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ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL

A Evolução do Jlunicipalisnio no Brasil (*)


(Aspectos doutrinários)

A . D elorenzo N eto
(Professor na Escola de Sociologia e Política
de São Paulo)

S enhores.
Não sei se deveremos falar em doutrina municipalista. Talvez não seja­
mos precisos. Será mais lógico reconhecermos as contribuições que possam
pela sua originalidade e importância delinear a evolução do pensamento mu­
nicipalista brasileiro.
A doutrina municipalista como tal, implicaria na compreensão do Estado
pelo Município, quando, a rigor, a problemática do Município se situa como
elemento da teoria do Estado. Pensar o contrário seria adotar a visão unila­
teral do problema, e caminhar num desvio demagógico que repugna ao mais
elementar raciocínio científico. A objetividade com que devemos encarar
essas questões é tanto mais necessária, se avaliarmos as condições geográfi­
cas do país, exigindo um tratamento político-administrativo descentralizadc,
com a caracterização acentuada dos órgãos da vida local. O nosso localismo é,
pois, incontestàvelmente, uma fatalidade geo-econômica-social. Mas, êsse dado
elementar da estrutura do país não se deve prestar à excitação demagógica
de muitos políticos municipalistas, que fazem subverter a ordem natural da
gênese de nossos fenômenos de desenvolvimento, procurando promover uma
exaltação vã dos atributos municipais em têrmos tão ridículos quanto absur­
dos.
Qualquer teoria que pretenda explicar o Município, há de, por certo,
perscrutar a sua fenomenológica considerando-o um ente jurídico dentro de
uma área autônoma de contornos imprecisos, com as limitações intransponí­
veis da União soberana. Somente a Teoria Geral do Estado e a Sociologia,
por via dedutiva e indutiva, comparando experiências da implantação das
mais variadas técnicas de direito público, — é que poderão fornecer materiais
ao político para uma nítida compreensão da organização municipal.
O atraso secular do nosso interior vinha denunciando um comportamento
anômalo de nossas instituições, mercê da incoerência na organização política
(*) Conferência pronunciada no Salão Nobre da Universidade Nacional de Panamá,
em 23 de agôsto de 1956, e na Faculdade de Ciências Econômicas de Alagoas, em 27 de
novembro de 1956.
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e deficiência administrativa. Em face de tão sombria realidade, no passado


e no presente, alguns publicistas desenvolveram reflexões sôbre a crise muni­
cipal. Êsse pensamento doutrinário data de um século: é unânime em rela­
cionar o desenvc-lvimento geral da nação com a ascensão das unidades de
base — os municípios.
Podemos fixar algumas contribuições de real valor, suficientes por si
mesmas, a nos revelarem as dimensões do problema. Revelam, por assim
dizer, aspectos da doutrina municipalista. Apreciemos como se apresentam
essas idéias, do Império à República.
Na época do Brasil monárquico a decadência da vida municipal suscitou
no pensamento de T a v a res B a sto s , a mais vigorosa defesa das reivindica­
ções locais. A meu ver, o grande estadista é o mais insigne intérprete dessa
primeira fase de municipalismo. Ouçamos as suas próprias palavras: (1)
“O regime das municipalidades, a polícia e a fôrça policial,
a justiça local ou a de primeira instância devem ser da competên­
cia do poder legislativo provincial, e assim o quisera a lei das re­
formas de 1834.
Certo, esta opinião afronta as práticas e os prejuízos atuais,
nada mais fácil, porém, do que pôr em evidência o inconveniente
de leis uniformes do parlamento para cada um dêsses serviços emi­
nentemente municipais.
Bem o sentiram, quanto à justiça e à polícia principalmente
algumas províncias do Norte, que, depois do ato adicional, pro­
mulgaram leis adaptando estas instituições às suas próprias cir­
cunstâncias. E, na verdade, quão esmagadora é a uniformidade das
organizações da justiça, da polícia e das municipalidades, procla­
mada pela reação de 1840! Descentralizemos cs interêsses locais
assim centralizados: restituamos às províncias a faculdade de que
algumas souberam valer-se, em nome do ato adicional, para forma­
rem a polícia, a justiça e a administração municipal que melhor
lhes convinha.”
Com grande clarividência, prossegue :
“A administração dos interêsses coletivos que constituem o
Município, o serviço das vias de comunicação, as ruas, os jardins, os
lugares de logradouro público, a iluminação, as águas, a irriga­
ção, os esgotes, os incêndios, a escola, o hospital o cemitério e tantos
outros não oferecem em parte alguma tipos uniformes em impor­
tância ou grandeza.
A extensão e riqueza dos municípios urbanos ou rurais, grau
de adiantamento dos povos, as circunstâncias físicas e a densidade
da pcpulação variam profundamente em cada uma das partes do
Império, no norte, do centro, no sul, no oeste; variam mesmo com
feições pronunciadíssimas, nas diferentes comarcas de uma mesma
província.
(1) “in” >1 Província, São Paulo, 1937, pp. 139-145.
78 R evista do S erviço P úblico — J aneiro de 1957

Essa diversidade de circunstâncias locais devera influir no


modo de organizar-se o Govêrno interno de cada província. Algu­
mas careceriam de uma aperfeiçoada divisão dos serviços locais,
separando-se, por exemplo, a administração municipal civil (a dos
interêsses acima indicados) da polícia preventiva e da justiça cor-
recional; outras haveria, porém, onde fôsse mais adequado, à falta
de pessoal idôneo ou pela estreiteza da localidade, confundir êsses
vários serviços nas mãos das mesmas autoridades. Pelo contrário,
em uma grande cidade não bastaria somente separar e confiar a
agentes diversos as funções, mais ou menos distintas, que aliás tanto
se confundem e devem praticamente harmonizar-se, da adminis­
tração civil, da polícia e da justiça: — nessas maiores provações,
com efeito, seria preciso, para conseguir resultados eficazes, sub­
dividir e entregar a comissários especiais. Assim nas vastas aglo­
merações de povo, nas metrópoles comerciais ou políticas, seria a
instrução objete exclusivo de uma administração privada, os incên­
dios, de outra; e de outra igualmente a polícia das ruas e praças.
Em alguns lugares a própria municipalidade executaria as
obras e dirigiria o serviço dos aquedutos, dos esgotos, da ilumina­
ção, que cutras aliás incumbiriam a empresários com maior van­
tagem .
Onde o espirite público, ilustrado e moralizado, inspirasse
confiança, a eleição periódica fôra o meio regular para a escolha
de todos os funcionários municipais. Onde, porém, a ignorância
e a negligência do povo assinalassem a sua inferioridade, o princípio
eletivo, aliás eminentemente moralizador e fecundo de patrióticos
incentivos, não merecera ser aplicado na mesma escala a todos os
funcionários e a todos os ramos da administração.
Respeitar a diversidade de circunstâncias entre as pequenas
sociedades locais que constituem uma mesma nacionalidade, tal deve
ser a regra suprema das leis internas de cada Estado. Nêste sen­
tido, a variedade sob o sistema federativo leva decidida vantagem
à uniformidade administrativa, quer da monarquia centralizada,
quer da república una e indivisível.
Suponha-se uma lei municipal vazada no molde mais perfeito
de um liberalismo consumado; suponha-se a mais larga em suas
bases e nos seus meios de ação; talvez não seja essa a melhor para
o Brasil inteiro, talvez redunde em grande decepção. Por ventura,
o município no Brasil, ou em outra parte qualquer do mundo, ofe­
rece um tipo comum, e que regular-se possa por lei uniforme do
Parlamento Nacional? Onde está, dizei-nos, êsse tipo comum, idên­
tico, em Inglaterra e nos Estados Unidos, cujas paróquias e muni­
cípios são aliás coisas reais, não entes de razão?
Sabemos que escritores descrevem, compondo-o de traços par­
ticulares de municípios distintos, que êles chamam o sistema muni­
cipal dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Alemanha; mas isto é
uma generalização do escritor, é criação do publicista. As leis não
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conhecem municípios tão uniformes e perfeitos; as leis os organi­


zaram diferentemente sob a lenta ação do tempo, ao influxo de
necessidades e interêsses que variam, variando as leis. “Como a
família, existe a comuna antes do Estado, dizia R oyer C o lla n d ;
a lei política a encontra, mas não a cria.
A uniformidade nos m ata. Não, não é de lei uniforme, por
mais liberal que seja e mais previdente, que depende ressuscitar
o Município; depende isto de leis promulgadas por cada província,
conforme as condições peculiares de cada município.
Leito de Procusto, a legislação simétrica é um sonho enganoso:
efeito da paixão niveladora, ela só gera decepções.
Na órbita municipal entram serviços de diversa natureza, que
podem andar unidos ou separados. Não oferecendo todos um tipo
ccmum as leis que os organizassem seriam despóticas, se fossem
uniformes: e desde que, pela variedade das formas que tomam,
os interêsses municipais não podem ser previstos por lei nacional
simétrica, só às legislaturas das províncias deve caber a faculdade
de regulá-los.
Organizadas as municipalidades por lei de cada assembléia,
não sôbre a base de imaginário tipo comum, atender-se-iam certa­
mente as condições peculiares de cada localidade. As leis munici­
pais seriam as cartas de cada povoação doadas pela Assembléia
provincial, alargadas conforme o seu desenvolvimento, alteradas
segundo os conselhos da experiência. Então, administrar-se-ia de
perto, governar-se-ia de longe, alvo a que jamais se atingirá de
outra sorte.
C om preende-se que haja em cada província lei prescrevendo
certos princípios gerais do regim e m unicipal, com o sejam a eleti-
v id a d e d e alguns cargos ou pelo m enos a dos conselhos deliberan-
tes a m atéria das im posições, as d esp esas e serviços obrigatórios
o u 'essen cia is: m as leis esp eciais perm itam a um a vasta cidade, ou
a um rico m unicípio, aquelas franquezas e aquela organização que
m ais eficazes forem a í.
A contribuição de T avares B astos está aí recordada nas suas próprias
palavras. Extremou-se no combate ao centralismo do estado unitário. Pro-
pugnava o sistema federal como o mais adequado para bem situar as institui­
ções locais, livres e autônomas para melhor se desenvolverem em sua inteira
diversidade.
A República porém se esqueceu da lição de T avares B a s t o s . O federa­
lismo de 1891 pouco fêz pelos municípios: cuidou antes de reformar os Esta­
dos contra a União e contra os Municípios. Os pensadores mais significati­
vos’dessa fase jamais desenvolveram o tema da organização municipal, quer
na estrutura do Estado, quer como unidade autônoma. Basta considerar que
os dois autores mais famosos que versaram problemas de administração nessa
época __ A lber to T o r r es e C alógeras , nada deixaram de objetivo sôbre o
assunto.
80 R evista do S erviço P úblico — J aneiro de 1957

A lberto T orres , em verdade, grande ensaista, ao elaborar o seu pro­


jeto de revisão constitucional, apenas se preocupou em estabelecer uma dis­
criminação de rendas mais coerentes entre os Estados e a União, cuidando
antes de reforçar esta contra aqueles, pois, na sua crítica veemente contra a
inexeqüibilidade da Constituição de 1891 sempre entendeu que na base de
nossos males estava a prepotência dos Estados a enfraquecer a soberania da
União. E, no seu projeto de revisão constitucional, consagrou aos municípios, o
Artigo 80, assim redigido: “As províncias autônomas organizar-se-ão de forma
que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao
seu peculiar interêsse.”
Apesar dessa lacuna, T o rres nos deixou uma vigorosa página sôbre o
problema da autonomia, em que ensina: (2)
“A autonomia estadual e a municipal são os nervos mais sen­
síveis da nossa política.”

“A idéia de autonomia precisa ser encarada como idéia de utili­


dade prática, no interêsse da terra, e das populações, sem o cunho
.efetivo que sua origem lhe imprimia e que lhe dava o aspecto de
um fato necessário. A autonomia dos municípios e dos estados não
é mais que uma concentração mais cerrada do tecido governamen­
tal, em tôrno do Município e do Estado; mas o tecido não se inter­
rompe nem se cinde, para formar seus núcleos intermédios: conti­
nua-se e entrelaça-se, até completar tôda a trama da organização
nacional, que termina, por fim, no relêvo mais ferte dos poderes
federais. Cumpre não isolar nem desprender as autonomias de
seu todo orgânico. A verdade é, entretanto, que os governos esta­
duais, no regime da nossa Constituição, e, ainda mais, com a inter­
pretação que lhe emprestam, concentrar efetivamente a fôrça da
política nacional — dividida assim, em vinte eixos excêntricos.
Não temos união política senão para as manifestações aparentes e
formais da vida institucional; no que é orgânico, em tudo quanto
interessa à sociedade e ao indivíduo, pode dizer-se que a nossa união
é tão efetiva como a que se vislumbrar, porventura, nas relações
de um município do Brasil com um município argentino. O desen­
contro entre as direções, absolutamente livres, dos estados e dos
municípios e o interêsse geral do país, e o conflito permanente
entre o govêrno de cada Estado e de cada Município com os dos
outros — não quanto a êsses casos que se apresentam, de tempos
a tempos, como litígios ostensivos, como por exemplo, as questões
de limites, mas quanto aos atos de legislação e administração que
interessam à economia do país, à circulação comercial, às relações,
importantíssimas hoje, no interêsse da prosperidade econômica e
da conservação e distribuição da riqueza, entre a produção e o con-

(2) “in” — A Organização Nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914,


pp. 143-160.
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sumo — oprimem a sorte da população e o futuro do país, com um


fardo, em relação ao qual todos os esforços harmonizadores da legis­
lação e da administração federal, são nulos, como um punhado de
penas, pesadas com um monte de aço.”
Estas palavras foram escritas em 1914, e somente em 1935 vamos en­
contrar a primeira grande obra que analisa o município em têrmos rigorosa­
mente administrativos, desenvolvendo largamente o tema da cooperação admi­
nistrativa entre o Estado e as Municipalidades. É o trabalho de W a sh ing to n
A zevedo intitulado “A Organização Técnica dos Municípios.” O autor dirigiu
a divisão de Negócios Municipais da Secretaria do Interior de Minas Gerais.
A essa contribuição pioneira se acrescenta a obra realmente notável do prof.
O rlando C arvalh o , da Universidade de Minas Gerais, intitulada “Problemas
Fundamentais do Município”, editada em junho de 1937, em que se exami­
nam com profundo conhecimento das circunstâncias locais e sendo crítico, os
problemas da estrutura, cs problemas do funcionamento, os problemas do
pessoal e os problemas da cidadania. É a síntese mais perfeita das necessi­
dades municipais, observadas no quadro de uma conjuntura administrativa
de vinte anos atrás, e cujos traços se prolongam ate nossos dias.
Essa lenta evolução do municipalismo atinge o seu ponto mais elevado
em 1946, cujo instrumento decisivo de ação se corporificou na Associação
Brasileira dos Municípios, instalada exatamento em 15 de março. Daí por
diante o movimento adquiriu uma direção segura, progrediu ràpidamene, po-
dendo-se avaliar as suas proporções através da realização dos Congressos pe­
riódicos de Municipalidades, nacionais e regionais, determinando ainda sua
repercussão nos congressos internacionais, onde aos municipalistas brasileiros
sempre se afirmaram em coerência com os postulados interamericanos, apoian­
do a teoria do “inter-municipalidad”, como ora ocorre em Panam á.
Além disso, a Associação Brasileira dos Municípios através da sua notá­
vel Revista e de grande número de publicações que orientou e patrocinou,
veio despertar um sentido cultural nas diretrizes municipalistas, até então
subestimado ou esquecido.
Através dessa valorização cultural do Município, é que examinaremos as
contribuições mais expressivas — onde seja mais profundo o espírito de re­
forma — à doutrina municipalista.
A contribuição de R a fa el X avier .
O fundador da Associação Brasileira de Municípios liderou a campanha
municipalista, debatendo em tôdas as regiões do país as questões municipais.
Preparou verdadeira agitação municipalista na Constituinte, e, em conseqüên­
cia, a Constituição Federal de 1946, acolheu no seu texto as reivindicações
principais em matéria de discriminação de rendas e de definição de compe­
tências .
R a fa e l X avier se afirm ou m ais d e um a vez torreano. O seu pensa­
m ento doutrinário p ed e descender, em verdade de T o rres , porém , conform e
vim os n esse estad ista pouco encontram os d e m atéria m unicipal propriam ente
d ita .
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A crítica da estrutura federal de T o r r e s teria despertado em R a f a e l


X a v iero exame objetivo das deformações da área municipal. Utilizando-se de
recursos estatísticos, até então absolutamente desconhecidos, R a f a e l X a v ier ,
assentou o política de reerguimento municipal em bases financeiras. A ca­
rência dos Municípios, desvitalizados e decadentes, era demonstrada na com­
paração das receitas dos três elementos da federação, onde a posição muni­
cipal era de extrema inferioridade. Os quadros irrefutáveis das suas compara­
ções estatísticas levaram o debate constitucional a rumos inteiramente novos.
E, as preocupações políticas transformaram-se rapidamente, deslocando-se para
o exame dos problemas de base. Sentiu-se o quanto era falso o nosso consti-
tucionalismo, sem que comunicasse meios de robustecimento às institucionais
locais, as únicas capazes de fazer o florescimento das democracias. Relem­
bremos alguns trechos de R a f a e l X a v ier , para admirarmos, num testemunho
autêntico, os lampejos de sua vocação municipalista. Ao instalar a Comissão
Organizadora da Associação Brasileira d cs Municípios, assim se manifes­
tou: (3)
“Há vários problemas de base cuja solução deixaria comple­
tamente resolvidos inúmeros outros, que lhes são somente reflexos.
-Para êsses, todos os esforços devem convergir. Está entre êles, como
fundamental, o da organização da vida dos Municípios em bases
racionais, de forma a lhes permitir uma natural evolução pela per­
feita coordenação das atividades políticas, econômicas e sociais.
Como executar, pràticamente, um programa de tal magnitude? Eis
ao que se propõe a Associação Brasileira de Municípios, cujas bases
lança a Comissão que hoje se instala, convocando todos os Prefeitos
e todos os municipalistas para que solidarizados, decidem sôbre
a objetividade dos ideais que nos congregam e tome a seu cargo
os grandes destinos da patriótica entidade.
Ponto central e de alcance imediato é o da discriminação das
rendas, que deve ser estabelecida clara e definitivamente na Carta
Constitucional. Se essa vitória do bom senso não fôr obtida, nada
se terá feito em prol do Brasil, será, sem dúvida, o mesmo que dei­
xá-lo ao sabor do vendaval que se aproxima, violento, exposto à
desgraça de golpes e revoluções periódicas.
Todo programa de construção política que se não afirmar por
uma ação consciente de revigoramento do interior do País está fada­
do ao fracasso e à desmoralização. E se cada ato não se inspirar
no princípio elementar de dar renda ao Município, para que êle
resolva por si só seus problemas, se a União não fixar sàbiamente
as grandes diretrizes nacionais e se o Estado faltar às suas funções
elevadas e nobres de orientação, vigilância e fiscalização, exercidas
com o intuito de “adaptar as leis gerais às peculiaridades locais”,
na expressão feliz de J u a r ez T ávora , não teremos então compreen-

(3) “in” — A Organização Nacional e o Município, Rio de Janeiro, I.B .G .E .,


1946, pp. 10-11.
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dido, na pureza de seus postulados, na realidade de sua significa­


ção, o sistema federativo.

Não haverá de certo problema de maior importância para a


estrutura de uma obra política objetiva no País do que o da fixa­
ção da vida municipal. Nenhum o sobrepujou em significação, por­
que êle, na essência e na generalidade de seus aspectos, é o pro­
blema básico da organização nacional.
Anulando como anulamos, os meios de existência dos Municí­
pios, pela sangria fiscal, destruímos sua capacidade de viver e pro­
duzir. Com o extorquir suas rendas retiramos sua possibilidade de
manter serviços e de fixar ou atrair homens empreendedores. Seus
elementos humanos mais inteligentes, dispostos ou aptos a qualquer
iniciativa, abandonam o interior em busca de meio onde melhor
desenvolvam suas atividades.
O encantamento pelas fórmulas superficiais fêz criar no Bra­
sil em certo tempo, a mística da autonomia estadual e municipal.
Para o Estado, realmente, em sentido mais utilitário que ideoló­
gico, manteve-se vivo o sentimento de defesa; quanto ao Município,
todavia, a fórmula ficou para as tiradas oratórias em fases eleito-
rais ou de sentido retórico, sem fundamento efetivo. Era a liber­
dade na m iséria.”
Tôda a orientação do pensamento de R a fa e l X avier é fundada na aná­
lise comparativa de dados estatísticos. Demonstrou como era absurda a con­
centração de valores no Distrito Federal, nos Estados e na União, que cres­
ceu na mesma proporção em que diminuem as possibilidades do interior, com
graves conseqüências na economia e nos problemas sociais do Brasil.
Uma contribuição interessante à reforma municipal é a de T e ix e ir a d e
F r eita s ( 4 ) Ao traçar o seu programa de reorganização nacional em famosa
conferência afirmou que a maneira eficaz dos municípios vencerem a sua de­
bilidade econômica, demográfica e política está em se associarem política e
administrativa por meio de consórcios intermunicipais.
“Daria sentido político ao consórcio intermunicipal o Conse­
lho Governativo, constituídos pelos Prefeitos das Municipalidades
associadas, seria êsse Colégio o órgão legislativo do Consórcio ou
“União Municipal”, cabendo ao seu Presidente o papel de chefia
do competente departamento ou secretaria do Govêrno. Tal Go-
vêrno, é óbvio, não teria por missão, apenas, harmonizar entre si,
e tornar solidárias e convergentes para o fim comum, as realizações
administrativas dos municípios associados, em ordem a lhes garan­
tir maior eficiência. Seu objetivo seria, sobretudo, obter que aten.
dessem melhor aos recíprocos interêsses das comunas associadas,
uma vez que interdependentes se apresentam de fato, e sob muitos
(4) “in” __ Os Grandes Ramos da Organização Nacional, Observados à luz da Geo­
grafia e da Estatística, Rio de Janeiro, I.B .G .E ., 1948, p . 22.
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pontos de vista, vários dos serviços municipais, tais como os de saiu


de, de instrução-, de rodoviação, de fomento rural, etc. .
Fácilmente já se perceberia quão cabível — e como tal por
certo não tardaria fôsse promovida — e a diferenciação fundamen­
tal das atividades governativas municipais. De um lado, ficariam
as que constituem a administração “dinâmica”, isto é, responsável
pelas obras novas; de outro, a administração “estática”, ou de ma­
nutenção permanente de serviços de conservação, fiscalização e
administração dos melhoramentos já executados. Estas últimas ati­
vidades reclamam atuação governamental mais singela, de menor
responsabilidade e mais próxima. Lucrariam elas em ficar a cargo
dos Municípios. Aquelas outras pedem equipamentos mecânicos,
pessoal técnico bastante caro e organização de elevado nível. São
serviços que exigem amplos recursos orçamentários, ou mesmo fi­
nanciamento a crédito, e que não poderiam ser instituídos, na gran­
de maioria dos casos, pelos Municípios, enquanto êstes se man­
tivessem isolados. Nem seria econômico organizar ssrviços técni­
cos para que atendessem apenas às obras de uma única circunscri-
-ção comunal. Se tais serviços são dispendiosos para serem man­
tidos por um só município, também é certo, por outro lado, que seu
campo de ação pode ser, sem qualquer inconveniente, um consórcio
intermunicipal.
Dessa forma, parte das rendas municipais constituiria o fundo
intermunicipal de obras novas, ou seja a Caixa do Consórcio. Esta
custearia os órgãos técnicos, de saúde, engenharia, edUcação, con­
tabilidade, estatística especializada e atuária, cooperativismo, ser­
viços jurídicos, arrecadação. E por meio dêsses órgãos os municí­
pios, em gestão direta e autônoma, ou então filiada aos sistemas»
intergovernativos nacionais, exerceriam, em comum, no território do
consórcio a administração dinâmica — ou melhor dito, a adminis­
tração técnica — constitucionalmente atribuída à órbita munici­
pal. A elaboração dos orçamentos anuais de cada consórcio, desti­
nados a estabelecer a distribuição dos recursos comuns, caberia aa
Conselho o qual também fixaria as normas legislativas essenciais
ao funcionamento do sistema. Isto asseguraria a eqüidade com
que o esforço de civilização a realizar deveria atender aos inte­
rêsses de tôdas as unidades associadas.”
Tão intenso se mostrou o debate das idéias municipalistas, que o próprio
Govêrno Federal deliberou contribuir oficialmente ao I Congresso Nacional
de Municípios, de 1950, apresentando um trabalho elaborado pelo Ministério
da Justiça — a chamada Fundação dos Municípios. Seria um órgão desti­
nado a promover, acelerar e coordenar, em cooperação com entidades oficiaÍ9
e particulares, a revitalização social das comunidades municipais, o aperfei­
çoamento de sua administração e o desenvolvimento das diversas regiões geo-
econômicas do País.
A d m in istr açã o M u n ic ip a l 85
Mas, o plano mais avançado no sentido da cooperação da União com
os Municípios, destinado a dar assistência pronta aos problemas locais que
exigissem solução- técnica inadiável, observado o critério legal da prioridade
__ está, sem dúvida, na fórm ula de A r a ú jo C a v a lc a n ti , denom inada opera-
ção-municipal. É o seguinte o texto do respectivo projeto: (5)
“Art. l.° — Ficam estabelecidas as bases e diretrizes para
a organização do Plano Nacional de Obras e Serviços Municipais
(Operação-Municipal) — objeto da Recomendação Especial apro­
vada no III Congresso Nacional de Municípios, realizado em São
Lourenço, Minas Gerais, entre 15 e 22 de maio de 1954.
“Parágrafo único. O Plano de que trata o artigo será executa­
do em cinco exercícios consecutivos, pelo regime de cooperação e
convênio entre a União- e os Municípios qus ao mesmo aderirem,
obedecidos os princípios e normas fundamentais consubstanciados
na presente lei.
Art. 2.° O Plano Nacional de Obras e serviços Municípios
(Operação-Município) terá como objetivo principal promover o de­
senvolvimento econômico-social dos municípios brasileiros, de ma­
neira que os transforme em unidades de sustentação do progresso
econômico-social do país, especialmente em seus aspectos ágrico-
industrial, preservação da saúde pública, difusão do ensino técnico-
profissional, aparelhamento para os transportes e comunicações e
produção de energia.
§ 1.° O ob jetivo visado no artigo deverá ser alcançado m e­
d ian te :
I a criação da Comissão Nacional Organizadora do
Plano;
II __ a votação-, em lei especial, do Fundo Financeiro, cons­
tituído de recursos vinculados às obras, serviços e demais empreen­
dimentos a serem computados no Plano;
I I I ___ a criação da Comissão Nacional Executiva do Plano,
cuja organização deverá ser pautada nos mo-ldes da administração
do- Plano Salte;
V — a assinatura de convênios nos quais fique estabelecida,
tanto quanto possível, a descentralização administrativa mitigada,
reservando-se à União a orientação e o controle técnico dos res­
pectivos projetos, de modo que se ressalve a aplicação dos recursos
na forma prevista pela presente lei e atos que lhe forem subseqüen­
tes ou complementares;
V a votação de lei especial relativa ao sistema financeiro
da execução do plano, atendidos os fundamentos que presidem o da
execução do Plano Salte; e
(5) “in” — Revista Brasileira dos Municípios — Rio de Janeiro, abril-junho de
1954, pp. 161-162.
86 R evista do S erviço P úblico — J aneiro de 1957

VI — a formulação do projeto do Plano (Lei de Programa)


pela Comissão Nacional Organizadora do mesmo, a fim de que seja
encaminhado ao Congresso para votação de lei especial, integrada
pelas tabelas discriminativas das obras e serviços e demais em­
preendimentos a serem atendidos.
§ 2 ° O projeto referido nc item VI do parágrafo anterior
deverá conter :
a) a consignação de recursos para o início, até conclusão, de
obras e serviços públicos imprescindíveis às áreas municipais, espe­
cialmente no setor rural;
b ) a consignação de recursos para o prosseguimento ou a
complementação de obras e serviços públicos existentes nos muni­
cípios, e a êstes pertencentes; ou de outros, executados pela União,
cuja entrega às administrações municipais será feita na forma e
nos têrmos que a lei determinar:
c) a consignação de recursos para serem entregues, a título
de auxílio, às entidades privadas, cujas finalidades digam respeito
a serviços de educação e saúde ou prestação de assistência social
a título gratuito, bem como a serviços cooperativos, se destinados a
obras de melhoramentos ou ampliação de imóveis; ou aquisição de
equipamentos e instalações, segundo programa qüinqüenal previa­
mente estabelecido para inclusão no Plano objeto da presente lei;
d) consignação de recursos para estudos, projetos e respecti­
va implantação de reformas administrativas destinadas a raciona­
lizarem o aparelho administrativo das Prefeituras, incluindo-se nas
mesmas a de reorganização dos serviços de secretaria das Câmaras
de Vereadores, bem como formulação de anteprojetos de leis e re­
gulamentos destinados a suprirem deficiência ou a aperfeiçoarem
as atividades municipais;
e) consignação de recursos para o estabelecimento, em larga
escala, do sistema de revenda de materiais e equipamentos agríco­
las aos pequenos lavradores, por intermédio das Prefeituras ou
das entidades cooperativas locais, mediante a assinatura de convê­
nios especiais com a União;
f) consignação de recursos para a concessão de “bôlsas de
estudos” às administrações municipais para a formação, especiali­
zação e aperfeiçoamento técnico-profissional concernente ao traba­
lho na agricultura, indústria e comércio; para a formação, especiali­
zação e aperfeiçoamento de pessoal destinado a centros, hospitais e
demais serviços de saúde; estabelecimentos de ensino rural-indus-
trial de qualquer natureza, mediante a assinatura de acordos espe­
ciais entre a União, os Municípios e as entidades competentes da
primeira; e
A dm in istr açã o M u n ic ipa l 87

é ) consignação de recursos para a execução de melhoramen­


tos urbanos, desde que vinculados à saúde e higiene das popu­
lações .
Art. 3.° Os recursos para quaisquer serviços, obras ou em­
preendimentos convencionados serão sempre concedidos nas propor­
ções de 90%í, 70% e 50% por parte da União, e os restantes 10%,
30% e 50%j como contribuição do Município.
§ 1.° A lei financeira referida no item V do Artigo 2.° fixará
as proporções estipuladas neste artigo tomando por base as seguin­
tes prioridades para maior contribuição da União em relação a cada
projeto;
a) maior rentabilidade;
b ) maior interêsse econômico, nacional, regional, municipal;
c) maior interêsse social; e
d ) menor renda municipal.
§ 2.° As contribuições do Município poderão ser estabeleci­
das nos respectivos convênios sob formas que não a financeira.
§ 3.° Os Estados, se assim o entenderem, poderão aderir téc­
nica e financeiramente a cs objetivos do presente Plano, especial­
mente na parte relativa aos empreendimentos, obras e serviços in-
termunicipais cujas proporções venham a exceder à capacidade de
contribuição das áreas municipais interessadas.
A rt. 4.° As obras e serviços públicos a que se referem as letras
“a”, “b” e “g” do § 2.° do artigo 2.°, são as seguintes:
a) rodovias, inclusive obras de arte, desde que nãó previstas
nos Planos Rodoviários Nacional e Estaduais, e destinados a liga­
ções intra ou intermunicipais, neste último caso à base de prévio
acôrdo entre os interessados;
b) centros, hospitais e demais serviços de saúde pública;
c) postos, núcleos agropecuários e demais serviços agrícolas
relacionados com o melhor aproveitamento das riquezas vegetal e
animal;
d ) obras e serviços relacionados com a pesca e melhoria das
condições de vida dos pescadores e de suas famílias;
e) pequenas unidades industriais destinadas a promoverem
o beneficiamento ou maior aproveitamento econômico da produção
local;
f) construção de pequenas usinas de produção, de energia
para consumo local, ou de algumas áreas municipais, neste último
caso à base de prévio acôrdo entre os interessados;
g) construção de açudes, barragens, represas, obras e siste­
mas de irrigação;
h) obras de saneamento, desobstrução e limpeza de rios, cons­
trução de canais:
R evista do S erviço P ú blico — J aneiro de 1957

i) construção e instalação de escolas, especialmente rurais


inclusive promoção de cursos avulsos, para a formação de profis­
sionais; e
j) obras e serviços de águas e esgotos, bem como do sanea­
mento de áreas urbanas e suburbanas.
Art. 5.° A municipalização de serviços é principio dominan­
te na organização dos projetos do Plano e fundamento para a trans­
ferência de serviços à alçada das Prefeituras.
Art. 6.° Para o efeito do Plano são “benefícios de ordem
rural” os destinados à melhoria das condições de vida das popula­
ções do campo e da produção nas áreas urbanas e suburbanas das
sedes e dos distritos municipais.
Parágrafo único. A semelhança, analogia ou equivalência
entre uns e outros não prejudica aos primeiros, desde que localiza­
dos nas áreas a que se referem.
Art. 7.° As aquisições de materiais e equipamentos para re­
venda aos pequenos agricultores serão feitas per encomendas glo­
bais da Administração do Plano e entregues às Prefeituras ou enti­
dades cooperativas locais, conforme programas prèviamente esta­
belecidos nos convênios especiais firmado com a União.
Art. 8.° A adesão do Município ao Plano importa na aceita­
ção das bases e diretrizes desta lei, bem como dos princípios, funda­
mentos, normas e processos estabelecidos nas que lhe seguirem.
Art. 9.° Fica o Poder Executivo autorizado a organizar os
projetos relativos aos instrumentos legais, mencionados nos itens II
e IV do § 1.° do artigo 2.°, bem como a baixar os atos de constitui­
ção da Comissão Nacional Organizadora do Plano, objeto do item
I do mesmo parágrafo e artigo.
Art. 10. A Comissão Nacional Organizadora do Plano será
constituída de cinco (5) membros e de um assessor principal, no­
meados por decreto do Presidente da República, sendo que o últi­
mo, por indicação, em lista tríplice, da Associação Brasileira de
Municípios.
Parágrafo único. O assessor principal reunirá a qualidade de
diretor executivo da Comissão.
Art. 11. Fica autorizada, pelo Ministério da Justiça e Ne­
gócios Interiores, a abertura do crédito especial de CrS 5.000.000,00
(cinco milhões de cruzeiros) para os trabalhos da Comissão Nacio­
nal Organizadora do Plano.
Art. 12. Esta lei entrará em vigor na data de sua publica­
ção, revogadas as disposições em contrário.”
Segundo a opinião de A r a ú jo C a v a l c a n t i
“na situação atual encontram-se desarticulados os esforços governa­
mentais no âmbito da tributação, do crédito, da moeda e dos inves­
timentos — o que anula as tentativas de combate à inflação.
A dm in istr açã o M u n ic ipa l 89-

A Operação-Município, a partir do início de sua execução, se


apresenta como um sistema orgânico de diretrizes, medidas legis­
lativas, contribuições técnicas, obras, serviços, empreendimentos
diversos. Trata-se de sistema planejado de baixo para cima — isto
é, começando pelos Municípios. E, o que é talvez mais importante,
um sistema integralmente coordenado com os altos interêsses da
União. Ao contrário do Plano Salte que foi esquematizado de cima
para baixo, sem raizes no Interior, a Operação-Município tem ori­
gem nos planejamentos locais que são aglutinados e somados, dentro
de cada Estado — e com a participação dêste. A principal conse­
qüência de todo êsse complexo de relações intergovernamentais e
interadministrativas é uma original integração de projetos aos quais
se associa a União com participação m ajoritária.”
Vedes como se enriqueceu o pensamento municipalista nestes últimos
anos, e que amplas perspectivas abre ao prosseguimento dos estudos e pes­
quisas. E as reflexões se estenderam até à organização distrital, sendo consi­
derável neste; particular a contribuição de Rui R am o s sôbre o Govêrno
Rural. (6) No plano da reforma municipal propõe um desmembramento de
govêrno e administração no Município atual. Em face da nossa organização
vigente do ponto de vista de govêrno e administração os municípios, para
todos os efeitos, são sempre urbanos. Os núcleos rurais onde se manifeste
importância demográfica ou sentido de liderança assumem apenas a cate­
goria de distritos não autônomos. As zonas rurais estão assim confinadas na
jurisdição municipal urbana. E, os estudos e observações de R u i R a m o s fize­
ram-no avaliar entre países subdesenvolvidos êsse tipo de organização pre­
judicial como a nossa, cuja conseqüência é a absorção das áreas rurais, esque­
cidas e decadentes, pela política urbana do município. Os debates memo­
ráveis do Congresso de São Lourenço deram-nos a medida da importância
do assunto, e seria relevante que o autor nos desse um livro definitivo fun­
dado nos seus dois ensaios anteriores.
Senhores,
Para darmos um balanço das idéias municipalistas, é necessário um vigo­
roso esforço crítico e precisão sistemática. O documento supremo que indica
as constantes doutrinárias do movimento nestes dez anos é, sem dúvida, a
Carta de São Vicente, elaborada de acôrdo com a classificação de O sório
N u n e s . Este líder vem exercendo um assíduo trabalho crítico dos vários pro­
blemas do municipalismo, encarecendo sempre, nas páginas da imprensa diária
e nas monografias especializadas, a formulação de uma base a um tempo cul­
tural e pragmática, a fim de se conciliarem dois critérios fundamentais, capa­
zes de repelir a inocuidade das afirmações demagógicas, do empirismo e da
indiferença a técnica e à pesquisa. A orientação de O sório N u n e s coincide
rigorosamente com as exigências mais modernas de compreensão das comu­
nidades de base.

(6) “in” — Revista Brasileira dos Municípios, Rio de Janeiro, n.° 20 __ outubro-
dezembro de 1952.
90 R evista do S erviço P ú blico — J aneiro de 1957

Para concluirmos dentro de uma apreciação lógica, analisemos o pensa­


mento de Y v e s d e O l iv e ir a , pois caminhamos do trabalho isolado e disperso
dos pensadores do Império e da República, até atingirmos à fase associativa,
cuja fecunda contribuição municipalista foi possível graças à disciplina inte­
lectual adquirida sob a influência da fundação da A .B .M .
Em Y v e s d e O l iv e ir a se refletem as idéias gerais do municipalismo
pátrio. O seu trabalho pioneiro fez plantar na velha Bahia um marco inex­
pugnável. Assim, a sua obra escrita a partir de “Doutrinação Municipalista”,
e os seus instrumentos de ação — a Associação dos Municípios, e a Revista
de Direito Municipal, lhe compõe a personalidade singular que entre a reali­
dade e o sonho, anuncia e prepara em face das condições brasileiras a civili­
zação municipalista.
A mais bela página que escreveu é o programa municipalista. (7) Ou­
çamo-lo atentamente:
PROGRAMA MUNICIPALISTA
Aspeoío Filosófico
Considera :
1.°) A luta dos Municípios por uma filosofia alicerçada no
equilíbrio econômico, político e ético dos grupc*s sociais c das comu­
nidades humanas.
2.°) A prática da teoria da Intermunicipalidade Universal,
defendida magnificamente pelo eminente R u y d e L ugo V in a e em
virtude da qual se torna extensivo aos Municípios o direito de coo­
peração internacional, como já vem acontecendo com a Comissão
Pan-Americana de Cooperação Intermunicipal, com sede em Cuba.
Aspecto Político e Constitucional
Visa :
1.°) A implantação no país de uma República Municipalista,
baseada na descentralização política e administrativa, em três esfe­
ras do govêrno: a União, os Estadcs-Membros e os Municípios,
cada qual exercendo poderes constituintes, a molde do que ocorre
com o Rio Grande do Sul.
2.°) A extensão, aos vereadores, da prerrogativa da imunida­
de que é outorgada aos deputados e senadores.
Aspecto Administrativo
Objetiva :
1.°) Transferência imediata da Capital do Brasil para o Pla­
nalto Central.
(7) “in” — Revista Brasileira dos Municípios, n.° 31, Rio de Janeiro, julho a se­
tembro de 1955, pp. 227-228.
A d m in istr açã o M u n ic ipa l 91
2.°) Solução dos problemas de base do país, destacadamen-
te os de transporte, energia elétrica e educação.
3 .°) D escen tralização adm inistrativa dos serviços de assistên­
cia e previdência, d e m olde a facilitar o contato entre a instituição
e o segurado, garantindo m aior rapidez na concessão dos b en efícios.
4 .°) Elaboração de Códigos Municipais em cada comuna, vi­
sando dar unidade às Leis locais, condenando quanto possível em
um só corpo legislativo a matéria municioal.
5.°) Instituição do sistema de recrutamento para o serviço
público pelo critério do mérito, não bastando, porém, tão só sele­
cionar, e sim também orientar e proceder a uma revisão periódica,
devendo-se ressaltar a contribuição da psicotécnica para êste impor­
tante e fundamental objetivo.
Aspecto econômico
T em por objetivo :
1.°) Valorização dos planejamentos urbanos, rurais e regio­
nais, dando-se ênfase administrativa aos problemas intermunicipais
de base: transportes, energia elétrica e educação.
2.°) Cobrança de uma taxa de planejamento, nos Municípios,
para elaboração dos planos e projetos de govêrno local.
3 .°) Instalação sob a form a cooperativa, de bancos regionais,
destinr-dos a servir de base a um futuro instituto de crédito m uni­
cipal .
4 .°) Cooperação entre os Municípios, para criação de socie­
dades de fins econômicos, quando a execução dos acordos inter­
municipais o tornar necessário, podendo participar do empreendi­
mento pessoas físicas ou jurídicas.
5.°) Apoio à reforma agrária que deverá realizar-se através
da cooperação e do esforço conjugados dos três níveis de govêrno.
6 o) Incentivo à criação de Bancos dos Municípios, com o
fim de reter no interior as fortunas ali formadas.
7.°) Participação efetiva dos Estados e Municípios nos lucros
resultantes da exploração, industrialização e prospecção petrolífe­
ras, no respectivo território: o que é reconhecido de absoluta con­
veniência.
Aspecto financeiro
P reten d e :
1.°) A reforma da Constituição brasileira para que se objeti­
vem novas discriminações de rendas no País, visando ao melhora­
mento das condições financeiras dos Municípios, terminando-se de
uma vez por tôdas, com o sistema de auxílios permanentes nos orça­
mentos aos mesmes, por parte da União e dos Estados-Membros,
a não ser em caráter excepcional.
92 R evista do S erviço P úblico — J aneiro de 1957

2.°) A instituição do Código Tributário Nacional, como me­


dida indispensável à consolidação, pelas três esferas governamen­
tais, das reivindicações municipalistas através de nítida delimitação
dos campos de competências e de obediência às diretrizes básicas
ds uma política tributária definida em plano nacional.
3.°) A percepção de 40% pslos Municípios, do total das ren­
das públicas arrecadadas no país, dentro em prazo razoável e de
modo progressivo, mediante outorga de novos tributos.
Aspecto Educacional
Resolve :
1.°) Considerar a educação um problema de base capaz de
ajudar a solucionar a crise brasileira, acabando-se com o analfabe­
tismo .
2.°) Elaborar-se um plano geral do ensino rural, com a cola­
boração dos Municípios e de instituições interessadas no fomento
agrícola.
3.°) Intensificar o ensino profissional no interior brasileiro.
4.°) Propagar o ensino técnico, instalando-se os respectivos
cursos ao lado de cada Ginásio do Interior, segundo o plano dos
Centros Regionais de Educação.
Aspecto Científico Didático
Insiste :
1.°) Considerar-se o municipalismo uma ciência municipal
autônoma, com metodologia própria.
2.°) Incorporação aos planos de estudos, por parte das Fa­
culdades de Direito e Ciências Econômicas do Continente, da disci­
plina denominada : “Direito, Ciência e Administração M unicipal. ”
3.°) Criação de institutos de altos estudos para peritos em
administração municipal e urbanistas planificadores.
4.°) Instituição sistemática, em cada núcleo urbano, de um
plano de urbanismo.
5.°) O ensino, nas escolas primárias, de noções sôbre a dou­
trina municipalista, valorizandc^se os problemas locais.
Aspecto Sanitário
Adota :
1.°) A resolução dos problemas de saúde pública, paralela­
mente com os de assistência social, não adiantando estudar um sem
pensar no outro.
A d m in istr a ç ã o M u n ic ip a l 93

2.°) Elaboração de um plano geral referente aos serviços de


suprimento de água e às rêdes coletoras em tôdas as localidades
brasileiras.
3.°) Assistência hospitalar cm todos os Municípios devendo
o Serviço de saúde do interior seguir uma orientação de medicina
preventiva, de higiene, de profilaxia e de assistência propriamente
dita.
Aspecto Estatístico
Tenciona :
1.°) Manter os Convênios Nacionais de Estatística Munici­
pal, em face dos seus meritórios e relevantes serviços, como centros
coordenadores e executores de trabalhos de interêsse local.
Aspecto Jurídico
Tem em mira :
1.°) Maior unidade e prestígio para o Poder Judiciário.
2.°) Representação dos Estados-Membros no Supremo Tri­
bunal de Justiça.
3.°) Estímulo aos magistrados do país, incentivando-os ao
estudo e aprimoramento das qualidades de cultura, inerentes à téc­
nica de julgar.
4.°) Igualar o número de Ministros do Supremo Tribunal de
Justiça ao dos Estados-Membros, escolhidos, por exclusivo mereci­
mento e lista tríplice, pele próprio Supremo Tribunal de Justiça
e de nomeação pelo Presidente da República.
5.°) Instituição de Câmaras especializadas nos Tribunais.
Aspecto Internacional
Recomenda :
1.°) A manutenção de vínculos de cooperação municipal com
as entidades dos países americanos que se dedicam ao estudo e de­
fesa dos problemas locais, valorizando-se o princípio da Intermuni-
cipalidade Universal de R u y de L ugo V in a , ao lado da execução
dos postulados contidos nas Cartas de Recomendação dos Congres­
sos Interamericanos e Internacionais de Municípios.
Aspecto Moral e Etico
1.°) Que o povo brasileiro repudie e despreze a demagogia
“política”, o voto inconsciente, a ausência de espírito público, a de
sonestidade pessoal e a falta de caráter daqueles que têm parcela
de direção na causa pública, visando-se com isso ac bem comum,
à segurança e à justiça em nome de uma melhor política democrá­
tica e de mais aprimorada educação cívica.”
94 R evista do S erviço P úblico — J aneiro de 1957

Vè-se, afinal, como é grande a responsabilidade dos municipalistas bra­


sileiros. Dez anos foram suficientes para que se compusesse um roteiro em
que se considerem desde as soluções particulares até à integração generali-
zadora iluminada por uma inspiração filosófica, cujo fundamento está na va­
lorização do homem e da comunidade.
Que o trabalho comum seja exercido com mcdéstia e nobreza, para ser
digno de tão altas aspirações. E só assim poderemos saudar a cidade brasi­
leira na plenitude de sua missão civilizadora, saudar o município — criador
da Nação!

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