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ARQUIVOS MUNICIPAIS: PROBLEMAS DE JURISDIÇÃO1

Ana Maria de Almeida Camargo

A nação brasileira afirma sua soberania a partir da clássica tripartição de


poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário, independentes e
harmônicos. Adotando a república como forma de governo e o sistema
eletivo direto como mecanismo de investidura de seus governantes, o
Brasil é uma federação com organização política trina, que compreende a
União, os Estados e os municípios. Enquanto à União competem o
exercício do governo central e o poder exclusivo de soberania nacional, os
demais membros da federação – Estados e municípios, além do Distrito
Federal – detêm poderes políticos e administrativos para a gestão de seus
interesses internos, com autonomia reconhecida constitucionalmente.
Ressalte-se aqui a peculiaridade do sistema federativo brasileiro face aos
demais países que o adotam: longe de ser mera circunscrição territorial, o
município é entidade estatal com autonomia política, administrativa e
financeira, parte integrante e imprescindível na organização constitucional
da nação.

A autonomia de cada membro dessa estrutura tem, no caso brasileiro, o


estatuto de direito público interno ou de faculdade política legalmente
reconhecida. Em outras palavras, o núcleo de franquias asseguradas ao
município só pode ser alterado no sentido de ampliação (e nunca de
redução) dos poderes de que é titular. De acordo com Hely Lopes Meirelles,
“não há prevalência da lei federal ou estadual sobre a municipal. O
governo local é que provê a administração em tudo quanto respeite ao
interesse local do município, repelindo, por inconstitucional, qualquer
intromissão de outro órgão, autoridade ou poder. Só há hierarquia entre as
leis quando, por inexistir exclusividade de administração, as três entidades
(União - Estado-membro - município) regularem concorrentemente a
mesma matéria, caso em que a lei municipal cede à estadual, e esta à
federal”.2

Como entidades depositárias dos documentos produzidos pelo poder


público em cada uma das suas esferas e níveis, os arquivos devem ser
vistos como correlativos de tais modos de gestão, com a dupla função de

1
As primeiras versões deste texto foram publicadas como: CAMARGO, Ana Maria de
Almeida. Arquivos municipais: problema de jurisdição. Boletim do Centro de Memória
UNICAMP, Campinas, v. 1, n. 2, p. 18-19, jul.-dez. 1989. CAMARGO, Ana Maria de
Almeida. Les archives municipales: problèmes de juridiction. Janus, Paris, n. 2, p. 45-48,
1990.
2 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 8. edição atualizada por Izabel

Camargo Lopes Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro e Célia Marisa Prendes. São Paulo:
Malheiros Editores, 1996. p. 85.
viabilizar a ação governamental e de representá-la, para fins imediatos ou
mediatos. A organização e administração de instituições arquivísticas
públicas brasileiras obedece, portanto, ao mesmo escalonamento e à
mesma prerrogativa autonômica das esferas de ação governamental: há o
Arquivo Nacional, os arquivos estaduais e os arquivos municipais, sem
qualquer relação de subordinação entre eles, cada qual encarregado dos
conjuntos de documentos acumulados por órgãos da administração direta
ou indireta em sua esfera de jurisdição, respeitada a independência dos
poderes.3

Quanto aos arquivos municipais, constituem o destino, por excelência, dos


documentos produzidos pelas prefeituras e pelas câmaras de vereadores,
como contrapartida necessária do funcionamento desses organismos. Em
simetria perfeita com a organização estatal, que apresenta nítidas
fronteiras entre os seus diferentes patamares, os arquivos públicos
brasileiros vivenciam na base, ou seja, no âmbito dos arquivos municipais,
as mesmas prerrogativas.

Se o arquivo municipal protege, de forma natural, os documentos


produzidos pelas instituições que realizam a administração do próprio
município, é preciso não esquecer que dentro da mesma circunscrição
territorial funcionam entidades que correspondem a desdobramentos de
instâncias regionais e centrais do poder estatal. Caberia ao arquivo
municipal assumir a custódia da documentação de tais instituições? À
primeira vista, estamos diante de um simples caso de aplicação do
conceito de domicílio legal dos documentos, pelo qual jamais se
confundiriam os produtos das diferentes esferas de ação do governo.
Ocorre que, por razões diversas – grandes dimensões geográficas, máquina
estatal deficiente e lacunar, vontade política de descentralização –, o
instituto da delegação de competência tem sido largamente empregado
entre nós ao longo do tempo. Daí a comissão de atribuições típicas dos
organismos do poder central ou do poder regional a funcionários ou
repartições municipais, o que justifica a presença, nos arquivos
municipais, de séries documentais originárias de funções delegadas.

A elasticidade da área jurisdicional dos arquivos municipais – nunca


questionada, apesar de desprovida de fundamento legal – tem, na verdade,
raízes históricas. Remonta aos primórdios de nossa vida independente, e
merece aqui algumas considerações, sobretudo em função do consenso
que hoje existe sobre tal prática.

As dimensões do Brasil sempre constituíram um óbice para a


administração, o que nos dá ideia da magnitude do empreendimento

3Conforme a Lei federal n. 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências.
colonial português, logrando manter fronteiras e unidade linguística em
tão vasto território. A independência política brasileira, sob a égide do
regime monárquico, fez-se acompanhar, no temor de uma secessão, de
esforço de estruturação unitária, com a criação de um aparato
governamental condizente com a nação que se pretendia construir. A
solução foi a divisão do território em províncias com autonomia limitada,
sendo seus presidentes nomeados diretamente pelo imperador; as câmaras
municipais, por sua vez, ficaram subordinadas às províncias, em perfeita
sintonia com o modelo centralizador imperial. A imagem a que este modelo
foi associado, na época, principalmente pelos que o criticavam, era a de
um imenso corpo cuja circulação não chegava às extremidades.4

Com efeito, à falta de agentes administrativos que pudessem representar


tanto a autoridade do poder central quanto a do poder provincial,
recorreram ambos – em praticamente todas as áreas que lhes eram afetas
– à intermediação da menor entidade do governo, realizando por meio das
câmaras municipais (então detentoras de poder executivo e legislativo) sua
vocação de ubiquidade. O instituto da delegação de competências,
largamente empregado durante a vigência do regime monárquico,
constituía a alternativa mais viável para suprir a precariedade da máquina
estatal e cobrir as imensas distâncias que separavam o Rio de Janeiro
(então sede do governo imperial), bem como as demais capitais de
província, dos municípios que se espalhavam pelos pontos mais remotos
do país.

Os produtos documentais das atividades delegadas nunca saíram dos


municípios, nem foram reclamados pelos arquivos estaduais ou pelo
Arquivo Nacional. E a essa tradição administrativa correspondem até hoje,
entre outras, as atividades de alistamento militar, de competência
exclusiva da União, cujos arquivos permanecem junto às prefeituras
municipais. Inúmeros exemplos poderiam ser ainda evocados para
caracterizar o município como locus privilegiado da concentração de
arquivos de outras esferas governamentais, independentemente de
mecanismos de delegação. É o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo,
que, por iniciativa própria, tem incentivado as municipalidades a assumir
a custódia dos arquivos do poder judiciário acumulados nas sedes das
diferentes comarcas.

Tal fenômeno nos remete para o próprio entendimento do município como


instituição, como “criatura da lei”, como o definiam os juristas brasileiros
do século XIX. Com variável grau de autonomia política ao longo da
história, o município foi sempre “a realidade governamental mais próxima

4 Veja-se, por exemplo, o relatório do Visconde do Uruguai, Bases para melhor


organisação das administrações provinciaes, anexado ao do Ministro do Império de
1858, p. 6.
do cidadão”5, frase que tem sido repetida inúmeras vezes para caracterizar
o poder local como supridor das necessidades imediatas da comunidade,
como organismo capaz de planejar e executar os serviços básicos em sua
área de jurisdição. Por isso mesmo, aos olhos dos que dele se ocupam, o
governo municipal é a única instância da estrutura estatal dotada de
concretude e visibilidade, frente à qual as demais não passariam de
abstrações. “Ninguém mora na União, ninguém mora no Estado, todos
moram no município”, diz a placa afixada numa entidade especializada em
administração municipal, na cidade de São Paulo. 6 E porque tudo
funciona na mesma circunscrição espacial – instituições federais,
estaduais e municipais – a “criatura da lei” acaba por reassumir o caráter
originário de coletividade natural e necessária, que independe de estatuto
jurídico e cuja identidade repousa “numa certa história (a tradição local) e
em signos distintivos de sua territorialidade”.7

Nessa medida é que podemos admitir, nos arquivos das municipalidades,


uma aparente inversão do conceito de domicílio legal, isto é, da jurisdição a
que pertence cada documento de acordo com a área territorial, a esfera de
poder e o âmbito administrativo onde foi produzido e recebido. E quando a
origem do poder é substituída pelo destino de sua ação como traço
definidor de um acervo, muita coisa muda. Fica legítima a convivência não
só com documentos acumulados por órgãos situados em diferentes esferas
da administração pública, representativos de poderes que desfrutam de
total autonomia em relação às instituições de governo local, mas também
com documentos de origem privada. No município tudo se “municipaliza”,
e a própria noção de público acaba por se revestir de significado especial:
menos identificada com a ideia de oficial ou estatal, confunde-se com o que
pode e deve ser partilhado por todos; eis que os documentos,
independentemente de sua origem, são de interesse municipal e, portanto,
de domínio público.

Se se repele, por aberrante e inconstitucional, toda e qualquer apropriação


do patrimônio arquivístico dos municípios pelos arquivos estaduais ou pelo
Arquivo Nacional, o mesmo não se pode dizer das tentativas de
descentralização que tais organismos podem realizar em parceria com as
municipalidades. Uma política nacional de arquivos adequadamente
conduzida não pode prescindir, por isso mesmo, da base operacional que
lhe podem oferecer os arquivos municipais.

5 MELLO, Diogo Lordello de. A moderna administração municipal. Rio de Janeiro:


Fundação Getúlio Vargas, 1960. p. XII.
6 Trata-se de frase do então Governador do Estado de São Paulo, André Franco Montoro,

quando de sua visita à Fundação Prefeito Faria Lima, Centro de Estudos e Pesquisas de
Administração Municipal (CEPAM), em 1984.
7 DANIEL, Celso. As administrações democráticas e populares em questão. Espaço &

Debates, São Paulo, n. 30, p. 11-27, 1990.

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