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DOUTRIN A

AUTONOMIA DOS GOVERNOS LOCAIS EM


MATÉRIA TRIBUTÁRIA

AMILCAR DE ARAUJO FALCÃO


Do Instituto Brasileiro de Direito
Financeiro

SUMÁRIO: Conceito de autonomia. Sistema federado. Limitações


implícitas à autonomia loc/ll dentro da discriminação de rendas.
A Constituição de 1946. Interpretação da lei tributária. Forma
iurídica e realidade econômica. Normas gerais de direito
financeiro. Conclusão.

• O problema da autonomia dos governos locais, para ser sufi-


cientemente examinado dentro do ponto de vista em que o situamos,
de suas limitações, exige a fixação de certas idéias prévias.
Evidente é que o tema se presta a tratamento segundo diferentes
métodos de apreciação, envolvendo não só o desenvolvimento de con-
ceitos ontológicos, como de ponderações de ordem axiológica.
A apreciação que aqui se fará, porém, será restrita à colocação
do assunto sob o seu aspecto jurídico, ou seja, sob o aspecto de sua
análise em face de uma ordem jurídica concreta.
2. Dentro dêsse teor de idéias, parece-nos que a questão da auto-
nomia dos governos locais, em sua plenitude, só possa, essencialmente,
ser objeto de cogitação como peculiaridade do sistema federativo de
organização do Estado.
É verdade que, nos Estados unitários descentralizados territorial-
mente mediante a instituição de governos regionais independentes, 1
o problema, eventualmente, é passível de discussão. 2 Os exemplos do

• NOTA DA RED.: Trabalho apresentado às Primeiras Jornadas Latino-Ameri.


canas de Derecho Tributário.
1 A doutrina italiana costuma qualificar êste tipo de Estado unitário sob o
nome de Stato regionale; cf. Ferrucio Pergolesi. Diritto Costituzionale, 1949. pág. 67
2 Cf. Vicenzo Sica. Contributo alia teoria della Autonomia Costituzionale, 1951;
Pietro Virga. La regionll, 1949; Antonio Amorth. Lineamenti della organizzazione ammi.
nistrativa italiana, 1950. pág. 49; Giovanni Miele. La regionl!, in Commentario
mstematico alia costituz;one italiana, dirigido por Pietro Calamandrei e Alessandro Levi,
1950. voI. 8.°, pág. 285; Ferrucio Pergolesi. Diritto Costituzionale, 1949. pág. 67;
:tIÔbre a questão da autonomia como elemento diferenciador entre Estado unitário e
-2-

Uruguai e, especialmente, da Itália, poderiam, no particular, ser apon-


tados.
Importa acentuar, todavia, que mesmo nesses casos o poder loca!
de autodeterminação é de tal forma tênue que mais apropriado seria
conceituar os órgãos locais assim instituídos como formas qualificadas
de descentralização administrativa, do que como modalidades de mani-
festação de autonomia plena de órgãos estatais.
O Poder Legislativo de que dispõem essas entidades territoriais
locais, efetivamente, mais aproximado fica da atividade normativa de
índole regulamentar. 3
N o caso particular da Itália, as regiões exercem, realmente, uma
atividade normativa mais ampla na disciplina dos interêsses locais,
para tanto existindo uma discriminação constitucional de compe-
tências. 4
Ainda assim, às regiões italianas falece aquêle caráter de incon-
trastabilidade que é essencial ao conceito de autonomia, pôsto que tanto
o seu estatuto básico,5 como as demais leis expedidas pelos conselhos
regionais, estão sujeitos a um contrôle prévio, não só de legitimidade
quanto de mérito, por parte do poder central. 6
Detivemo-nos na indicação das regiões italianas, exatamente porque
elas traduzem um dos modelos mais avançados de descentralização ter-
ritorial em Estado unitário.
Não nos parece, pois, que a questão da autonomia dos governos
locais possa, em tôda a sua plenitude e extensão, ser equacionada em
face de um sistema unitário de organização do Estado, mesmo quando
se esteja em presença daquele tipo qualificado a que os italianos dão
o nome de Estado regional.
3. Importa, portanto, nessa ordem preliminar de considerações,
indicar o que se entende por autonomia de govêrno local, para os fins
a que se destina a presente exposição.
O conceito de autonomia, como se sabe, é polêmico. As amplas
explorações feitas em tôrno dêle, especialmente pelos publicistas germâ-
nicos e italianos, não chegaram a levar a uma conclusão harmoniosa
e pacífica.
A nosso ver, a sua configuração depende da integração de dois
momentos: o momento subjetivo e o momento objetivo.
É mister que haja uma entidade autônoma, no sentido de que se
trate de um ente com personalidade jurídica própria, descentralizado,
destacado institucionalmente.

federativo. cf. G~orges Burccau. Trai;é de Science Poliliqu~. 1949. tomo E. págs. 35;-
e seg.; Carré de Malberg. Teo'ía General dei Estado, trad. 1949. pág. 169 e sego
3 Amortb. op. cit .. pág. 49. embora qualifique de legislativa a atividade nor·
mativa das regiões italianas. acrescenta que essa forma de atuação é de índole restritíssima:
una potestà legislativa spetta invpce alia Regione, ma in un ambito assai lim:tato P
sempre da esplicarsi in armonía con I' ordinamen!o giu,idico generale dcUo StcIO.
4 Art. 117 da Constituição italiana.
5 Art. 123 da mesma Constituição.
6 Art. 127 do aludido texto básico.
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1!:sse elemento, por si só, não bastaria, porque êle é comum àg


diferentes formas de descentralização administrativa.
Necessário se torna, conseqüentemente, que êle se conjugue com
um elemento objetivo, qual seja o da titularidade de um poder norma-
tivo pleno e incontrastável, um poder de autodeterminação ou de pro-
dução de norma jurídica, independente e próprio. 7
No Estado unitário, mostramos que isso não é possível, porque,
mesmo no de tipo descentralizado e regional, há uma preocupação pre-
ponderante de assegurar o princípio unitário, que conduz à presença
inevitável do poder central em todos os atos normativos de autodeter-
minação dos entes locais, presença que se manifesta não só através de
um contrôle de legitimidade, mas, também, de um contrôle ou ajuiza-
mento político a respeito do próprio mérito do ato.
4. O campo de eleição, portanto, para o estudo do problema da
autonomia local é o sistema federado.
O que o caracteriza é, exatamente, a conjugação, em um só Estado
soberano, de entidades autônomas, titulares de competências próprias
para autodeterminar-se, sem sofrerem, em princípio, a injunção do
govêrno central. É certo que tal independência conceitual dos governos
locais não é absoluta. A própria federação reconhece a legitimidade do
exercício de competências concorrentes com a preferência do poder
federal sôbre o poder local. A concorrência, todavia, é um dos critérios
de distribuição de competência legislativa, vindo, sempre, acompanhada
de uma área de competência privativa dos governos locais. Há formas
indiretas de incursão do govêrno central no campo reservado aos entes
locais. O expediente dos grants-in-aid, tão difundido na república
norte-americana, seria a fórmula mais adequada para essa modalidade
de penetração federal. Tal fato, embora à luz da ciência política suscite
fundadas dúvidas e objeções a propósito de sua compatibilidade com
o princípio federativo, é, juridicamente, irrelevante, para servir de
objeção à autonomia local, de vez que é a própria comunidade benefi-
ciária dos subsídios quem, no livre ajuizamento dos interêsses que lhe
compete disciplinar, incorpora ao seu ordenamento jurídico as estipula-
ções estabelecidas para a concessão do auxílio.
Essencialmente, portanto, coexistem na federação competências
partilhadas entre entidades locais e entidade central, tôdas elas caracte-
rizadas, em princípio, pela incomunicabilidade das áreas respectivas.
Ao govêrno central caberá tôda matéria que diga respeito ao inte-
rêsse geral, ficando com os poderes locais os assuntos restantes, todos
êles reputados, assim, de interêsse local ou considerados passíveis de
determinação pelos particularismos regionais.

7 Sôbre a ampla discussão do conceito de autonomia. cf. a obra citada de Vicenzo


Sica. especialmente. às págs. 19 a 74.
8 Cf. Harold M. Greves. Financing Government, 1954. pág. 375: The alterna-
tive to a federal ~ystem in a unitary state, exemplified by Great Britain. All power
in this case is lodged with the central government, thought it can and does g-ant a
large measure of home rule. But the fede~al system creates an intentional inflexibility:
ir msures local autonomy against power - hungry leadership at the cont.al levei.
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Examinado o sistema federativo, sobretudo no seu esquema inicial,


'0 que o caracteriza é essa ênfase especial dada aos particularismos
locais, na medida em que não molestem a unidade nacional, a configu-
ração do todo como Estado soberano.
Realizar e assegurar a unidade humana, jurídica e econômica de
tôda a nação, resguardando, todavia, com essa ressalva, o livre ajuiza-
mento e a ampla disciplina dos interêsses e particularismos locais, eis
'O objetivo que se procura atingir através da fórmula federativa. 9
Todo o problema, no desenvolvimento dêsse esquema, está no modo
'de atuação das diferentes competências em confronto, no sentido de
resguardar a efetividade daquele dúplice desideratum, daquela dupla
ordem de valores.
Concretamente, a evolução do regime tem-se feito sentir na direção
do engrossamento das competências da entidade central, o que leva
alguns escritores a duvidar da persistência, em dias atuais, do próprio
sistema, 10 ou, pelo menos, a afirmar que a fórmula do federalismo
dualista se teria tornado anacrônica, substituindo-se pela do chamado
neo-federalismo, em que a autonomia dos entes periféricos ficaria redu-
zida ao que lhes permitisse a interpretação dinâmica das competências
federais, feita pelo legislativo federal e pelo judiciário com fundamento,
inclusive, em apreciações de oportunidade. l1
N a verdade, essa ampliação dos poderes da federação decorreu,
não de uma invasão ou usurpação das prerrogativas locais, mas, da
revisão dos conceitos do interêsse local ou nacional, determinantes da
própria distribuição das competências. 12
É que o interêsse local, como nota Burdeau, não se define, apenas,
pela incidência que sôbre êle têm os parlicularismos regionais, pôsto
que todo interêsse público é geral. Para definir o bem público local
e, assim, distingui-lo do bem público geral "importa acrescentar, ao
interêsse que o concretiza, a aptidão da coletividade para satisfazê-Io".13
5. Deriva, daí, a teoria dos poderes implícitos (implied powers
dos americanos do norte, Verfahren der Konsequenz e método da inver-
são dos suiços).
9 Cf. Charles Durand. Confédération d'États et État Féderal, 1955. pág. 51:
La raison d'être politique d'un tel systeme c'est que l'en désire simultanémenr satisfaire
les besoins et les intérêts communs à toutes ces collectivirés fédérés (Paix. sécurité et.)
et laisser a chacune. erJ d' autres domaines ou leurs intéréts matériels Itt leurs aspirations
morales peuvent différer, toute I' autonomie compatible avec la réalisation des butll assignés
d la fédérations entiere.
10 Cf. Roger Pinto. La crise de I'État aux États Unis. 1951. pág. 22. apreciando
a situação norte-americana. diz que os Estados. ali. não são. hoje. mais do qUe simples
províncias.
11 Cf. referência em Durand. op. cit .• pág. 145.
12 Judioliosa. no particular. é a ponderação feita a propósito da evolução da interstare
commerce clause do direito constitucional norte-americano por Lane W. Lancaster in God-
shal!. Principies and practices of govemment in the United States, 1948. pág. 11 I :
It is unrealistic to speak of these extensions of federal power as • usr.:rpations" or the
reaults of the schemes of unrighteous and designing men in Washington.
The power to do ali these things is implicit in the word -regulate". What haa
changed ia not the power but the incidents of tralfic and intercourse in a modem nation.
13 Cf. op. cit .. tomo 11. pág. 356.
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o resultado a que se chega é o de que competem à entidade federaI~


não só os poderes que lhe sejam expressamente concedidos, mas, ainda,
todos os que se reputem meios idôneos para a consecução das finalida-
des confiadas à federação.
É à luz dêsse princípio que irá ser apreciado o problema, a cujo
desenvolvimento nos propusemos, das limitações implícitas à autonomia
local em matéria tributária, dentro de um sistema de discriminação
rígida de rendas.
6. É evidente que seria enganosa tôda concessão de autonomia a
determinada comunidade política, se, concomitantemente, não se lhe
assegurasse o necessário poder de autodeterminação, no que respeita
à obtenção dos meios financeiros, para o custeio dos seus serviços.
Dos diferentes processos existentes, o da discriminação rígida
parece-nos ser o mais apropriado. Objeta-se-Ihes a circunstância de,
pelo mesmo da sua rigidez, impedir uma desejável flexibilidade ou
elastério das finanças públicas, a fim de moldar a receita às variações
contingentes da despesa pública.
Talvez, em tese, a objeção seja verdadeira.
Pràticamente, porém, o que importa considerar é que a boa ou
má qualidade de uma discriminação tributária não se determina pelo
número de fontes tributárias que ela outorgue, senão pela qualidade
dos tributos distribuídos.
Desde que atendido êsse requisito da suficiência da receita tribu-
tária discriminada, não há por que preferir-lhe o sistema mais elástico
da não discriminação, ou da discriminação parcial, com predominância
do campo concorrente, que padecem do inconveniente de tornar inatin-
gível a verificação da capacidade econômica dos contribuintes, além
de ensejarem a superposição condenável de competências impositivas.
Confrontando-se com os demais sistemas, o da participação em
produto da arrecadação de tributos, o da concessão de adicionais e o
das subvenções (Matrikular - Beitrage), a vantagem do sistema rígido
é manifesta, pela maior independência e autodeterminação que oferece. H
Demais disso, a alegada rigidez do sistema pode ser de certa forma
superada, desde que, ao lado da enumeração exaustiva, seja aberta
uma margem para o exercício de competência concorrente, como faz
a Constituição brasileira de 1946, no que toca à União e aos Estados.
De qualquer forma, êsse aspecto não interessa, diretamente, ao
tema que nos propusemos desenvolver.
7. A discriminação rígida de tributos é o critério pelo qual se
atribuem, rigidamente, através de exaustiva enumeração, fontes de

1.. Sôbre a ampla discussão dessa matéria, cf. C. A. de Carvalho Pinto, Discrimi-
nação de Rendas. 19 .. 3. especialmente à pág. 52; Aliomar Baleeiro. Uma Introdução
d Ciência das Finanças. voI. I. pág. 295; Wilhelm Bickel. in W. Gerloff e F. Neumark.
Handbuch der Finanswiuenschaft. 1956, voI. 2.°, pág. 7 .. 2; A. Buehler, Public Finance.
19.. S. pág. 60S.
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receita a várias competências do mesmo Estado, a fim de lhes garantir


autonomia política. 15
O sistema mais perfeito de discriminação de rendas, na atualidade,
talvez seja o vigente no Brasil, adotado pela Constituição federal
de 1946.
A fim de facilitar a discussão, tomá-Io-emos como ponto de refe-
rência.
O critério seguido foi o de atribuir competência concorrente para
a instituição das taxas e da contribuição de melhoria (art. 30 da
Constituição) .
Quanto aos impostos, partilharam-se, por expressa e exaustiva
indicação nominal, as competências entre a União, os Estados e os
Municípios (arts. 15, 19 e 29), conferindo-se aos dois primeiros, ainda,
competência concorrente para criar outros impostos não previstos, sob
a dupla ressalva de que o impôsto federal excluiria o estadual idên-
tico e de que a sua arrecadação competiria, sempre e exclusivamente,
aos Estados, que entregariam parte de seu produto, respectivamente
20% e 40 7'c , à União e aos Municípios (art. 21 da Constituição).
Acrescentou-se, ainda, a possibilidade de transferência de impostos
pelos Estados aos Municípios.
8. Evidente é que a autonomia assegurada pelo sistema federativo
aos entes que integram a federação, é plena, no exercício do poder
tributário que lhes fôr conferido.
Essa plenitude lhes assegura a qualidade não só para disciplinar
legislativamente os tributos próprios, como para exercitar as ativida-
des administrativas ligadas à arrecadação e fiscalização.
N esse sentido, cada entidade local poderá, dentro do âmbito de sua
competência, legislar livremente sôbre o fato gerador dos tributos que
instituir, definir-lhes a alíquota e a base de cálculo, regular a sua fisca-
lização, lançamento e arrecadação e disciplinar as regras relativas ao
correlato processo administrativo fiscal.
Naturalmente, essa plenitude de ação fica limitada pelas normas
proibitivas expressamente estabelecidas pela Constituição.
O que resta verificar é até que ponto chega a autonomia local em
11iatéria tributária de sua competência e quais as limitações que sofre,
além das contidas nas vedações constitucionais expressas.
9. O problema da interpretação dos dispositivos constitucionais,
relativos à partilha tributária, é o primeiro que se oferece a debate.
De que modo podem os governos locais, dentro da autonomia que
se lhes concede para a eleição, definição e caracterização do fato gera-
dor e respectiva base de cálculo dos tributos de sua competência, inter-
pretar os dispositivos constitucionais relativos à discriminação de
rendas?
A questão proposta é realmente delicada, mesmo porque a sua
solução envolverá não só uma tomada de posição em tôrno do tema
15 Confere Aliornar Baleeiro, in Discriminação de Rendas, publicação n. o 1 do
Instituto Brasileiro de Direito Financeiro, 1953, pág. 30.
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polêmico da interpretação em direito tributário, como ainda porque,


por via de conseqüência, poderá ensejar uma limitação externa da pró-
pria autonomia local pela via da expedição de normas federais traçando
princípios de regulamentação e regras de atuação da própria distribui-
ção de competências.
Duas condições são essenciais, dentro da concepção moderna, para
a interpretação da lei tributária: 1.0 - que ela assegure o requisito
de certeza e legalidade do tributo, de tal forma que o intérprete e o
aplicador não fiquem autorizados a inovar ou alterar os preceitos dita-
dos pelo legislador, na caracterização e definição da própria estrutura
do tributo; 2.° - que os tributos se adaptem, se amoldem, à capacidade
econômica daqueles que irão pagá-los, não se tolerando que o contri-
buinte possa, por via de uma deformação de fórmulas jurídicas, alterar
o próprio esquema traçado pelo legislador para a incidência e cobrança
dos tributos.
Ora, é na conjugação dêsses dois postulados que reside todo o
debate em tôrno da interpretação da lei tributária.
Essencialmente, o tributo nada mais é do que uma categoria de
substância econômica: ocasiona a transferência de bens ou valores
econômicos do setor privado para o estatal, a fim de ensejar o custeio
das despesas e a manutenção dos serviços públicos.16
Os pressupostos estabelecidos para a incidência, em cada caso,
traduzem, conseqüentemente, índices de capacidade econômica adotados
pelo legislador para que a prestação tributária ocorra.
J á se vê que o fator relevante para a instituição do tributo não
é a forma jurídica por que se exteriorize o fato gerador, mas, a reali-
dade econômica, ou seja, a relação econômica que se efetua sob aquela
forma externa.
A alusão à forma jurídica, portanto, representa uma fórmula
elíptica através da qual, por motivos de concisão léxica, se pretende
exprimir a relação econômica nela subjacente.
Dentro dêsse teor de idéias, parece irrepreensível a aptidão do
intérprete e do aplicador a desenvolver considerações econômicas
(wirtschaftliche BetrachtungS'Weise) na exegese da lei tributária, de
modo a tornar concreto, dentro do esquema por esta adotado, o postu-
lado, aludido por Vanoni, de que a igual situação corresponda tributo
igual. 17
Desde, pois, que o contribuinte, com o objetivo de escapar à tribu-
tação, altere a forma jurídica típica para a realização de determinado
resultado econômico e adote outra anormal, inapropriada, que lhe possi-
bilite a obtenção do mesmo resultado prático, legítimo será considerá-lo
16 Cf. Ernst Blumenstein. Gegenseitige Beziehungen zwischen Zivilrecht und
-Steuerrecht, in Zeitschrift fur Schweizerisches Recht, Band 52. Heft 4. 1933, pág. 146-a
e 147 -a: Der Ausgangspunht der Steuer ist an sich kein juristischer, sondem rein wirt-
.schaftlicher. Die Steuer stellt tatbestiindlich eine Oberführung von Wirtschaftsgütem aus
der Einzelwirtschaft in die staatliche oder kommunale Gesamtwirtschaft zur õkonomischen
Ermõglichung der Erfüllung õffentlicher Aufgaben dar.
17 Cf. Natureza e Interpretação da Lei Tributária, trad. de Rubens Gomes de
Sousa. pág. 24.
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sujeito à incidência fiscal, sem que isso importe na alteração do esque-


ma jurídico fixado pelo legislador.
Verdadeiramente, o que aí existe é a recíproca do dever de legali-
dade a que está sujeita a própria Administração: se o esquema legal
da tributação é vinculante para o Estado, não há por que deixar de
sê-lo para o contribuinte. Há uma decisão da Côrte Suprema norte-
-americana em que isso é dito de modo magistral: "To hold otherwise
would permit the schemes of taxpa,yers to supersede the legislation in
the determination of time and manner of taxation".18
Alguns autores, como Griziotti e Schlegel, têm levado essa orien-
tação a extremos que não nos parecem aceitáveis, admitindo o primeiro
a legitimidade de uma interpretatio abrogans e o último sustentando
que a interpretação deve ser combinada, em direito tributário, com
o desenvolvimento de conceitos e considerações de justiça (Gerechtig-
keit) por parte do exegeta. 19
Concretamente, o que particulariza a interpretação em direito
tributário não é a possibilidade de fazerem-se correções da lei tributá-
ria e dos critérios por ela adotados, e sim a possibilidade de desenvol-
verem-se considerações econômicas em tôrno da consistência do fato
gerador tal como disciplinado e caracterizado pelo legislador, para
o fim de dar à intenção dêste plena e total aplicação. 20
N esse sentido, os governos locais são livres de, no pleno exercício
da sua autonomia tributária, formular, livremente, os conceitos eco-
nômicos apropriados para interpretar dispositivos de caráter tributário.
10. O sistema de discriminação rígida de rendas, entretanto, vem
trazer uma restrição à autonomia local, no particular.
Procurando-se, por êsse sistema, segregar as diferentes competên-
cias tributárias da federação e dos governos periféricos, resulta evi-
dente que o objetivo constitucional foi evitar concorrência sôbre os
tributos discriminados.
Para que isso se concretize, mister se fará que a interpretação
dos preceitos constitucionais relativos à partilha da competência tribu-
tária seja estrita, sob pena de inutilizar-se ou tumultuar-se a própria
distribuição de rendas.
Não poderão os governos locais, quer normativamente, quer pela
via da aplicação, exercitar uma interpretação em matéria tributária
que, embora seja legítima dentro daquele esquema da chamada wirt-

18 Caso Higgins v. Smith. apud Dino Jarach. El Hecho Imponible. 1943. pág. 68.
nota 86.
19 Sôbre o primeiro. cf. B. Griziotti. Saggi sul Rinnovamento dello Studio della
Scimza delle Finanze e dei Diritto Finanziario, 1953. pág. 418 a 437. e a crítica que
lbe fazem Aster Rotondi. Spigolature di Giurisprudenza in Rapporto alia cosi della In-
rerpretazione Funzionale delle Leggi Tributarie, in Archivio Finanziario. vol. 11 (1951).
pág. 465. n.o 6. e Antonio Berliri. Principi di Diritto Tributario. 1952. vol. I. pág. 81:
o pronunciamento de Eugen Schlegel está desenvolvido na sua obra Wirtschaftliche Be-
trachachungsweise im Steuerrecht, 1946. pág. 12 e segs.
20 Para o maior desenvolvimento da matéria. cf. Amílcar de Araújo Falcão. In-
t~rpretação e Integração da Lei Tributária, in Revista de Direito Administrativo. vol. 40.
pág. 24.
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schaftliche Betrachachtungsweise, venha acarretar uma deslocação da


implantação constitucional do tributo, tal como rigidamente fixada no
texto constitucional.
A matéria, efetivamente, tem suscitado discussão, havendo os que
sustentam a opinião oposta como sendo a única que se compatibiliza
com o regime federativo 21 e os que sustentam a tese por nós acolhida
e que, aliás, é a predominante no direito brasileiro. 22
O ponto nevrálgico da questão reside, exatamente, na interpretação
a ser dada à partilha constitucional, no que respeita a impostos cujo
fato gerador é designado pela indicação de conceitos regulados pelo
direito privado (vendas e consignações, transmissão de imóveis inter-
-vivos, transmissão causa-mortis, etc.).
Ora, para tomar o exemplo do Brasil, convém lembrar que, segun-
do a Constituição, compete à União decretar impostos sôbre atos
regulados por lei federal, salvo os que são indicados como pressuposto
da competência dos Estados e Municípios, ou aquêles em que sejam
parte a União, os Estados ou os Municípios. O impôsto de transmissão
imobiliária inter-vivos, todavia, é de competência dos Estados. Como
admitir-se uma interpretação econômica, no particular, para considerar
que o impôsto de transmissão inter-vivos incidiria sôbre as cessões de
promessas de compra e venda de imóveis, quando tais atos, regulados
por lei federal, como todos os demais atos de direito privado, são
pressuposto para o exercício da competência impositiva federal?
Em resumo, entendemos que a autonomia local em matéria tribu-
tária sofre uma limitação, no que respeita à interpretação a ser dada
aos dispositivos contidos na partilha tributária, interpretação essa que
há de ser estrita.
11. Matéria imediatamente correlata com essa é a que diz respei-
to à competência federal para legislar sôbre normas gerais de direito
financeiro, que abranjam, inclusive, uma regulamentação dos preceitos
constitucionais que estabelecem a discriminação de rendas.
Não resta dúvida que o objetivo da discriminação rígida é, efetiva-
mente, segregar as competências tributárias atribuídas.
O assunto é daqueles que exigem uma determinação uniforme.
É verdade que todo o problema estaria superado se a discriminaçãO'
se fizesse, como nos parece preferível, pela indicação do fato gerador
de cada tributo.
Ocorre, porém, que a técnica que tem sido adotada é a de usar
uma discriminação nominalista ou predominantemente nominalista,
isto é, a de indicar cada competência pela menção de um nomen fum ..

21 Entre êsses. menciona-se Carlos da Rocha Guimarães. verbete Direito Fínanceíro r


in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. dirigido por J. M. de Carvalho Santos.
Tal. 16. págs. 228 e sego
22 Cf. Gilberto de Ulhôa Canto. Parecer. in Revista de Direito Administrativo.
vaI. "'3. págs.... 88 e seg.; igualmente. a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a
rapato da inconstitucionalidade da extensão do impôsto de transmissão inter-vivos à$
casões de promessa de venda de imóveis.
-10-

Isso não altera o caráter da segregação das fontes, porque a cada


nomen juris utilizado há de corresponder a determinação jurídica de
um fato gerador adequado. 23
Assim sendo, ficará com a União a competência para, em têrmos
gerais e uniformes, mas, de qualquer forma suficientes para o desen-
volvimento do sistema, traçar normas gerais do direito financeiro vin-
culantes dos governos locais e traduzidas por princípios de regulamen-
tação e de atuação, a fim de que opere, em sua plenitude, a discrimina-
ção de rendas.
Essa tem sido a orientação prevalente no Brasil, cuja Constitui-
ção confiou à União a competência, supletivamente partilhada pelos
Estados, para legislar sôbre normas gerais dessa espécie.
A elaboração de um diploma dessa ordem encontra-se em curso
no Legislativo, consagrando aquelas idéias.
Mesmo que expressa não fôsse a competência federal, parece-nos
que seria possível legitimá-Ia como manifestação de poder implícito
contido no expresso de legislar sôbre o comércio interestadual, ou mes-
mo sôbre direito civil e comercial, tôda vez que a Constituição adotasse
o critério de aludir a conceitos de direito privado.
12. Dentro dessa mesma competência federal para legislar sôbre
normas gerais do direito financeiro, ou como poder implícito, caberá à
União traçar outras tantas normas de regulamentação do texto consti-
tucional, necessárias à uniforme e regular atuação em todo o território
nacional dos princípios relativos à matéria tributária.
O único requisito para que tal ocorra será a necessidade de uma
regulamentação uniforme em todo o território do país, ou a circunstân-
cia de sua inexistência propiciar embaraços ou óbices relevantes à uni-
dade econômica e territorial da federação.
13. Dentro do campo de incidência dos poderes implícitos federais,
duas novas limitações podem ser apontadas à autonomia local.
A primeira delas é a que provém da utilização do poder de regular
o comércio interestadual, para dirimir eventuais conflitos especiais de
leis tributárias dos governos locais.
Nesse particular, antes mesmo da atual Constituição e da existên-
cia de poder expresso federal para legislar sôbre normas gerais de
direito financeiro, o Brasil já se utilizava da cédula interestadual, para
dispor sôbre matéria tributária com projeção nas relações entre os
Estados. 24

23 Cf. Rubens Gomes de Sousa, Relatório da Comissão Especial do Código Tri-


butário Nacional, no volume "Trabalhos da Comissão Especial de Código Tributário
Nacional", publicado prlo Ministério da Fazenda, 1954, pág. 89.
24 Cf. os decretos-leis federais ns. 915, de 1-12-1938 e 1.061. de 20-1-1939,
a respeito do lugar em que é devido o impôsto de vendas e consignações (de competência
~os Estados), quando as mercadorias são transferidas de uns para outros Estados. Atual-
men~, transita na Câmara Federal projeto de lei, da autoria de Aliomar Baleeiro, tra-
çando princípios de direito inter-local. em condições idênticas, a respeito do Impôsto de
Indústrias e Profissões (de competência dos Municípios).
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Outro ponto sumamente delicado é o da competência federal para,


.no exercício dos seus poderes implícitos, dispor de modo inibitório das
competências locais, concedendo isenções ou reduções de impostos que
-pertencem àquelas últimas.
Quando se trate de matéria de ordem internacional, parece-nos que
está contido no poder expresso da União, de manter relações com os
demais países, regular o comércio exterior e firmar tratados e conven-
ções internacionais, impllcitamente, o de conceder isenções e reduções
de tributos da competência das entidades periféricas.
De outro modo, ficaria reduzida aquela competência federal e
obstada uma via de entendimento com as demais nações, em detrimento
de interêsses gerais cuja disciplina se quis entregar ao órgão central,
exatamente para que não sofressem a incidência de parlicularismos
regionais.
Quando, porém, se trate de matéria de ordem interna, entendemos
que tais incursões federais só podem ser decididas cautelosamente.
Quando a lei federal, assim procedendo, estiver adotando medida que
se afigure relevante para a prevalência de diretrizes da economia nacio-
nal, relativas à produção, ao consumo ou ao comércio, admitimos que
seja legítima a utilização de poderes implícitos contidos naqueles expres-
sos, desde que as isenções ou reduções se apresentem com o caráter de
generalidade e abranjam, também, os impostos federais.
É magistral, no particular, a lição de Aliomar Baleeiro: "Parece-nos
que se há de reconhecer como poder implícito da União o de recorrer
a todos os meios eficientes para realização de seus fins, que abraçam e
confundem-se com os interêsses peculiares dos Estados e Municípios.
Os impostos podem comprometer, fundamente, êsses fins, de sorte que
a isenção por lei federal, como meio de resguardá-los, torna-se impera-
tivo da necessidade. .. mas, evidentemente, o exercício dêsses poderes
é restritíssimo àqueles casos em que o impôsto revele, pela análise eco-
.nômica dos seus efeitos, à luz da ciência das finanças, antagonismo
com o fim que a União deseja e deve, constitucionalmente, defender
e preservar". 2!)
14. É chegado o momento de concluir. O esfôrço desenvolvido na
presente exposição foi no sentido de encontrar as limitações propostas,
principalmente, fora do campo dos poderes expressos. Não resta dúvida
de que a tarefa teria sido amplamente facilitada, se entendêssemos de
tomar como ponto de partida a competência para legislar sôbre normas
gerais de direito financeiro, que, no direito positivo brasileiro, é confe-
rida à União e supletivamente aos Estados.
O objetivo, porém, ao relegar-se a plano secundário êsse elemento
e orientar-se a análise em tôrno dos poderes implícitos da União, terá
tido, entre outros resultados, o de dar um sentido mais concreto ao
próprio conceito de normas gerais, num dos aspectos, exatamente, em
que êle é mais debatido.

25 Cf. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 1951, págs. 106 e 107,


-onde estão indicados, também, pronunciamentos jurisprudenciais e precedentes legislativos.
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15. Tendo em vista a limitação dada ao próprio tema versado,


evitou-se, igualmente, o exame das limitações expressas no texto consti-
tucional ao poder tributário dos órgãos locais.
Vimos, assim, que, além dessas, outras tantas estão implícitas na
cédula federal de competência.
16. Resumimos, pois, as conclusões a que teremos chegado:
a) o sistema federativo é o único que oferece, resguardados os
princípios relativos à unidade jurídica, humana e econômica de tôda
a federação, autonomia incontrastável aos governos locais;
b) tal autonomia, em país em que vigore o regime de discrimí-
nação constitucional rígida de rendas, é plena em matéria tributária,
no sentido de que os governos locais podem, em princípio, dispor com
exclusividade, para regular a instituição de cada tributo que lhes fôr
atribuído;
c) tal plenitude não excluirá, porém, a competência normativa de
uma entidade central coordenadora, o Govêrno federal, tôda vez que
estiverem em cogitação: 1.0 - poderes implícitos em outros expressos
da mesma entidade central coordenadora; 2.° - regulamentação de pre-
ceitos constitucionais disciplinadores da partilha tributária e, assim, a
própria conceituação dos fatos geradores indicados como pressupostos
para o exercício das competências impositivas discriminadas; 3.° -
fixação de normas gerais de direito financeiro, quando expressa tal
competência, abrangendo, inclusive, os aspectos aludidos; 4.° - par-
ticularmente, o estabelecimento de regras de direito tributário inter-
local;
d) a interpretação da lei tributária deve ser ampla, incluindo o
desenvolvimento de considerações econômicas por parte dos governos
locais, para configurar o fato gerador de cada tributo próprio;
e) todavia, hão de ser de interpretação estrita, fixável, inclusive
pelo Govêrno federal em caráter normativo, as questões e preceitos
relativos aos pressupostos (fatos geradores) constitucionalmente indi-
cados para a distribuição das competências impositivas.

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