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Resumo: O presente artigo tem como objetivo Abstract: The main purpose of the current
analisar os elementos estruturantes e a estética article is to analyse both the structural
neomedieval em duas ferramentas para a resources and the neomedieval aesthetics in
criação de RPG’s (jogos de interpretações de two tools dedicated to the creation of digital
papéis) digitais, a saber, o RPG Maker, software Role-Playing Games: RPG Maker, software
criado na década de 1990, e o RPG Playground, created in mid-1990s, and the RPG Playground,
plataforma online gratuita disponibilizada em a tool free of charges available online since
meados de 2012. Além disso, o artigo recobra o 2012. Based on these perspectives, I analysed
vívido debate sobre a agência de jogadores e the graphic resources offered by the before
desenvolvedores, assim como os mecanismos mentioned tools; also, I proposed a brief
de retroalimentação de arquétipos overview of the main agents linked with the
medievalizantes no mercado dos games. A creation and consumption of digital games
partir desses horizontes, analisei elementos related to the Middle Ages. Furthermore, the
gráficos nas ferramentas supramencionadas, tal article recovers the vivid debate on players and
como um breve levantamento das principais developers agencies; also, it offers further
partes envolvidas (desenvolvedores, jogadores, thoughts about the recurrent medievalizing
gamers) no processo de criação e consumo dos archetypes in games’ market. In this sense, my
games digitais de temática medieval. Neste text is an alert to any naïve initiatives of
sentido, o texto em voga serve de alerta para gamification – mainly when they employ
iniciativas incautas de gamificação, graphic resources that are referred as
principalmente quando empregam recursos “medieval” by the stake-holders.
gráficos tratados como “medievais” pelas partes Keywords: RPG Makers; digital RPG’s;
interessadas. neomedievalism.
Palavras-chave: RPG Makers; RPG’s digitais;
neomedievalismo.
1 Algumas ideias aqui presentes foram apresentadas no 7º. Simpósio Eletrônico Internacional
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3 LEWIS, K.J. Grand Theft Longboat: using video games and medievalism to teach Medieval
History. In: LÜNEN, A.; LEWIS, K.J.; LITHERLAND, B.; CULLUM, Pat. (Eds.). Historia Ludens:
the playing historian. Abingdon: Routledge, 2020, p.54-70.
4 BIRRO, R.M. Jogos eletrônicos e medievalismo: reflexões e críticas na Educação Brasileira.
In: BUENO, A.; BIRRO, R.M.; SOUZA NETO, J.M.G. (Orgs.). Ensino de História e Medievo. União
da Vitória: Sobre Ontens, 2019, p.37-46; GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological
theory. Oxford: Clarendon Press/Oxford University Press, 1998; GELL, Alfred. The
technology of Enchantment and the Enchantment of Technology In: COOTE, Jeremy &
SHELTON, Anthony (Eds.). Anthropology, Art, and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992,
p.40-63.
5 UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists. In: The Chronicle of Higher Education, 24 Ago
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arranjo proposto, o game não é criado apenas pelo mestre, mas também pelas ações
e performances dos jogadores, produzindo uma experiência compartilhada7.
Uma típica partida de RPG é tradicionalmente planejada em formato de
campanha (quest), uma espécie de aventura de duração variável que conta com um
objetivo final. Mesmo com a existência de um perfil moderador, há relativamente
uma grande liberdade de ação e interação com os demais jogadores, com
personagens não-jogáveis (também conhecidos como Non-Player Characters ou
NPC's), com as situações enfrentadas, de acordo com características do cenário etc.8.
Não obstante, nos RPG’s digitais, a figura do mestre é assumida pelo(s)
desenvolvedor(es), enquanto o(s) jogador(es) agem em nome de um ou mais
personagens neste ou naquele dado universo criado especificamente para atender a
ambientação pretendida. O avanço dos recursos, técnicas e subdivisões dessa
categoria de game fomentou um leque de experiências e possibilidades de ações,
incluindo aqueles que seguem em maior ou menor grau a definição de “mundo
aberto”: em vez de seguir um roteiro estabelecido aprioristicamente pelos
desenvolvedores e unilinear, o(s) jogador(es) podem percorrer seus próprios
caminhos, explorando o universo criado seguindo uma ordem que atenda seus
anseios9. Ademais, ressalto a agência pós-humana, em grande parte desencadeada
pelo aperfeiçoamento da Inteligência Artificial, que estipula aspectos, dinâmicas,
dificuldades e problemas aleatórios que desafiam os jogadores10.
Como é possível constatar neste rápido panorama, o gênero mesclou a
“cultura geek” com aquilo que identifico como “neomedievalismos fantásticos”, a
saber, as evocações temáticas medievais que são simultaneamente vagas, populares
e extremamente livres e que, em nome dessa liberdade e do desapego em relação
7 TRESCA, Michael. The evolution of fantasy role-playing games. Jefferson: McFarland, 2011,
p.8.
8 Ibidem, p.1-21.
9 BARTON, M.; STACKS, S. Introduction to Computer Role-Playing Games. In: ________.
Dungeons & Desktops: the history of computer role-playing games. 2nd edition. Boca Raton:
CRC Press/Taylor & Francis, 2019, p.1-19.
10 CARVALHO, Vinícius Marino. Agência (pós-)humana em videogames: os simuladores de
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11 KLINE, D.T. Introduction, "All Your History Are Belong to Us": Digital Gaming Re-imagines
the Middle Ages. In: ________ (Ed.). Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages. Abingdon:
Routledge, 2014, p.4.
12 ROBINSON, Carol L. A little history – ABOUT. Medieval Electronic Multimedia Organization.
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15 Ibidem, p.31.
16 Ibidem, p.32.
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17 COOPER, Victoria Elizabeth. Fantasies of the North: medievalism and identity in Skyrim.
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momento em que vivemos seria aquele em que a verdade deixa de existir por si em
defesa de um palimpsesto de perspectivas diversificadas, certas vezes controversas
e até mesmo antagonistas20.
Partindo desta definição para o que seria uma estética neomedieval (ou
estética medievalizante), algumas iniciativas recentes mostram como elementos
“medievais” são usados nas mídias como ferramentas poderosas e úteis para flutuar
do real para o inventado/imaginado. Em parte, esta preocupação ambígua é usada
como um apelo tanto para uma pretensa historicidade quanto, quando conveniente,
para dar margem ao universo criativo da produção em voga. Em certos casos, tais
mídias articulam simultaneamente noções rigorosamente incoerentes, como
intenções centradas no universo estadunidense de raízes conservadoras e inseridas
na dinâmica da branquitude com descrições de raça e etnicidade em um mundo mais
globalizado21.
Neste ponto, é importante notar como essas criações modulam e matizam a
concepção estética proposta por Ferry: assim como no caso dos RPG’s, a “liberdade”
de interpretação individual do fruidor é em parte tolhida de maneira subreptícia por
recursos estruturais, expectativas e arranjos paradoxais que se enquadram no
escopo do neomedievalismo. Outrossim, como indiquei um pouco antes, essa
estética neomedieval serve de meio para a disseminação de concepções, princípios
e valores que nem sempre são percebidos pelos fruidores (jogadores/gamers) e
desenvolvedores.
Como a análise de todos os RPG's digitais de temática medieval parece uma
tarefa inexequível diante da enorme quantidade de games disponível, foi preciso
recortar a amostra, mas sem abdicar tanto das esferas do desenvolvimento quanto
do entretenimento. Ao fazer isso, avanço para o campo chamado de historical game
studies (estudos históricos dos games), que, em suma, pretende estudar jogos que
20 FERRY, Luc. Homo Aestheticus: the invention of taste in the democratic age. Chicago: The
University of Chicago Press, 1993, p.1-75.
21 ANJIRBAG, Michelle Anya. Enter the Castle: Reiterating Medievalism in the Framing of
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O RPG Maker
O RPG Maker nasceu em 1992 sob a alcunha de RPG Tsukūru Dante 98,
desenvolvido para a plataforma PC japonesa NEC PC-9801. O termo tsukūru é um
inteligente trocadilho entre os verbos tsukuru (fazer, criar) e tsūru (ferramenta),
expressando assim a concepção real do software (algo como “ferramenta de criação
de RPG’s”). Ele desponta como o principal recurso para a elaboração precoce e home
made de RPG's digitais em duas dimensões (2D), conquanto algumas iniciativas para
a gamificação de RPG's do tipo texto tenham iniciado no final da década de 1980 -
porém, sem o mesmo sucesso23.
A primeira versão do software foi desenvolvida para o sistema operacional
Microsoft-DOS, mas que era compatível simultaneamente com usuários do Windows
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Imagem 1 - Exemplo de telas do RPG Tsukūru Dante 98, com destaque para as cores,
os cenários, a caixa de diálogos e dos personagens que integram o diálogo. Fonte:
Speed-New (2021).
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Para além dessas características, Kenji Ito atestou que se exige muito pouco
do desenvolvedor para a criação de um game empregando o RPG Maker:
primeiramente, é preciso inserir vários personagens não-jogáveis (Non-Playable
Characters ou NPC’s) e objetos nos mapas/níveis; em segundo lugar,
comportamentos e rotinas devem ser agregados aos personagens e objetos,
incutindo neles sequências lógicas (algoritmos); em terceiro, basta incluir o
personagem principal (herói ou heroína) na posição inicial especificada pelo
desenvolvedor. O estabelecimento de comportamentos ou rotinas é facilitado pela
inclusão de comandos padronizados e pré-estabelecidos, além da possibilidade de
copiar códigos (scripts) disponibilizados por outros desenvolvedores online28.
Apesar dessas nítidas vantagens e dos subsistemas que contribuem para uma
experiência gráfica e lúdica plena (editor de mapa, editor de eventos do jogo,
diálogos, sistema de administração de inventário, sistema de status do
personagem/herói e sistema de batalha, entre outros), ao observar as telas dos
games, percebe-se a visão restrita do jogador, que assume uma posição top-down ou
visão de pássaro (bird’s eye view). Sobre tal aspecto, como bem apontaram
Bittencourt e Giraffa, o RPG Maker emula, assim como a maior parte dos makers
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dessa linha, a criação de “RPG's digitais clássicos”, isto é, com um único jogador,
tramas limitadas e, não raro, lineares29.
No escopo da questão, uma experiência de gamificação com o RPG Maker
2003 e estudantes da Educação Básica no Brasil demonstrou que há uma
convergência em narrativa linear e os games elaborados pelos(as) educandos(as),
de maneira que “o jogador não tinha diferentes opções, apenas vencia os obstáculos
e continuava seguindo em frente com o desenrolar da narrativa” 30. Com efeito, como
já foi exposto, há um paradoxo entre a pretensa liberdade do RPG e a ação do
jogador, que é limitada por aquilo que o game permite ou não31.
De fato, entre as hipóteses para tal opção entre os participantes do
experimento, os autores elencaram que os(as) estudantes-desenvolvedores podem
ter sido influenciados pelas “experiências com jogos lineares que utilizaram como
referência para a criação”32, conquanto não tenham sugerido qualquer limitação ou
tendência estrutural e intrínseca da plataforma RPG Maker.
O RPG Playground
O RPG Playground é uma plataforma gratuita de criação de RPG's digitais
online e multiplataforma desenvolvida desde maio de 2012 pelo belga Koen Witters.
Ele trabalhou durante muitos anos como desenvolvedor de games da indústria
mobile, além de ter publicado seus próprios games. Na metade da década passada,
ele decidiu criar a mais fácil e rápida plataforma de produção de RPG's digitais
disponível no mercado33.
por crianças: narrativas digitais e o RPG Maker. Comunicação & Educação 1, p.117, jan./jun.
2014.
31 TRAXEL, O. M. Medieval and Pseudo-Medieval Elements in Computer Role-Playing Games:
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para quem quer desenvolver RPG's digitais de maneira facilitada e rápida. Mas “se
você tem planos maiores, pode seguir para o RPG Maker”38. Este indício, juntamente
com o design gráfico do game maker, levam a crer que Witters foi profundamente
inspirado pelo RPG maker de origem japonesa apresentado anteriormente,
tornando assim o compartilhamento de características e de recursos de gamificação
natural.
Por fim, após algumas buscas, não encontrei trabalhos acadêmicos que
recorrem ao RPG Playground para processos de gamificação com fins educacionais
ou de qualquer outra natureza. Por conta disso, não será possível apresentar um
breve balanço e como os desenvolvedores-jogadores percebem (ou não) as
limitações estruturais presentes na plataforma. Assim, análise será feita tão somente
a partir de seus recursos inerentes, e algumas suposições tentarão seguir a
bibliografia especializada que analisa o gênero, além da manifesta semelhança entre
esta plataforma e o RPG Maker.
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guerreiros vestindo elmos com chifres, arqueiros, monges etc. Saliento que há uma
relativa preponderância de personagens masculinos (c.65%) e pouca diversidade,
uma vez que, exceto pelos monstros, não há personagens negros. A quantidade de
personagens infantis e idosos também é relativamente baixa. Deste modo, o
desenvolvedor dispõe de uma ferramenta que evidencia aspectos de um
neomedievalismo fantástico masculino, branco e pouco diverso – um retrato da
sociedade e do mercado em época.
Já no RPG Playground, os characters são divididos em diferentes categorias:
humanóides, elfos, monstros e animais e objetos. Apenas a primeira delas congrega
mais de duzentas opções de diversidade razoável (homens, mulheres, brancos e
negros, crianças, idosos). Destacam-se personagens com capa e/ou armadura, reis,
rainhas, príncipes, princesas, guerreiros de diferentes ordens, demônios, fadas,
religiosos (clérigos e monges), espíritos (do fogo, da água, do vento, do reino
vegetal) e um personagem com uma face de caveira (uma possível alusão da
morte)(cf. imagem 4).
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Dragons, que promoveu uma Idade Média fantástica e pouco preocupada com a
diversidade ou com o relativismo cultural. Por sua vez, o RPG Playground
notadamente avançou neste quesito e está mais alinhado aos debates acalorados e
recentes sobre a diversidade e o universo dos jogos digitais, sem prescindir, no
entanto, de certo exotismo ao representar raças diferentes, sem romper por
completo com a estética prevalente (as mulheres-coelho sexualizadas, o elfo negro
de moicano, monstros como “bárbaros” musculosos e animalescos etc.).
Sobre os games e o debate de gênero, apesar das mudanças do público
jogador/consumidor, o panorama geral é de intensa misoginia e aberta condenação
por parte de muitos usuários de jogos a qualquer abertura para os debates sociais e
culturais. Recobro a polêmica em torno do movimento Gamergate, que defende
explicitamente que os games são apolíticos e devem ser abordados apenas por sua
dimensão técnica, sem avançar para campos que extrapolam seu intrínseco universo
digital. Um exemplo desse tipo de postura é a qualificação pejorativa aplicada a
aqueles que recebem a alcunha de social justice warrior (guerreiro da justiça social
ou SJW). Outro exemplo, mais íntimo do cenário acadêmico, abrange a condenação
da Digital Gaming Research Association (Associação para a Pesquisa de Games
Digitais ou DiGRA) por um segmento de jogadores tipicamente conservador: à luz
desses adeptos dos games digitais, a DiGRA estaria pretensamente subvertendo a
natureza dos jogos, uma vez que seus envolvidos seriam anti (ou pseudo)
intelectuais com discursos ideológicos e objetivos acadêmicos claramente
doutrinadores46.
Ao considerar as questões supracitadas, fica clara a diferença geracional
entre as duas ferramentas. As versões mais antigas do RPG Maker estavam mais
afinadas com o perfil do público no final do século XX e início do século XXI,
momento em que os debates de gênero e diversidade no universo dos games
raramente ocorriam. Com o avanço do mercado dos jogos digitais, a diversificação
do público de jogadores/consumidores e uma maior participação e interesse de
intelectuais em pesquisar games, mudanças foram provocadas para atender novos
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nichos e segmentos. Deste modo, boa parte dessas benéficas mudanças se faz sentir
no RPG Playground, por se tratar de uma plataforma mais recente e aberta aos apelos
do público desenvolvedor-jogador.
Porém, recobro o princípio do conservadorismo tecnológico no
desenvolvimento de games para endossar que, conquanto mudanças benéficas
tenham ocorrido, elas são lentas e marcadas por conflitos. Além disso, que os
elementos e as representações neomedievais podem ser usados como relevantes
veículos de ideias e princípios conservadores – situação que se mostra ainda mais
provável quando um relevante segmento de jogadores se nega a qualquer abertura
ou pretensão de mudança.
Doutra feita, avanço neste momento para os tilesets do RPG Maker. Ao
observar atentamente esses recursos gráficos, constatei a presença de cenários
gelados aos marítimos, e destes aos desérticos; de ambientes rurais a altamente
urbanos com construções com telhas amarelas, azuis ou vermelhas, tal como
castelos de pedra. Sobre os ambientes internos, boa parte envolve pedra (e não
madeira, como era de se esperar), janelas e objetos que não remetem ao período,
como uma armadura completa (típica da época do Renascimento), órgão de tubos ou
bibliotecas com obras encadernadas. Tudo isso foi disposto lado a lado, o que
certamente pode induzir o(a) desenvolvedor(a) a considerar todos esses elementos
contemporâneos uns dos outros e, portanto, naturais. Outra conexão possível é a
sugestão incorreta que todos esses recursos faziam parte do cotidiano da Idade
Média. Curiosamente, há uma prevalência por cenários que fazem parte da
experiência histórica ocidental durante o medievo (cidades, castelos), enquanto os
recursos que poderiam evocar outras sociedades são parcos e “primitivos”.
Ao redirecionar meu olhar para os mesmos aspectos no RPG Playground,
identifiquei várias semelhanças estéticas e alguns desdobramentos em comparação
com o que foi encontrado na plataforma anteriormente descrita. A imagem 3 é um
valioso exemplo da concepção estética de “castelo medieval” dessa ferramenta de
criação de RPG’s digitais: cadafalsos, instrumentos de tortura, grilhões e grades que
recobram calabouços em ambientes escuros e frios de pedra. Nos cenários
destinados ao ambiente urbanos, tanto ambientes descritos como “pobres” quanto
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como “ricos” também apresentam paredes de pedra, tal como janelas de madeira e
armas a serem exibidas.
Seja como for, os recursos apontados desnudam uma verdadeira obsessão
pela ambientação arquitetônica da Idade Média, manifesta principalmente a partir
dos castelos. Neste ponto, é importante frisar que tal “mundo de pedra” cru, duro e
frio é muito mais caro às noções medievalistas modernas do que ao próprio período
medieval. Como João Porto Júnior fez questão de frisar em sua tese,
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Na esteira dos exemplos citados, cito ainda minhas visitas aos principais
fóruns dedicados ao RPG Maker (em português) e ao RPG Playground (em inglês). No
primeiro, há uma central de recursos que disponibiliza um pacote (pack) intitulado
“reino medieval”. O registro foi inserido em 2017, com interações entre os usuários
até março de 2019. Entre os characters ofertados, há as curiosas presenças de
princesas com chifres e cavaleiros com armadura completa, mas que lutam a pé, com
escudo, espada e lança. Quanto aos tilesets, temos mais uma vez castelos de pedra
com seteiras e torreões, flâmulas e bandeiras. Para além deles, não há outras
imagens com referências a ambientes urbanos, apenas rurais50.
O autor da postagem original informou que o pack original dispunha de
“pouca coisa” e, por esta razão, ele vasculhou a internet inteira para “juntar
guerreiros, realeza e guardiães [...] monsters [...] e chipsets de castelos [...]”51. Ao
notar a última interação, percebe-se que os recursos “originais” tinham sido criados
no Japão, o que reforça a impressão de uma comunidade que recicla, reapropria e
ressignifica os recursos do RPG Maker continuamente, mas com graus de
manutenção e reprodução de certos elementos estéticos neomedievais.
Ao realizar buscas por termos ligados à Idade Média (Middle Ages, Medieval,
Medievalism) no fórum oficial do RPG Playground, conquanto os elementos gráficos
tenham clara inspiração neomedieval, identifiquei apenas três entradas
relacionadas – todas elas relativas ao ano de 2016. A primeira inserção foi realizada
por desenvolvedor-jogador que tinha recém-ingressado na plataforma “eu planejo
fazer algo como um game de fantasia medieval, no qual o jogador foi um paladino na
vida passada. Ele viajou no tempo, matou chefões etc., na intenção de consertar o
tempo presente”52.
Assim, mesmo que não seja possível identificar qualquer referência ao termo
medieval por parte de Koen Witters (o desenvolvedor do RPG Playground) ou de
abr. 21.
51 Ibidem
52 RPG PLAYGROUND FORUM. Disponível em www.rpgplayground.com Acesso em 12 mar.
21.
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53 Ibidem
54 Ibidem
55 RPG PLAYGROUND FORUM, Op. Cit.
56 KLINE, Op. Cit., p.4.
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Considerações finais
Apesar das transformações no gênero, constata-se que o substrato
neomedieval está manifesto em ambas as plataformas de criação de RPG’s digitais –
um reflexo, como apontado, da congênita ligação entre o gênero e a estética
neomedieval da contemporaneidade. Portanto, há um risco inerente de que
representações neomedievais sejam utilizadas para veicular aos jogadores ideias e
representações intencionalmente ou sub-repticiamente. Outrossim, como a
exposição tentou salientar, ficam evidentes os problemas de ordem histórica, que
57 CAMPER, Brett Bennet. Homebrew and the Social Construction of Gaming: Community,
Creativity, and Legal Context of Amateur Game Boy Advance Development. B.A Comparative
History of Ideas. Washington: University of Washington, 2005.
58 REED, Op. Cit., p.99-123.
59 TRAXEL, Op. Cit., p.137.
60 Ibidem
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