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A Ténue Fronteira entre o Direito Administrativo e o Direito

Constitucional
I. Introdução: Dependência recíproca entre os direitos Administrativo e Constitucional
Como lembra Vital Moreira, antigo juíz conselheiro no Tribunal Constitucional, as
constituições não se restringem à “constituição política” em sentido restrito, ou “constituição do
Estado”, em sentido próprio. Elas não são hoje somente estatuto da pessoa coletiva do Estado,
definindo as suas atribuições, a sua organização, a competência dos seus órgãos. Cada vez mais, as
constituições inserem as “tetês de chapitre” (título de capítulo) dos demais ramos do direito. Sob o
ponto de vista material- ou seja, quanto ao seu objeto- o direito constitucional, além do direito do
Estado em sentido estrito, abrange também princípios essenciais dos ramos infraconstitucionais do
direito. Em maior ou menor medida os vários compartimentos do direito, tanto do direito público,
como mesmo do privado, têm as suas bases na Constituição”.
E, adianta o mesmo autor, “se existe um ramo do direito público com uma presença significativa na
Constituição esse é- a par do direito penal- o direito administrativo. A “constituição administrativa”
é o direito constitucional administrativo ou o direito administrativo constitucional. É nela que se
encontram as bases do direito administrativo. Sendo direito constitucional formal (e também
material), as normas constitucionais administrativas são direito administrativo material.”
Desde há muito que o Direito Administrativo e Direito Constitucional andam de mãos dadas na
língua dos mais nobres autores, porém a relação entre estas duas figuras nem sempre foi tida como
igual.
Otto Mayer1 desenvolveu a sua tese com base numa posição de sobranceria da Administração em
face da Constituição, sendo bastante célebre a sua afirmação “o Direito Administrativo fica, o
Direito Constitucional passa”. Dissimulada nesta frase estava a ideia de que o Direito
Constitucional era algo mais próximo a políticos que a juristas e de que as mudanças políticas
contidas na lei fundamental não eram relevantes para o Direito Administrativo, o qual se mantinha
alheio ao que o rodeava. Esta visão de um Direito Administrativo imune à Constituição tinha na sua
base não só a sobranceria do primeiro como também a ineptidão, própria da época, do Direito
Constitucional, uma vez que este não era ainda verdadeiramente jurídico.
Foi no século XX, mais precisamente, na sua segunda metade, e com o surgimento da Justiça
Constitucional que o Direito Constitucional abandona o seu caráter de Direito Político e começa a

1 Otto Mayer (29 de março de 1846 em Fürth a 8 de agosto de 1924 em Hilpertsau) foi um jurista alemão que, além de
ter atuado na área do Direito Canónico, foi um pioneiro nos estudos do Direito Administrativo, sendo considerado um
dos três principais nomes do Direito Administrativo alemão, ao lado de Otto Bachof e Hartmut Maurer.
ser tomado como o pilar de todo o ordenamento jurídico, levando Fritz Werner a tomar como
Direito Constitucional concretizado o Direito Administrativo.
A superação da situação de indiferença para a dependência do Direito Administrativo
perante o Direito Constitucional representa uma mudança de paradigma. As Constituições são agora
munidas de normas e princípios fundamentais em matérias de organização, funcionamento, de
atuação e controlo da Administração, cabendo ao Direito Administrativo concretizar e aplicar tais
normas e princípios.
Pelas palavras de Peter Häberle2 surge a necessidade de uma “cooperação frutuosa entre a doutrina
constitucional e a doutrina administrativa”, uma vez que o “Direito Administrativo atual existe,
modifica-se e desaparece, tanto em sentido formal como em sentido material, em conjugação com-e
indissociavelmente ligado ao- Direito Constitucional”. A Constituição fixa as grandes linhas pelas
quais se pauta o Direito Administrativo, servindo de alicerce, e este não pode desrespeitá-la, ficando
assim dependente do Direito Constitucional.
Não só o Direito Administrativo depende do Direito Constitucional como também o inverso
se verifica. O Direito Constitucional subordina-se ao Direito Administrativo, na medida em que, de
modo a garantir a sua efetivação, precisa de ser por ele concretizado. A efetividade da Constituição
não está apenas na sua redação e promulgação, mas, principalmente, na sua aplicação prática. Isso
envolve a atuação da Administração Pública e dos Tribunais, que desempenham papéis cruciais de
interpretação e implementação das normas constitucionais, caso contrário seria uma realidade
morta, figura de museu. A relação dialética entre Direito Administrativo e Direito Constitucional
obriga a transitar da indiferença originária para a dupla dependência no quadro do moderno Estado
Pós-social, em que vivemos.
A relevância constitucional da Administração, desde os primeiros vestígios do
constitucionalismo, deriva de duas razões. A primeira consiste no facto de a Administração Pública
ser expressão do Estado e se encontrar em estreita conexão com o poder executivo próprio das
constituições liberais, marcadas pela tríade liberal da liberdade, segurança e propriedade e a
segunda no facto dos governantes revolucionários e pós-revolucionários pretenderem, através de
mudanças radicais das estruturas administrativas, mormente das municipais, consolidarem as bases
dos novos regimes.
O alargamento da relevância constitucional da Administração nas constituições do séculos
XX moveu-se pela expansão generalizada das matérias objeto de tratamento constitucional, que, em

2 Petter Haberle (13 de maio de 1934, Goppingen, Baden-Wurttemberg, Alemanha) é um jurista alemão, especialista em
direito constitucional.
Estado de Direito Democrático, adquire a constituição, ao invés do que sucedia no século XIX, em
que ela pertencia à lei e por se tornarem, em não poucas áreas, fluídas as fronteiras entre a atividade
legislativa e a administrativa, manifestando-se em problemas vulneráveis como os da lei-medida e
da reserva de administração.
Não há duvidas respeitantes à interdependência do desenvolvimento dos sistemas
constitucionais e dos sistemas administrativos. O contraste histórico entre o sistema administrativo
britânico e o sistema administrativo francês arranca, em linha reta, de diferentes concepções
constitucionais. Embora seja partilhada a ideia de subordinação do poder político ao Direito, a
chamada administração judiciária de tipo britânico radica no “rule of law”, ao passo que a executiva
francesa tem na sua base o modo como a separação de poderes aí foi entendida.
Também no sistema administrativo dos Estados Unidos nos deparamos com marcantes e
particulares características , derivadas estas das exigências do federalismo, de uma estrutura muito
descentralizada da administração com múltiplas autarquias institucionais e da ideia dos tribunais
como órgãos de garantia dos direitos individuais.
Nos países com regime marxista-leninista a dependência do sistema administrativo pelo
respetivo sistema constitucional pouco distinta se apresentava. A Administração prosseguia fins
ideologicamente idênticos aos assumidos pela Constituição, sobrepondo-se a quaisquer direitos e
interesses subjetivos. A extrema centralização e concentração administrativa encontrava justificação
no “centralismo democrático” do partido.

II. O Constitucionalismo português e o seu conteúdo administrativo


As três primeiras manifestações do constitucionalismo português apresentam linhas de
continuidade bem marcadas quanto ao sistema de Direitos Fundamentais que instituíram, não só
pela sua visão individualista e de titularidade de direitos, como pela predominância de liberdades e
posições negativas relativas ao Estado e pela não existência de garantias de defesa e controlo
efetivo dos direitos fundamentais. As constituições de 1822, 1826 e 1838 focam-se
maioritariamente na garantia de direitos individuais e de liberdade, estando bastante dispersas pelo
texto as alusões a direitos de dimensão social ou cultural- as únicas exceções dizem respeito ao
direito à assistência pública e ao direito à educação. Naqueles destaque-se a previsão de direitos
como os da propriedade, inviolabilidade do domicílio e da correspondência, liberdade de
consciência, expressão e culto, proibição de penas degradantes e garantias relativas ao processo
criminal. No respeitante a princípios realce-se a continuidade do princípio da igualdade e da
liberdade geral de ação, bem como os primeiros vestígios do princípio da proporcionalidade.
Os textos Portugueses, em oposição às declarações francesas nas quais se inspiraram, foram
escritos sob uma lógica sobretudo negativa, direcionada maioritariamente para a proteção de
garantias, ao invés de direitos. Os direitos fundamentais eram tidos como posições objetivas contra
o Estado e menos como posições subjectivas dos indivíduos.
O constitucionalismo liberal português não sucedeu a nível da efetividade do sistema de direitos
fundamentais. Não querendo ignorar a estipulação de alguns mecanismos de garantia e de defesa, é
manifestamente visível a deficiência a nível de controlo jurisdicional, efetivada pela ausência de um
sistema de controlo da constitucionalidade das leis. Aos primeiros textos constitucionais
portugueses corresponde uma falsa garantia de direitos, disfarçada por uma imensa declaração dos
mesmos. Os direitos individuais haviam surgido, porém apenas como meros instrumentos de
retórica política e de afirmação de regimes liberais-burgueses e não como verdadeiros instrumentos
de proteção jurídica dos cidadãos.
Uma breve miragem às nossas seis Constituições é o suficiente para concluir que em todas
se encontram normas que, sem deixarem de ser normas formal e materialmente constitucionais,
devem também ser entendidas como princípios fundamentais de Direito Administrativo. Entre estas
constam normas sobre direitos fundamentais dos administrados, sobre direitos dos cidadãos, que
podem ser exercidos em especial perante a Administração, tais como o direito de petição ou o de
ação popular (artigos 16.º e 17.º CRP de 1822, artigo 145.º da Carta Constitucional portuguesa,
artigos 13.º e 26.º da CRP de 1838, artigos 3.º n.º 30 da CRP de 1911; artigo 8.º n.º 18 da CRP de
1933 e art 49º (posteriormente alterado para 52º) da CRP de 1976. ), normas sobre bens públicos
(artigo 103º, XII, da CRP de 1822; artigo 15.º da Carta Constitucional Portuguesa; artigos 23.º e
37.º, XV, da CRP de 1838; art 25.º n.º 22 da CRP de 1911; artigos 49.º a 52.º da CRP de 1933;
artigos 83.º e 89.º da CRP de 1976 e atualmente artigos 82.º, 83.º, 84.º4 e 165.º, nº1, alíneas j) e v)),
normas sobre competências de natureza administrativa do Chefe do Estado ou do Governo (artigos
122.º e 123.º, IV, VI, VII, IX e X, 128.º e seguintes e 157.º e seguintes da CRP de 1822; artigos 75.º
e 101.º e seguintes da Carta Constitucional portuguesa; artigos 82.º, II, III, V, VII, VIII e IX e 115.º
e seguintes da CRP de 1838; artigos 47.º, n.ºs 3,4 e 9, e 49.º e seguintes da CRP de 1911; artigo
108.º n.ºs 3 e 4 da CRP de 1933; artigo 202.º, posteriormente 199.º, da CRP de 1976;….
O Constitucionalismo Liberal
Há certos traços comuns às constituições liberais, nomeadamente:
- o relevo alcançado pela administração local, em confronto com a ausência de tratamento ex
professo ou global da administração central do Estado;
- o enquadramento constitucional da administração central através do poder executivo;
- a consagração do princípio da igualdade de acesso aos ofícios públicos e do princípio de
responsabilidade dos “empregados públicos” por erros de ofício, abusos de poder ou omissões.
No que respeita ao relevo alcançado pela administração local, este foi, em grande força, sentido nas
Cortes Constituintes de 1821-1822, levando a que se começasse a considerar um quarto poder, o
administrativo, daí que na epígrafe do título VI do texto então aprovado se viria a ler a expressão
“governo administrativo e económico”.
O enquadramento constitucional da administração central através do poder executivo, encabeçado
no Rei, e, na CRP de 1911, no Presidente da República (PR), não impediu a doutrina, tanto a
administrativa como a constitucional, na esteira do resto da Europa, de analisar o poder executivo
em dois poderes, o poder governamental e o poder administrativo, e de, por vezes, integrar o poder
governamental e o poder moderador (previsto na Carta Constitucional portuguesa) numa mesma
categoria.
A consagração do princípio de igualdade de acesso aos ofícios públicos, os quais não seriam
“propriedade de pessoa alguma”, tal como sublinhava o artigo 13º da CRP de 1822, e do princípio
da responsabilidade dos “empregados públicos” por erros de ofício, abusos de poder ou omissões
foram tidos como grandes aquisições.
A Constituição de 1822
A Constituição de 1822 dedica o seu título I aos “Direitos e deveres individuais dos
portugueses”, no qual dispõe, nos artigos 2º a 18º, um coro de direitos e princípios fundadores da
ordem liberal: a. garantia geral da liberdade-artigo 2º, de segurança- artigo 3º, e propriedade- artigo
6º, garantias penais e de processo criminal- artigos 4º, 10º e 11º, inviolabilidade do domicílio e da
correspondência- artigos 5º e 18º, liberdades de consciência, expressão e imprensa- artigos 7º e 8º,
acesso e remuneração em cargos públicos- 12º a 15º, direitos de petição às Cortes e de exposição
contra qualquer infração da Constituição- artigos 16º e 17º, bem como uma enunciação clara do
princípio da igualdade- artigo 9º. Encontramos, nesta Constituição, algo de singular que jamais
voltaria a ser repetido na história constitucional portuguesa, a previsão, no artigo 19º, de uma
cláusula genérica de deveres fundamentais, na qual se escreve “Todo o português deve ser justo. Os
seus principais deveres são venerar a Religião; amar a pátria; defendê-la com as armas, quando for
chamado por lei; obedecer à Constituição e às leis; respeito às Autoridades Públicas; e contribuir
para as despesas do Estado”. Fora deste alistamento podemos ainda identificar algumas disposições
notáveis sob o ponto de vista dos Direitos Fundamentais, como sejam a liberdade de culto religioso
a estrangeiros- artigo 25º, o direito de sufrágio- artigo 33º, garantias específicas de processo
criminal- artigos 202º a 207º ou ainda, em tributo do princípio do “no taxation without
representation”, direito de resistência ao pagamento de impostos inconstitucionais- artigo 224º. A
despeito das obrigações estatais previstas na Constituição nos domínios social, cultural e ambiental,
fixando a necessidade de instalação de escolas, hospitais, casas de misericórdia e outros
estabelecimentos de apoio social- artigos 237º, 238º e 240º-não podemos já falar em tais dimensões.
A Carta Constitucional de 1826
No caráter inédito do constitucionalismo português, a carta Constitucional de 1826 deixa a
matéria das Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Portugueses para o último dos
seus artigos, artigo 145º, no qual, para lá dos já fixados na CRP de 1822, se acrescentam o princípio
da não retroatividade das leis, a liberdade de deslocação e emigração, a liberdade de trabalho e de
empresa, o direito de propriedade intelectual, e ainda uma primeira manifestação de liberdade
religiosa. Destaquem-se ainda os pertinentes aditamentos surgidos com os Atos Adicionais de 1852
e 1885: a abolição da pena de morte nos crimes políticos e o direito de reunião, respetivamente.
A Constituição de 1838
A Constituição de 1838 retoma a antiga estrutura, colocando a matéria dos Direitos e
Garantias dos Portugueses nos primeiros artigos do texto, artigos 9º a 32º, nos quais se condensa a
herança dos anteriores documentos, ainda que com maior aprimoramento ao nível da técnica
jurídica. Como novidades mais notáveis destaquem-se as positivardes do direito de associação,
artigo 25º, bem como a específica antevisão de um regime de suspensão das garantias individuais
dos cidadãos, artigo 32º.
O Constitucionalismo Republicano
Por muito que se pense o contrário, a instauração da República em Portugal e a consequente
aprovação de um novo escrito constitucional não levou a mudanças significativas a nível do sistema
de Direitos Fundamentais. Este continuou a ser perspetivado sob a visão de um Estado Liberal,
abstencionista, mínimo e garante de liberdades individuais de cariz cívico e político. O projeto
republicano podia ser visto como o luminar do liberalismo democrático português, isto sem prejuízo
de uma ótica marcadamente laicista e anticlerical que encontrou eco no domínio dos Direitos
Fundamentais. Disto resulta, como diz Vasco Pereira da Silva3, a possível alegação de que a CRP de
1911 é,“uma filha tardia do liberalismo político”, com alguns “condimentos de natureza laicista”.
Relativamente aos textos constitucionais anteriores, a CRP de 21 de agosto de 1911 configura uma
inovação, a nível não só quantitativo como também qualitativo, no respeitante à matéria dos direitos
fundamentais, porém há que ter presente que a instauração, pioneira em contexto europeu, inspirada
no constitucionalismo americano, de um sistema de controlo difuso da constitucionalidade das leis
não significou, na prática, a efetividade dos direitos fundamentais. Ao contrário do previsto, não se
chegou a verificar a tão desejada multiplicação de decisões judiciais, apoiadas nos direitos
consagrados na constituição.
A Constituição de 1911
O escrito constitucional de 1991 regula a matéria dos Direitos Fundamentais nos artigos 3º e
4º, elencando o primeiro destes artigos o conjunto de direitos e liberdades e o segundo, introduzindo
uma novidade no constitucionalismo português, fixa uma cláusula aberta de direitos fundamentais.
Na sua base, “a especificação das garantias e direitos expressos na Constituição não exclui outras
garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos
princípios que consigna ou constam doutras leis”. Apesar de tal cláusula, deve ter-se em mente a sua
fraca operatividade que, não obstante a amplitude do seu texto, não se traduziu num reconhecimento
multiplicado de novos direitos para lá dos já constantes no harmonizado da Constituição. No
referente ao elenco dos direitos, merece especial referência a circunstância de um grande número
dos mesmos aludir, direita ou indiretamente, a questões concernentes à liberdade religiosa,
característica fincada da postura anticlerical do regime republicano instituído. Em compensação, o
texto é benevolente na admissão de novos direitos, constando, entre as novidades, a previsão do
habeas corpus4, a abolição expressa e geral da pena de morte, o direito a reparação por condenação
injusta, entre outros. É ainda visível um reforço das garantias ao nível da educação e do ensino,
tendo-se fixado a obrigatoriedade e gratuitidade do ensino primário elementar. Afinal, para lá da
cláusula aberta, a CRP de 1911 é ainda prógona em dois aspetos que viriam a merecer acolhimento
no texto constitucional atual, sendo eles a regra da equiparação, ao nível da titularidade dos direitos,

3 Vasco Pereira da Silva é Professor Catedrático no Instituto de Ciências Jurídico-Políticas (ICJP) da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, do qual é membro fundador. Atualmente, é Presidente do Grupo de Ciências
Jurídico-Políticas. É também Professor Catedrático Convidado da Faculdade de Direito da Universidade Católica onde
obteve o seu doutoramento.
4 "Habeas Corpus" é uma expressão latina que significa "que tenhas o teu corpo". Trata-se de um princípio jurídico que
visa proteger a liberdade individual contra detenções ou prisões arbitrárias. O habeas corpus é um remédio jurídico
destinado a garantir que uma pessoa detida ilegalmente seja libertada.
entre portugueses e estrangeiros e a regra da limitação das restrições de direitos aos casos
taxativamente expressos na Constituição.
O Constitucionalismo Autoritário
O regime saído do Golpe Revolucionário de 28 de maio de 1926 e depois institucionalizado
na CRP de 1933 era visto como autoritário, antiparlamentar, antipartidário, tradicionalista e inimigo
confesso das liberdades individuais. O mesmo atuou em prol de um retrocesso ao nível dos Direitos
Fundamentais, sobretudo numa visão de funcionamento prático, uma vez que, no seu semblante, o
novo texto constitucional surgiu até mais extenso no catálogo de direitos e liberdades, porém a ideia
de um Estado “forte” impediu que grande número dessas garantias expressas obtivesse real
concretização.
Convém não olvidar a propensão social do modelo de Estado que se pretendeu instituir,
tendo-se traduzido, ao nível dos Direitos Fundamentais, no aumento de posições de dimensões
sociais dos indivíduos e de imposições de intervenção estatal nos domínios económico, social e
cultural. O regime do “Estado Novo” não podia ser visto como um modelo acabado de “Estado
Social”, surgindo este apenas com a CRP de 1976.
A Constituição de 1933
O escrito da CRP de 1933 abarca a matéria dos Direitos Fundamentais no seu artigo 8º, do
qual decorre um avolumado conjunto de direitos e garantias individuais. Por via de um olhar atento
para o texto constitucional na sua íntegra, é possível identificar uma panóplia de direitos dispersos
pelo articulado: por exemplo, os artigos 31º /6 e 33º ,relativo à iniciativa económica privada, 13º,
dispondo acerca do salário familiar e da proteção da maternidade ou 43º relativo à educação e
cultura. É visível, a dimensão social do Estado na previsão do direito ao trabalho, à contratação
coletiva e numa primeira ideia de mínimo de existência condigna art 6º n.º3. para lá destes,
integram também o elenco dos novos direitos a vida e a integridade física, o bom nome e a
reputação e, desde 1971, a garantia do recurso contencioso contra atos definitivos e executores
ilegais.
A característica mais pronunciada neste escrito constitucional consiste na dimensão
autoritária do sistema de direitos fundamentais, bem notória em cinco aspetos fundamentais:
- Na previsão de uma cláusula geral sobre limites ao exercício de direitos, tendo o artigo 8º fixado
o dever de os cidadãos fazerem uso dos direitos sem ofensa dos direitos de terceiros, nem lesão
dos interesses da sociedade ou dos princípios da moral, abafando a teórica cláusula aberta
(semelhante à prevista na Constituição de 1911);
- Na fixação de várias cláusulas restritivas específicas relativas a alguns direitos, cuja regulação se
deixava, por expressa previsão constitucional, para a lei especial, tal como descrito também no
artigo 8º, no qual se lia que “Leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do
pensamento, do ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira, impedir
preventiva ou repressivamente a perversão da opinião públicas na sua função de força social”.
Por outras palavras, muitas das garantias aparentemente fixadas, obtinham depois, por via de lei
ordinária, restrições e funcionalizações descaracterizadoras das ideias de liberdade e
individualidade;
- Na nítida subordinação dos direitos individuais a bens coletivos considerados qualitativamente
superiores e prioritários na conservação da ordem constitucional vigente;
- Na extinção de uma cláusula geral de liberdade;
- Na consagração de um conjunto variado de deveres fundamentais.
Ao analisarmos o texto da Constituição de 1933, só por si, podemos atingir a conclusão de
que ela estabelecia um regime hostil aos direitos individuais, porém é na prática constitucional que
se revela o seu traço mais significativo. É que, em bom rigor, o texto constitucional na sua íntegra
adquiriu um valor puramente semântico perante um regime que não hesitou em atropelos às
garantias individuais dos cidadãos. A Constituição funcionava mais como uma fachada, por detrás
da qual se encobria um sistema constitucional autoritário.
Na Constituição de 1933 avultam:
- O tratamento, pela primeira vez , da administração em geral no título VII da parte I, paralelo ao
do domínio público e privado do Estado e ao das administrações de interesse coletivo (títulos XI
e XIII, a aditar aos títulos tradicionais sobre administração local, Forças Armadas e Finanças);
- A consagração constitucional, finalmente, do Governo como órgão colegial distinto do Chefe de
Estado (artigos 71.º e 106.º) e configurado expressis verbis como supremo órgão da
Administração Pública (artigo 108.º n.º4);
- A atribuição de faculdades de participação administrativa, a nível local, aos chefes de família e
aos organismos corporativos (artigos 17.º e seguintes);
- O afloramento (por influência da Constituição de Weimar) do princípio da imparciabilidade da
Administração- a propósito dos funcionários (artigos 22.º e 23.º)- assim como a prescrição de
regras sobre incompatibilidade e dever de colaboração dos cidadãos com a Administração
(artigos 25.º e 26.º);
- Com a revisão constitucional de 1971, a consagração do direito de recurso contencioso dos
cidadãos em geral (artigo 8.º n.º21), e não apenas dos funcionários, relativamente a atos atinentes
à sua situação (artigo 108.º n. 4º).A atual Constituição portuguesa, de abril de 1976, dedica a sua
Parte I aos “Direitos e deveres fundamentais”, correspondentes aos artigos 12.º a 79.º, divididos
em Título I; Princípios Gerais; Título II; Direitos, Liberdades e Garantias; Título III; Direitos
Económicos, Sociais e Culturais. Estamos perante um texto constitucional bastante extenso, se o
comparados com outros da Europa, porém não se lhe pode atribuir a característica de exagerado,
uma vez que o modelo português se encaixa de forma plena no contexto do constitucional
ocidental moderno, garantindo, para além das clássicas liberdades cívicas e políticas, posições
decorrentes do modelo social de Estado. A dimensão do catálogo assume-se com tal extensão
devido a duas principais razões. Por um lado a preocupação de se assumir, desde a versão
originária da Constituição, um corte claro com o regime anterior, corporizado, no que à matéria
dos Direitos Fundamentais diz respeito, na afirmação sem reservas de um grande número de
direitos. Por outro, uma técnica legislativa que propicia a individualização de posições subjetivas
concretas em desfavor de grandes cláusulas gerais. Mais importante que a sua extensão é a sua
diversidade. Na verdade, a Constituição portuguesa assume como direitos fundamentais posições
subjetivas cuja história, estrutura e fundamento se apresentam bastante diferentes,
caracterizando-se pela adequação ao tempo, uma vez que o conteúdo material vai sendo
concretizado e recriado em cada momento histórico.
Tal como já demonstrado, as várias Constituições Portuguesas sempre foram, em maior ou
menor medida, fonte de direito Administrativo: a CRP de 1976 não foge à regra, indo até bastante
longe nesse sentido. Muitos dizem que representou “uma verdadeira revolução administrativa”,
posto que, “nunca até então a administração tinha tido tanta atenção constitucional”. Certo é que,
para além de um capítulo especialmente dedicado ao tema, artigos 266.º a 272.º, abundam neste
escrito constitucional disposições com incidência direta na administração pública. De entre tais
disposições iremos olhar concretamente à que se refere aos princípios constitucionais5 da atividade
administrativa material, o artigo 266.º.
O primeiro princípio referido no artigo 266.º da CRP é o princípio da prossecução do
interesse público. Este é o princípio motor da Administração pública. Ela existe, atua e funciona
com vista a prosseguir o interesse público, sendo ele o seu único fim. Porém, a Administração não
pode prosseguir o interesse público de qualquer forma. Tem de o fazer dentro de certos limites,

5 por muito que se pense o contrário, regras e princípios não são realidades equivalentes. Regras são normas específicas
e detalhadas que orientam o comportamento em determinada situação. Geralmente são mais prescritivas e podem ser
mais facilmente quantificadas e aplicadas, tendendo a ser mais rígidas e menos suscetíveis de interpretações variadas.
Princípios são diretrizes mais amplas e abstratas que fornecem orientação geral sobre como agir em diversas situações.
São menos específicos do que normas e fornecem uma estrutura ética ou moral, sendo mais flexíveis e interpretativos.
Fornecem uma base mas a sua interpretação e aplicação podem variar dependendo do contexto.
respeitando os demais valores, no seio de um quadro definido por certos parâmetros. Surgem assim,
mais dois princípios: o princípio da legalidade, que manda a Administração obedecer à lei e o
princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, que obriga a
Administração a não violar as situações juridicamente protegidas dos particulares. Dentro dos
limites fixados à sua ação, a Administração Pública é, muitas vezes, investida pela lei de um espaço
de autonomia, o que se conhece como o seu poder discricionário. Não se trata de um poder
arbitrário mas de um poder legal, jurídico, regulado e condicionado por lei. Diz-nos a Constituição,
no número 2 do seu artigo 266.º, que esse poder deve ser concretizado com igualdade,
proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa-fé.
A Constituição de 1976, além de recolher as contribuições das leis Fundamentais anteriores, traz
como aspetos salientes:
- a formulação mais sistemática dos princípios - desde o da descentralização democrática da
Administração em sede de “Princípios fundamentais” (artigo 6.º n.º1) e o da responsabilidade
civil do Estado (artigo 21.º, posteriormente 22.º) aos consignados no título da Administração
Pública (artigo 267.º, hoje 266.º);
- Em decorrência do princípio da descentralização, a tripartição da Administração em direta,
indireta e autónoma formal- sujeita a tutela de legalidade e de mérito- e em Administração
autónoma material- sujeita apenas a tutela de legalidade (artigo 243.º, hoje 242.º) e ligada ao
pluralismo local e social;
- A criação de regiões autónomas, dotadas de poder executivo próprio (artigo 229.º alínea d), hoje
227.º, n.º1, alínea g)), com a inerente não subordinação da sua administração ao Governo da
República;
- O conceito de poder local (artigos 237.º e seguintes, hoje 235.º e seguintes) e o enlace entre
autarquias locais e organização política (artigos 3.º n.º3, 114º n.º2, 115.º, 116.º, n.º1, 118.º, 119.º,
n.º 1, 121.º e 122.º n.º 2, hoje equivalentes aos 111.º, n.º2, 113.º n.º1, 114.º n.º3, 116.º, 118.º e
119.º n.º 2)
- A correlação dos princípios da descentralização e da participação também com diferentes
administrações especiais ou sectoriais6;

6 administração correspondente à comunicação social estatizada (art. 39.º), à segurança social (ar. 63.º), ao serviço
nacional de saúde (art. 64.º), ao setor público de propriedade de meios de produção (arts. 83.º e 89.º, n.º2), a planos
económicos (arts. 91.º e seguintes, hoje 90.º e seguintes) e ainda a administração eleitoral (art. 116.º, n.º4, hoje 113.º,
n.º4); Após 1982 a administração correspondente ao ensino (art. 77.º) e às associações públicas (art. 267.º n.º 1 e 4); e
após 1997, a constitucionalizarão em geral das autoridades administrativas independentes (art. 267.º, n.º3)
- A constitucionalização do provedor de Justiça, com competência para dirigir aos órgãos da
Administração as recomendações necessárias para prevenir e reparar injustiças (art. 24.º, depois
23.º);
- O alargamento dos direitos fundamentais dos administrados- todos com estrutura análoga à dos
direitos, liberdades e garantias e, por isso, beneficiando, pelo menos, do seu regime material- de
forma a abrangerem, para lá dos direitos de recurso contencioso contra atos administrativos
ilegais (art. 269.º, n.º3, depois 268.º, n.º3) e o de participação (art. 267.º, n.º4), o direito de
informação (art. 269.º, n.º1). Após 1982 o direito de fundamentação dos atos administrativos (art.
268.º, n.º2, 2.ª parte) e o de ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente
protegidos (art. 268.º, n.º3, 2.ª parte). Após 1989 o direito de acesso aos arquivos e registos
administrativos (art. 268.º n.º2). E após 1997, o direito geral à tutela jurisdicional efetiva (art.
268.º n.º 4 e 5);
- Numa perspetiva ainda de proteção dos direitos fundamentais, a proibição da garantia
administrativa (art. 271.º, n.º1, 2.ª parte) e a edição de uma norma sobre polícia com adstrição
das respetivas medidas ao princípio da proporcionalidade (art. 272.º);
- A cobertura também de direitos políticos dos funcionários (art. 269.º, n.º2, depois 270.º, n.º2) e a
consagração do princípio do concurso no acesso à função pública (art. 47.º, n.º2, isto após 1982);
- A previsão não só dos regulamentos do Governo (art. 202.º alínea c), hoje 199.º, alínea c) como
também de regulamentos de regiões autónomas (artigos 229.º, alínea g) e 235.º, hoje 227.º, n.º1,
aluna d), e 232.º) e das autarquias locais (artigo 242.´, hoje 241.º)e, depois de 1982, a prescrição
de regras sobre a sua emissão (artigo 115.º, n.º 6 e 7, hoje 112.º, n.º 7 e 8);
- A expressa inclusão dos tribunais administrativos entre os tribunais (artigo 212.º, hoje artigos
209.º, n.º 1, 212.º e 217.º, n.º2)- numa visão superada do qualificativo clássico de órgãos
jurisdicionais da Administração- mas como tribunais distintos dos judiciais e com existência
dependente da lei.
III. Conclusão
Em síntese, apesar da discussão histórica acerca da influência constitucional do Direito
Administrativo, é possível verificar-se hoje uma efetiva relevância da Constituição no Direito
Administrativo, e vice-versa. Vivemos numa sociedade cada vez mais dinâmica e interdependente,
sendo difícil encontrar uma forma de sobrevivência isolada. Se dedicarmos algum do nosso pouco
tempo ao Direito, rapidamente somos confrontados com a impossibilidade de evolução e adaptação
à atualidade de qualquer ramo dele sem que haja uma dependência mútua com outros ramos. A
relação entre Direito Administrativo e Direito Constitucional é imperiosa, de modo a garantir que a
atuação do Estado esteja em conformidade com os princípios estabelecidos pela Constituição, a
mais nobre das fontes de Direito.

FREITAS DO AMARAL, D. Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2.a ed.,Coimbra: Almedina, 2011.
Constituição da República Portuguesa
SILVA, Vasco Pereira da. Direito Constitucional e Administrativo sem Fronteiras, Coimbra: Edições
Almedina, junho de 2019.

Renata de Almeida Falcão, aluna 67905, turma B subturma 17

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