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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

“EU PLANEJO FAZER ALGO COMO UM GAME DE FANTASIA


MEDIEVAL”: RPG MAKERS E A ESTÉTICA NEOMEDIEVAL
EM RPG’S DIGITAIS1
“I PLAN TO MAKE SOMETHING LIKE A MEDIEVAL FANTASY GAME”:
RPG MAKERS AND THE NEOMEDIEVAL AESTHETICS IN DIGITAL
RPG’S

Renan Marques Birro2


Universidade de Pernambuco/Campus Mata Norte
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco
renan.birro@upe.br

Resumo: O presente artigo tem como objetivo Abstract: The main purpose of the current
analisar os elementos estruturantes e a estética article is to analyse both the structural
neomedieval em duas ferramentas para a resources and the neomedieval aesthetics in
criação de RPG’s (jogos de interpretações de two tools dedicated to the creation of digital
papéis) digitais, a saber, o RPG Maker, software Role-Playing Games: RPG Maker, software
criado na década de 1990, e o RPG Playground, created in mid-1990s, and the RPG Playground,
plataforma online gratuita disponibilizada em a tool free of charges available online since
meados de 2012. Além disso, o artigo recobra o 2012. Based on these perspectives, I analysed
vívido debate sobre a agência de jogadores e the graphic resources offered by the before
desenvolvedores, assim como os mecanismos mentioned tools; also, I proposed a brief
de retroalimentação de arquétipos overview of the main agents linked with the
medievalizantes no mercado dos games. A creation and consumption of digital games
partir desses horizontes, analisei elementos related to the Middle Ages. Furthermore, the
gráficos nas ferramentas supramencionadas, tal article recovers the vivid debate on players and
como um breve levantamento das principais developers agencies; also, it offers further
partes envolvidas (desenvolvedores, jogadores, thoughts about the recurrent medievalizing
gamers) no processo de criação e consumo dos archetypes in games’ market. In this sense, my
games digitais de temática medieval. Neste text is an alert to any naïve initiatives of
sentido, o texto em voga serve de alerta para gamification – mainly when they employ
iniciativas incautas de gamificação, graphic resources that are referred as
principalmente quando empregam recursos “medieval” by the stake-holders.
gráficos tratados como “medievais” pelas partes Keywords: RPG Makers; digital RPG’s;
interessadas. neomedievalism.
Palavras-chave: RPG Makers; RPG’s digitais;
neomedievalismo.

1 Algumas ideias aqui presentes foram apresentadas no 7º. Simpósio Eletrônico Internacional

em Ensino de História, realizado entre os dias 24 e 28 de Maio de 2021.


2 Professor de História Medieval e Ensino de História Medieval da Universidade de
Pernambuco/Campus Mata Norte (UPE/MN); Professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em Ensino de História da UPE/MN; Professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (PPGH/UFPE).
Pesquisador do Leitorado Antiguo (UPE/MN), do LAPAE (UPE/MN), do LINHAS (UFRRJ), do
LATHIMM (USP) e do LEM (UEL). Email: renan.birro@upe.br.

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Indubitavelmente a indústria dos games digitais tem um profundo interesse


pela Idade Média: em um levantamento que cobre o intervalo entre 1980 e 2013,
ficou evidente que cerca de 600 jogos de diferentes gêneros e que contém elementos
medievais foram desenvolvidos3. Certamente é possível que o número seja maior
caso sejam considerados os mercados menores ou o exercício a partir de
desenvolvedores independentes. Seja como for, a Idade Média está intrinsicamente
ligada à indústria dos games digitais desde a sua origem.
Entrementes, é possível abordar rapidamente uma vantagem e vários
problemas por essa inserção. Se por um lado a recorrente evocação do medievo
produz um imenso interesse no público geral, ela também fomenta representações
que estão longe de corresponder àquilo que seria “acurado” em termos históricos.
Além disso, essas representações estão imbuídas de recursos multimodais tão
poderosos (Computação Gráfica, som surround e, em certos casos, até mesmo
experiências táteis e olfativas) que formatam uma poderosa “realidade da
representação” e manifestam suas próprias agências4: assim, ao ser apresentado ao
que aconteceu na Idade Média através de mídias usuais da experiência acadêmica
(como livros), o público não raro se mostra desinteressado, frustrado e ignora aquilo
que foi construído por décadas e séculos de erudição5.
Para tentar superar o problema, muitos pesquisadores (incluindo aqueles
que pertencem a outros campos) tem se dedicado ao estudo dos games a partir de
diferentes frentes de trabalho. Alguns optam por analisá-los em termos de
conteúdo; outros avaliam o contexto de produção; há ainda aqueles que tentam

3 LEWIS, K.J. Grand Theft Longboat: using video games and medievalism to teach Medieval
History. In: LÜNEN, A.; LEWIS, K.J.; LITHERLAND, B.; CULLUM, Pat. (Eds.). Historia Ludens:
the playing historian. Abingdon: Routledge, 2020, p.54-70.
4 BIRRO, R.M. Jogos eletrônicos e medievalismo: reflexões e críticas na Educação Brasileira.

In: BUENO, A.; BIRRO, R.M.; SOUZA NETO, J.M.G. (Orgs.). Ensino de História e Medievo. União
da Vitória: Sobre Ontens, 2019, p.37-46; GELL, Alfred. Art and Agency: an anthropological
theory. Oxford: Clarendon Press/Oxford University Press, 1998; GELL, Alfred. The
technology of Enchantment and the Enchantment of Technology In: COOTE, Jeremy &
SHELTON, Anthony (Eds.). Anthropology, Art, and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1992,
p.40-63.
5 UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists. In: The Chronicle of Higher Education, 24 Ago

15. Disponível em www.chronicle.com Acesso em 14 Nov 17.

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“virar o jogo”, ou seja, que desenvolvem experiências de gamificação para aproveitar


o interesse do público, mas que partem de horizontes mais alinhados com o
conhecimento científico mais atualizado e coerente para propor recursos didáticos
digitais. Naturalmente, acadêmicos brasileiros já se debruçaram sobre o tema, o que
tem aos poucos formatado uma comunidade nacional de interessados.
Com efeito, este último princípio parece profundamente interessante, mas
esbarra no baixo nível de interseção entre os cursos de Humanidades e o
desenvolvimento de ferramentas tecnológicas. Para dar conta do problema, uma
saída empregada em diferentes experiências tem sido recorrer a game makers, ou
seja, a aplicativos e softwares que permitem o desenvolvimento de jogos digitais,
mas que não demandam estruturas profissionais (equipes de profissionais,
equipamentos de última geração) nem conhecimentos específicos (pixel art,
programação, compilação, designers). Uma vez familiarizados, até mesmo crianças e
jovens conseguem desenvolver jogos simples após alguns minutos, uma vez que a
interface amigável já pressupõe recursos conhecidos de outros games, assim como
representações gráficas do cenário, dos personagens, as trilhas sonoras e os efeitos
sonoros. Pelas razões apresentadas, fica clara a razão para que tais recursos sejam
empregados em experiências em sala de aula ou voltados para fins educacionais.
Ao ponderar acerca das duas questões apresentadas até o momento – games
digitais e Idade Média, por um lado, e o desenvolvimento de jogos, por outro –, um
gênero que se destaca são os RPG’s (Role-Playing Games ou Jogos de interpretação de
papéis). A opção pelo gênero é um tanto óbvia, posto que a maior parte dos jogos
digitais ligados ao período medieval integra esta categoria6. O RPG recobra a década
de 1970, porém no formato de experiências físicas, isto é, quando os jogadores
recorriam a tabuleiro e fichas de papel – com particular destaque para a franquia
Dungeons & Dragons, uma espécie de “pai fundador” do gênero. Durante a
experiência lúdica, os jogadores criam e encarnam personagens enquanto se
aventuram em um mundo criado por um mestre (game máster ou GM), ou seja, um
especialista nas regras e no “mundo” no qual os participantes se inseriam. No

6TRAXEL, O. M. Medieval and Pseudo-Medieval Elements in Computer Role-Playing Games:


use and interactivity. Studies in Medievalism XVI, p.126-127, 2008.

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arranjo proposto, o game não é criado apenas pelo mestre, mas também pelas ações
e performances dos jogadores, produzindo uma experiência compartilhada7.
Uma típica partida de RPG é tradicionalmente planejada em formato de
campanha (quest), uma espécie de aventura de duração variável que conta com um
objetivo final. Mesmo com a existência de um perfil moderador, há relativamente
uma grande liberdade de ação e interação com os demais jogadores, com
personagens não-jogáveis (também conhecidos como Non-Player Characters ou
NPC's), com as situações enfrentadas, de acordo com características do cenário etc.8.
Não obstante, nos RPG’s digitais, a figura do mestre é assumida pelo(s)
desenvolvedor(es), enquanto o(s) jogador(es) agem em nome de um ou mais
personagens neste ou naquele dado universo criado especificamente para atender a
ambientação pretendida. O avanço dos recursos, técnicas e subdivisões dessa
categoria de game fomentou um leque de experiências e possibilidades de ações,
incluindo aqueles que seguem em maior ou menor grau a definição de “mundo
aberto”: em vez de seguir um roteiro estabelecido aprioristicamente pelos
desenvolvedores e unilinear, o(s) jogador(es) podem percorrer seus próprios
caminhos, explorando o universo criado seguindo uma ordem que atenda seus
anseios9. Ademais, ressalto a agência pós-humana, em grande parte desencadeada
pelo aperfeiçoamento da Inteligência Artificial, que estipula aspectos, dinâmicas,
dificuldades e problemas aleatórios que desafiam os jogadores10.
Como é possível constatar neste rápido panorama, o gênero mesclou a
“cultura geek” com aquilo que identifico como “neomedievalismos fantásticos”, a
saber, as evocações temáticas medievais que são simultaneamente vagas, populares
e extremamente livres e que, em nome dessa liberdade e do desapego em relação

7 TRESCA, Michael. The evolution of fantasy role-playing games. Jefferson: McFarland, 2011,
p.8.
8 Ibidem, p.1-21.
9 BARTON, M.; STACKS, S. Introduction to Computer Role-Playing Games. In: ________.

Dungeons & Desktops: the history of computer role-playing games. 2nd edition. Boca Raton:
CRC Press/Taylor & Francis, 2019, p.1-19.
10 CARVALHO, Vinícius Marino. Agência (pós-)humana em videogames: os simuladores de

reino e a História Medieval. Conferência. 7o. Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de


História Medieval, 24 a 28 de Maio. Disponível em simpohist2021.blogspot.com Acesso em
25 mai 21.

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tanto ao passado quanto ao futuro, negam a própria história. Notavelmente, o


produto constantemente reconfigurado guarda semelhanças com um palimpsesto,
ou seja, um arranjo de elementos que pareceriam díspares e incoerentes após um
primeiro olhar11.
Neste sentido, o processo de reescrita dos conceitos e valores medievais em
um universo alternativo ou fantástico rompe com a nostalgia dos medievalismos
anteriores, que tentavam emular e transmitir uma ideia de fidedignidade com o
passado. Consequentemente, temos à disposição uma construção pós-moderna, em
certo grau pastiche e que assume abertamente valores contemporâneos (feminismo,
LGBTQIA+, democracia, minorias, entre outras)12.
Para complementar, os games digitais que recorrem a argumentos e
elementos estéticos ligados de alguma forma ao medievo

não mais anseiam buscar a autenticidade de manuscritos, castelos


ou catedrais, mas criam mundos pseudo-medievais que
divertidamente obliteram a história e a acurácia história, além de
substituir as narrativas baseadas na história em simulacros do
medieval, empregando imagens que não são nem cópias de um
original nem um original, mas conjuntamente, algo Neo [novo]13.

Ainda quanto ao neomedievalismo, além da longeva influência de Umberto


Eco (a rigor, o criador do termo) em nosso meio intelectual, em detrimento do já
consolidado conceito de medievalismo do universo anglófono, é possível agregar
aquilo que Altschul e Grzybowski destacaram recentemente: a possibilidade
analógica dos binômios medievalismo x neomedievalismo e classicismo x
neoclassicismo14.

11 KLINE, D.T. Introduction, "All Your History Are Belong to Us": Digital Gaming Re-imagines

the Middle Ages. In: ________ (Ed.). Digital Gaming Re-imagines the Middle Ages. Abingdon:
Routledge, 2014, p.4.
12 ROBINSON, Carol L. A little history – ABOUT. Medieval Electronic Multimedia Organization.

Disponível em medievalelectronicmultimedia.org Acesso em 25 mai. 21.


13 UTZ, Richard. Preface: a moveable feast: repositionings of 'the Medieval' in Medieval

Studies, Medievalism, and Neomedievalism. In: ROBINSON, C.L.; CLEMENTS, P. (Eds.).


Neomedievalism in the Media: Essays on Film, Television, and Electronic Games. Lewinston:
Edwin Mellen, 2011, p.v.
14 ALTSCHUL, Nadia R.; GRZYBOWSKI, Lukas Gabriel. Em busca dos dragões: Idade Média

no Brasil. Antíteses, Londrina, v.13, n. 25, p.30, jan.-jun. 2020.

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As linhas gerais do neoclassicismo podem então fornecer uma


analogia com o neomedievalismo: um uso posterior e remoto de um
suposto revival original e que manipula e implanta elementos quase
estereotipados que permaneceram afiliados a uma ideia da
Antiguidade Clássica ou da Idade Média15.

Ato contínuo, ambos defendem que a simples transferência de um termo que


fez e faz parte da experiência histórica e intelectual anglófona para outros contextos.
“Ao contrário, um verdadeiro desvio pós-colonial pode deslocar a disciplina para
fora de seus canais usuais e oferecer uma transformação em como ela se entende;
pode conter uma transferência que não é imitativa, mas segura em suas diferenças
e perspectivas”16. De modo geral, sinto-me contemplado por essas preocupações,
uma vez que elas convergem diretamente para seu uso no meio dos games e dos RPG
makers. Como apontarei adiante, a título de exemplo, uma das ferramentas
elencadas que manifesta experiências estéticas de viés neomedieval curiosamente
foi criada no Japão e encontrou solo fértil no Ocidente, incluindo o Brasil.
Doutra feita, conquanto o RPG recobre a liberdade de ação e interação desde
a origem do gênero, característica que ficou ainda mais marcante após sua migração
parcial para o formato digital e com a criação de “mundos abertos”, pesquisas tem
constatado que, na verdade, tanto desenvolvedores diletantes quanto de grandes
empresas do mercado dos games recorrem a diferentes estratégias para controlar
as ações dos jogadores, que podem ou não ser combinadas no mesmo jogo digital.
Por exemplo, alguns desenvolvedores formatam um mundo enorme com várias
missões secundárias (side quests), mas criam uma campanha principal (main quest)
que precisa ser realizada para que o jogo desenvolva e chegue a um fim. Outro
mecanismo de controle é a fixação de determinadas estruturas imutáveis, como
reinos, religiões, desenvolvimentos técnicos/tecnológicos e/ou relações sociais, no
intuito de evitar um total descontrole dos desdobramentos. Por fim, mas não menos
importante, ressalto que determinados aspectos, arranjos, enredos e elementos de
sucesso em games anteriores são completamente ou parcialmente reproduzidos em

15 Ibidem, p.31.
16 Ibidem, p.32.

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novos games, abordagem que considera eminentemente a lógica de mercado – se fez


sucesso, o risco é menor do que criar algo completamente novo e que pode
desagradar jogadores/compradores17.
Assim, constata-se que a liberdade extrema e a livre agência dos jogadores
são matizadas por questões que não são evidentes para quem apenas se diverte com
os games de modo descompromissado. Como Victoria Elizabeth Cooper constatou,
os aperfeiçoamentos técnicos e tecnológicos potencialmente serviriam como
mecanismos fundamentais para novas experiências de interatividade e lúdicas, mas
esbarram em problemas mais profundos, uma vez que o jogador poderia

tomar decisões que deveriam ser significantes, mas que, na


realidade, portam pouco impacto observável no mundo do game
[...] A presunção subjacente que o jogo fornece é que poder e
influência são fundamentalmente imutáveis e são cuidadosamente
controlados e mantidos de maneira a prevenir uma mudança real
daquilo que poderia modificar o mundo do game muito
dramaticamente. Este conservadorismo tecnológico trata de um
conservadorismo no estilo narrativo do mundo, e também da forma
através da qual os mundos medievais são entendidos e
construídos18.

Assim, além de elementos estruturantes de caráter técnico, é preciso


considerar igualmente os panos de fundo tanto dos desenvolvedores quanto dos
jogadores, como experiência educacional prévia e/ou concomitante, os
posicionamentos político-ideológicos, de gênero, de mercado, os níveis de
historicidade e a real pretensão quanto ao artefato digital produzido19.
Por fim, sobre a estética, recobro a definição de Luc Ferry da estética como
“gosto”, principalmente na contemporaneidade. Na direção contrária das
experiências anteriores, que formatavam critérios substanciais do Belo, ou ainda
padrões elitistas do Belo, a obra contemporânea dependeria fortemente da
interpretação individual do fruidor, seja ele um artista ou observador. A rigor, o

17 COOPER, Victoria Elizabeth. Fantasies of the North: medievalism and identity in Skyrim.

Tese. University of Leeds, 2016.


18 Ibidem, p.71-72.
19 COPPLESTONE, Tara J. But that’s not accurate: the differing perceptions of accuracy in

cultural-heritage videogames between creators, consumers and critics. Rethinking History


20, p.1-26, 2016.

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momento em que vivemos seria aquele em que a verdade deixa de existir por si em
defesa de um palimpsesto de perspectivas diversificadas, certas vezes controversas
e até mesmo antagonistas20.
Partindo desta definição para o que seria uma estética neomedieval (ou
estética medievalizante), algumas iniciativas recentes mostram como elementos
“medievais” são usados nas mídias como ferramentas poderosas e úteis para flutuar
do real para o inventado/imaginado. Em parte, esta preocupação ambígua é usada
como um apelo tanto para uma pretensa historicidade quanto, quando conveniente,
para dar margem ao universo criativo da produção em voga. Em certos casos, tais
mídias articulam simultaneamente noções rigorosamente incoerentes, como
intenções centradas no universo estadunidense de raízes conservadoras e inseridas
na dinâmica da branquitude com descrições de raça e etnicidade em um mundo mais
globalizado21.
Neste ponto, é importante notar como essas criações modulam e matizam a
concepção estética proposta por Ferry: assim como no caso dos RPG’s, a “liberdade”
de interpretação individual do fruidor é em parte tolhida de maneira subreptícia por
recursos estruturais, expectativas e arranjos paradoxais que se enquadram no
escopo do neomedievalismo. Outrossim, como indiquei um pouco antes, essa
estética neomedieval serve de meio para a disseminação de concepções, princípios
e valores que nem sempre são percebidos pelos fruidores (jogadores/gamers) e
desenvolvedores.
Como a análise de todos os RPG's digitais de temática medieval parece uma
tarefa inexequível diante da enorme quantidade de games disponível, foi preciso
recortar a amostra, mas sem abdicar tanto das esferas do desenvolvimento quanto
do entretenimento. Ao fazer isso, avanço para o campo chamado de historical game
studies (estudos históricos dos games), que, em suma, pretende estudar jogos que

20 FERRY, Luc. Homo Aestheticus: the invention of taste in the democratic age. Chicago: The
University of Chicago Press, 1993, p.1-75.
21 ANJIRBAG, Michelle Anya. Enter the Castle: Reiterating Medievalism in the Framing of

Disney’s Fantasyscapes. Children's Literature Association Quarterly 45 (4), p.346-363, 2020;


LAFORTUNE, Avery. Clothed in History: Costume and Medievalism in Fantasy Film and
Television. Dissertação. The University of Western Ontario, 2020.

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representam determinado passado ou discursos relacionados a ele, tal como as


possíveis aplicações dos games em diferentes campos de atividade de
conhecimento. Ao mesmo tempo, a abordagem pondera sobre as práticas,
motivações e interpretações de desenvolvedores e do público que fazem parte da
lógica de produção e consumo, uma vez que elas podem, por exemplo, reforçar ou
romper com ideologias colonialistas22.
Portanto, meu objetivo neste texto, que compõe um esforço de pesquisa em
curso, será checar a estrutura de duas plataformas de gamificação do gênero RPG,
com particular atenção aos recursos pré-estabelecidos nas ferramentas de
elaboração de jogos digitais que se enquadram nos supramencionados
“neomedievalismos fantásticos”. Entrementes, proponho um breve balanço das
partes interessadas (desenvolvedores e jogadores) e como eles articulam suas
relações com o passado medieval (real ou pretenso) para, no final, tecer minhas
conclusões sobre o tema.

O RPG Maker
O RPG Maker nasceu em 1992 sob a alcunha de RPG Tsukūru Dante 98,
desenvolvido para a plataforma PC japonesa NEC PC-9801. O termo tsukūru é um
inteligente trocadilho entre os verbos tsukuru (fazer, criar) e tsūru (ferramenta),
expressando assim a concepção real do software (algo como “ferramenta de criação
de RPG’s”). Ele desponta como o principal recurso para a elaboração precoce e home
made de RPG's digitais em duas dimensões (2D), conquanto algumas iniciativas para
a gamificação de RPG's do tipo texto tenham iniciado no final da década de 1980 -
porém, sem o mesmo sucesso23.
A primeira versão do software foi desenvolvida para o sistema operacional
Microsoft-DOS, mas que era compatível simultaneamente com usuários do Windows

22CHAPMAN; FOKA; WESTIN, Op. Cit., p.5-6.


23KYLMÄAHO, Noora. Pixel Graphics in Indie Games. BA in Media and Arts. Tampere
University of Applied Sciences, 2019, p.22; ITO, Kenji. Possibilities of Non-Commercial
Games: the case of Amateur Role-Playing Games Designers in Japan. In: CASTELL, S.;
JENSON, J. (Eds.). Worlds in Play: International Perspectives on Digital Games Research. New
York: Peter Lank, 2007, p.131.

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95, que emulava internamente o sistema anterior da empresa. De fato, apenas em


1995 foi criada a primeira versão exclusiva para o Windows, intitulada RPG Tsukūru
9524. Se inicialmente a plataforma foi projetada para o mercado japonês, versões
“piratas” em Língua Inglesa começaram a circular amplamente, tornando este game
maker popular tanto no mercado oriental quanto no ocidental25. Neste momento, a
ferramenta aos poucos passou a abdicar de recursos de desenvolvimento ainda
vinculados aos antigos padrões tipo texto, para atender um público interessado no
desenvolvimento de games, mas que não estava familiarizado com noções
avançadas de programação.
Pouco tempo depois, a empresa proprietária da ferramenta lançou uma
versão oficial em Língua Inglesa rebatizada como RPG Maker (conhecida no Japão
como RPG Tsukūru 3) para o console Playstation da Sony. Ao considerar a qualidade
gráfica e sonora dos games desenvolvidos a partir dessa ferramenta, com especial
apreço para as versões mais antigas (95, 2000 e 2003), logo se destaca a riqueza de
cores, a capacidade de produzir games com cenários elaborados (uso de sombras,
árvores, níveis internos e externos), cores, diálogos, trilha sonora, efeitos sonoros e
condicionais (se, enquanto, loops)26. Naturalmente, essas qualidades mostram-se
defasadas hoje em dia, mas se adequaram aos gráficos usados no principal console
japonês da primeira metade da década de 1990, o Super Famicom (no Ocidente,
Super Nintendo ou SNES)27. Essas características permaneceram no mainstream dos
RPG's digitais desenvolvidos no Japão em boa parte da década de 1990 (para
consoles) e 2000 (para portáteis).
Apesar disso, os recursos para desenvolvimento de games independentes
ofertados pelo RPG Maker eram muito avançados naquela época – é preciso

24 ITO, Op. Cit., p.131-132.


25 REED, E. From Tool to Community to Style: The Influence of Soſtware Tools on Game
Development Communities and Aesthetics. In: CLARKE, M.J.; WANG, C. (Eds.). Indie Games
in the Digital Age. London: Bloomsbury Publishing, 2020, p.106-107.
26 BITTENCOURT, João Ricardo; GIRAFFA, Lucia Maria Martins. A utilização dos Role-Playing

Games Digitais no Processo de Ensino-Aprendizagem. Relatório. Porto Alegre: Programa de


Pós-Graduação em Ciência da Computação/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, 2003, p.45.
27 ITO, Op. Cit., p.131.

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ponderar acerca das limitadas capacidades dos computadores em várias dimensões.


Outrossim, a possibilidade de criar um jogo digital sem saber programar compunha
um grande (e talvez o principal) atrativo para o público leigo (cf. imagem 1).

Imagem 1 - Exemplo de telas do RPG Tsukūru Dante 98, com destaque para as cores,
os cenários, a caixa de diálogos e dos personagens que integram o diálogo. Fonte:
Speed-New (2021).

Quanto aos recursos de elaboração de jogos, nota-se a adoção de menus


adicionais e laterais (à direita ou à esquerda) com funcionamento do tipo drag and
drop ("arrastar e soltar"), no qual ficam disponíveis as tiles (lit. "azulejos" ou
"telhas", isto é, pequenos retângulos com elementos do cenário como paredes,
árvores, arbustos etc.), os tipos-padrões de personagens (characters) e os níveis
disponíveis na plataforma. A intenção desse recurso era explorar ao máximo os
recursos propiciados pela combinação entre plataforma e o mouse, além de oferecer
uma interface mais amigável (user-friendly) na produção dos games por entusiastas
(cf. imagem 2).

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Imagem 2 - Reprodução do editor de cenários do RPG Tsukūru Dante 98. À direita,


o menu com characters (parte superior) e tiles (parte inferior). Fonte: RPG Maker
Forum (2021).

Para além dessas características, Kenji Ito atestou que se exige muito pouco
do desenvolvedor para a criação de um game empregando o RPG Maker:
primeiramente, é preciso inserir vários personagens não-jogáveis (Non-Playable
Characters ou NPC’s) e objetos nos mapas/níveis; em segundo lugar,
comportamentos e rotinas devem ser agregados aos personagens e objetos,
incutindo neles sequências lógicas (algoritmos); em terceiro, basta incluir o
personagem principal (herói ou heroína) na posição inicial especificada pelo
desenvolvedor. O estabelecimento de comportamentos ou rotinas é facilitado pela
inclusão de comandos padronizados e pré-estabelecidos, além da possibilidade de
copiar códigos (scripts) disponibilizados por outros desenvolvedores online28.
Apesar dessas nítidas vantagens e dos subsistemas que contribuem para uma
experiência gráfica e lúdica plena (editor de mapa, editor de eventos do jogo,
diálogos, sistema de administração de inventário, sistema de status do
personagem/herói e sistema de batalha, entre outros), ao observar as telas dos
games, percebe-se a visão restrita do jogador, que assume uma posição top-down ou
visão de pássaro (bird’s eye view). Sobre tal aspecto, como bem apontaram
Bittencourt e Giraffa, o RPG Maker emula, assim como a maior parte dos makers

28 ITO, Op. Cit., p.131-133.

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dessa linha, a criação de “RPG's digitais clássicos”, isto é, com um único jogador,
tramas limitadas e, não raro, lineares29.
No escopo da questão, uma experiência de gamificação com o RPG Maker
2003 e estudantes da Educação Básica no Brasil demonstrou que há uma
convergência em narrativa linear e os games elaborados pelos(as) educandos(as),
de maneira que “o jogador não tinha diferentes opções, apenas vencia os obstáculos
e continuava seguindo em frente com o desenrolar da narrativa” 30. Com efeito, como
já foi exposto, há um paradoxo entre a pretensa liberdade do RPG e a ação do
jogador, que é limitada por aquilo que o game permite ou não31.
De fato, entre as hipóteses para tal opção entre os participantes do
experimento, os autores elencaram que os(as) estudantes-desenvolvedores podem
ter sido influenciados pelas “experiências com jogos lineares que utilizaram como
referência para a criação”32, conquanto não tenham sugerido qualquer limitação ou
tendência estrutural e intrínseca da plataforma RPG Maker.

O RPG Playground
O RPG Playground é uma plataforma gratuita de criação de RPG's digitais
online e multiplataforma desenvolvida desde maio de 2012 pelo belga Koen Witters.
Ele trabalhou durante muitos anos como desenvolvedor de games da indústria
mobile, além de ter publicado seus próprios games. Na metade da década passada,
ele decidiu criar a mais fácil e rápida plataforma de produção de RPG's digitais
disponível no mercado33.

29 BITTENCOURT, João Ricardo; GIRAFFA, Lucia Maria. Modelando Ambientes de


Aprendizagem Virtuais utilizando Role-Playing Games. XIV Simpósio Brasileiro de
Informática na Educação. Núcleo de Computação Educacional - Instituto Multidisciplinar,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003, p.688.
30 CRUZ, Dulce Márcia; ALBUQUERQUE, Rafael Marques. A produção de jogos eletrônicos

por crianças: narrativas digitais e o RPG Maker. Comunicação & Educação 1, p.117, jan./jun.
2014.
31 TRAXEL, O. M. Medieval and Pseudo-Medieval Elements in Computer Role-Playing Games:

use and interactivity. Studies in Medievalism XVI, p.134, 2008.


32 CRUZ & ALBUQUERQUE, Op. Cit., p.118.
33 SCHULLER, Dan. Koen Witters interview. How to make a RPG. Disponível em

howtomakeanrpg.com Acesso em 26 mai. 21.

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A ferramenta não requer a instalação de um software ou aplicativo, visto que


opera através do navegador do aparelho, seja ele um computador, tablet ou
smartphone. Além disso, o RPG Playground não exige qualquer habilidade de
programação para além de noções de sequências lógicas de instruções (algoritmos).
Os demais recursos, como personagens, tiles, trilha sonora e efeitos sonoros são
facilmente aplicáveis através do mouse ou dos dedos do desenvolvedor. Como não
depende de algo a ser instalado, apenas da internet, uma vez elaborado, o game pode
ser prontamente compartilhado com os potenciais jogadores de maneira imediata
através da web34.
De fato, o princípio de criação é simples e inspirado no precursor RPG Maker,
uma vez que basta arrastar aquilo que se quer para o game a partir de um menu
lateral à esquerda. Neste menu ficam dispostos os recursos gráficos separados por
abas que se sobrepõem no mesmo campo e lidam respectivamente com os
personagens, as tiles e os cenários. No entanto, diferentemente da plataforma
anterior, ao abrir o RPG Playground, o desenvolvedor-jogador já se depara com
personagem principal (chamado invariavelmente de herói) no centro de um mapa
vazio e pronto para ser manipulado através de comandos do teclado ou de um
pequeno direcional (para tablets e smartphones). Assim, após arrastar e soltar
personagens, definir os comportamentos de NPC's e inimigos, além dos elementos
do cenário, é possível pressionar o botão play (jogar) para observar os recursos em
funcionamento de maneira imediata (cf. imagem 3).

34 RPG PLAYGROUND. Disponível em www.rpgplayground.com Acesso em 02 fev. 21.

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

Imagem 3 – Reprodução da tela de edição do RPG Playground. Como exposto, o


menu à esquerda oferece ao desenvolvedor-jogador as tiles para elaboração do
game – neste caso, selecionei propositalmente um conjunto de gráficos intitulado
“parte interna do castelo do inquisidor”. Destaco a exposição de paredes e pisos de
pedras nuas, equipamentos de tortura, grilhões, crucifixos, flâmulas e velas. No
campo à direita é possível antever os personagens, o cenário e os recursos invisíveis.
Fonte: RPG Playground (2021).

Como é possível constatar na imagem anterior, o desenvolvedor-jogador tem


uma experiência gráfica similar àquela oferecida pelas versões clássicas do RPG
Maker, isto é, a visão top-down e imagens típicas dos RPG’s clássicos dos anos 1990
(neste caso, 32 x 32 pixels). Naturalmente, variáveis e condicionais (se, enquanto,
durante) são adaptáveis para personagens e elementos ocultos do cenário,
possibilitando uma maior complexidade na experiência do jogador. Por exemplo, ao
recorrer a uma “porta invisível” no chão, é possível redirecionar o jogador de um
cenário do game para outro. A rigor, não há limitação para a quantidade de cenários
que o desenvolvedor-jogador pode lançar mão, e cada um deles manifesta

146
Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

características e tamanhos distintos35.


Apesar das vantagens descritas (multiplataforma, constante atualização,
interface muito amigável e receptibilidade de sugestões por parte do principal
desenvolvedor), o RPG Playground tem um alcance bastante reduzido: em termos
proporcionais, sua comunidade é muito pequena quando comparada ao RPG Maker,
uma vez que muitos recursos caros e já estabelecidos do gênero RPG ainda não
estarem disponíveis. Dentre eles, chamo atenção para a opção de salvar o jogo, o
menu de itens, a importação de gráficos (personagens, tiles), efeitos climáticos
(chuva, neve, dia, noite), sistema de campanhas, classes etc.36.
A rigor, a ausência de um desses recursos torna o RPG Playground menos
atrativo que o RPG Maker: a impossibilidade atual de incorporar packs de cenários e
personagens. Sendo assim, o desenvolvedor-jogador depende única e
exclusivamente do conjunto ofertado por Witters, o criador da plataforma. É
possível que esta seja uma das razões da já mencionada baixa adesão ao aplicativo
web. Por outro lado, como esta ferramenta já foi criada na Língua Inglesa, é
igualmente provável que, com novas atualizações, ela atraia uma maior atenção
entre os desenvolvedores independentes.
Seja como for, o desenvolvedor deste recurso de criação de RPG’s digitais
elencou boas razões para defender seu uso: “outras ferramentas podem ser mais
poderosas e ter recursos expansivos, mas as pessoas são sobrepujadas por eles e
nunca terminam seus jogos. Mas o RPG playground é diferente. Nossos usuários
terminam rapidamente seus games”37. O argumento parece convincente, uma vez
que mais de quinhentos jogos encontram-se disponíveis na plataforma – muitos
deles desenvolvidos por crianças entre 9 a 12 anos. Ressalto que o número real pode
ser bem maior, uma vez que os games podem ser privados (ou seja, apenas quem
tem o link consegue acessá-lo).
Em uma entrevista realizada em 2017, Koen Witters reconheceu que
atualmente a plataforma só admite jogos de curta duração (10-30min) e voltados

35 RPG PLAYGROUND, Op. Cit.


36 RPG PLAYGROUND ROADMAP. Disponível em trello.com Acesso em 18 fev. 21.
37 RPG PLAYGROUND, Op. Cit.

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para quem quer desenvolver RPG's digitais de maneira facilitada e rápida. Mas “se
você tem planos maiores, pode seguir para o RPG Maker”38. Este indício, juntamente
com o design gráfico do game maker, levam a crer que Witters foi profundamente
inspirado pelo RPG maker de origem japonesa apresentado anteriormente,
tornando assim o compartilhamento de características e de recursos de gamificação
natural.
Por fim, após algumas buscas, não encontrei trabalhos acadêmicos que
recorrem ao RPG Playground para processos de gamificação com fins educacionais
ou de qualquer outra natureza. Por conta disso, não será possível apresentar um
breve balanço e como os desenvolvedores-jogadores percebem (ou não) as
limitações estruturais presentes na plataforma. Assim, análise será feita tão somente
a partir de seus recursos inerentes, e algumas suposições tentarão seguir a
bibliografia especializada que analisa o gênero, além da manifesta semelhança entre
esta plataforma e o RPG Maker.

Ferramentas para a criação de RPG’s digitais e neomedievalismo


Para o trato deste texto, selecionei especificamente os personagens e tiles
tanto do RPG Maker quanto do RPG Playground. Na tentativa de equalizar a ausência
do recurso de importação de gráficos da segunda plataforma, empregarei apenas as
versões mais antigas da ferramenta de origem japonesa, uma vez que, nas primeiras
versões, os tilesets e characters ficaram restritos àqueles ofertados originalmente
pela empresa proprietária39. A apresentação ocorrerá de maneira alternada entre
os game makers, para que as semelhanças e diferenças fiquem mais nítidas.
Ao olhar atentamente as primeiras versões do RPG Maker, nota-se que o
desenvolvedor pode recorrer a diversas criaturas ligadas ao medievo fantástico:
dragões, demônios alados, personagens aparentemente transmorfos e humanóides
(lobisomens e homens-lagarto), fadas, bruxos(as) e anões compõem o rol de
possíveis personagens, juntamente com reis, rainhas, príncipes(esas), bufões,

38SCHULLER, Op. Cit.


39 FIADOTAU, Mikhail. Dezaemon, RPG Maker, NScripter: Exploring and classifying game
‘produsage’ in 1990s Japan. Journal of Gaming & Virtual Worlds 11 (3), p.223, 2019.

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guerreiros vestindo elmos com chifres, arqueiros, monges etc. Saliento que há uma
relativa preponderância de personagens masculinos (c.65%) e pouca diversidade,
uma vez que, exceto pelos monstros, não há personagens negros. A quantidade de
personagens infantis e idosos também é relativamente baixa. Deste modo, o
desenvolvedor dispõe de uma ferramenta que evidencia aspectos de um
neomedievalismo fantástico masculino, branco e pouco diverso – um retrato da
sociedade e do mercado em época.
Já no RPG Playground, os characters são divididos em diferentes categorias:
humanóides, elfos, monstros e animais e objetos. Apenas a primeira delas congrega
mais de duzentas opções de diversidade razoável (homens, mulheres, brancos e
negros, crianças, idosos). Destacam-se personagens com capa e/ou armadura, reis,
rainhas, príncipes, princesas, guerreiros de diferentes ordens, demônios, fadas,
religiosos (clérigos e monges), espíritos (do fogo, da água, do vento, do reino
vegetal) e um personagem com uma face de caveira (uma possível alusão da
morte)(cf. imagem 4).

Imagem 4 – À esquerda estão dispostos os primeiros personagens (characters) da


categoria “humanoides”. Percebe-se uma razoável diversidade entre personagens
masculinos e femininos, além de faixa etária. À direita, por sua vez, encontram-se os
personagens pertencentes ao grupo intitulado de “elfos”. Apesar da amostra ser
menor, a diversidade está muito mais presente. Fonte: RPG Playground (2021).

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Há também guerreiros animais bípedes, como canídeos com armadura e


capa, gatos, tigres e coelhos. A categoria “elfos” parece óbvia para quem tem alguma
familiaridade com o neomedievalismo fantástico, mas o desenvolvedor tomou o
cuidado de manter o princípio de diversidade seguido no conjunto anterior, graças
à presença de elfos negros e mulheres. Ao avançar para o grupo “monstros e
animais”, além de criaturas típicas de fazendas e florestas (galinhas, ovelhas, cabras,
raposas, morcegos), o desenvolvedor-jogador tem à disposição dragões bípedes
(azuis, verdes e vermelhos), ogros, demônios, minotauros e um cão que três cabeças.
Em primeiro lugar, os personagens descritos tanto no RPG Maker quanto no
RPG Playground seguem na direção daquilo que Oliver Traxel constatou, a saber,
sobre o conjunto de elementos medievalizantes (tratados pelo autor como pseudo-
medievais), algo que pode ser facilmente identificado na essência dos próprios
personagens dos games ou em atributos diretamente ligados a eles, como armas,
roupas elaboradas e locais extraídos de construções pós-medievais. Quantos aos
equipamentos de guerra, os RPG makers aqui apresentados desnudam uma
verdadeira obsessão nas representações medievais, como espadas (ambos), maças
e lanças (nestes casos, apenas o RPG Maker), além de capacetes, cotas de malha,
couraças, escudos e elmos40.
Além dessas características, Traxel fez referência a recursos puramente
fantásticos e sobrenaturais, como personagens não-humanos (anões, criaturas da
floresta, demônios, elfos e trolls), mágicos (bruxos e bruxas, feiticeiros e feiticeiras,
espíritos-guia etc.) e fantásticos (demônios, dragões e orcs). Naturalmente, não se
tratam de elementos estranhos ao medievo, uma vez que são identificados na
literatura e na cultura popular da época, mas que são derivados de criações bastante
livres de fases pós-medievais41. Ao considerar ambos os RPG makers, percebe-se
então uma prevalência do uso deliberado, mesclado, recorrente e livre deles,
corroborando para uma visão estereotipada e extrapolada da Idade Média.
Quanto ao debate dos games e diversidade, é preciso recobrar as mudanças

40 TRAXEL, Op. Cit., p.130.


41 Ibidem, p.132.

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de perfil do público de jogadores/consumidores deste gênero. Nas décadas de 1980-


1990, estima-se que c.85% dos fãs de RPG eram garotos e adultos brancos de classe
média. No início do século XXI, esta tendência inicial tem apresentado fortes
mudanças: hoje, aproximadamente 42% das jogadoras são jovens e se identificam
como mulheres. Ademais, a adoção de plataformas mobile como tablets e
smartphones permitiu a inclusão de segmentos socioeconômicos que antes eram
excluídos pelos valores proibitivos dos computadores, assim como as reivindicações
por uma maior representatividade de minorias e grupos antes excluídos do cenário
da fantasia medieval europeia, como negros, LGBTQIA+ e componentes étnicos que
não remontam ao Velho continente42.
Neste ínterim, salvo nos últimos anos, pouca atenção foi dedicada às
representações de opressão em games em termos de etnicidade, raça e de jogos
desenvolvidos por brancos para brancos43. Como bem destacou Helen Young, as
representações populares fantásticas, incluindo as medievais, “tem a reputação [...]
de ser para e sobre e para pessoas brancas”44. De maneira análoga, Paul Sturtevant
destacou como elementos do Dungeons & Dragons (conforme destacado, o precursor
e arquétipo dos RPG’s digitais) corroboram com ideias racistas e colonialistas.
Diante das críticas contundentes, os desenvolvedores promoveram mudanças para
amenizar os principais problemas. Contudo, como Sturtevant pontuou ao comentar
sobre a classe “bárbaro”, “há uma visão de mundo central que afirma que o mundo
está dividido entre aqueles que são ‘civilizados’ e aqueles que não são [...] esses
bárbaros não são apenas guerreiros habilidosos, eles são animalescos”45.
Considerando essa crítica e os recursos oferecidos a priori aos
desenvolvedores, tudo leva a crer que o RPG Maker (em suas versões clássicas) se
apresenta mais atrelado ao modelo instituído pelas versões clássicas do Dungeons &

42BARTON & STACKS, Op. Cit., p.1-19.


43CHAPMAN; FOKA; WESTIN, Op. Cit., p.7-8.
44 YOUNG, Helen. Race and Popular Fantasy Literature: Habits of Whiteness. London:

Routledge, 2015, p.1.


45 STURTEVANT, Paul. Improving Dungeons and Dragons: Racism and the “barbarian”.

Disponível em www.publicmedievalist.com. Acesso em 20 mar. 21. Uma tradução para a


Língua Portuguesa está disponível no site do Linhas – Núcleo de Estudos sobre Narrativas
e Medievalismos (UFRRJ, linhas-ufrrj.org).

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Dragons, que promoveu uma Idade Média fantástica e pouco preocupada com a
diversidade ou com o relativismo cultural. Por sua vez, o RPG Playground
notadamente avançou neste quesito e está mais alinhado aos debates acalorados e
recentes sobre a diversidade e o universo dos jogos digitais, sem prescindir, no
entanto, de certo exotismo ao representar raças diferentes, sem romper por
completo com a estética prevalente (as mulheres-coelho sexualizadas, o elfo negro
de moicano, monstros como “bárbaros” musculosos e animalescos etc.).
Sobre os games e o debate de gênero, apesar das mudanças do público
jogador/consumidor, o panorama geral é de intensa misoginia e aberta condenação
por parte de muitos usuários de jogos a qualquer abertura para os debates sociais e
culturais. Recobro a polêmica em torno do movimento Gamergate, que defende
explicitamente que os games são apolíticos e devem ser abordados apenas por sua
dimensão técnica, sem avançar para campos que extrapolam seu intrínseco universo
digital. Um exemplo desse tipo de postura é a qualificação pejorativa aplicada a
aqueles que recebem a alcunha de social justice warrior (guerreiro da justiça social
ou SJW). Outro exemplo, mais íntimo do cenário acadêmico, abrange a condenação
da Digital Gaming Research Association (Associação para a Pesquisa de Games
Digitais ou DiGRA) por um segmento de jogadores tipicamente conservador: à luz
desses adeptos dos games digitais, a DiGRA estaria pretensamente subvertendo a
natureza dos jogos, uma vez que seus envolvidos seriam anti (ou pseudo)
intelectuais com discursos ideológicos e objetivos acadêmicos claramente
doutrinadores46.
Ao considerar as questões supracitadas, fica clara a diferença geracional
entre as duas ferramentas. As versões mais antigas do RPG Maker estavam mais
afinadas com o perfil do público no final do século XX e início do século XXI,
momento em que os debates de gênero e diversidade no universo dos games
raramente ocorriam. Com o avanço do mercado dos jogos digitais, a diversificação
do público de jogadores/consumidores e uma maior participação e interesse de
intelectuais em pesquisar games, mudanças foram provocadas para atender novos

46 COOPER, Op. Cit., p.60-61.

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nichos e segmentos. Deste modo, boa parte dessas benéficas mudanças se faz sentir
no RPG Playground, por se tratar de uma plataforma mais recente e aberta aos apelos
do público desenvolvedor-jogador.
Porém, recobro o princípio do conservadorismo tecnológico no
desenvolvimento de games para endossar que, conquanto mudanças benéficas
tenham ocorrido, elas são lentas e marcadas por conflitos. Além disso, que os
elementos e as representações neomedievais podem ser usados como relevantes
veículos de ideias e princípios conservadores – situação que se mostra ainda mais
provável quando um relevante segmento de jogadores se nega a qualquer abertura
ou pretensão de mudança.
Doutra feita, avanço neste momento para os tilesets do RPG Maker. Ao
observar atentamente esses recursos gráficos, constatei a presença de cenários
gelados aos marítimos, e destes aos desérticos; de ambientes rurais a altamente
urbanos com construções com telhas amarelas, azuis ou vermelhas, tal como
castelos de pedra. Sobre os ambientes internos, boa parte envolve pedra (e não
madeira, como era de se esperar), janelas e objetos que não remetem ao período,
como uma armadura completa (típica da época do Renascimento), órgão de tubos ou
bibliotecas com obras encadernadas. Tudo isso foi disposto lado a lado, o que
certamente pode induzir o(a) desenvolvedor(a) a considerar todos esses elementos
contemporâneos uns dos outros e, portanto, naturais. Outra conexão possível é a
sugestão incorreta que todos esses recursos faziam parte do cotidiano da Idade
Média. Curiosamente, há uma prevalência por cenários que fazem parte da
experiência histórica ocidental durante o medievo (cidades, castelos), enquanto os
recursos que poderiam evocar outras sociedades são parcos e “primitivos”.
Ao redirecionar meu olhar para os mesmos aspectos no RPG Playground,
identifiquei várias semelhanças estéticas e alguns desdobramentos em comparação
com o que foi encontrado na plataforma anteriormente descrita. A imagem 3 é um
valioso exemplo da concepção estética de “castelo medieval” dessa ferramenta de
criação de RPG’s digitais: cadafalsos, instrumentos de tortura, grilhões e grades que
recobram calabouços em ambientes escuros e frios de pedra. Nos cenários
destinados ao ambiente urbanos, tanto ambientes descritos como “pobres” quanto

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Revista Signum, v. 22, n. 1, 2021.

como “ricos” também apresentam paredes de pedra, tal como janelas de madeira e
armas a serem exibidas.
Seja como for, os recursos apontados desnudam uma verdadeira obsessão
pela ambientação arquitetônica da Idade Média, manifesta principalmente a partir
dos castelos. Neste ponto, é importante frisar que tal “mundo de pedra” cru, duro e
frio é muito mais caro às noções medievalistas modernas do que ao próprio período
medieval. Como João Porto Júnior fez questão de frisar em sua tese,

Contrariando o senso comum, as paredes internas dos castelos


medievais, assim como das igrejas, não eram frias e ásperas com as
pedras expostas, mas recobertas com argamassa e artisticamente
pintadas com afrescos [...] a maioria dos castelos europeus –
parcialmente arruinados ou totalmente modificados – perdeu essa
característica, deixando as alvenarias de pedra à mostra. Isso
ajudou a criar o imaginário do castelo internamente cinza e
obscuro, muito explorado pelas produções midiáticas
audiovisuais47.

Além disso, a característica ambígua do meio urbano é recorrente nos RPG’s


digitais, que tendem de elementos mais concretos a outros enraizados na fantasia
medieval, como nas cidades da Terra Média de J.R.R. Tolkien e obras similares48.
Contudo, considerar a experiência citadina na Idade Média, a diversidade de
materiais empregados era grande e costumava mesclar barro, madeira, pedra,
tijolos, tetos de palha, telhas ou lajes, à revelia da coerência e homogeneidade que
os tilesets dos RPG makers levam a supor. O vidro, por outro lado, só começou a ser
usado no século XV. Assim, apesar das dificuldades técnicas e de práticas de
construção que lembram em parte a engenhosidade da arquitetura popular
contemporânea, “tudo era concebido e executado como uma obra de arte [...]
estátuas esculpidas, paredes pintadas, corbélias, trípticos e biombos decoravam
igualmente a igreja, o salão da guilda e a casa do burgo [...] a vida floresce nessa
expansão dos sentidos”49.

47 PORTO JÚNIOR, João Batista da Silva. O castelo de Guédelon e o medievalismo


contemporâneo. Tese. Universidade Federal Fluminense – Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura, 2021, p.275.
48 TRAXEL, Op. Cit., p.130.
49 MUMFORD, Lewis. Vida doméstica urbana medieval. In: ________. A cidade na História. São

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Na esteira dos exemplos citados, cito ainda minhas visitas aos principais
fóruns dedicados ao RPG Maker (em português) e ao RPG Playground (em inglês). No
primeiro, há uma central de recursos que disponibiliza um pacote (pack) intitulado
“reino medieval”. O registro foi inserido em 2017, com interações entre os usuários
até março de 2019. Entre os characters ofertados, há as curiosas presenças de
princesas com chifres e cavaleiros com armadura completa, mas que lutam a pé, com
escudo, espada e lança. Quanto aos tilesets, temos mais uma vez castelos de pedra
com seteiras e torreões, flâmulas e bandeiras. Para além deles, não há outras
imagens com referências a ambientes urbanos, apenas rurais50.
O autor da postagem original informou que o pack original dispunha de
“pouca coisa” e, por esta razão, ele vasculhou a internet inteira para “juntar
guerreiros, realeza e guardiães [...] monsters [...] e chipsets de castelos [...]”51. Ao
notar a última interação, percebe-se que os recursos “originais” tinham sido criados
no Japão, o que reforça a impressão de uma comunidade que recicla, reapropria e
ressignifica os recursos do RPG Maker continuamente, mas com graus de
manutenção e reprodução de certos elementos estéticos neomedievais.
Ao realizar buscas por termos ligados à Idade Média (Middle Ages, Medieval,
Medievalism) no fórum oficial do RPG Playground, conquanto os elementos gráficos
tenham clara inspiração neomedieval, identifiquei apenas três entradas
relacionadas – todas elas relativas ao ano de 2016. A primeira inserção foi realizada
por desenvolvedor-jogador que tinha recém-ingressado na plataforma “eu planejo
fazer algo como um game de fantasia medieval, no qual o jogador foi um paladino na
vida passada. Ele viajou no tempo, matou chefões etc., na intenção de consertar o
tempo presente”52.
Assim, mesmo que não seja possível identificar qualquer referência ao termo
medieval por parte de Koen Witters (o desenvolvedor do RPG Playground) ou de

Paulo: Martins Fontes, 1998, p.321-324.


50 CENTRO RPG MAKER. Pack reino medieval. Disponível em centrorpg.com Acesso em 15

abr. 21.
51 Ibidem
52 RPG PLAYGROUND FORUM. Disponível em www.rpgplayground.com Acesso em 12 mar.

21.

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seus potenciais parceiros de empreitada, os jogadores percebem nitidamente a


possibilidade de criar um jogo digital que, a seu ver, é “medieval”. Ademais,
considerando o princípio da negação da história típico do neomedievalismo, o
depoimento do jogador deixa claro, sem qualquer tipo de constrangimento, que é
possível misturar elementos neomedievais (ou medievalizantes) com viagens no
tempo.
Em duas outras postagens, um desenvolvedor-jogador manifestou
primeiramente que “eu estou tentando fazer um jogo de horror, mas parece que os
tilesets são apenas medievais”53. Alguns dias depois, ele parece ter mudado de
opinião acerca dos recursos gráficos, mas manteve a conexão do aparato disponível
com a Idade Média: “os tilesets são muito legais e eu gosto como eles parecem
medievais ... eu acho” 54.
Na réplica, Witters, que se engaja ativamente nas respostas, agradeceu as
sugestões do desenvolvedor-usuário sobre a inclusão de outros recursos gráficos,
justificando os problemas da seguinte maneira: “infelizmente eu sou um
programador, não um artista. Estes tilesets e personagens que atualmente são
utilizados estão disponíveis gratuitamente”55. Destarte, conquanto o RPG
Playground ainda não permita a importação de gráficos por parte dos
desenvolvedores-jogadores, fica constatado que o criador da ferramenta circula por
meios que disponibilizam gráficos livremente a desenvolvedores, que são
incorporados a diferentes iniciativas. Deste modo, a comunidade aparentemente
reproduz perfis estéticos – muitos deles tratados como “medievais” por jogadores
ordinários. A despeito dos problemas, vale frisar que “o neomedieval não anseia pela
autenticidade histórica, mas pela legitimidade digital e a coerência do mundo-
jogo”56.
Neste ponto, não há dúvidas que os meios originais de circulação dessas
ferramentas, assim como de diálogo entre desenvolvedores (amadores/diletantes e

53 Ibidem
54 Ibidem
55 RPG PLAYGROUND FORUM, Op. Cit.
56 KLINE, Op. Cit., p.4.

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profissionais), formatou não apenas comunidades57, mas uma estética própria e


compartilhada por esse conglomerado de interessados no desenvolvimento de
games58. No último caso evocado, o recurso gráfico é incorporado na estrutura de
uma plataforma que não permite adaptações da parte do desenvolvedor-jogador
que, de maneira invariável, precisa recorrer a personagens e tilesets pré-
determinados. Mesmo que Witters seja cuidadoso, dialogue com seu público e
aparentemente leve em consideração questões de representatividade e diversidade,
ele se mostra limitado por não ter competências de edição gráfica para customizar
a aparência da ferramenta de criação. Ademais, esta questão abrange diretamente a
íntima conexão entre o neomedievalismo e a Idade Média imaginada e sonhada das
décadas de 1980 e 1990 - período em que princípios medievalizantes caminharam
em paralelo com RPG's e sua difusão global.
Deste modo, à luz desses RPG's digitais, “monstros, mágica e mitos misturam-
se com pessoas, lugares e coisas que realmente refletem a vida medieval”59. Porém,
diferentemente da esfera literária, os elementos neomedievais/medievalizantes nos
games digitais projetam separações mais radicais entre tais recursos e as
circunstâncias históricas do período que pretende emular60.

Considerações finais
Apesar das transformações no gênero, constata-se que o substrato
neomedieval está manifesto em ambas as plataformas de criação de RPG’s digitais –
um reflexo, como apontado, da congênita ligação entre o gênero e a estética
neomedieval da contemporaneidade. Portanto, há um risco inerente de que
representações neomedievais sejam utilizadas para veicular aos jogadores ideias e
representações intencionalmente ou sub-repticiamente. Outrossim, como a
exposição tentou salientar, ficam evidentes os problemas de ordem histórica, que

57 CAMPER, Brett Bennet. Homebrew and the Social Construction of Gaming: Community,
Creativity, and Legal Context of Amateur Game Boy Advance Development. B.A Comparative
History of Ideas. Washington: University of Washington, 2005.
58 REED, Op. Cit., p.99-123.
59 TRAXEL, Op. Cit., p.137.
60 Ibidem

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podem dificultar e inclusive sabotar iniciativas educacionais que fomentem um


maior interesse entre os(as) educandos(as).
Diante dessa questão, um estudo que recorreu a entrevistas com
desenvolvedores, gamers e praticantes da herança cultural constatou que os
primeiros muitas vezes estão cientes que os games digitais que desenvolvem
manifestam problemas de falta de acurácia histórica (ainda que a definição de
acurácia histórica tenha se mostrado flutuante na amostra). De modo sintético, a
análise identificou que a relação entre games, herança cultural e acurácia histórica
é majoritariamente controlada e perpetuada por administradores das empresas que
desenvolvem os jogos, uma vez que consideram principalmente como minimizar
riscos financeiros e como alcançar um maior sucesso da empreitada. Aqueles que se
inserem no nível do desenvolvimento reconhecem as limitações, mas faltam meios
ou autorizações para produzir de modo distinto61.
No entanto, conforme exposto, muitos jogadores ingenuamente defendem
explicita ou implicitamente noções de “liberdade”, do RPG como um artefato cultural
apolítico e possibilidades de narrativas multilineares através da agência individual
ou coletiva. Na contramão disso, a comunidade em torno dos RPG’s digitais e a
estética gerada por esse grupo muitas vezes afeta decisivamente a agência dos
desenvolvedores62 que, por conseguinte, projetam esses limitadores aos jogadores.
Naturalmente, não pretendo esvaziar a agência dos jogadores ou de qualquer
viés pós-humano; entretanto, não se pode negar que elas são em algum grau
contingenciadas impositivamente pela estrutura dos RPG makers. Como o meio é
tecnologicamente e tematicamente conservador – assim como parte de seu público
–, a tendência de reprodução de estereótipos e representações é grande, apesar dos
apelos sociais por uma maior diversidade e, da parte dos historiadores, de uma
maior precisão histórica.
Por fim, como os desenvolvedores expuseram, há limitadores intrínsecos na
indústria dos games frente às críticas de jogadores/consumidores nas comunidades
digitais em defesa ou contra mudanças nas características dos jogos, que causam um

61 COPPLESTONE, Op. Cit., p.19-20.


62 REED, Op. Cit., p.99.

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processo de retroalimentação de simulacros neomedievalizantes por questões de


ordem técnica, mercadológica ou ainda por pura e exclusiva falta de reflexão das
partes envolvidas. Portanto, parece fundamental que as salutares iniciativas
educacionais de gamificação que recorrem às plataformas desta natureza
aprofundem suas discussões e ponderações para evitar tais dilemas.

Artigo recebido em 30/05/2021


Artigo aceito em 02/08/2021

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