R E SE N HA

RESENHA DO JOGO TWILIGHT STRUGGLE: A GUERRA FRIA,

1945-1989. SÃO PAULO: DEVIR, 2016.

J O SÉ L U IZ A M ADO DE M E NE Z E S E SOUZA
Licenciado e Bacharel em Geografia (UERJ), Mestre em Geografia (UERJ)
Professor de Geografia do Instituto Federal Fluminense (Campus Macaé)
jsou za@i ff.edu.br

INTRODUÇÃO O jogo de tabuleiro, tradicionalmente, é

associado a duas vertentes principais: uma em
Os jogos de tabuleiro passam por uma fase que é visto como brinquedo, com regras simples
de intensa renovação no Brasil. Diversas editoras e, de maneira geral, baixa capacidade analítica,
têm se lançando num mercado dominado nas onde o fator sorte determina o vencedor, como
últimas três décadas por não mais de duas grandes no jogo de Ludo; e outra que exige alta capaci-
empresas do setor. Estratégias típicas da sociedade dade de abstração, memória e análise por parte
em rede a exemplo dos financiamentos coletivos do jogador, a exemplo de jogos “sérios”, como o
realizados na internet e a facilidade de intermediação xadrez. Como então valorizar outras habilidades
entre atores internacionais e brasileiros nessa área e competências tão importantes para os alunos
fizeram com que nos últimos cinco anos ocorresse do Século XXI, como o trabalho colaborativo, as
uma revolução no cenário do boardgame nacional. variadas formas de letramento como o digital,
Eventos locais, regionais e nacionais acontecem o matemático, o social e cívico, a resolução de
ao longo de todo o ano e transformam a atividade conflitos, a tolerância à diversidade cultural, entre
lúdica em hobby, o que pode ter alta aderência às outros? Como seria possível cumprir essa tarefa
estratégias de ensino que favorecem: a colaboração de forma lúdica e participativa entre os alunos?
entre os alunos; a relação professor-aluno, que Esta resenha mostra caminhos para cumprir
não seja pautada na autoridade e sim na tutoria; a esses princípios utilizando o jogo de tabuleiro
aprendizagem baseada em projetos; a educação como plataforma para desenvolver conhecimentos,
promovida com o largo uso de ferramentas digitais habilidades e competências com os alunos nativos
e o ensino baseado em competências, só para citar digitais, adaptados às redes sociais online, mas
algumas abordagens possíveis. carentes de ferramentas de interação offline.

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OS JOGOS DE TABULEIRO MODERNOS
Os jogos que não se encontram atrelados à
noção de brinquedo, nas diversas fases da infância,
ou os jogos de profunda análise e abstração, são
em maioria jogos sociais, em que os jogadores
competem individualmente, ou em equipes, com
perguntas e respostas ou por meio de habilidades
como desenho, mímica e adivinhações. Apesar
de utilizarem algumas habilidades dos jogadores,
sobrevalorizam o fator sorte para permitir que
todos os envolvidos possuam chances de ganhar
e se sintam estimulados a continuar jogando. No
entanto, esses jogos pouco destacam de fato o
esforço dos jogadores em construir um caminho
que os levem à vitória.
Essa concepção de jogo começa a mudar
na Alemanha, a partir da metade da década
de 1990, quando surgem os jogos conhecidos
atualmente como “modernos”, dos quais o maior
representante é o criado pelo alemão Klaus
Teuber, e lançado no Brasil com o nome de “Catan
– o jogo”, pela editora Grow. Em uma ilha fictícia
de nome Catan, cada jogador representa um
colono tentando sobreviver e produzir recursos
para financiar construções na forma de estradas,
aldeias e vilas, gerando pontos que determinam
o vencedor. Neste novo modelo contemporâneo
de jogo, são as escolhas dos jogadores que,
fatalmente, determinarão o vencedor da partida.
O jogo que analisaremos nessa resenha faz parte
dessa nova categoria, em que a sorte pode estar
presente, mas dificilmente se sobreposiciona
às ações planejadas pelos jogadores e, a cada
partida jogada, o conhecimento adquirido servirá
para pautar as ações da próxima, aumentando
gradualmente as chances de vitória.
TWILIGHT STRUGGLE
Agora, a trombeta nos conclama novamente
— não um chamado para empunhar as
armas, embora delas precisemos; não um
chamado para a batalha, embora estejamos
entrincheirados — mas um chamado para
suportar o peso de uma longa e incerta luta (...)1.
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O jogo Twilight Struggle tem como premissa
básica recriar o palco em que se desenrola a geopo-
lítica mundial no Pós Segunda Guerra Mundial, um
período amplamente conhecido como Guerra Fria,
em que se instala no mundo uma bipolaridade capi-
taneada pelas duas grandes forças hegemônicas
que se diferenciavam por sistemas econômico/ideo-
lógicos antagônicos: Estados Unidos (E.U.A.), repre-
sentante do sistema capitalista, e União Soviética
(U.R.S.S.), representante do sistema socialista.
Todo jogo funciona com um conjunto de
regras próprias aceitas pelos jogadores, e nos jogos
de tabuleiros modernos as regras foram categori-
zadas e recebem o nome de mecânicas, que vão
definir o fluxo da partida e os principais mecanismos
de funcionamento do jogo. Em Twilight Struggle as
principais mecânicas são o gerenciamento de mão,
em que com um baralho de cartas próprias do jogo,
o jogador deve escolher as que mais irão lhe bene-
ficiar naquele momento da partida, e o controle de
área, em que os jogadores pontuam de acordo com
seu grau de influência e presença em certas áreas
do tabuleiro no decorrer do jogo.
Com as cartas em mãos, dois jogadores se
alternam, um representando os E.U.A. e outro repre-
sentando a U.R.S.S., e a cada jogada vão praticando
sua hegemonia pelo globo e promovendo os eventos
que marcaram este período Geopolítico. A Figura 1
mostra algumas das cartas utilizadas no jogo.
As cartas de pontuação interrompem o
andamento do jogo para verificar a influência das
superpotências em alguma das regiões existentes
(Europa Ocidental/Oriental, África, América do Sul/
Central, Ásia/Sudeste Asiático/Oriente Médio). Após a
contabilização dos pontos, pode-se ter um panorama
de qual jogador está mais próximo da vitória.
Existem três condições de vitória no jogo:
quando um dos jogadores atinge a marca de 20
pontos; quando um deles obtém o controle geopo-
lítico do continente europeu; ou quando o adver-
sário deflagra uma guerra nuclear.
Por ter como tema central a disputa geopo-
lítica por influência no mundo, o tabuleiro do jogo
apresenta um mapa-múndi, onde as relações
políticas entre os países possuem mais ênfase
do que a acurácia da representação geográfica.
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 JOSÉ LUIZ AMADO DE MENEZES E SOUZA

Figura 1 | cartas de
jogo representando
alguns dos eventos
marcantes da
Guerra Fria.
Disponível em:
https://www.
ludopedia.com.br/
jogo/twilight-struggle

Exemplos dessa ênfase e que marcam a realidade do Século XX são representadas no jogo a partir
da segunda metade do Século XX são a separação de linhas que conectam os países e de números
do continente europeu em Oriental (representado que representam a estabilidade política de cada
em cinza claro) e Ocidental (em cinza escuro), país. Assim como no período da Guerra Fria, tenta-
conforme Figura 2, e o Oriente médio como zona de tivas de desestabilizar politicamente um país são
interesse e também à parte do continente asiático. possíveis para o jogador estadunidense e para o
As relações de poder da segunda metade soviético, incluindo-se aí os golpes de Estado.

Figura 2 | Tabuleiro-mapa representando as relações de poder no âmbito da Guerra Fria em: 1. a separação entre Europa ocidental
e oriental, dividida pelo que Winston Churchill chamou de uma “cortina de ferro”; 2. países não limítrofes como Espanha e Itália, mas
que possuem ligação direta no jogo devido a sua proximidade geopolítica; 3. Os números de estabilidade, evidenciando que seria mais
fácil para as superpotências exercer influência na Grécia (grau de estabilidade “2”), do que na Finlândia (grau de estabilidade “4”).
Disponível em: <https://www.ludopedia.com.br/jogo/twilight-struggle>. Acesso em: 29 mar. 2018.

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ABORDAGEM AO TEMA
Os jogos de tabuleiro podem ou não ter
um tema que os represente. No jogo de damas, o
jogador move suas peças por padrões pré-estabe-
lecidos e com isso tenta vencer o adversário. Nos
jogos temáticos vencer continua sendo o objetivo,
mas também entra em jogo a experiência. Ao jogar
Twilight Struggle, um dos principais objetivos é
reviver o período da Guerra Fria, conhecê-la e talvez
até mudá-la um pouco, opção somente explorável
nos universos da ficção, como o dos jogos. Alguns
jogadores vão preferir vestir as cores dos E.U.A.,
outros vão se recusar a jogar como socialistas e a
própria visão de mundo dos jogadores influencia suas
ações durante a partida, coisa impensável durante
uma partida de jogos abstratos como o xadrez.
Desde o título do jogo, retirado do discurso
de posse do presidente John F. Kennedy, até as mais
de cem cartas de eventos da Guerra Fria presentes,
uma ambientação minuciosa é feita e a cada mão
de cartas o jogador se depara com fotos e infor-
mações sobre o período. Em uma rodada podem
ocorrer a crise dos mísseis de Cuba, a Teologia da
Libertação ou a Glasnost, passando por eventos de
menor impacto, mas que também contribuíram na
(re)construção das relações de poder da Guerra Fria.
A própria caixa do jogo contribui para a temática
ao apresentar em suas laterais uma linha do tempo
com os principais fatos que marcaram a Geopolítica
da segunda metade do Século XX.
A Corrida espacial possui uma área espe-
cífica onde os jogadores podem ganhar bônus ao
completar certos objetivos como lançar o primeiro
satélite ou pousar primeiro na superfície lunar,
reforçando a ideia de que a disputa da Guerra Fria
não era só entre sistemas econômicos, mas entre
desenvolvimento científico, social e econômico. A
trilha de pontuação funciona como um “cabo de
guerra”: cada ponto ganho por um jogador retira
um ponto do adversário, mostrando o difícil equi-
líbrio de forças da geopolítica bipolar.
Destaque especial merece o manual que
dedica 11 páginas para relatar num nível maior de
detalhe os eventos apresentados no baralho do
jogo. É uma oportunidade para se aprofundar em
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uma temática tão familiar ao ensino da Geografia
nos cursos de nível médio.
CONCLUSÕES
Para os alunos do Século XXI, a Guerra Fria
é um tema distante relacionado a filmes e com
pouca relação aparente em suas vidas. Na verdade,
algumas turmas de professores de Geografia já
começam a se graduar sem que seus alunos-
-professores tivessem alguma relação mais direta
com o tema. No entanto, é complexo entender as
relações de poder no mundo contemporâneo sem
vislumbrar como elas se desenrolaram durante
quase toda a segunda metade do Século XX.
Utilizar o jogo como ferramenta de apre-
sentação acerca do tema é uma forma de envolver
alunos e permitir que o aprendizado ocorra de
forma lúdica, estimulante, dialogada e participativa.
Partidas podem ser feitas em equipes (incentivando o
trabalho mediado e colaborativo) ou individualmente
(incentivando a tomada de decisão e a proatividade),
além da possibilidade de realizar campeonatos.
Algumas das cartas de eventos podem se trans-
formar em temas de debates e seminários, utilizando
o manual como ponto de partida de pesquisa biblio-
gráfica. Os alunos podem criar material didático, arte,
artigos e outros recursos ou ferramentas a serem
aplicados em ambientes de ensino e aprendizagem
a partir de assuntos de seus interesses relacionados
ao tema. Métodos avaliativos como as provas indi-
viduais também podem se beneficiar da pesquisa
intensa proporcionada pelo material presente no jogo.
Twilight Struggle oferece aos atores dos processos
pedagógicos essas e outras opções de utilização,
além de uma ótima experiência de jogo.
NOTAS
1
Trecho do discurso de posse do presidente dos E.U.A. John F.
Kennedy. Neste fragmento do texto é cunhada a expressão Twilight
Struggle, traduzida como “longa e incerta luta”. A Guerra Fria não
usaria o modelo das guerras anteriores, sendo caracterizada pela
incerteza. Disponível em: <https://www.jfklibrary.org/JFK/Historic-S-
peeches/Multilingual-Inaugural-Address/Multilingual-Inaugural-Ad-
dress-in-Brazilian-Portuguese.aspx>. Acesso em: 28 mar. 2018.
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