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Imagens, diagramas e metáforas: uma contribuição da

semiótica para o design da informação


Priscila L. Farias

Palavras-chaves: pictogramas, ícones, hipoícones, semiótica

Resumo
Este artigo introduz os conceitos de ícone, hipo-ícone, imagem, diagrama e
metáfora conforme definidos pela semiótica de Charles S. Peirce, tendo em
vista a possibilidade de aplicação destes conceitos na análise dos sistemas
de informação visual conhecidos como sistemas de pictogramas, ícones ou
símbolos gráficos em design da informação. Ele apresenta um breve
exemplo deste tipo de análise, e algumas considerações a respeito da
possibilidade de aplicar estes conceitos no processo de criacão de tais
sistemas.
Images, diagrams and metaphors: a contribution from
semiotics to information design
Priscila L. Farias

Keywords: : pictograms, icons, hipoicons, semiotics

Abstract
This paper introduces the concepts of icon, hipoicon, image, diagram, and
metaphor as defined within Charles S. Peirce’s semiotics, and discusses the
possibilities of applying those concepts to the analysis of the visual
information systems known as pictograms, icons or graphic symbols
systems in information design literature. It presents a brief example of this
kind of analysis, and considers the possibilities of applying those concepts in
the process of creation of such systems.
Introdução

Em design gráfico e da informação, pictogramas são entendidos como


símbolos gráficos, muitas vezes figurativos, que representam visualmente
objetos, ações ou conceitos, preferivelmente sem recorrer à linguagem
verbal. O termo ‘ícone’ é muitas vezes empregado no mesmo sentido
(Westendorp & van der Waarde 2001:91), sendo que isso é mais recorrente
em design para mídias digitais (Caplin 2001). Em alguns casos, pictogramas
e ícones são descritos como um tipo de diagrama (Bounford 2000: 24-29),
outras como um tipo de símbolo (McLaren 2000, Brigham 2001, Olgaway
2001, Young & Wogalter 2001).

Na semiótica de Charles Peirce, encontramos estes mesmos termos (com


excessão de ‘pictograma’), descritos, porém, de forma um pouco diferente,
correspondendo a conceitos definidos de forma bastante rigorosa. Podemos
dizer que Peirce, o fundador da semiótica de linhagem anglo-saxã, foi
também um dos primeiros autores a se dedicarem ao estudo das
possibilidades comunicativas dos ícones, e por extensão dos pictogramas,
ou dos sistemas de símbolos gráficos.

A divisão dos signos entre ícones, índices e símbolos é bastante conhecida


pelos estudantes de semiótica. Poucos estão familiarizados, contudo, com
uma passagem de seu Syllabus de 1903 (CP 2.276-277, EP2: 273-274) que
trata da diferença entre ícones e hipo-ícones, e onde se propõe uma
tipologia destes últimos. Este artigo sugere que a compreensão deste
aspecto pouco comentado da semiótica Peirceana possa contribuir para os
estudos de design da informação, fornecendo uma reflexão a respeito da
natureza e das possibilidades expressivas das representações visuais
informativas.

O modelo de signo de Charles S. Peirce

Peirce forneceu diversas definições de ‘signo’ em sua obra —algumas mais


técnicas, outras mais didáticas. Neste artigo, adotaremos a seguinte
definição:

Um Signo é um ‘primeiro’ que estabelece algum tipo de relação genuína com um


‘segundo’ (seu Objeto), de modo a determinar um ‘terceiro’ (seu Interpretante).
(Farias 2002: 14)

Esta é a base do modelo de signo de Peirce, formado por uma relação


lógica indecomponível entre 3 termos: Signo (S), Objeto (O) e Interpretante
(I) (figura 1). Isto significa que qualquer processo sígnico implica na
presença destes três elementos.
Figura: O modelo triádico do signo peirceano.

Os termos ‘primeiro’, ‘segundo’ e ‘terceiro’ corrspondem às categorias


universais que fundamentam a semiótica de Peirce. Na história da filosofia
ocidental, encontramos diversos autores que se dedicaram à elaboração de
doutrinas de categorias —articulações de um certo número de conceitos ou
aspectos universais, presentes em todo tipo de fenômeno— similares à de
Peirce. Entre eles, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel.

Em 1868, em um artigo intitulado “On a new list of categories” (CP 1.545-


559, W2: 49-59), Peirce apresenta pela primeira vez sua doutrina das
categorias, nomeando-as:

Qualidade (referência a um fundamento),

Relação (referência a um correlato) e

Representação (referência a um interpretante)

(CP 1.555, W2: 54)

Em 1896, em um artigo sobre a lógica da matemática, Peirce descreve as


três categorias da seguinte forma:

A primeira compreende as qualidades dos fenômenos, tais como vermelho,


amargo, tedioso, duro, tocante, nobre; […]

A segunda categoria de elementos dos fenômenos compreende os fatos atuais


[…]

A terceira categoria de elementos dos fenômenos consiste naquilo que


chamamos de leis quando contemplamos do lado de fora somente, mas que
quando podemos observar de ambos os lados do escudo chamamos de
pensamentos. (CP 1.418-20)
Algumas outras definições encontradas nos Collected Papers (CP 1.532-33,
3.422, 6.202 e 8.330) para as categorias são as seguintes:

• Primeiridade: possibilidade, espontaneidade, acaso, sentimento

• Secundidade: existência, dependência, reação bruta, ação

• Terceiridade: mentalidade, mediação, continuidade, razão

Conforme veremos, estas três categorias estarão presentes tanto na


definição dos três modos como o signo pode se relacionar com seu objeto
(enquanto ícone, índice ou símbolo), quanto na divisão dos ícones
atualizados (ou hipo-ícones) em imagens diagramas e metáforas.

Ícones, índices e símbolos

Em “On a new list of categories” (CP 1.558, W2: 56) Peirce define três tipos
signos, a partir do tipo de relação que mantêm com seus objetos. Sempre
de acordo com sua doutrina das categorias, ele chama os primeiros, cuja
relação está baseada em simples qualidades que ambos têm em comum,
de ‘likenesses;’ os segundos, cuja relação é uma correspondência factual
de índices; e os terceiros, aqueles cuja relação está baseada em alguma
característica imputada, de símbolos.

Esta divisão em 3 classes será revista e expandida em anos posteriores,


gerando divisões em 10, 28 e 66 classes de signos. Em todas estas
divisões, a diferenciação entre ‘likenesses’ (posteriormente chamadas de
ícones), índices e símbolos estará presente, entendida como uma relação
entre o signo e seu objeto dinâmico (exterior ao signo, também chamado de
‘dinamóide’ ou ‘real). Na divisão em 10 classes proposta no Syllabus de
1903 (CP 2.243, EP2: 291), por exemplo, Peirce propõe uma análise de três
aspectos do signo: sua natureza, sua relação com seu objeto, e sua relação
com um interpretante.

A divisão proposta por Peirce parte de uma análise do signo, que pode ser
traduzida nos seguintes grupos de perguntas e respostas:

1. O que é o signo em si mesmo?

 Uma mera qualidade, um quali-signo

 Um existente atual, um sin-signo

 Uma lei geral, um legi-signo

2. Como ele se relaciona com seu objeto?

 Relaciona-se em virtude de suas próprias características, é


um ícone
 Relaciona-se de forma existencial, é um índice

 Relaciona-se através de convenções, é um símbolo

2. De que modo, através do interpretante, ele apresenta seu objeto para


um possível intérprete?

 Como um signo de possibilidade, um rema

 Como um signo de fato, existente, um dicente

 Como um signo de lei, um argumento

A divisão dos signos em 10 classes é obtida a partir de combinações das


nove modalidades que resultam destes três conjuntos de perguntas e
respostas. As possibilidades de combinação destas modalidades são
restritas pelo que Savan (1987-1988) chamou de ‘regra de qualificação’:

Um Primeiro pode ser qualificado apenas por um Primeiro; um Segundo pode ser
qualificado por um Primeiro e por um Segundo; e um Terceiro pode ser
qualificado por um Primeiro, Segundo, e Terceiro. (Savan 1987-1988: 14)

Considerando o teor das ‘respostas’, isso significa, por exemplo, que quali-
signos, ou signos que são da natureza das aparências, não podem se
relacionar com seu objeto em virtude de algo além de suas características
próprias, nem se apresentar como algo além de uma possibilidade. Legi-
signos, por outro lado, enquanto signos de tipo geral, podem se relacionar
com seu objeto tanto em virtude de suas características (neste caso sendo,
necessariamente, apresentados como signos de possibilidade), quanto em
virtude de alguma relação existente (e assim apresentarem-se como signos
atuais, ou de possibilidade), ou em virtude de algum tipo de convenção (e,
somente neste caso, apresentarem-se como signos de lei, atualidade ou
possibilidade).

Peirce forneceu exemplos para cada uma das 10 classes descritas no


Syllabus, e também percebeu que, devido às restrições impostas pela pela
‘regra de qualificação,’ seus nomes poderiam ser simplificados. O nome da
primeira classe, ‘quali-signo icônico remático’ por exemplo, pode ser
simplificado para ‘quali-signo’ uma vez que não existem quali-signos que
não sejam icônicos e remáticos. O mesmo ocorre com a classe dos
‘argumentos,’ que são necessariamente legi-signos simbólicos, e assim por
diante.

A tabela abaixo (tabela 1) mostra as 10 classes apresentadas divididas em


grupos de acordo com a relação do signo com seu objeto (ícones, índices
ou símbolos), seus nomes e notações numéricas, e os exemplos de cada
uma delas.
Tabela 1: As 10 classes de signos divididas entre ícones, índices e símbolos , e os exemplos
dados por Peirce para cada uma delas.

Tipo Nome da classe Exemplos

ícone Quali-signo (111) uma sensação de “vermelho”

ícone Sin-signo icônico (211) um diagrama individualizado

ícone Legi-signo icônico (311) um diagrama em sua


generalidade

ícone Símbolo remático (331) um substantivo comum

índice Sin-signo indexical um grito espontâneo


remático (221)

índice Sin-signo dicente (222) um catavento

índice Legi-signo indexical um pronome demonstrativo


remático (321)

índice Legi-signo indexical um pregão de mascate


dicente (322)

símbolo Símbolo dicente (332) qualquer proposição

símbolo Argumento (333) abdução, dedução, indução

Hipo-ícones: imagens, diagramas e metáforas

Embora em 1885 (CP 3.362) Peirce já houvesse afirmado que “um


diagrama […] não é um ícone puro,” somente no Syllabus de 1903 (CP
2.276-277, EP2: 273-274) a partir da formulação de uma tipologia dos
ícones atualizados, ou hipo-ícones, ele extrai maiores conseqüências desta
afirmação. Ele inicia com uma definição mais rigorosa de seu conceito de
ícone, diferenciando ‘ícones’ de ‘signos icônicos’:

[…] em um sentido mais estrito, nem mesmo uma idéia, exceto no sentido de
uma possibilidade, ou Primeiridade, pode ser um Ícone. […] Mas um signo pode
ser icônico, isto é, pode representar seu objeto principalmente por sua
similaridade, não importando seu modo de ser. Se o que se quer é um
substantivo, um representamen icônico pode ser denominado hipoícone. (CP
2.276, EP2: 273)

Logo após, Peirce descreve a seguinte divisão:

Hipo-ícones podem ser grosseiramente divididos de acordo com o tipo de


Primeiridade da qual participam. Aqueles que participam de simples qualidades,
ou Primeiras Primeiridades, são imagens; aqueles que representam as relações,
principalmente diádicas, ou assim consideradas, das partes de uma coisa por
relações análogas em suas próprias partes, são diagramas; aqueles que
representam o caráter representativo de um representamen pela representação
de um paralelismo em outra coisa, são metáforas. (CP 2.277, EP2: 274)

Sendo assim, podemos dizer que, em termos estritos, um ‘ícone puro’ é


apenas uma possibilidade lógica, e não algo existente. Mesmo por que,
dentro das possibilidades de relação do signo com seu objeto, relações de
natureza existencial são descritas como indexicais, e não icônicas. Por outro
lado, um símbolo, para Peirce, é algo muito mais geral, que não pode ser
reduzido a um exemplo específico de sua categoria, e muito menos a uma
simples relação de semelhança.

Signos icônicos, ou hipo-ícones, por sua vez, são ícones instanciados,


participando de relações sígnicas existentes, devido a algum tipo de
semelhança que possuem com seus objetos. Neste contexto, ‘imagens’
devem ser entendidas como ícones instanciados de qualidades imediatas,
aparentes, ou superficiais. ‘Diagramas’, por sua vez, podem ser definidos
como hipo-ícones cuja semelhança com seu objeto baseia-se, antes de
mais nada, em uma semelhança estrutural. As ‘metáforas’ por fim,
correspondem a ícones instanciados de hábitos, convenções ou leis gerais.

De acordo com a lógica das categorias que rege a semiótica de Peirce,


segundo a qual categorias em níveis superiores de generalidade
pressupõem aquelas dos níveis inferiores, as ‘metáforas’ (hipo-ícones mais
gerais, abstratos) dependem de uma certa coerência diagramática interna
para assumir seu status de ícones de convenção ou lei (figura 2).
‘Diagramas,’ por sua vez, dependem da incorporação de ‘imagens’ para
serem reconhecidos como análogos da estrutura de seus objetos (figura 3),
ao mesmo tempo em que ‘imagens’ minimamente complexas, a partir do
momento em que são vistas como compostos de elementos mais simples,
podem ser entendidas como ‘diagramas’ (figura 4). Isso demonstra a
posição central dos diagramas na lógica dos ícones de Peirce.

Um exemplo de análise de pictogramas enquanto hipo-ícones

Na figura 2, o pictograma metafórico ‘vamos acabar com o nazismo’ se


apresenta como uma instância do diagrama ‘jogar algo no lixo’ (ver figura 3).
A compreensão desta metáfora depende tanto de nossa capacidade de
reconhecer este diagrama quanto da capacidade de relacionar a suástica
com o nazismo.
Figura 2. Exemplo de hipo-ícone metafórico: ‘vamos acabar com o nazismo’.

Na figura 3, percebemos que o pictograma diagramático ‘jogar no lixo’


depende do reconhecimento dos elementos ‘homem’ (ver figura 4) e ‘cesta
de lixo,’ aliada à noção de lei da gravidade.

Figura 3. Exemplo de hipo-ícone diagramático: ‘jogar no lixo’.

A figura 4 mostra que a compreensão da figura ‘homem’ (no centro) se dá


por sua semelhança com a silhueta de um ser humano do sexo masculino
(à esquerda). Também podemos compreender esta figura como um
diagrama das relações entre cabeça, tronco e membros que encontramos
nos seres humanos (à direita).
Figura 4. Exemplo de hipo-ícone imagético: ‘homem’ ou ‘ ser humanos’ .

Conclusão

Os conceitos de ícone, hipo-ícone, imagem, diagrama e metáfora presentes


na obra de Peirce, apresentados nas primeiras seções deste artigo,
sugerem novos modelos e parâmetros para a análise e criação de sistemas
de informação visual. O exemplo de análise de pictogramas utilizando estes
conceitos, apresentado na última seção, demonstra que considerações a
respeito dos diferentes tipos de relação hipo-icônica que os pictogramas
estabelecem com seu objeto podem fornecer dados interessantes e não
triviais para um estudo deste tipo de sistema. A relevância destes conceitos
enquanto ferramentas de análise também sugere que os mesmos possam
ser empregados no estabelecimento de estratégias adequadas para a
criação de sistemas de informação visual mais eficientes, mas este é um
tópico para pesquisas futuras.

Agradecimento

Este trabalho reproduz parte de minha tese de doutorado, concluída com o


apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo), através da bolsa DR-II 98/00301-9.

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