para ambas as coisas. A única exceção corresponde a este
perante o qual toda criatura, tanto corporal como espiritual, deve reconhecer com toda
justiça: Tu és meu Deus, porque não necessitas dos meus bens. O primeiro desses espíritos
necessita de tal maneira um corpo que sem ele não pode, de modo algum, nem subsistir; a
tal ponto que no mesmo momento de sua morte deixa de dar a vida ao animal, e ele mesmo
se extingue. Quanto a nós, vivemos depois da extinção do corpo, mas nenhum de nós pode
se dirigir nem chegar à felicidade eterna senão através do corpo. Assim o experimentou
aquele que dizia: o invisível de Deus se torna visível através de suas obras. Pois não
podemos conhecer as obras criadas, o visível e corporal deste mundo, senão graças aos
sentidos do corpo.
Portanto essa criatura espiritual que somos nós necessita de corpo; sem ele, é
totalmente incapaz de chegar a qualquer conhecimento que nos proporcione a felicidade. E
se agora me objetassem que as crianças batizadas que morreram sem ter conhecido as
realidades corporais não podem passar à vida dos bem-aventurados, responderia
simplesmente que isso lhes é concedido pela graça, e não pela natureza. E por que me vêm
com os milagres de Deus, se estou falando das coisas naturais?

2 E que os espíritos celestes necessitam de corpo, no-lo certifica esta sentença


verdadeiramente divina: Não são todos os anjos espíritos ao serviço de Deus, que lhes
confia missões para o bem daqueles que devem herdar a salvação? E sem um corpo, como
poderão cumprir esse serviço, sobretudo quando atuam em favor daqueles que vivem no
corpo? Enfim, é exclusivo dos corpos mudar de um lugar para outro; e isso os anjos com
freqüência fazem, conforme no-lo demonstra uma conhecida e indubitável autoridade;
assim apareceram e conversaram com os Pais, comeram com eles, lavando-lhes os pés.
Assim, pois, os espíritos inferiores e superiores necessitam de seus próprios corpos, não
para deles servir-se, mas para servir os demais.

3 Mas o animal, por exigências de sua condição, só pode prestar seu serviço para as
necessidades materiais e temporais; por isso, seu espírito se dilui com o tempo e morre com
o corpo. É que um criado tampouco permanece sempre em casa, ainda que por seu digno
serviço consiga um prêmio que dure para sempre, em atenção aos frutos de seu serviço
temporal. O anjo, por sua parte, serve e anda solícito para cumprir seus deveres de caridade
na liberdade do espírito, com alegre prontidão e mostrando-se como servidor dos bens
futuros aos mortais, porque um dia serão seus concidadãos para sempre e co-herdeiros da
felicidade celeste.
Ambos necessitam de seus corpos: o animal, porque seu ser o exige; o anjo, para,
por amor, ajudar o homem. Quanto ao mais, não vejo em que lhes possa servir para sua
eternidade; porque o espírito irracional, ainda que por seu corpo goze de um conhecimento
sensível, por acaso pode utilizá-lo para elevar-se até as realidades espirituais da inteligência
através das coisas sensíveis que experimenta? Todavia, aproveitam-se do seu serviço
corporal e temporal para conseguir essas realidades os que prescindem do uso dos bens
materiais para o gozo do eterno, porque usam deste mundo como se não usassem.

4 Quanto ao espírito celeste, por afinidade com Deus e pela vivacidade de sua
natureza, é capaz de compreender o mais sublime e penetrar no mais íntimo, sem concurso
do corpo e sem nada perceber com os sentidos. Não o entendia assim o Apóstolo quando
dizia: As perfeições invisíveis de Deus se tornaram visíveis, acrescentando imediatamente:
para a criatura humana? Porque para a criatura celeste não era assim.
O espírito oriundo da terra e envolto na carne se esforça para avançar, gradual e
lentamente, à contemplação das criaturas. Mas o espírito que habita nos céus, por sua
sutileza e sublimidade, consegue-o com toda facilidade e rapidez, sem contar com qualquer
apoio dos sentidos corporais, sem ser ajudado pelo serviço de algum membro do corpo, sem
informar-se mediante a percepção de ser corporal de espécie alguma.
Que necessidade tem de esquadrinhar entre o corporal as realidades espirituais
aquele que tudo vê no livro da vida e o entende sem equívoco possível? Por que fatigar-se
em sacudir a semente da palha, pisar o lagar ou espremer as azeitonas, aquele que tem de
tudo e nada lhe falta? Quem, de casa em casa, mendigaria seu sustento, se de sobra o pão
tivesse em sua casa? Quem se mataria para cavar um poço e extrair os veios d’água das
entranhas da terra, se já tem um manancial do qual fluem profusamente as águas mais
límpidas? Portanto, nem o espírito do animal nem o do anjo se valem do corpo para
alcançar os bens que tornam feliz a criatura espiritual; o primeiro, porque não os capta por
sua natural torpeza; o segundo, não o necessita pela prerrogativa de sua glória mais
excelente.

5 Quanto ao espírito do homem, que ocupa um lugar intermédio entre o supremo e o


ínfimo, é evidente que de tal maneira necessita de um corpo que sem ele não pode nem
realizar-se a si mesmo, nem ajudar os demais. Pois – para não mencionar os demais
membros de seu corpo, nem sua finalidade –, se não tivesse língua, como poderia instruir
ao que escuta, ou, sem ouvidos, atender ao que o ensina?

6 Por isso, sem o apoio do corpo, nem o espírito do animal pode cumprir os deveres
de sua condição servil, nem a criatura espiritual do céu seus serviços de caridade, nem a
alma racional se bastaria para ocupar-se de sua salvação e da do próximo.
É , pois, evidente, que todo espírito criado necessita, absolutamente, da cooperação
de um corpo: para o bem de outros, para o próprio, ou para ambas as coisas. E esses
animais que são incômodos ou que nenhum serviço prestam ao homem? Se não são
proveitosos, ao menos recreiam a vista de quem os contempla; e assim podem ser mais
úteis para os corações de quem os vê, do que para os corpos de quem os usa. Embora sejam
nocivos e até perigosos para a saúde do homem, de algum modo cooperam para o bem
daqueles que, por desígnios de Deus, foram chamados. Se não os alimentam e nem os
servem, ao menos os impulsionam a exercitar a inteligência e melhor compreender o plano
universal – coisa muito digna de um ser dotado de razão –, segundo o qual se pode,
facilmente, contemplar o invisível através do que Ele criou.
Tampouco o diabo e suas legiões, por sua perversa intenção, jamais cessam no seu
constante afã de causar dano; mas nunca o conseguem frente a esses perfeitos rivais seus,
citados nestas palavras: se fordes zelosos do bem, que vos poderá fazer de mal?. Ao
contrário, ainda que a seu pesar, muito ajudam os bons a manter-se no bem.

II

7 Quanto aos corpos dos anjos, podemos nos perguntar se lhes corresponde por sua
natureza mesma, como aos homens, e se são corpos animados como os nossos, ainda que
imortais, o que ainda não são os humanos; ou se podem transformar seu corpo para adotar a
forma e a espécie que eles desejam, quando querem aparecer, materializando-se ou
sutilizando-os a seu gosto, apesar de que, na realidade, devido à natural sutilidade de sua
substância, são totalmente impalpáveis e invisíveis.
Mas não me pergunteis se, subsistindo numa natureza simples e espiritual, tomam
um corpo quando o necessitam e, cumprida a sua missão, devolvem-no para que se dissolva
na mesma matéria da qual o tomaram. Neste ponto, parece que os Padres tiveram opiniões
diversas, e eu não vejo claramente qual delas deveria vos expor; confesso que não sei.
Aliás, creio que sabê-lo tampouco importa muito para vosso aproveitamento.

8 Mas deveis saber que nenhum espírito criado pode aproximar-se imediatamente ao
nosso; de tal modo que necessita o concurso de algum instrumento corporal, seu ou nosso,
para interpor-se ou introduzir-se em nós. Ainda quando por sua intervenção poderíamos
saber mais ou ser melhores; nenhum anjo, nem alma alguma pode fazer isto comigo, nem
eu a nenhum outro; nem sequer os anjos entre si.

III

Reservamos, portanto, essa prerrogativa ao Espírito supremo e ilimitado, o único


que educa o anjo e instrui o homem, sem necessidade de recorrer ao nosso ouvido para que
o escutemos, nem à boca para falar-nos. Infunde-se por si mesmo e por si mesmo se dá a
conhecer. Ele é puro e só os puros de coração o conhecem. É o único que não necessita de
nada, o único que se basta a si mesmo e a todos com sua onipotente vontade.

9 Todavia, realiza inumeráveis maravilhas por meio das criaturas visíveis e espirituais
a ele submetidas, mas como ordenando, e não mendigando. Agora, por exemplo, se serve
da minha língua para atuar em vós, ensinando-vos. Poderia fazê-lo por si mesmo, mais
facilmente e sem dúvida com maior ternura; mas é uma conseqüência de sua bondade, não
de sua indigência. Não o faz para que o ajude, mas para que vosso progresso seja para mim
fonte de méritos. E assim deve senti-lo toda pessoa que faça o bem, para que não se
envaideça pelos bens do Senhor, mas que se glorie no Senhor.
Outros fazem o bem, mas com pesar. Assim o homem malvado ou o anjo perverso; é
claro que fazem o bem, mas não para eles, pois nenhum bem pode servir a alguém que o
realiza contra a sua vontade. É certo que só lhe confiam um serviço, mas não concebo como
podemos agradecer e alegrar-nos por um bem recebido de tão péssimo administrador. Esta é
a razão pela qual concede bens aos bons valendo-se dos maus, mas não porque necessite de
suas obras para fazer o bem.

10 Quem pode duvidar que Deus necessita menos ainda dos seres privados de razão
ou sentidos? Mas quando, também eles, concorrem para algo bom, torna-se palpável que
todos os seres o servem e, como toda razão, pode dizer: minha é toda a terra. E visto que
sabe quais são os bens que escolhe para operar mais oportunamente, busca não tanto a
eficácia como a conveniência para servir-se das criaturas corporais. Demos, pois, por
assentado que freqüentemente recorre à colaboração das obras materiais para suas obras
divinas.
Assim, por exemplo, se vale da chuva para vivificar as sementes, multiplicar as
colheitas e amadurecer os frutos. E me pergunto: para que necessitaria ter um corpo
material aquele a quem, a seu menor sinal, todos os seres obedecem, sem diferença alguma,
os do céu e os da terra? Se todos lhe pertencem, para nada lhe serviriam.
Termino, porque se pretendesse esgotar tudo o que a este propósito poder-se-ia dizer
neste sermão, seria longo e cansaria a alguns. Por isso, deixaremos o que resta para acabá-
lo noutra ocasião.

Sexto Sermão

I – Deus se basta para fazer tudo, só com a anuência da sua vontade; comparação entre as obras de
sua majestade e a redenção
II – Os dois pés de Deus e como se deve entendê-los
III – Os dons de graça que se recebe desses pés

1 Para enlaçar este sermão com o anterior, recordais como dizíamos que o Espírito
soberano e ilimitado não necessita a ajuda nem os serviços de um corpo para quanto queira
realizar ou deseje que suceda? Reconheçamos em Deus, sem vacilação, dois atributos: a
imortalidade e a incorporeidade. Só ele transcende a universal natureza corporal dos
espíritos, de modo que não recorre a corpo algum para nenhuma obra sua, pois lhe basta seu
querer espiritual quando decide executar o que lhe apraz. Só essa majestade é a única que
exclui todo instrumento corporal, tanto para si como para os outros. Suas obras brotam,
imediatamente, de sua onipotência e sua decidida deliberação; todo soberbo se dobra diante
dela, toda resistência cede, mas sem intervenção nem ajuda de nenhum outro ser corporal
ou espiritual. Sem língua, ensina e corrige; sem mãos, dá ou recebe; sem pés, corre para
socorrer todo aquele que perece.

2 Assim, freqüentemente, comportava-se com os Patriarcas dos primeiros tempos; os


homens recebiam seus contínuos benefícios, mas seu benfeitor se ocultava. Com vigor
atingia de extremo a extremo e, com acerto governava o universo, embora os homens não o
advertissem. Gozavam dos bens do Senhor e desconheciam o Senhor de todo poder, porque
tudo dirige com infinita moderação. Por ele existiam, mas não estavam com ele; por ele
viviam, mas não para ele; por ele podiam conhecer, mas não o reconheciam, por viverem
aturdidos, ingratos, insensatos. Por isso chegaram a não referir a seu Autor as suas próprias
vidas, o seu conhecimento, pois tudo atribuíam à natureza ou, mais estupidamente, ao
acaso. E se arrogavam muitas outras coisas à sua própria habilidade, ou ao seu poder.
Quanto usurpou para si o espírito sedutor, quantas coisas se atribuíram ao sol ou à lua,
quantas atribuídas à terra ou ao mar, quantas às obras feitas pelos mortais! Ervas, arbustos e
as mais vis e insignificantes sementes recebiam o tratamento de deuses.

3 Ai, a tal extremo chegou a degradação dos homens que trocaram sua glória pela
imagem de um bezerro que come erva! Mas Deus se compadeceu de seus extravios,
dignou-se sair da montanha sombria e tenebrosa, e armou sua tenda ao sol. Ofereceu carne
aos que saboreiam carne, para que aprendessem a saborear o espírito. Assim, na carne e
através da carne, realizou obras impróprias da carne, porque correspondem a Deus.
Impondo-se à natureza e superando o acaso, demonstrou que o saber deste mundo é loucura
e dominou a tirania dos demônios, dando assim a conhecer, claramente, que ele é o ser que
criava tudo o que existia.
Repito que na carne e através da carne fez proezas manifestas com seu poder,
revelou a salvação, padeceu toda afronta, assim evidenciando que ele poderosa e
invisivelmente tudo criou, sabiamente governava-o e cuidava-o com sua bondade. Por fim,
anuncia a boa nova aos ingratos, mostra seus sinais aos incrédulos e ora por aqueles que o
crucificam. Não manifestava, assim, que ele, junto com seu Pai, faz nascer o sol sobre maus
e bons, e envia a chuva sobre justos e injustos? Ele mesmo dizia, expressamente: Se eu não
faço as obras de meu Pai, não me creiais.

4 Vede como ele, na montanha, abre sua boca para ensinar seus discípulos, ele que, no
Céu, silenciosamente instrui os anjos; vede como ao contato de suas mãos cura a lepra,
desaparece a cegueira, cura a surdez, solta a língua dos mudos, ergue das águas o discípulo
que está a ponto de perecer, e não há dúvida que é aquele mesmo do qual muito antes Davi
havia dito: Basta abrirdes as mãos para saciardes com benevolência todos os viventes; e,
de novo: Abris a mão e se fartam de bens. Vede como escuta a pecadora arrependida,
prostrada aos seus pés: teus pecados estão perdoados, e reconhecei aquele de quem muito
tempo atrás se havia escrito: diante de seus pés sairá o diabo.
E, de fato, quando se perdoa os pecados, o diabo é arrojado do coração do pecador.
Por isso, quando alguém se arrepende, geralmente se diz: Agora é o juízo deste mundo;
agora será lançado fora o príncipe deste mundo, a saber, a quem humildemente confessa o
seu pecado, Deus perdoa, e o diabo, que invadira o coração da pessoa, perde seu poderio.

5 Finalmente, caminha sobre as águas com seus pés de carne, como já o havia predito
o Salmista, antes que se revestisse da carne: tu abriste um caminho nas águas, uma senda
nas águas caudalosas, isto é, pisas os corações inchados dos soberbos e reprimes os desejos
libertinos dos carnais, porque santificas os ímpios e humilhas os soberbos. E visto que tu o
realizas invisivelmente, o carnal ignora quem o faz. Daí que continua: não ficando restos de
tuas pegadas. Por isso o Pai diz ao seu Filho: Assenta-te à minha direita, até que eu faça de
teus inimigos o estrado de teus pés, isto é, até que estejam submetidos à tua vontade todos
que te desprezam, quer resistam e permaneçam miseráveis, quer aceitem e sejam ditosos.
Pois isto é obra do Espírito e a carne não o percebe: o homem animal não apreende as
coisas que são do Espírito de Deus e, por isso, foi necessário que a pecadora se prostrasse,
corporalmente, aos seus pés e os beijasse com seus lábios, para receber o perdão dos
pecados. Desse modo, até os carnais conheceram aquela mudança da destra do Altíssimo,
pela qual, maravilhosa, mas invisivelmente, justifica o ímpio.

II

6 Contudo, não posso deixar de falar-vos sobre os pés espirituais de Deus, os quais, o
arrependido, deve, em primeiro lugar, beijar espiritualmente. Conheço vossa curiosidade,
sobremaneira ansiosa de saber tudo. Tampouco podemos passar por alto a que pés se refere
a Escritura, quando tão freqüentemente fala sobre Deus; ora está em pé: Adoremo-lo no
lugar onde se manteve em pé; ora anda: habitarei e andarei com eles; ora corre: exulta,
como um gigante que se apressa a correr o seu caminho. Se o Apóstolo acreditou que a
cabeça de Cristo guarda relação com a sua divindade, penso que também nós podemos,
com propriedade, considerar que seus pés pertencem à sua humanidade: um representa a
misericórdia, outro a justiça.
Duas palavras que conheceis muito bem e, se recordais, ambas aparecem em muitos
lugares da Escritura. A Carta aos Hebreus nos diz que Deus assumiu o pé da misericórdia
na carne à qual se uniu, ao afirmar que Cristo, para alcançar a misericórdia, foi provado em
tudo, igual a nós, exceto no pecado. E o outro pé que representa o julgamento? Não diz,
claramente, o mesmo Deus e Homem que esse julgamento também pertence à natureza
humana que assumiu? Ele assegura que seu Pai lhe deu autoridade para fazer julgamento,
porque é Filho do Homem.

7 Com esses dois pés harmonicamente juntos, sob a cabeça unitária da divindade, se
deixou ver no mundo o invisível Emanuel, nascido de mulher, submisso à lei e viveu entre
os homens. Com esses pés passa agora fazendo o bem e curando os oprimidos pelo diabo,
mas espiritual e invisivelmente; com eles penetra também nos espíritos generosos,
purificando-os, ele que sonda os corações e as almas dos fiéis. Ocorre-me agora se não
serão essas as pernas do esposo, que com tantos elogios admira a esposa, quando as
compara, se não me engano, com umas colunas de mármore apoiadas em pedestais de ouro.
E o faz com grande acerto, porque na Sabedoria de Deus, que se fez carne, que foi
comparada com o ouro, se encontram a misericórdia e a fidelidade. Por isso, todos os
caminhos do Senhor são graça e lealdade.
III

8 Feliz a alma na qual o Senhor Jesus fixa, de uma vez, esses dois pés! Por esses dois
sinais podeis discernir quem foi favorecido com esse dom: aquele que traz consigo a marca
indelével de suas divinas pegadas: o temor e a esperança. Esta representa a imagem da
misericórdia, e aquela a do julgamento. Com razão o Senhor aprecia os que o temem e
confiam em sua misericórdia, porque o temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e a
esperança o seu crescimento; mas a consumação está reservada ao amor.
Nesta perspectiva, não são de desdenhar os frutos desde primeiro beijo que se
recebe nos pés. Mas procurai não vos privar nem de um de outro, isto é, se já sentis a
compunção pela dor dos pecados e pelo temor do julgamento, já imprimistes teus lábios nas
pegadas da fidelidade e do julgamento. E se moderais a dor e o temor contemplando a
bondade divina, com a esperança de conseguir sua indulgência, tendes por certo que
beijastes também o pé da misericórdia. Mesmo porque não convém beijar unicamente um
pé, porque a recordação só do julgamento lança no abismo do desespero, e a enganosa
lisonja da misericórdia gera uma péssima segurança.

9 Eu, que sou um miserável, tenho, algumas vezes, também recebido o dom de sentar-
me aos pés do Senhor Jesus e abraçar ora um, ora outro com toda devoção, segundo sua
bondade se dignar a admitir. Mas quando esquecia sua compaixão e pelo aguilhão da
consciência me detinha um pouco mais no julgamento, logo, tomado de um medo incrível,
cercado de horrores tenebrosos, tremendo de pavor, só me atrevia a exclamar: quem
conhece a veemência de tua ira; quem sentiu o peso de tua cólera?
E se me afastava desta situação para prender-me mais fortemente ao pé da
misericórdia, sucedia o contrário: diluía-me numa negligente incúria, até encontrar-me frio
na oração, preguiçoso nos afazeres, mas pronto para o riso, imprudente para falar e,
finalmente, mais inconstante em todo o meu comportamento exterior e interior. Assim que,
aprendendo de minha mestra, a experiência, te exaltarei, Senhor, não só por teu julgamento,
nem só por tua misericórdia, mas, ao mesmo tempo, por teu julgamento e tua misericórdia.
Jamais me esquecerei de teus justíssimos decretos; ambos serão minha canção nesta terra
estrangeira, até que tua misericórdia se eleve sobre teu julgamento, aquietando a miséria. E
só minha glória te dará graças para sempre, livre de toda ansiedade.
Sétimo Sermão

I – As duas mãos de Deus


II – O esposo e a esposa são o Verbo e a alma
III – O amor casto, santo e ardente da espera; a presença dos anjos na oração e na salmodia
IV – Como devem ser os que desejam salmodiar espiritualmente
V – A quem diz a esposa: que me beije com beijos de sua boca

1 Eu mesmo procuro riscos, pois espontaneamente provoco perguntas. Por ocasião do


primeiro beijo, procurei mostrar-vos os pés espirituais de Deus com suas funções e
denominações próprias, e o fiz profusamente. Agora vós seguis interessando-vos por sua
mão, que se nos oferece para que, na seqüência, beijemo-la. Concedido: vou comprazer-
vos. E mais: mostrar-vos-ei, não uma única mão, mas duas, com seus nomes próprios. Uma
se chama largueza, e a outra fortaleza; porque além de outorgar com abundância, conserva
com poder o que concedeu. Quem não for um ingrato, beijará as duas, reconhecendo e
confessando que Deus é generoso para dar e conservar todos os bens que presenteia.

II

Cremos que já dissemos bastante sobre os dois beijos; passemos ao terceiro.

2 Que me beije com beijos de sua boca Quem o diz? A esposa. E quem é a esposa? A
alma sedenta de Deus. Mas vou enumerar diversas afeições para melhor distinguir as que,
propriamente, correspondem à esposa.
Um servo teme o semblante do seu senhor; um mercenário espera a paga do seu
amo; um discípulo escuta seu mestre; um filho honra ao seu pai; mas o que pede um beijo é
porque ama. Esta afeição de amor é superior a todos os bens da natureza, especialmente se
retorna ao seu princípio: Deus. Não encontramos palavras tão doces para expressar a
ternura do afeto entre o Verbo e a alma do que estas: esposo e esposa. Porque possuem tudo
em comum; nada têm de próprio, nem de exclusivo. Ambos usufruem dos mesmos bens, de
uma só mesa, de um mesmo lugar, de um mesmo leito e até de um mesmo corpo. Por isso o
esposo abandona pai e mãe, une-se a sua mulher e se tornam uma só carne. À esposa se lhe
pede que esqueça seu povo e a casa paterna para que o esposo se apaixone por sua beleza.
Se amar é a propriedade característica e primordial dos esposos, não sem razão se pode
chamar de esposa a alma que ama.
E ama quem pede um beijo. Não pede liberdade, nem recompensa, nem herança,
nem doutrina, mas um beijo; o mesmo que uma esposa castíssima que exala amor e é de
todo incapaz de dissimular o fogo que a consome. Vede, pois, porque começa falando
assim. Não recorre, como outros, ao fingimento das carícias para pedir ao mais excelso e
mais sublime. Não pretende ganhá-lo com rodeios para conseguir o que deseja; sem
preâmbulo algum, sem buscar sua benevolência, mas simplesmente porque explode seu
coração, diz abertamente e sem rubor algum: que me beije com beijos de sua boca.

3 Não te parece que equivale a dizer: não tenho a ti no céu? E contigo, que me
importa a terra?

III

Na realidade, ama casta e desinteressadamente porque pretende só aquele a quem


ama e nada mais que ele. Ama com retidão, sem concupiscência carnal e na pureza de
espírito. Ama com ardor, tão inebriada por seu próprio amor, que nem pensa em sua
majestade. Pois a quem pede ela um beijo? Àquele cujo olhar basta para fazer tremer a
terra. Mas, não estará ela embriagada? Sim, completamente. Não seria estranho que quando
partiu para esse pedido houvesse saído da adega; mais tarde, não se gloriará de haver sido
introduzida ali? Também Davi dizia, referindo-se a outros: embriagam-se com a
abundância de tua casa, e lhes dás de beber das torrentes de tuas delícias. Oh, quão grande
é a força do amor! Quanta confiança infunde o espírito de liberdade! O amor perfeito lança
fora o temor; há algo mais evidente?

4 Todavia, cheia de pudor, não se dirige imediatamente ao esposo, mas a outros, como
se ele estivesse ausente: que me beije com beijos de sua boca. É que, como pede o mais
maravilhoso, envolve a súplica com pudor, a fim de fazer valer o que pede. Por isso procura
os amigos e íntimos do esposo, para que a levem à sua intimidade, até conseguir o que
ardentemente anseia. Quem são esses amigos?
Penso que são os santos anjos que assistem aos que oram, para apresentar a Deus as
súplicas e desejos dos homens, mas isso quando vêem que, sem iras ou discórdias, elevam
suas mãos inocentes. Prova isto o anjo quando falava a Tobias: Quando rezavas com
lágrimas e sepultavas os mortos; quando te levantavas da mesa para esconder em tua casa
os mortos e os enterravas à noite, eu apresentava ao Senhor a tua oração. Acho que para
vos convencer basta esse testemunho da Escritura. Assim o afirma também, claramente, o
Salmista: na frente iam os cantores dos salmos, no meio as jovens tocando tamborina. Por
isso dizia: em presença dos anjos cantar-te-ei salmos.

IV
Por causa dessa circunstância, dói-me muito que alguns de vós durmam
profundamente durante as sagradas vigílias. Faltam com a devida reverência aos
concidadãos do céu, como cadáveres ante os príncipes da glória, enquanto eles, comovidos
pelo fervor dos demais, deleitam-se participando do vosso culto. Temo que um dia
abominem nossa negligência e se retirem, indignados; então será já tarde para, aflitos,
começar a dizer: afastaste de mim os meus conhecidos e me fizeste repugnante para eles.
Ou também: afastaste de mim amigos e companheiros, minha companhia são as trevas. Ou
aquele outro: os que estavam junto a mim se afastaram e me ameaçam de morte os que
atentam contra mim. Por certo, se os bons espíritos se afastam de nós, quem poderá resistir
à violência dos maus?
Aos que assim se comportam digo: maldito o que executa com negligência a obra
de Deus. Também diz o Senhor, não eu: oxalá fosses frio ou quente! Mas como és morno,
irei vomitar-te de minha boca. Reparai em vossos principais, mantendo-vos reverentes e
recolhidos enquanto orais ou salmodiais, transbordantes de satisfação porque vossos anjos
sempre estão vendo a face do Pai. Além de serem enviados para vos servir, porque temos
herdado a salvação, levam ao céu nossa devoção e nos trazem a graça. Aproveitemo-nos de
seu ofício e partilharemos sua glória, para que da boca dos pequeninos brote um perfeito
louvor. Digamos-lhes: salmodiai ao nosso Deus, e escutemos como eles nos respondem:
salmodiai ao nosso Rei.

5 E unidos no louvor aos celestiais cantores, como concidadãos consagrados e família


de Deus, salmodiai sabiamente; como um manjar para a boca, assim saboroso é o Salmo
para o coração. Só se requer uma coisa: que a alma fiel e sensata os mastigue bem com os
dentes de sua inteligência; não aconteça que por tragá-los inteiros sem triturá-los se prive o
paladar de seu apetecível sabor, mais doce que o mel de um favo que destila. Apresentemos
com os Apóstolos esse favo de mel no banquete celestial e na mesa do Senhor. O mel se
esconde na cera e a devoção na letra. No entanto, a letra mata quando tragada sem o
condimento do Espírito. Porém, se cantais levados pelo Espírito, como diz o Apóstolo, se
salmodiais com a mente, também vós experimentareis que é verdade aquilo que Jesus disse:
as palavras que vos digo são espírito e vida; e, igualmente, o que nos confia a Sabedoria:
meu espírito é mais doce que o mel

6 Assim, vossas almas saborearão pratos substanciosos e vossos sacrifícios serão


agradáveis; assim, aplacareis ao Rei, agradareis aos seus príncipes; tereis satisfeito a toda a
sua corte e, no céu, inebriados pela suavidade desse perfume, dirão também de vós: quem é
esta que sobe pelo deserto como coluna de fumaça, como nuvem de incenso e mirra e
perfumes de mercadores?

São os príncipes de Judá com seus esquadrões, os príncipes de Zabulon, os


príncipes de Neftali, isto é, os cantores de Deus, os continentes e os contemplativos. Porque
os nossos príncipes sabem como é grata aos olhos do Rei a santidade dos que salmodiam, a
fortaleza dos continentes e a pureza dos contemplativos. Mas também se preocupam
conosco, exigindo-nos estas primícias do espírito que, por certo, são os primeiros e
puríssimos frutos da Sabedoria. Já sabeis que Judá significa “aquele que louva ou
testemunha”, Zabulon, “mansão forte”, e Neftali, “gazela solta”, que, pelos saltos de sua
agilidade, simboliza os êxtases dos contemplativos. A gazela, além disso, penetra na
espessura dos bosques, e os contemplativos se adentram nos mais ocultos sentidos.
Sabemos quem disse: aquele que me oferece um sacrifício de louvor, esse me honra.

7 Mas, se o louvor não é belo na boca do pecador, não tereis suma necessidade da
continência, a fim de que o pecado não reine em vosso corpo mortal? Por outro lado, diante
de Deus não tem mérito uma continência que busque a glória humana. Por isso, é requerida
suma pureza de intenção, para que vosso espírito deseje agradar só a Deus e possa viver
junto dEle. Estar junto a Deus é o mesmo que ver a Deus, e isso só se concede aos puros de
coração, como uma inigualável felicidade. Um coração puro tinha Davi, e dizia a Deus:
minha alma está unida a ti; para mim, o bem é estar junto a Deus. Vendo-o, unia-se a Deus,
e unindo-se a Ele, via-O.
Quando as almas se entregam a esses exercícios, os espíritos celestiais
freqüentemente conversam com elas, especialmente se as vêm assíduas à oração. Quem me
dera, ó príncipes benignos, que vós apresentásseis minha oração diante de Deus! Já não
digo a Deus mesmo – para quem está aberto o mais íntimo pensamento do homem–, mas
àqueles que estão junto de Deus, isto é, as Potestades bem-aventuradas e os demais
espíritos livres da carne. Quem levantará do pó este desvalido e erguerá da baixeza este
pobre, para sentá-lo com os príncipes no mesmo trono de sua glória? Estou certo que de
bom grado acolherão em seu palácio aquele que se dignam visitar na sua baixeza. Se
fizeram festa pela sua conversão, não reconhecerão quando for levado à sua glória?

VI

8 Eu creio que a esses espíritos se dirigia a esposa com sua petição e a eles lhes
descobria o sonho de seu coração, quando dizia: que me beije com beijos de sua boca. Vede
com que familiaridade e ternura fala com as Potestades do céu a alma que geme neste
corpo! Anseia o beijo, pede o que busca, mas não menciona o amado, porque não duvida
que eles sabem quem é, pois muitas vezes, dele tem falado com eles. E não diz: “que fulano
me beije”, mas simplesmente: que me beije. Tampouco Maria Madalena mencionava aquele
que ela buscava; somente dizia ao que havia tomado pelo hortelão: Senhor, se tu o tiraste....
Mas, a “quem”? Não o manifesta, porque pensa que todos sabem aquilo que não pode
ausentar-se do seu coração. Igualmente a esposa: fala com os companheiros do esposo,
como inteirados do que acreditava patente para eles; sem dizer seu nome, prorrompe nesta
exclamação: que me beije com beijos de sua boca!
Agora não mais quero falar sobre esse beijo. No sermão de amanhã podereis
escutar-me quanto – graças à vossa oração – me sugerir essa unção que tenho por mestra.
Porque esse mistério não no-lo revela ninguém de carne e sangue, senão Aquele que
penetra os abismos, o Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho, e vive e reina com eles
para sempre eternamente. Amém.

Oitavo Sermão

I – Sobre o beijo mais íntimo que é o Espírito Santo


II – Com esse beijo o Pai e o Filho se revelam e seu conhecimento os faz inseparáveis
III – Que o invisível de Deus não foi revelado aos filósofos por este beijo
IV – Com que cautela se deve representar o pé nos misteriosos sentidos
V – Os dois lábios da esposa
VI – O beijo do Pai e do Filho
VII – O beijo do beijo que é concedido às almas santas

1 Tal como vos prometi ontem, e recordais, hoje me proponho falar-vos do beijo mais
íntimo: o da boca. Escutai com mais atenção o mais doce e mais sublime, o que mais
raramente se saboreia e resulta mais difícil de entender. Partimos desde o mais profundo:
daquele inefável beijo a que o Evangelista se referia, em meu parecer beijo nunca
experimentado por criatura alguma, quando nos diz: ninguém conhece o Filho senão o Pai;
e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo. Porque o
Pai ama o Filho e o abraça com dileção única, como a de um ser supremo por aquele que
lhe é idêntico, a do eterno pelo coeterno, a do uno pelo único. Mas, por sua vez, o Filho
intimamente se estreita com ele – e não com menor afeição! –, pois chega a morrer por ele,
como o assegura ele mesmo: Para que o mundo saiba que amo o Pai, levantai-vos, vamo-
nos. Indubitavelmente queria dizer que ia à sua paixão. Esse simultâneo conhecimento e
amor mútuo entre o progenitor e o gerado, que são senão um suavíssimo, mas secretíssimo
beijo?

2 Dou por certo que nem sequer a criatura angélica tem acesso a um mistério tão
sagrado como o amor divino. E assim o intui São Paulo: essa paz de Deus supera todo
conhecimento, inclusive o dos anjos. Por isso, nem a esposa, por grande que seja sua
liberdade, pode dizer: “que me beije com sua boca”, porque isso está reservado
exclusivamente ao Pai. Dá-se por satisfeita com algo menos: que me beije com beijos de
sua boca.
Contemplai a nova esposa recebendo um beijo novo, mas não da boca, e sim do
beijo da boca: soprou sobre eles – Jesus sobre os apóstolos, isto é, sobre a primitiva Igreja –
e disse: recebei o Espírito Santo. Este foi o beijo. Qual? Aquele sopro? Não! O Espírito
invisível infundido com o sopro do Senhor, como para dar a entender com isso que também
procede do Pai como um verdadeiro beijo, comum para o que recebe e para o que dá. A
esposa se satisfaz em ser beijada com o beijo do esposo, ainda que não seja diretamente
com a boca. Ser beijada pelo beijo não o considera algo pouco, nem trivial, porque não é
nem mais nem menos que a infusão do Espírito Santo. Se pensarmos que é o Pai quem beija
e o Filho quem recebe o beijo, concluiremos retamente que o beijo é o mesmo Espírito
Santo, paz imperturbável, vínculo indissolúvel, amor inseparável, indivisível unidade do
Pai e do Filho.

II

3 Ele, portanto, induz a esposa a que peça com toda a confiança, com o nome de um
beijo, a infusão desse mesmo Espírito. Na realidade, seu atrevimento pode apoiar-se nestas
palavras que o Filho pronuncia: Ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece
o Pai, senão o Filho, mas acrescenta: e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo. A esposa
sabe com certeza que a ela, mais do que a ninguém, ser-lhe-á revelado; por isso,
ousadamente pede que lhe dê um beijo, quer dizer, esse Espírito no qual se lhe revelará o
Pai e o Filho. Porque jamais se dá a conhecer um sem o outro. Daí se depreendem estas
palavras: quem me vê, vê o Pai. E estas outras de João: todo aquele que nega o Filho, não
tem o Pai. Quem reconhece o Filho, tem também o Pai. Do qual se deduz que não se
conhece o Pai sem o Filho, nem o Filho sem o Pai. Com razão, pois, a suma felicidade não
consiste no conhecimento só de um deles, mas dos dois, porque está escrito: A vida eterna
consiste em que te conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, teu enviado,
como Messias. Ademais se diz que os que seguem o Cordeiro levam inscrito na fronte o
nome de Cristo e o de seu Pai, isto é, foram glorificados porque conhecem os dois.

4 Alguém dirá: “foi dito que a vida eterna é reconhecer o Pai e o Filho, mas não
mencionou o Espírito Santo. Será necessário conhecê-lo?”. Sim, porque se se conhece
perfeitamente o Pai e o Filho, como é possível ignorar o Espírito Santo, que é a bondade
mútua de ambos? Tampouco pode conhecer uma pessoa integramente a outra se se oculta
sua boa ou má vontade. Ao se afirmar: Esta é a vida eterna, reconhecer-te como verdadeiro
Deus e a teu enviado Jesus como Messias, se essa missão manifesta tanto a obediência
voluntária do Filho como a benignidade do Pai, indubitavelmente não se omitiu o Espírito
Santo, já que expressamente se revelava na graça que os dois nos dispensaram; porque o
Espírito Santo é o amor e a benignidade do Pai e do Filho.

5 Por esta razão, quando a esposa pede o beijo, roga que se lhe infunda a graça deste
tríplice conhecimento, enquanto esta carne mortal pode recebê-la. Mas pede-a ao Filho,
pois cabe ao Filho revelar a quem ele quiser. Portanto, o Filho se revela a quem Ele queira e
revela também o Pai; e o revela, sem dúvida, mediante o beijo que é o Espírito Santo.
Assim atesta o Apóstolo: a nós Deus no-lo revelou por meio do Espírito Santo. Mas, ao
comunicar o Espírito mediante o qual se manifesta, revela também esse Espírito: dando,
revela, e, revelando, dá. Mais: a revelação verificada pelo Espírito Santo não só é uma
iluminação do conhecimento, mas também fogo do amor, como diz o Apóstolo: o amor que
Deus nos tem inunda os nossos corações pelo Espírito que nos foi dado.

III

Por isso, talvez, outros que conheceram a Deus, mas não lhe renderam a glória que
merece, não o conheceram por revelação do Espírito Santo, porque chegaram a conhecê-lo
e não o amaram. Só nos é dito que descobriram a Deus, mas não se acrescenta: “pelo
Espírito Santo”, para que esses ímpios não usurpem o beijo da esposa. Satisfeitos com o
saber que incha, ignoraram que o construtivo é o amor.
Finalmente, o mesmo Apóstolo nos dirá como chegaram a esse conhecimento:
entenderam o invisível de Deus por meio das coisas criadas. Por isso sabemos que não
conheceram perfeitamente o que nunca amaram. Se, de verdade, o tivessem conhecido, não
haveriam ignorado a bondade daquele que quis nascer e morrer na carne para redimi-los.
Escutai também o que se lhes revelou acerca de Deus: seu eterno poder e sua divindade. E
vereis como esquadrinharam essa sublimidade e majestade pela presunção do seu espírito,
não segundo o Espírito de Deus; por isso não compreenderam como é manso e humilde de
coração. Não é de estranhar, porque seu chefe, Behemoth, nada humilde, dele se lê que olha
abaixo de si tudo quanto é grande. Ao inverso de Davi, que não pretendia grandezas que
superassem a sua capacidade, a fim de não se ver ofuscado pela glória da majestade ao
procurar investigá-la.

IV

6 Recordai-vos também o que admoesta o sábio, para estardes seguros quando


considerais os mistérios divinos: não pretendas o que te ultrapassa nem esquadrinhes o que
está acima de ti. Procedais, pois, guiados pelo Espírito e não cedais aos vossos próprios
desejos. A erudição do Espírito não provoca a curiosidade; inflama o amor. Com razão a
esposa, quando busca o amor de sua alma, não confia nos seus sentidos carnais, nem
repousa nos fúteis raciocínios da curiosidade humana. Pede um beijo, isto é, o Espírito
Santo, de quem recebe, ao mesmo tempo, o gosto da sua ciência e o condimento da sua
graça. Justamente essa ciência que se infunde com esse beijo, se recebe com amor, porque o
beijo é sinal do amor. Mas a ciência que incha, por carecer de amor, não nasce de um beijo.
Tampouco devem se arrogá-lo aqueles que sentem um zelo de Deus que não se
inspira na sua sabedoria. Porque o dom do beijo leva consigo estes presentes: a luz do
conhecimento e o ungüento da devoção. Isso é, precisamente, o Espírito de ciência e
entendimento que, qual abelha portadora de cera e mel, tem tudo: fogo para iluminar com
sua sabedoria e graça para infundir seu sabor. Portanto, que não creia haver recebido esse
beijo o que entende a verdade, mas não a ama, ou o que a ama, mas não a entende. Com
esse beijo são incompatíveis o erro e a tibieza.

Assim, pois, para receber a dupla graça desse beijo, a esposa apresenta seus dois
lábios: a luz da inteligência e o desejo da sabedoria. Radiante com esse beijo recebido,
merece escutar: a graça se derrama em teus lábios, o Senhor te bendiz eternamente.

VI
Em conclusão, o Pai, beijando o Filho, lhe exala, transbordante, todos os mistérios
de sua divindade e aspira a fragrância do seu amor. É o que, simbolicamente, diz a
Escritura: um dia ao outro transmite a palavra. Mas, como já temos dito, a nenhuma
criatura se há concedido presenciar esse abraço singularmente ditoso e eterno; só ao
Espírito de ambos, testemunha e partícipe deste mútuo conhecimento e amor. Pois, quem
conhece a mente do Senhor? Quem é seu conselheiro?

7 Alguém poderia dizer-me: “e tu, como o sabes, se dizes que a nenhuma criatura se
há concedido presenciá-lo?”. Porque é o Filho de Deus único, que é Deus e está no regaço
do Pai, quem o deu a conhecer. Digo que o deu a conhecer, não a mim – miserável e
indigno –, mas a João, o amigo do esposo, de quem são essas palavras: a João Evangelista,
o discípulo a quem Jesus amava. Também sua alma foi, em verdade, agradável a Deus,
digna de ser chamada e considerada como esposa, digna dos abraços do esposo e digna,
finalmente, de reclinar-se sobre o peito do Senhor. João hauriu do peito do Unigênito o que
este bebeu do seio de seu Pai. Mas não só ele: também aqueles a quem o mesmo Anjo do
grande conselho dizia: chamo-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu
Pai. Paulo também bebeu do seio do Unigênito e seu Evangelho não é invenção humana,
nem lho transmitiu algum homem, mas por revelação de Jesus Cristo.

VII

Efetivamente, todos eles podem dizer com gozo e com toda verdade: o Filho único
que está no regaço do Pai é quem no-lo Deu a conhecer. E que é esta revelação senão um
beijo? Mas um beijo do beijo, não um beijo da boca. Escuta o que é um beijo da boca: Eu e
o Pai somos um. Eu estou com o Pai e o Pai está comigo.
Esse é um beijo de boca a boca e ninguém pode apropriá-lo; é um beijo de amor e
de paz, amor que supera todo conhecimento e paz que transcende todo raciocínio. Todavia,
o que o olho nunca viu, nem o ouvido nunca ouviu, nem homem algum imaginou, Deus o
revelou a Paulo por seu Espírito, ou seja, pelo beijo de sua boca. Portanto, esse estar o Pai
com o Filho e o Filho com o Pai é o beijo da boca. E o beijo do beijo o descobrimos nestas
outras palavras: nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus,
para que saibamos o que Deus nos concedeu

8 Distingamos ainda melhor os dois beijos. Recebe um beijo da boca o que recebe a
plenitude; mas o que recebe uma parte dessa plenitude, recebe um beijo do beijo. Paulo foi
um homem excepcional, mas, por muito que aproximasse sua boca, ainda que fosse
arrebatado até ao terceiro céu, sempre ficaria distante da boca do Altíssimo e deverá sentir-
se satisfeito dentro da sua limitação, incapaz de chegar ao glorioso rosto de Deus. Por isso,
humildemente pede que se digne enviar-lhe um beijo do alto. Não assim aquele que nunca
considerou uma usurpação o ser igual a Deus, até poder afirmar: eu e o Pai somos um.
Unidos em sua identidade e abraçados em sua igualdade, não mendiga um beijo de um
lugar inferior, mas no mesmo nível de sua sublime condição, une sua boca à do Pai e, por
uma singular prerrogativa, recebe um beijo de sua boca. Portanto, para Cristo esse beijo é
plenitude e, para Paulo, é participação; aquele o recebe do Pai, este se gloria de ser beijado
pelo beijo do Pai.

9 Ditoso beijo que leva ao conhecimento de Deus e ao amor do Pai, o qual nunca será
conhecido em plenitude, a não ser quando seja amado perfeitamente. Algum de vós escutou
gemer o Espírito do Filho no íntimo da sua consciência: Abba, Pai? Essa, essa é a alma que
deve presumir de que é amada pela ternura do Pai, a que se sente afetada pelo mesmo
Espírito de amor que o Filho. Tu, quem quer que sejas, confia, confia sem a menor
hesitação. No Espírito do Filho reconhece-te como filha do Pai e esposa ou irmã do Filho.
Advertir-te-ás como se designa com qualquer desses nomes a quem se encontra nesse
estado. E não custa muito demonstrá-lo, pois tenho à mão as palavras que o esposo lhe
dirige: Já venho ao meu jardim, minha irmã, minha esposa. Chama-se irmã porque os dois
têm um mesmo Pai; e esposa porque se unem no mesmo Espírito. Se os que formam um
matrimônio carnal se tornam uma só carne, por que, com maior razão, a união espiritual
não pode fazer dos dois um só espírito? Estar unido ao Senhor é ser um Espírito com Ele.
Mas o Pai também a chama filha sua e, inclusive, como se fosse sua própria nora,
convida-a aos carinhosos abraços de seu Filho: escuta, filha, vê e presta atenção; esquece o
teu povo e a casa de teu pai; encantado está o rei por tua beleza. Aí tens a quem pede um
beijo. Sim, alma santa, mas sê mui reverente porque Ele é o Senhor teu Deus e, mais que
beijá-lo, deves adorá-lo com o Pai e o Espírito Santo para sempre, eternamente. Amém.

Nono Sermão

I – Diálogo entre os amigos do esposo e a esposa


II – Resposta da esposa sobre seu amor
III – A presença do esposo e poderosas escusas da esposa
IV – Os dois seios do esposo
V – Como correspondem também à esposa e sobre os que oram com freqüência
VI – Porque correspondem também aos amigos do esposo
VII – E às jovens

I
1 Cheguemos já ao texto do Cântico e demos razão às palavras da esposa e sua
coerência. Porque estão como que no ar e se bamboleiam qual montanha escarpada e sem
base. O primeiro que temos de ver é com quem estão, a rigor, relacionadas. Partamos de
uma suposição: esses amigos do esposo, que citamos, uma vez mais se acercam da esposa –
como o haviam feito em dias anteriores – para fazer-lhe uma visita e saudá-la. Encontram-
na desgostosa e queixosa. Admirados, estabelecem este diálogo:
“Que te aconteceu? Por que hoje te encontramos tão triste? De que te queixas tão
inesperadamente? Quando ias extraviada e decepcionada em busca de teus amantes, com os
quais te foste tão mal, não sentiste a necessidade de voltar ao teu primeiro esposo, para
tocar ao menos em seus pés, e insististe com muitos rogos e lamentos?”
“Reconheço-o”, disse. “Sim? Efetivamente, chegaste a consegui-lo. E, além disso,
recebeste o beijo dos pés e, com ele, o perdão dos pecados. Agora te sentes novamente
inquieta, insatisfeita com tão grande favor, e anseias uma familiaridade mais íntima. Pediste
e imploraste com a mesma insistência outra graça singular: beijar-lhe as mãos. Também o
conseguiste e alcançaste muitas e não pequenas virtudes”.
“Não nego”, respondeu. Disseram-lhe: “Mas, não eras tu a que jurava assegurando
que se algum dia te permitisse beijar sua mão, nunca mais pedirias outra coisa?”. “Sim, sou
eu”. “Então? Porventura podes alegar que te foi retirado algo daquilo que conseguiste?”.
“Não, nada”. “Ou será que temes que pela tua má vida anterior volte a pedir-te contas que
tu supunhas já perdoadas?”. “Não”.

2 “Diga-nos então como poderemos ajudar-te”. “Não descansarei até que me beije
com beijos de sua boca. Sim, agradeço-lhe o beijo dos pés, agradeço-lhe o beijo das mãos,
mas se gosta de mim, que me beije com beijos de sua boca. Não sou uma ingrata, mas amo.
Reconheço que tenho recebido mais do que mereço, mas não se esgotaram as minhas
ânsias. Move-me muito mais o desejo do que a razão. Por favor, não me acuseis de
presunção: é que o afeto me arrasta. Claro que o pudor me recrimina, mas o amor me
supera. Não ignoro que a glória do rei ama o juízo; mas esse amor tão apaixonado não se
atém a razões, nem o equilibra a sensatez, nem o freia o pudor, nem se submete à razão. E
peço, e suplico e imploro: que me beije com beijos de sua boca.
“Asseguro-vos que graças a ele faz muitos anos que eu me esforço para viver em
castidade e sobriedade, entrego-me à leitura, luto contra os vícios, prostro-me com
freqüência para orar, mantenho-me alerta contra as tentações, foge de mim o sono pela
amargura de minha alma. No possível, parece-me que não crio conflitos e convivo com
meus irmãos. Submeto-me à autoridade de meus superiores, saio e regresso à casa
conforme me ordenam; não cobiço o alheio; ao contrário, entrego minhas coisas e me dou a
mim mesma; como meu pão com o suor da minha fronte. Mas tudo isso se reduz a mera
disciplina, sem doçura alguma. Como diz o profeta, não sou essa novilha domesticada de
Efraim, que trilha com gosto a eira?. Enfim, o Evangelho chama de servo inútil ao que fez
o que tinha de fazer. Eu creio que cumpro com todo o mandado. Mas, em tudo isso, minha
alma se sente como terra árida. Por isso, para que lhe agradem os meus sacrifícios, que me
beije com beijos de sua boca.

3 Tenho mui presente que muitos de vós em vossos desafogos privados costumais
queixar-vos desse abatimento e aridez da alma, desse impertinente embotamento do espírito
que vos impede adentrar na oculta sublimidade de Deus, e muito pouco, ou nada,
experimentais as doçuras do coração. Não será que suspirais pelo beijo?
Certamente suspiram e anelam o espírito de sabedoria e entendimento;
entendimento para compreender e sabedoria para saborear o que captaram com a
inteligência. Creio que o santo Profeta orava com esse mesmo afeto quando dizia: minha
alma saciada como de fino manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Pedia
claramente o beijo, esse beijo a cujo contato seus lábios ficam impregnados da fecundidade
da graça espiritual, e experimenta o que expressa noutro lugar: Encha-se minha boca do teu
louvor, para cantar todo o dia tua glória e tua grandeza.
E enquanto o saboreia, exala-o com estas palavras: quão inefáveis, Senhor, são as
doçuras que reservas para teus fiéis. Temos já bastante nos detido neste beijo, ainda que,
para ser sincero temo que não me haja expressado com suficiente dignidade. Mas, sigamos
adiante, porque essas coisas melhor se conhecem experimentando-as do que delas falando.
III

4 O texto prossegue assim: teus seios são mais saborosos que o vinho, teu aroma
melhor que todos os perfumes. O autor não nos diz de quem são essas palavras e nos deixa
com liberdade para atribuí-las, em nosso comentário, a quem melhor se adaptem. Por minha
parte, não me faltam razões para atribuí-las à esposa, ao esposo e aos amigos do esposo.
Primeiramente, indicarei porque podem referir-se à esposa. Enquanto estava
conversando com os amigos do esposo, dirige-se para eles o mesmo de quem falavam.
Afavelmente se acerca dos que dele falam. Esse é seu costume. Por exemplo, fez-se
companheiro, agradável e persuasivo para com os dois que caminhavam para Emaús,
comentando o sucedido. E se pôs a caminhar com eles, falando-lhes afavelmente. É o que
prometeu no Evangelho: Onde estejam dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no
meio deles. Também o diz pelo Profeta: antes que me chamem, eu ouvirei; ainda estarão
falando e lhes direi: aqui estou. Por isso agora se apresenta sem ser chamado. Tanto lhe
agrada sua conversação, que ele mesmo se adianta às súplicas. Creio que muitas vezes nem
espera as palavras: bastam-lhe os desejos. Escutai a esse homem que Deus encontrou
segundo seu coração: Senhor, tu escutas os desejos dos humildes, presta-lhes ouvidos e os
conforta. Examinai vós mesmos em todo momento, pois sabeis que Deus sonda o coração e
as entranhas, que ele modelou vossos corações e compreende todas as vossas ações.
A esposa, comovida diante da presença do esposo, ficou aturdida; e crendo haver
sido surpreendida em sua presunção, se encheu de confusão porque pensava que havia sido
mais digno valer-se de intermediários. Mas, imediatamente se voltou para ele e, como pôde,
tratava de escusar sua temeridade dizendo: teus seios são mais deliciosos que o vinho, teu
aroma melhor que todos os perfumes. Como se dissesse: “se crês que minhas pretensões
são exageradas, isso é obra tua, meu esposo; foi tão inefável a bondade com que me
saciaste com a doçura de teus seios que, afastando todo temor, lanço-me a um atrevimento
excessivo, não por minha temeridade, mas tão só porque te amo. Ouso, certamente, porque
recordo tua ternura e esqueço tua majestade”. Esse poderia ser o contexto verbal.

5 Vejamos agora em que consiste esse cântico aos seios do esposo.

IV

Os dois seios do esposo são os sinais dessa sua conatural bondade: a paciência com
que aguarda o pecador e a clemência com que acolhe o penitente. É uma dupla doçura,
exuberante e transbordante que brota do peito do Senhor Jesus: sua longanimidade para
esperar e sua facilidade para perdoar. Escuta, porque isso não é invenção minha. Podes ler
acerca de sua extremada longanimidade: ou desprezas as riquezas da sua bondade,
tolerância e longanimidade, e, ainda: ou ignoras que a benignidade de Deus te convida ao
arrependimento?Por isso demora tanto a sentença de condenação daquele que o despreza:
para poder absolvê-lo se se arrepende. Porque não quer a morte do pecador, mas que se
converta e viva.
Acrescentemos outros testemunhos referentes ao outro seio do esposo, ao que temos
chamado de facilidade para perdoar. Segue lendo: no instante mesmo em que, arrependido,
gema o pecador, será perdoado; e ainda: que o malvado abandone seu caminho, e o
pecador aos seus projetos; volte ao Senhor, que dele terá piedade, o nosso Deus que é rico
em perdão. Davi o resume em poucas e preciosas palavras: é lento para a cólera e cheio de
clemência.
Por isso, a esposa confessa que, por haver experimentado essa dupla bondade, sua
confiança se consolidou até chegar a pedir-lhe o beijo – que de admirar? –, dizendo: “se
assim presumo de ti, ó esposo meu, não será porque conheço por experiência a abundância
das delícias que brotam de teus seios? É a doçura de teus seios que provoca a minha
audácia, não a confiança em meus méritos”.

6 Suas palavras: teus seios são mais deliciosos que o vinho significam: “a copiosa
graça que flui de teus seios é bastante mais eficaz para meu proveito espiritual do que a
áspera correção dos superiores. Sim, não só “melhores que o vinho”, mas de “fragrância
maior” que o “melhor perfume”, porque, com o seio da doçura interior, não somente
alimentas aos presentes, mas asperges os ausentes com o agradável aroma da boa reputação.
Assim dão provas de tua bondade tanto os que estão dentro, com os que estão fora. Por
dentro levas leite e, por fora, perfume, porque se não os atraísses com tua fragrância, não
terias a quem alimentar com o leite”. Mais adiante, quando chegarmos ao lugar onde se diz:
corramos ao odor dos teus perfumes, veremos se esses aromas contêm algo digno de nossa
consideração.

Agora precisemos, como vos prometi, se o esposo, com propriedade, pode


pronunciar as palavras atribuídas à esposa.

7 Já disse que quando estava ela falando de seu esposo, este, em pessoa, se apresenta,
acede aos seus desejos, beija-a e se cumpre o que diz o salmo: concedeste o desejo do seu
coração, não negaste o que os seus lábios pediam. Desta maneira se manifesta que seus
seios estão repletos. E é tão prodigioso esse beijo que, tão logo a esposa o recebe, ela
concebe, e, como sinal, se lhe incharam visivelmente os seios, enchendo-se de leite.
Aqueles que com freqüência se entregam à oração experimentam o que acabo de
dizer. Quantas vezes nos aproximamos do altar ou nos prostramos em oração com o
coração frio e árido. Mas aos que perseveram se lhes infunde, de repente, a graça, se lhes
inunda o peito e, nas entranhas, sentem-se cheios de piedade. Se alguém então os
espremesse, não tardaria em correr, copiosamente, o leite da doçura concebida. Poderias
dizer-lhe: “já tens, esposa, o que pedias; este é o sinal de que teus seios são mais saborosos
que o vinho; podes estar segura de que já recebeste o beijo, porque sentes que concebeste.
Também se incharam teus seios, convertidos em copioso leite, melhor que o vinho do saber
humano que embriaga, mas de curiosidade, e não de amor. Incha, mas não alimenta; infla,
mas não edifica; farta, mas não conforta”.

VI

8 Demos agora uma oportunidade aos amigos do esposo, para que exponham sua
opinião. “Injustamente, dizem, murmuras do esposo, pois o que já te deu é melhor do que o
que lhe pedes. O que imploras é para teu deleite; mas os seios com os quais alimentas aos
que geraste são mais proveitosos e necessários que o vinho da contemplação. Uma coisa é a
satisfação íntima de um coração humano e outra é a salvação de muitas almas. Pois, embora
Raquel fosse mais formosa, Lia era mais fecunda. Não insistas tanto nos beijos da
contemplação, porque são melhores os seios da pregação.

VII

9 Ocorre-me outra interpretação que não pensava propor, mas não vou passá-la por
alto. Por que não relacionar essas palavras com aqueles que nos dirigem com a solicitude de
uma nutriz ou de uma mãe com seus filhos? As almas tenras e adolescentes não toleram
pacificamente que se entreguem à contemplação aqueles que elas desejam que as eduquem
com maior dedicação mediante sua doutrina, e as formem com seus exemplos. E nem
sequer moderam sua inoportunidade quando a continuação se lhes proíbe energicamente
que não despertem a amada até que ela o queira. Pois, vendo que a esposa se transporta
com os beijos e que se encerra a sós, que foge da convivência, que se esquiva da multidão e
que ao serviço fraterno prefere sua própria quietude, dizem-lhe: “Não sejas assim, não sejas
assim, porque a fecundidade de teus seios é mais rica que os abraços. Teus seios nos livram
dos baixos instintos que nos fazem guerra; com eles nos arrebatas do mundo e nos resgatas
para Deus”. Em conclusão: teus seios são mais deliciosos que o vinho. “Porque as delícias
espirituais que teus seios destilam para nós refreiam a voluptuosidade da carne que pouco
antes nos vencia como ébrias de vinho”.

10 Essa comparação do amor carnal com o vinho é muito acertada. Porque a uva, uma
vez espremida, já não lhe resta mais suco e está condenada à perpétua esterilidade.
Igualmente a carne, pisada já pela morte, torna-se extenuada para todo prazer e não revive
mais para suas paixões. Por isso o Profeta diz: toda carne é como a erva e toda a sua beleza
como a flor dos campos; a erva seca e a flor fenece; e o Apóstolo: o que semeia na carne,
da carne colherá corrupção; a comida é para o estômago, e o estômago é para a comida,
mas Deus acabará com um e com outro. Pensa se essa comparação não abarca tanto a carne
como o mundo, porque este mundo passa e, com ele, também sua concupiscência; e assim
como tudo o que há no mundo se acaba, seu fim é eterno.
Não se pode dizer o mesmo dos seios. Quando forem esgotados, enchem-se
novamente da fonte do peito materno, e se lho acercam para voltar a mamar. Com toda
razão se afirma que os seios da esposa são melhores que o amor carnal ou mundano, porque
sua numerosa prole jamais os esgotará, já que as entranhas do amor sempre os enchem para
que de novo fluam. Delas fluirão rios de água viva, como manancial que jorra até a vida
eterna. Esse canto aos seios da esposa culmina com a fragrância de seus aromas, porque
não só alimentam com o sabor de sua doutrina, mas exalam seu perfume pela fama que suas
boas obras divulgam.
O que significam esses dois seios repletos de leite, e com qual perfume estão
ungidos, mostraremos noutro sermão, com a ajuda de Cristo, que com o Pai e o Espírito
Santo vive e reina para sempre, eternamente. Amém.

Décimo Sermão

I – Os dois seios da esposa


II – O duplo leite dos seios, que convém principalmente aos prelados; denúncia dos que são
indignos
III – Diferença entre os três perfumes
IV – O primeiro perfume, onde se fala dos principiantes
V – O segundo perfume
VI – Que coisas não servem para compor este perfume, e por quê

I
1 Nem minha inteligência é tão profunda, nem meu engenho tão perspicaz que possa
atribuir-me invenção alguma. Mas a boca de Paulo é uma fonte caudalosa e inesgotável,
sempre aberta para nós. E desse manancial haurirei – como tantas vezes o faço – matéria
para vos explicar a respeito dos seios da esposa. Escutai-o: alegrai-vos com os que estão
alegres, chorai com os que choram.
Em duas palavras nos descreve o amor materno. O nascituro jamais pode queixar-se
ou alegrar-se sem a mulher que o concebeu; seu gozo e sua dor confluem, necessariamente,
nas entranhas de sua mãe. Em conseqüência, apoiado na sabedoria de Paulo designarei
essas duas afeições aos seios da esposa: a um, a compaixão; ao outro, o gozo. Do contrário
seria ainda uma menina, não casadoura, pois não lhe despontam os seios e carece da
sensibilidade necessária para condoer-se e alegrar-se com os demais. E se um tal, com essa
carência, assume a responsabilidade de dirigir almas ou o ministério da pregação, além de
não prestar serviço algum, muitíssimo prejudicaria a si mesmo. Na verdade, lançar-se nisso,
quanta impudência seria!

II

2 Mas voltemos aos dois seios da esposa e, segundo sua diversidade, consideremos
suas duas classes de leite. A congratulação proporciona o leite da exortação, e da
compaixão aflui o leite do consolo. Sem dúvida, as duas espécies, copiosamente, como um
celestial orvalho, a mãe espiritual tantas vezes sente em seu piedoso peito, quantas vezes
recebe esse beijo. Vê como, imediatamente, com os seios repletos, se recosta para dar de
mamar aos seus pequeninos, consolando a um e exortando a outro segundo sua
necessidade. Assim, por exemplo, quando surpreende a um – que gerou no Evangelho –
sacudido por uma violenta tentação, perturbado, triste e desanimado por sentir-se incapaz
de suportar sua força, é de ver como se comove, como o acaricia, chora por ele, consola-o e
recorre a todos os argumentos que se lhe ocorrem para levantar o abatido! Se, pelo
contrário, vê que está animado, otimista e que progride no bem, exulta, dá-lhe seus
oportunos conselhos, afervora-o mais, instrui-o no possível para que persevere e exorta-o a
que caminhe sempre de melhor para melhor. Adapta-se a todos, faz seus os sentimentos de
todos e, finalmente, prova sua maternidade tanto aos que desfalecem como aos que
progridem.
3 Quantos hoje se mostram alheios a esses sentimentos! Refiro-me aos que tomaram
sobre si a direção das almas. É impossível referir-se a isso sem lamentá-lo dolorosamente,
pois no forno de sua avareza fundem o tesouro da ignomínia de Cristo, os escarros, os
açoites os cravos, a lança, a cruz e sua morte mesma. Em tudo o prostituem, vendem-no
para fazer um vil negócio, e mostram-se ávidos de por em suas bolsas o preço da redenção
do mundo, diferenciando de Judas Iscariotes somente em que este se contentou com uns
poucos denários pelo preço dessas coisas, e aqueles, levados por sua voracidade insaciável,
exigem somas infinitas de dinheiro. Cobiçam-nas com insaciáveis desejos, temem perdê-las
e, quando fracassam, é como se fossem à morte; descansam no amor desses bens, se é que o
cuidado para conservar ou aumentá-los lhes permite algum momento de repouso. Não
fazem o menor caso da perdição ou da salvação das almas. Na verdade, não são mães; usam
o patrimônio do Crucificado só para nutrir, engordar e nadar em abundância, não podendo
compadecer-se da ruína de José. A verdadeira mãe não consegue esconder: leva seus seios,
e não vazios; sabe alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram. Do seio
de sua congratulação aflui, sem cessar, o leite da exortação e, do seio da compaixão, o leite
do consolo. Com o dito, basta sobre os seios da esposa e sobre o leite que proporcionam.

III

4 Agora indicar-vos-ei que fragrância exalam seus seios, se com vossas orações me
ajudais a expor o que me foi concedido entender e consiga fazê-lo como merece o
aproveitamento daqueles que me escutam. Uns são os aromas do esposo e outros os da
esposa, como o são os seios de cada um. Mas, do esposo já tratamos antes, quando falamos
dos seus perfumes; agora, ocupar-nos-emos das fragrâncias da esposa. Redobremos a
atenção, porque a Escritura as elogiou de modo especial, considerando-as não já boas, mas
excelentes. Recolho várias classes de aromas, para escolher os que mais convenham aos
seios da esposa. Há um aroma de contrição, outro de devoção e outro de piedade. O
primeiro é pungente, causa dor; o segundo é calmante, alivia a dor; o último é curativo:
afugenta a enfermidade. Falemos de cada um, detalhadamente.

IV
5 Há, pois, um perfume elaborado pela alma enredada em muitos delitos se, quando
começa a pensar em seus caminhos, sabe recolher, amontoar e esmagar no almofariz de sua
consciência as suas muitas e diversas espécies de pecados, e, dentro da panela de seu
coração ardente, ferve-os todos juntos com o fogo da penitência e da contrição. Então, com
o Profeta, poderá dizer: meu coração se abrasava dentro de mim, meu pensamento me
requeimava. A alma pecadora deve embalsamar os começos de sua conversão com esse
perfume e aplicá-lo em suas recentes feridas, pois o primeiro sacrifício para Deus é um
espírito contrito. Enquanto seja pobre e desamparada e não tenha como fazer um aroma
melhor, procura compor esse, ainda que seja com esses vis ingredientes, pois Deus não
despreza um coração contrito e humilhado. Quanto mais se humilhe com a recordação de
seus pecados, tanto menos vil será aos olhos de Deus.

6 E não consideraremos ordinário esse perfume invisível e espiritual, se pensamos


que está simbolizado por aquele outro, visível, com o qual a pecadora – segundo refere o
Evangelho – ungiu externamente os pés de Deus encarnado. Que nos diz o Evangelista? A
casa se encheu da fragrância do perfume. Foi derramado pelas mãos de uma pecadora e se
estendeu até as extremidades do corpo de Cristo, sobre seus pés; e não resultou de tão má
qualidade, pois que seu suave odor se espalhou por toda a casa. Se consideramos como se
perfuma a Igreja – e a quantos esse odor de vida que dá vida – a fragrância de um só
pecador que se converte – quando seu arrependimento é público e perfeito –, diríamos
também, sem duvidar e com toda justiça, que por esse primeiro aroma a casa ficou repleta
pelo odor de seu perfume. E mais: esse perfume penetra a mansão dos bem-aventurados,
pois a Verdade mesma atesta que os anjos de Deus sentem grande alegria por um só
pecador que se converta.
Alegrai-vos, pois, os arrependidos, recobrai ânimo os enfraquecidos. Digo isso a
vós, aos que recentemente haveis deixado o mundo, afastando-vos dos vossos caminhos de
perdição; aos que por isso vos sentis consumidos em amargura pela confusão de vossa alma
compungida, atormentados e inquietos pela intensa dor de vossas feridas ainda frescas. Que
vossas almas, serenas, derramem a amargura da mirra nesta unção que vos salva, porque
Deus não despreza um coração contrito e humilhado. Jamais devemos desprezar ou
considerar vil um perfume cujo aroma suscita a emenda dos homens e convida os anjos a se
alegrarem.

7 Há outro perfume de maior preço, porque é o resultado de ingredientes mais


requintados. Para buscar os primeiros não é necessário ir longe, pois os encontramos bem
perto, podendo tomá-los facilmente de nosso jardim sempre que necessitarmos. Quem não
tem à mão, quando deseja, seus próprios pecados e iniqüidades, se não os oculta? Como
recordais, esses são os componentes do primeiro perfume, já descrito. Mas os do segundo
não germinam em nossa terra; são trazidos de longe, dos confins do mundo , já que todo
dom perfeito vem do alto, do Pai das luzes. Esse perfume se extrai dos benefícios divinos
outorgados ao gênero humano. Feliz a alma que os recolhe minuciosamente e se esmera em
reuni-los diante dos olhos de seu espírito com digna ação de graças! Quando os tenha
moído, triturando-os no almofariz de seu coração com a sua contínua meditação, quando os
ponha a ferver no fogo dos santos desejos e, finalmente, derrame alguns pingos de óleo de
alegria, resultará um perfume mais precioso e mais excelente que o primeiro. Para
demonstrá-lo baste o testemunho daquele que disse: honra-me quem oferece um sacrifício
de louvor. É indubitável que a lembrança dos benefícios suscita o louvor.

8 Quando a Escritura se refere ao primeiro perfume, limita-se a dizer que Deus não o
despreza; mas, claramente, recomenda mais o segundo, porque o honra. Enfim, aquele se
aplica aos pés, e este à cabeça. Se em Cristo a cabeça tem referência com sua divindade,
como diz São Paulo: a cabeça de Cristo é Deus, quem dá graças, sem dúvida unge a
cabeça, pois toca em Deus, não no homem. Não é que deixe de ser homem porque é Deus –
pois Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem –, mas porque todo dom procede de
Deus, não do homem, embora os sirva um homem.
Na verdade, o espírito é que dá vida, a carne de nada serve. Por isso, maldito o
homem que confia em outro homem e busca seu apoio na carne, pois ainda que toda nossa
esperança descanse, com razão, em Deus homem, não o é enquanto homem, mas enquanto
Deus. Por isso, o primeiro perfume se aplica nos pés, e o segundo na cabeça, porque a
humilhação de um coração contrito corresponde à humildade da carne, a glorificação é
própria da majestade. Tal é o perfume do qual vos falei: aquele diante de quem tremem as
potestades não o considera indigno de que perfumem sua cabeça; ao contrário, estima-o
como uma grande honra, dizendo: honra-me quem oferece um sacrifício de louvor.

VI

9 Por essa razão, não é próprio dos pobres e dos humildes e pusilânimes preparar um
perfume cujos aromas e componentes estejam impregnados unicamente de confiança,
porque procede da liberdade de espírito e de um coração puro. A alma pusilânime e de
pouca fé vê-se limitada pela precariedade de seus meios, e sua pobreza não lhe permite
suficiente ociosidade para entregar-se ao louvor de Deus ou à contemplação de seus
benefícios, que propiciem esse louvor. Se alguma vez se esforça por fazê-lo logo é chamada
aos seus interesses, porque são urgentes as exigências de suas preocupações domésticas, e é
forçada a encerrar-se em si mesma por sua própria necessidade.
Se me perguntais qual a causa dessa miséria, diria que, se não me engano, vós a
haveis experimentado, ou a estais experimentando. Eu creio que essa languidez e
desconfiança da alma costumam derivar de duas causas: a conversão é ainda muito recente,
ou uma vida monástica tíbia, ainda que haja passado muito tempo desde a conversão.
Ambas as coisas humilham, deprimem e inquietam a consciência; seja pela tibieza ou por
ser recente a conversão, sente que as antigas paixões do seu coração ainda não estão mortas
nela. Sente necessidade de arrancar do jardim de seu interior os espinhos das iniqüidades e
as urtigas das concupiscências, e vê que não pode libertar-se delas. Que fazer? Esgotado de
gemer, poderá, ao mesmo tempo, regozijar-se com os louvores de Deus? Como soaria em
sua boca, cansado de lamentar-se e chorar, aquela ação de graças ao som de instrumentos
do profeta Isaías? Porque, como aprendemos do sábio: história fora de tempo é música em
dia de luto
Finalmente, a ação de graças não precede o benefício, mas é sua conseqüência. A
alma que ainda vive triste não se alegra pelos benefícios; ao contrário, necessita deles.
Portanto, tem motivos para implorar, não para dar graças, Como pode recordar um
benefício que não recebeu? Por isso disse eu que não cabe a uma alma indigente
confeccionar um perfume que deve conter um concentrado dos benefícios divinos.
É impossível ver a luz quando se está mergulhado no abismo das trevas. Jaz-se na
amargura, a memória está possuída pela triste lembrança dos pecados e afasta todo
pensamento alegre. Por isso a interpela o espírito profético dizendo: é inútil que
madrugueis, isto é: “em vão vos empenhais em contemplar os benefícios que alegram o
coração, se antes não recebeis a luz que vos console das culpas que vos inquietam”.
Portanto, esse perfume não está ao alcance dos pobres. Entretanto, vede quem são os que,
não sem razão, podem viver satisfeitos com sua riqueza: os apóstolos saíram do Conselho
contentes por haver merecido aquele ultraje por causa do nome de Jesus. Estavam repletos
da infusão do Espírito e, por isso, essa suavidade não cessou nem pelas injúrias, nem pelos
açoites. Sua riqueza era o amor que não se esgota a nenhum preço, e isso lhes bastava para,
sem esforço, oferecer vítimas generosas. Seus peitos transpiravam o santo perfume que os
embebia quando, em línguas diferentes, começaram a falar sobre as maravilhas de Deus,
segundo o Espírito lhes concedia expressar-se. Também estão impregnados desses perfumes
aqueles a quem o apóstolo se refere: continuamente dou graças a Deus por vós, pela graça
que vos foi dada em Jesus Cristo, pois nele fostes ricamente contemplados com todos os
dons, da palavra e da ciência, tão solidamente foi confirmado em vós o testemunho de
Cristo, a tal ponto que não careceis de nada.
Oxalá pudesse eu assim dar graças por vós, vendo-vos ricos em virtudes, fervorosos
para o louvor de Deus, repletos, a transbordar da plenitude espiritual em Cristo Jesus
Senhor nosso.
Undécimo Sermão

I – Exortação à ação de graças


II – A matéria principal da ação de graças é o modo e o fruto da Redenção
III – O fruto da Redenção consiste em três coisas
IV – O modo da Redenção consiste noutras três

1 Ao terminar o sermão anterior eu vos disse – e não me pesa repeti-lo – o quanto


desejo que vós todos exaleis essa sagrada unção que recolhe os benefícios de Deus na
alegre gratidão da santa devoção. Isto é muito saudável, tanto porque alivia as penas da
vida presente – ao tornarem-se mais toleráveis quando vivemos a alegria do louvor de Deus
–, quanto porque nada antecipa tanto aqui na terra a paz dos concidadãos do céu como
louvar a Deus com vivo entusiasmo. Assim diz a Escritura: felizes os que vivem em tua
casa, Senhor, louvando-te eternamente. Penso que principalmente a esse perfume se refere
o profeta quando diz: oh, como é bom, como é agradável conviverem unidos os irmãos! É
como precioso perfume derramado na cabeça. Mas isso não guarda relação com o primeiro
perfume, pois aquele é bom, mas não agradável, visto que a lembrança dos pecados deixa
amargura e não gera alegria. Além disso, os que choram seus pecados não vivem juntos, já
que cada um chora e deplora seus pecados pessoais. Mas os que vivem em ação de graças
só pensam em e só olham para Deus e, por isso, convivem realmente entre si. Bom é o que
fazem, porque dão toda glória ao Senhor, a quem em justiça corresponde e, ademais, é
agradável porque deleita.

2 Assim, pois, meus amigos, exorto-vos a que intenteis sair da molesta e angustiosa
lembrança dos vossos pecados e caminheis pelos atalhos mais cômodos da serena
recordação dos benefícios de Deus. Deste modo, contemplando-o, aliviar-vos-eis da vossa
própria confusão. Meu desejo é que experimenteis o conselho do santo profeta quando diz:
seja o Senhor tua delícia e ele dar-te-á o que o teu coração pede. Certamente é necessária a
dor dos pecados, mas não contínua. Na verdade, é necessário intercalar com a lembrança
mais agradável da ternura divina; não aconteça que a tristeza endureça o coração e acabe
em desespero. Misturemos um pouco de mel ao absinto; a amargura será saudável e
redundará em salvação só quando possa ser bebida suavizada com a doçura nela misturada.
Escuta, finalmente, a Deus, como tempera a amargura do contrito de coração, como
de novo chama o pusilânime do abismo do desespero, como consola o aflito com o mel de
suas promessas e levanta o desanimado. Ele o diz pelo profeta: moderarei teus lábios com o
meu louvor, para que não pereças, isto é, “para que não caias numa extrema tristeza ao
contemplar as tuas maldades, para que, desesperado, não caias como se te arrojasse um
cavalo desenfreado, porque perecerias; eu te contenho e refreio com as minhas rédeas,
andarás no passo de minha indulgência, confortar-te-ei com meus louvores. Tu que te
ofuscas com teus males, sentirás alívio em meus bens e descobrirás que minha benignidade
é maior que todas as tuas culpas”.
Se Caim houvesse sido detido com esse freio, nunca, em seu desespero, haveria
dito: minha culpa é muito grave, e não mereço perdão. Não! De modo algum! Sua ternura é
maior do que qualquer iniqüidade. Por isso, o justo não se acusa continuamente, mas só
quando começa a falar; mais adiante, porém, ao terminar, conclui louvando a Deus.
Efetivamente, vede que ordem segue: examinei meus caminhos para regular meus pés aos
teus preceitos. Primeiro encontra a dor da contrição e da desdita em seus próprios
caminhos, para depois se deleitar na senda dos preceitos de Deus, como se fossem toda a
sua riqueza.
Também vós, a exemplo do justo, quando vos sentirdes humilhados, recordai
igualmente a bondade do Senhor. Assim podereis ler no livro da Sabedoria: crede que o
Senhor é bom e buscai-o na simplicidade do coração. A freqüente, e mesmo habitual
lembrança da generosidade de Deus induz facilmente o espírito a pensar assim. Doutra
maneira, não seria possível cumprir o que diz o Apóstolo: em todas as circunstâncias dai
graças, se se ausentassem do coração os motivos de gratidão. Não desejo lançar sobe vós
aquela afronta dos judeus com a qual a Escritura os acusa: que esqueceram as obras de
Deus e as maravilhas que lhes havia mostrado .

II
3 Mas, homem algum jamais será capaz de recordar e recolher todos os bens que o
Senhor, piedoso e clemente, sem cessar derrama sobre os mortais: quem poderá contar os
poderosos feitos do Senhor? Apregoar os seus louvores? Que ao menos os redimidos nunca
esqueçam sua primordial e mais sublime obra, a nossa redenção. Com esse propósito
tratarei de inculcar-vos, de maneira especial, e o mais sucintamente que possa, duas coisas
que agora me ocorrem, recordando-me daquela sentença: instrui o sábio e será mais sábio.
Trata-se do modo como realizou a redenção e do fruto que com ela conseguiu. O
modo? O aniquilamento de Deus. O fruto? Nossa divinização. Meditar no primeiro é
semear a esperança; no segundo, incitar o amor supremo. Necessitamos as duas coisas para
avançar no espírito: a esperança sem amor seria servir por um salário; o amor se esfriaria se
crêssemos que é infrutuoso.

4 Nós esperamos do nosso amor o fruto que nos prometeu aquele a quem amamos:
uma medida generosa, boa, recalcada e transbordante. No meu entender, é uma medida
sem medida.

III

Mas gostaria de saber de que será essa medida, ou melhor, essa imensidade que se
nos promete: fora de ti, jamais olho algum viu um Deus que preparasse tantas coisas para
aqueles que o amam. Tu, que preparas, diz-nos: que nos preparas? Nós cremos e
confiamos, de verdade, tal como o prometes, que nos saciaremos dos bens de tua casa.
Mas, quais são esses bens? Consistiriam, acaso, em trigo, vinho e azeite, ouro e prata ou
pedras preciosas? Tudo isso já conhecemos, vimos e vemos, mas desprezamos. Buscamos o
que nem olho viu, nem ouvido ouviu, nem homem algum imaginou. Isso é o que nos
compraz, o que saboreamos e nos deleita buscar, seja o que for. Todos serão discípulos de
Deus, e ele será tudo para todos. Em definitivo, a plenitude que esperamos de Deus, não
será senão ele mesmo.

5 Quem poderá vislumbrar toda a doçura que estas cinco palavras encerram: Deus
será tudo para todos? Prescindindo do corpo, percebo claramente na alma a razão, a
vontade e a memória: as três constituem sua essência. Todo aquele que vive guiado pelo
espírito sabem quanto lhes falta para que estas três faculdades sejam completas e perfeitas,
enquanto vivemos neste mundo. Não será porque Deus ainda não é tudo para todos? Daí
deriva que a razão, com tanta freqüência, se engane em seus juízos, que a vontade se veja
sacudida por quatro desordens, e que a memória se confunda pelos seus muitos
esquecimentos. A nobre criatura se vê sujeita a essa tríplice fraqueza, não por gosto, ainda
que abrigue uma esperança. Pois aquele que sacia de bens os desejos da alma, haverá de
experimentar plenitude de luzes na razão, torrente de paz na vontade e eterna presença na
memória. Oh amor, verdade, eternidade! Oh beata e beatificante Trindade! A ti minha
mísera trindade miseravelmente suspira, porque de ti, infelizmente, se encontra exilada!
Afastando-se de ti, em quantos erros, dores, sofrimentos e temores se enredou! Ai de mim!
Como temos trocado essa trindade pela tua! Palpita-me o coração, daí a dor; abandonam-
me as forças, daí o pavor; falta-me até a luz dos olhos, daí o erro. Ai, trindade da minha
alma; exilaste ao pecar e agora vê tua grande dessemelhança com a Trindade!

6 Mas por que te deprimes, ó minha alma, e por que te inquietas dentro de mim?
Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo quando o erro se afastar da razão, o
sofrimento da vontade, o temor da memória, e lhes revele o que esperamos: uma
maravilhosa serenidade, uma absoluta doçura, uma eterna segurança. O primeiro será obra
do Deus verdade, o segundo do Deus amor e o terceiro do Deus onipotência. Assim será
Deus tudo para todos, quando a razão receba a luz inextinguível, quando a vontade chegue
à paz imperturbável, quando a memória acercar-se para sempre da fonte inesgotável.
Vós mesmos sabeis atribuir o primeiro ao Filho, o segundo ao Espírito Santo, o
terceiro ao Pai; todavia, vós o fareis sem nada disso subtrair ao Pai, ou ao Filho ou ao
Espírito Santo, de modo que a distinção de pessoas não diminua a plenitude, nem a
perfeição prejudique a propriedade. Considerai também se os que pertencem a este mundo
são capazes de experimentar algo semelhante nos prazeres da carne, nos espetáculos
mundanos e nas ostentações de Satanás; pois como diz João, assim esta vida engana aos
seus infelizes seguidores: tudo o que há no mundo é concupiscência da carne,
concupiscência dos olhos e soberba da vida. Isto a propósito dos frutos da redenção.
7 Se recordais o modo de levá-la a termo, dissemos que foi o aniquilamento de Deus;
e vos recomendo que considereis outros três aspectos. Aquele aniquilamento não foi algo
trivial ou insignificante, porque se esvaziou de si mesmo até assumir a carne, a cruz, a
morte. Quem avaliará com justeza toda a humilhação, a mansidão e condescendência que
supõe o fato de o Senhor soberano se revestir de carne e ser condenado à morte, morte
infamante? Dirá alguém: o Criador não poderia reparar sua obra sem tanta complicação?
Claro que poderia; mas preferiu sua própria afronta, pois assim retirava ao homem toda
ocasião de incorrer no péssimo e abominável vício da ingratidão. Assumiu muitos
sofrimentos que induziriam o homem a um grande amor, e as dificuldades da redenção
incitariam a dar graças quem não soubera ser grato pela facilidade da criação.
Como reage o coração ingrato diante de sua criação? “Sim, fui criado por puro
amor, mas sem trabalho algum de meu criador. Simplesmente falou, e fui feito, como o
resto da criação. É mui grandiosa, mas que dificuldade gera um favor que só custa
pronunciar uma palavra?”. Assim a impiedade do homem desvirtua esse benefício da
criação, para justificar sua ingratidão. Pretexta escusas para seus pecados, quando devia ter
sido um grande motivo de amor. Mas ficou tapada a boca dos que falam iniquamente.
É óbvio como a luz do dia o quanto lhe custou, ó homem, a tua salvação! Não
desdenhou passar de Senhor a servo, de rico a pobre, de Verbo a homem, de Filho de Deus
a filho do homem. Jamais esqueças que te criou do nada, mas não te redimiu do nada. Em
seis dias criou tudo, e a ti, entre todo o criado. Mas a tua salvação consumiu-lhe trinta anos
passados neste mundo. Quanto sofrimento teve de suportar! As dores de seu corpo e as
tentações do inimigo não foram agravadas e acumuladas pela ignomínia da cruz e pelo
horror da morte? Forçosamente! Assim, assim salvaste, Senhor, homens e animais, e assim
multiplicaste a tua misericórdia, ó Deus!

8 Meditai-o e ocupai-vos disso. Respire esses perfumes o vosso coração, tanto tempo
afogado com a fetidez do pecado, e frua esses aromas tão delicados como saudáveis. Mas
não creiais que já possuís aquela excelente e tão elogiada fragrância dos seios da esposa. A
pressa em acabar esse sermão me impede deter agora nesse tema. Guardai em vossa
memória o que foi dito sobre os outros perfumes e provai-o em vossa vida. Ajudai-me com
vossa oração, para que possa dignamente expor-vos o que convenha às delícias da esposa e
fomente em vossas almas o amor do Esposo, Jesus Cristo Senhor nosso.
Duodécimo Sermão

I – O terceiro perfume, que é a compaixão


II – Exemplo de diversas pessoas que exalaram esse perfume
III – Como qualquer um de nós poderá exalá-lo
IV – O aroma do corpo do Senhor, simbolizado por esse perfume
V – Como se parece ao da mulher do Evangelho
VI – A dupla tentação que é a ambição e o juízo temerário
VII – Esse perfume é o dos seios da esposa, que é a Igreja

1 Recordo-me que vos falei de duas classes de perfumes: o da contrição que abarca
toda classe de pecados, e o da devoção que recolhe todos os benefícios. Os dois são
saudáveis, mas não são ambos agradáveis. O primeiro faz sentir sua virtude purgativa, que
leva à compunção pela amarga lembrança dos pecados e causa dor; o segundo possui uma
qualidade lenitiva, pois a contemplação da bondade divina é consolo e calmante para a dor.
Mas o terceiro perfume é melhor que esses dois: eu o chamaria o da compaixão. É feito
com as indigências dos pobres, as ansiedades dos oprimidos, as depressões dos tristes, as
culpas dos delinqüentes e, finalmente, com todo gênero de misérias, inclusive as de nossos
inimigos.
Seus componentes são desprezíveis, mas com eles se confecciona o mais aromático
dos perfumes. E tem uma virtualidade curativa: felizes os misericordiosos, porque
alcançarão a misericórdia. Os ingredientes que formam esse maravilhoso perfume – digno
dos seios da esposa e agradável à sensibilidade do esposo – são todas as misérias
concentradas e perpassadas por um olhar de piedade.
Feliz o espírito que se esforça por enriquecer-se copiosamente recolhendo esses
aromas, infundindo neles o bálsamo da misericórdia e cozinhando-os no fogo do amor!
Quem crês que é esse homem afortunado senão aquele que se compadece e empresta,
propenso à compaixão, sempre disposto a ajudar, mais feliz em dar do que em receber,
inclinado ao perdão, lento para a ira, plenamente incapaz de se vingar, em tudo atento às
necessidades alheias como se fossem as suas próprias? Feliz tu, quem quer que sejas, se
esses sentimentos invadem tua alma banhada pelo orvalho da misericórdia, repleta de
compaixão até arrebentar tuas entranhas, toda feita para todos, desprezada por ti como um
vaso inútil, ao encontro dos demais para imediatamente socorrê-los em toda circunstância;
numa palavra, morta a ti mesma e viva para todos. Na verdade, tu possuis, feliz, esse
terceiro perfume, o melhor, e tuas mãos destilam sua embriagadora suavidade. As
contrariedades não desvanecerão o seu aroma, nem o fervor da perseguição o consumirá.
Deus sempre se lembrará de todas as tuas ofertas e teu sacrifício ser-lhe-á agradável.

2 Há homens ricos na cidade do Senhor dos Exércitos; vejamos se entre eles podemos
encontrar esse perfume.

II

O primeiro que me ocorre, como sempre, é Paulo, vaso de eleição, frasco


verdadeiramente aromático e odorífero, vaso repleto de toda sorte de perfumes. Em toda
parte ele era o bom odor de Cristo para Deus. Seu peito, embargado pela solicitude de todas
as Igrejas, difundia longe e largamente um bálsamo de suave fragrância. Vede que essências
e aromas havia recolhido para si: não há dia em que eu não morra por vossa glória; e, de
novo: quem é fraco, que eu não seja fraco? Quem sofre escândalo, que eu não me consuma
de dor?. Esse homem rico possuía outras muitas essências semelhantes que vós conheceis
para preparar ótimos perfumes. Era natural que exalassem os melhores e mais puros aromas
aqueles seios que alimentavam os membros de Cristo, gerados, certamente, pelo coração de
Paulo com agudas dores de parto, até que Cristo fosse neles formado e se configurassem
como membros da sua cabeça.

3 Vê também outro afortunado que possuía à mão seletos ingredientes para preparar
maravilhosos perfumes: o peregrino não teve de dormir na rua, porque eu abri minhas
portas ao caminhante; e mais: fui olhos para o cego e pés para o coxo; era um pai para os
pobres e quebrava o queixo do perverso para arrancar-lhe dos dentes a presa. Não neguei
ao pobre o que desejava, nem deixei a viúva consumir-se em pranto; não comi sozinho o
meu pedaço de pão sem reparti-lo com o órfão. Não despedi o pobre ou o peregrino sem
roupa, sem que seus rins me tenham abençoado, aquecido como estava com a lã de minhas
ovelhas. Que fragrância a desse homem, que assim perfumava a terra com suas boas obras!
Cada uma delas foi um aroma delicioso. Esse perfume encheu seu próprio espírito para
contrapor, com a exalação de sua íntima fragrância, o fedor de sua carne corrompida.

4 Também José conseguiu que todo o Egito corresse atrás de seu bálsamo fragrante e
depois exalou esse mesmo aroma àqueles que o venderam. Com seu rosto irado lançava
ameaças, mas a unção do seu coração lhe arrancava rios de lágrimas que delatavam, não
sua ira, mas seu amor. Samuel pôs luto por Saul, que o queria matar, e a unção de piedade,
vindo como que a se fundir dentro do profeta – pois que seu coração se abrasava pelo fogo
da caridade –, escorria por seus olhos. Enfim, foi o agradável odor que sua reputação havia
espalhado por todos os lados quem fez com que dele dissessem as Escrituras: todo Israel,
desde Dã até Bersabéia, reconheceu que Samuel era profeta do Senhor.
Que direi de Moisés? De que espesso perfume não estava repleto o seu coração?
Aquele povo rebelde, em meio ao qual ele esteve durante um tempo, jamais pode, com seus
murmúrios e com toda a sua fúria, fazê-lo perder essa unção do espírito desde que ele a
recebera, nem impedi-lo de conservar sua ordinária doçura em meio aos desacordos e às
querelas que surgiam todos os dias. Assim, também é com justiça que o Espírito Santo deu
o seguinte testemunho do profeta: que ele era o mais manso dentre os homens de seu
tempo. Pois ele era pacífico com aqueles que odiavam a paz, tanto que, não apenas não se
encolerizava contra um povo ingrato e rebelde, mas até mesmo intercedia por esse mesmo
povo, quando Deus se irritava contra ele. É o que lemos nas Escrituras: Já cogitava em
exterminá-los se Moisés, seu eleito, não intercedesse junto dele para impedir que sua
cólera os destruísse. Enfim, diz ele, num lamento: perdoai-os ou apagai-me do Livro da
Vida. Ó homem verdadeiramente pleno da unção da misericórdia! Certamente ele fala com
a ternura de um pai, que não pode gozar de felicidade alguma sem compartilhar com os
seus. Por exemplo: se um homem rico dissesse a uma pobre mulher: “entra, e vem jantar
comigo, mas deixa para fora esse pequeno que carregas nos teus braços, que ele não faz
senão chorar e nos seria um incômodo”; que faria essa mãe, na vossa opinião? Não
preferiria ela jejuar a jantar com o homem rico e abandonar o caro penhor de seu amor?
Assim Moisés não deseja entrar na alegria do Senhor deixando de fora o povo que, mesmo
sendo inquieto e ingrato, não deixa de ser tão querido pelo profeta como se fosse filho seu.
Doem-lhe as entranhas, é verdade, mas julga o sofrimento mais tolerável do que a
separação.

5 Quem teve mais compaixão que Davi, que chorou a morte daquele que queria matá-
lo e sofria tão infeliz daquele ao qual sucedeu no trono? E da morte de seu filho parricida,
quão difícil foi para ele encontrar consolação? Certamente essa afeição tão grande era um
inequívoco sinal de grande e excelente unção, e por isso Davi dizia a Deus, confiante:
Senhor, lembrai-vos de Davi e de sua grande piedade.

III

Todas essas pessoas possuíam perfumes excelentes que ainda hoje exalam um odor
suavíssimo por todas as igrejas. E não apenas eles, mas todos aqueles que, no curso desta
vida, foram benévolos e caridosos, esforçaram-se para mostrar compaixão por seus
semelhantes, não reivindicando exclusivamente para si qualquer graça que tenham
recebido, mas compartilhando-a com eles, julgando-se em dívida tanto para com amigos
quanto para com inimigos, para com os sábios quanto para com os insensatos; que sempre
foram úteis a todos, mais humildes do que todos, eram amados por Deus e pelos homens
mais do que todos. Todos esses homens, dizia eu, espalharam um abençoado odor de
virtudes, e os perfumes preciosos que exalaram em sua época ainda se conservam em
nossos tempos. E tu também, meu irmão, se tu permitires que nós, teus companheiros,
partilhemos das graças que recebeste do alto; se te mostras sempre prestativo, afetuoso,
grato, afável e humilde, nós todos daremos testemunho do excelente perfume que exalas.
Qualquer um dentre vós que não apenas suporta as fraquezas corporais e mentais dos
irmãos, mas, se possível e permitido, ajuda-os com obséquios, fortifica-os com exortações,
instrui-os com conselhos, e não podendo, porque a tal se opõe a Regra, ao menos não cessa
de assisti-los em suas fraquezas pelo fervor de suas orações, qualquer um de vós, dizia eu,
que pratica essas obras de caridade, certamente espalha um odor excelente entre os irmãos,
um odor de excelentes perfumes. Bálsamo para a boca é um tal irmão na comunidade; os
outros apontarão para ele e dirão: Eis o que ama os seus irmãos e o povo de Israel, aquele
que reza muito pelo povo e pela cidade santa”

IV

6 Mas vejamos se não encontramos algo no Evangelho concernente a esses perfumes:


Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram aromas para ungir Jesus.
Que ungüentos são esses, tão preciosos que podem ser comprados e preparados para o
corpo de Cristo, e tão abundantes ao ponto de perfumá-lo por inteiro? Porque os dois
primeiros perfumes não foram feitos ou comprados especificamente para servir ao Senhor;
tampouco lemos que fossem totalmente espalhados por seu corpo. Num momento, é uma
mulher que subitamente se introduz para beijar os pés e perfumá-los, e, noutro, a mesma
mulher ou outra ainda, de posse de um vaso de alabastro cheio de perfume lhe derrama o
conteúdo sobre a cabeça. Aqui, no entanto, diz a Escritura que compraram aromas para
ungir Jesus. Compraram não ungüentos, mas aromas; e não foram comprados prontos, mas
preparados especialmente para ungi-lo, e não apenas em alguma parte do corpo, como a
cabeça ou os pés, mas, como está escrito: para ungir Jesus, isto é, o corpo todo.

7 Vós também, se quiserdes vos tornar profundamente misericordiosos, sejais


benevolentes não apenas com vossos parentes e conhecidos, ou com aqueles de quem
recebestes ou esperais receber algum benefício, pois isso também fazem os pagãos. Mas se,
seguindo o conselho de Paulo, vós vos esforçardes para fazer o bem a todos os homens, de
modo a não negar atos de caridade corporal ou espiritual, por causa de Deus, mesmo ao
inimigo, certamente vós sereis também ricos em excelentes perfumes, e que vós não ungis
apenas os pés ou a cabeça do Senhor, mas, tanto quanto é possível a vós, todo o seu corpo,
que é a Igreja. Talvez tenha sido por essa razão que o Senhor Jesus não quis que se ungisse
o seu corpo morto com aqueles perfumes preparados, a fim de conservá-los para seu corpo
vivo. Pois vive a Igreja que se alimenta do pão vivo descido do céu; ela é o mais precioso
corpo de Cristo, e todo cristão sabe que ele entregou seu outro corpo à morte para que esse
fosse imortal. Ele deseja que ela seja ungida, que seus membros enfermos sejam objeto de
unções salutares; reservou para ela esses perfumes quando, antecipando a hora e acelerando
sua glória, não eludiu a devoção das mulheres, mas instruiu-a. Recusou-se a ser ungido,
mas não por desprezo, e sim por economia: ele reservaria a utilidade desse piedoso serviço
a um outro tempo. Utilidade, digo, não desse perfume material e corporal, mas de um
espiritual, para o qual o material serve de figura. Nessa ocasião, ele, o Mestre da piedade,
poupou esses perfumes da excelente piedade porque desejava ardentemente que fossem
usados para o bem espiritual e corporal de seus necessitados membros. Antes, quando
foram derramados os valiosíssimos ungüentos sobre sua cabeça e pés, impôs ele alguma
objeção? Ao contrário, repreendeu aqueles que a tal se opunham. A Simão, indignado de
que o Mestre se deixasse tocar por uma pecadora, repreendeu Jesus com uma parábola, e a
outros que se lamentavam do desperdício do perfume, respondeu: Por que atormentais esta
mulher?

8 Também a mim me aconteceu, se me permitem uma breve digressão, de sentar-me


entristecido aos pés de Jesus, oferecendo em sacrifício o espírito atribulado pela recordação
de meus pecados; ou, mais raramente, de estar de pé diante de sua cabeça, gozoso da
memória das graças que Ele fez, e ouvir estas palavras: para que este desperdício?,
reclamando que eu pensava só em mim, quando poderia estar trabalhando pelo bem de
outros; e acrescentavam: poder-se-ia vender esse perfume por bom preço e dar o dinheiro
aos pobres. Mas não seria bom para mim esse comércio de ganhar o mundo todo para
perder a mim mesmo. Então, comparava essas palavras à menção que fazem as Escrituras
às moscas mortas que corrompem e infectam o azeite perfumado, lembrei-me desse divino
discurso: ó meu povo, aqueles que te louvam te induzem ao erro. Mas que esses que me tem
por ocioso escutem o Senhor me escusar e responder por mim: por que atormentais esta
mulher?, isto é: “vós vedes apenas a superfície, e julgais sobre o que vedes. Não é o homem
que pode lidar com grandes empresas, mas a mulher; por que tentais impor-lhe um jugo que
eu sei que ele não é capaz de suportar? A obra que ele faz é boa para mim; deixai-o nesse
mesmo bem enquanto não pode fazer melhor. Quando converter-se de mulher em homem, e
homem perfeito, poderá se dedicar às obras perfeitas”.

VI

9 Irmãos, reverenciemos os bispos, mas temamos os seus encargos, pois, se


compreendermos a natureza desses labores, não desejaremos sua honra. Reconheçamos que
tal dignidade está acima de nossas forças, e que ombros delicados e efeminados não podem
suportar os fardos dos homens. Não os censuremos, mas honremo-los, pois é grosseiro
censurar as ações daqueles cujos trabalhos evitamos. Temerária é a mulher que fia em sua
casa e lança censuras ao homem que retorna de um combate. Então, se aquele que vive
enclausurado notar que um prelado engajado no mundo se deixa conduzir com menos
discrição e circunspecção que deveria, por exemplo, em seus discursos, em sua maneira de
viver, em seu sono, em seu riso, em sua cólera, em seus juízos, que não se apresse em
condená-lo, mas lembre-se antes do que está escrito: Um homem mau vale mais que uma
mulher que vos faz bem. Se vós fazeis bem em vigiar sobre vós mesmos, aquele que assiste
a muitos faz ainda melhor, e leva uma vida mais viril. Se ele não pode exercer as funções
de seu ministério sem cometer algumas faltas, sem ser perfeito, lembrai-vos que a caridade
cobre muitos pecados. Digo isso contra duas tentações às quais os religiosos estão sujeitos:
buscar a dignidade do episcopado por ambição, e, por inspiração diabólica, ser levado a
julgar temerariamente as ações dos bispos.

VII

10 Mas voltemos aos perfumes da esposa. Percebeis como esse ungüento da piedade, o
qual não se pode desperdiçar de modo algum, deve ser preferível aos demais? O fato de que
nem mesmo um copo d’água fica sem recompensa mostra que nada mesmo pode ser
desperdiçado.
O perfume da contrição, composto pelas lembranças dos pecados, o qual é
derramado sobre os pés do Senhor é certamente bom, pois o Senhor não desprezará um
coração contrito e humilhado. O perfume da devoção que se faz da lembrança das graças
de Deus, no entanto, é ainda melhor, pois é digno de ser derramado sobre a cabeça do
Senhor, que dele diz: o sacrifício de louvor me honrará. Mas a unção da piedade, que se faz
da compaixão pelos miseráveis e é espalhada por todo o corpo de Cristo, é superior às
outras duas; digo corpo, não me referindo àquele que foi crucificado, mas ao que foi
adquirido pela Paixão. Esse perfume é mesmo maior em excelência, pois dele, em
comparação aos outros dois, o Senhor diz: Eu quero a misericórdia, e não o sacrifício.
Julgo que dentre todas as virtudes, os seios da esposa exalam principalmente o odor desta,
já que ela em tudo age para conformar-se à vontade do esposo. Não era acaso esse mesmo
aroma que exalava do leito de morte de Tabita? E se ela ressuscitou, foi porque nela
prevaleceu esse odor da vida.

11 Mas escutai uma palavra breve sobre o presente capítulo. Quem quer que inebrie os
demais por suas palavras e exale um bom perfume por suas boas obras esteja certo que a ele
se refere o que foi dito: os teus peitos são melhores do que o vinho, suave é a fragrância
dos teus perfumes. Mas quem é digno de tais palavras? Quem dentre nós possui plena e
perfeitamente ao menos uma dessas qualidades, de modo que jamais seja estéril em seus
discursos e tépido em suas ações? Mas há alguém que pode, sem sombra de dúvida, ser
glorificado nesse mesmo elogio: trata-se da Igreja, a qual, no grande número de seus filhos,
sempre dispõe de algo que inebrie e perfume os que a buscam. Pois aquilo que falta a um,
ela encontra noutro, segundo a medida do dom de Cristo ou segundo a moderação do
Espírito Santo, que distribui seus dons como lhe apraz. A Igreja espalha um odor agradável
naqueles que se fazem amigos das iniqüidades de Mammon; inebria através de ministros da
palavra que derramam sobre a terra um vinho de alegria espiritual e recolhem o fruto de sua
paciência. Segura e confiante, a Igreja nomeia-se a si própria a Esposa, pois seus peitos são
melhores do que o vinho, e suave é a fragrância dos seus perfumes. Ora, ainda que nenhum
de nós tenha a presunção de chamar a própria alma de Esposa de Cristo, como somos parte
da Igreja, a qual se glorifica nesse mesmo título e naquilo que ele significa, não é sem razão
que participamos dessa glória. Pois daquilo que possuímos plena e integralmente em
conjunto, participamos cada um, individualmente, e nisso não há contradição. Graças te
damos, ó Senhor Jesus, porque te dignaste a nos associar à tua Igreja que te é tão cara, não
apenas para sermos cristãos, mas também para estarmos unidos a ti na qualidade de Esposa
em belos, castos e eternos abraços, contemplando com a face descoberta a glória que é tua
na unidade com o Pai e o Espírito Santo para sempre. Amém.

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