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DIREÇÃO:

Fernando Augusto Albuquerque Mourão


CAPA:
lluatraçlo: M,rlo Caflero e Delfim Fujiwara
Projeto Gr•flco: Ary Normanha
DIAGRAMAÇÃO:
Antõnio do Amaral Rocha
ARTE FINAL:
Aené Etlene Ardanuy
Mara Patrlcla Feixes

lançada em 1964, a obfa


teve até hoje seis edições em
língua portuguesa. Foi editada
também em russo, pela Pr.~lS:'
House Nauka, de Moscou. Ern 1969
saiu uma edição em língl!a
inglesa. com o título
We killed mangy-dog
and other stories,
pela editora Heinemann.
Vários contos de Honwana têm
sido publicados em jornais e
revistas da Nigéria, Africa do Sul,
Portugal, Itália, França,
1980 Inglaterra, Bélgica, Dinalllf.~rca.
Noruega, Suécia, União Sovffltica,
todos os direitos reservados Estados U_nidos e Gii~.
editora ática s.a.l rua barão de iguape, J JO Textos do autor
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apar_ec. êrW~-.-- ·"'
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telefone: pb.x 278-9322 (50 ramais)/ caixa postal 8656 principais ántó.logias'. decli'~i 1
end. telegráfico: "homlivro"lsão paulo.
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autores\âfrléanô
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Enquanto aspirava sofregamente, com as raízes da
planta apertadas contra o lábio superior, observou o buraco
Dina que se produzira no chão. Realmente, o dia estava muito
quente porque nem um fio de vapor se escapava de lá.
De madrugada, e durante as primeiras horas da ma-
nhã, ainda úmido do orvalho noturno, o chão humoso
da machamba 1 fumegava mesmo dos torrões mais peque-
nos e o trabalho não cansava tanto. Mas quando o sol
já ia alto, só dos buracos deixados pelas plantas é que
saía algum vapor, e mesmo daí, cada vez durante menor
espaço de tempo.
Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes
Deixou cair a planta e escutou. Nada. Só o ulular
para o chão, Madala ouviu a última das doze badaladas
da brisa por sobre as folhas mais altas do milho.
do meio-dia. Erguendo a cabeça, divisou por entre os pés
Voltou a e·ndurecer o corpo e a deixá-lo pender para
de milho a brancura esverdeada das calças do capataz, a
trás até que a planta que tinha segura na mão deixasse
dez passos de distância. Não ousou endireitar-se mais
de oferecer resistência. É que assim poupava os movi-
porque sabia que apenas devia largar o trabalho quando
mentos até ao imprescindível. O esforço de arrancar uma
ouvisse a ordem traduzida num berro. Apoiou os coto-
planta resultava da aplicação de parte do peso do próprio
velos aos joelhos e esperou pacientemente.
corpo, e não de contrações dos músculos dos braços, que
O sol estava mesmo em cima do seu dorso nu, mas
só dobrava de vez em quando, para sorver a força dos
convinha suportar um pouco mais. Contou o tempo pelo
torrões que vinham presos às raízes.
número de gotas de suor que lhe pingavam pela ponta
do nariz para uma pedrinha que brilhava no chão, a seus Quando arrancou a sétima planta desde que ouvira
pés, e concluiu que o capataz devia estar muito zangado. a última badalada do dina, o velho voltou a espreitar por
Alongando a vista, viu a mancha escura do corpo do Fili- entre os pés de milho, receando não ter ouvido a voz do
mone, igualmente dobrado sob a superfície das folhas mais capataz. Apurou o ouvido durante um pedaço, mas só
altas dos pés de milho, aguardando a ordem de largar o ouviu o murmúrio abafado da ondulação.
trabalho. Madala encurvou-se para a frente até experimentar
A dor de rins era-lhe insuportável, e muito pior agora uma dor lancinante, mas nessa altura já tinha a planta
que já tinha tocado o dina 1 • Quando os músculos do pes- bem segura e inclinou-se para trás, até que ela se despren-
coço lhe começaram a doer pela torção a que os submetia, deu do chão. Por entre as raízes saltou um escorpião,
mantendo a cabeça erguida, deixou cair os braços até tocar mas como não lhe conviesse erguer-se e não tivesse uma
nas folhinhas carnudas e escorregadias das ervas que devia enxada à mão, deixou-o fugir. Um pouco assustado, Ma-
arrancar. Maquinalmente, apalpou-as para sentir a resis- dala pensou que, se fosse mordido por aquele escorpião,
tência do caule diminuto, entranhou os dedos por entre os teria dores horríveis durante três dias e talvez morresse
raminhos e retesou o corpo. Depois ergueu a planta para no quarto. Sim, já não era tão robusto que pudesse resistir
- se reanimar com o cheiro forte da terra que vinha presa ao veneno de um escorpião daquele tamanho depois de
às raízes esbranquiçadas. três dias de dores.

40 1 dlna . almoço. intervalo do meio-dia (em ·tanagalô", crioulo das minas 1 maçhamba - campo para a lavoura,
da AInca do Sul J. 41
Às primeiras horas da manhã ainda saltavam gafa-
nhotos das folhas das plantas que arrancav a, mas àquelas "Sete! Oito! Nove! Dez! ... " - precipita damente
horas só apareciam escorpiões, lacraus, lagartixa s e até Madala arrancou as quatro plantas. Depois passou os de-
cobras. O Pitarrossi morrera mordido por uma cobra dos pela testa para espantar umas gotas de suor que,
quando escorriam , provocav am ardor nos olhos.
que o atacara quando trabalhav a naquela machamb a.
Nenhum dos outros conhecer a o Pitarrossi, mas todos de- Não se levantou logo. Não convinha que o capataz
notasse que tinha pressa de largar o trabalho.
viam conhecer a mulher dele, que depois disso começara
Quando aflorou à superfície, experime ntou uma vaga
a dormir com os homens que lhe pagavam bebidas nas
tontura. O n'Guiana e o Muthaka ti já estavam de pé, mas
cantinas. Primeiro dizia que só se deitava com quem lhe
o capataz dizia-lhes:
desse vinte escudos, mas agora só lhe interessava beber.
- Para começar são umas comichõe s que nunca
Quando havia magaíças 1 , embebed ava-se de tal maneira
mais acabam, mas para despegar é a correr, não, meus
que não era preciso dar-lhe nada, e, então, qualquer um, cabrõezin hos? Continue m assim que eu desanco-vos o
mesmo que trabalhas se nas machamb as, levava-a para o lombo ...
capim alto atrás das cantinas. Mas todos sabem que O Filimone , que estava só com a cabeça de fora,
quando é assim, ela adormece logo e só acorda quando afundou-se até aos olhos quando ouviu os berros do ca-
o homem se levanta. · pataz, mas, vendo o Madala, ganhou coragem e endirei-
Só ele é que já estava tão velho que não ia dormir tou-se com uma espécie de desafio no olhar. !
com ela. Além disso, tinha conhecid o o Pitarrossi. Aos poucos, o Tandane , o Djimo e o Muthamb i fo-
Madala arrancou mais duas plantas e esperou, de ram emergind o da machamb a, com os olhos postos no
cotovelos apoiados aos joelhos. O sol parecia aproxima r- capataz.
11,

-se a cada instante. O corpo do Djimo estava todo coberto de suor, mas li
1
"Por que é que o branco não manda largar? ... " - mesmo assim o Madala observou a dança bonita dos seus i
11
Murmuro u Madala, tentando alcançar os raminhos de um músculos assustadiços debaixo da pele da cor da areia li
arbusto. - "Desde que tocou o dina as sombras já cres- do rio. i!
il
ceram dois palmos" ... - Vamos ao chicafo 1 ! ... J!
Madala lançou mão a um tufo de ervas e desenter- O capataz iniciou a marcha e os outros seguiram-no '
rou-as devagar. cm silêncio.
"Não se pode trabalhar de joelhos ... " - murmuro u Madala estendeu o olhar em volta, sentindo um certo
enquanto deixava cair as ervas. Agarrou o caule de um prazer em magoar a vista nos reflexos que saltavam das
pequeno arbusto, mas antes de o arrancar separou o molho folhas lisas do milho.
de caules das ervas que acabava de atirar ao chão e con- Os outros já iam longe, meio mergulha dos na espes-
tou-os: "Um. . . dois. . . três. . . quatro. . . cinco ... ". sura esverdea da da machamb a, caminha ndo lentamen te
Quando acabou a contagem , arrancou violentam ente como se estivessem a vencer um meio líquido.
a planta que mantinha na mão direita e alinhou-a às ou- Madala continuo u imóvel. Só lá longe é que se des-
tras: "seis ... ". fazia a onda em que viajava o olhar de Madala, assaltada
- Chega, rapazes! Vamos comer! por mil fulguraçõ es prateada s, pequenos sóis tornados
cometas pelo vento.
42 1 magaiças - trabalhadores moçambicanos de regresso das minas da Africa do Sul.
1 chlcafo - comida (em fanagalô).
43
Quando Madala chegou ao acampamento, os outros O velho observou o capataz, que, sentado num cai-
grupos já tinham chegado. Alguns deles já tinham almo- xote, a uma das sombras contíguas, se servia do seu al-
çado. O grupo do desbravamento, que era sempre o pri- moço. Diante dele as marmitas empilhavam-se sobre um
meiro a chegar, estava agora disperso pelas sombras. A outro caixote que servia de mesa. Comia com muita von-
maior parte dos seus homens dormia, para se recompor do tade e bebia o vinho pelo gargalo.
esforço despendido durante a manhã. O grupo da horta Quando Madala ia às cantinas, no fim do mês, ofe-
devia ter tardado, porque José, o seu kuka ', ainda estava recia um pouco do seu vinho aos amigos, mas o capataz
a fazer a fogueira para a botwa i de farinha. nunca oferecia o seu vinho a ninguém, embora nem sem-
Madala dirigiu-se para um dos celeiros velhos e sen- pre acabasse as garrafas que a mulher lhe mandava para
tou-se à sombra, escolhendo lugar entre os homens do o almoço.
grupo do curral, que, ao vê-lo aproximar-se, deixaram de - Madala! - Era o Djimo - Madala, vamos co-
conversar sobre mulheres e vestiram um ar mais reverente. mer ...
- Madala, como é que vão as coisas no teu grupo? Pelas sombras, os homens dos vários grupos descan-
Madala não respondeu prontamente. savam e comiam. Havia muitos que Madala nem conhe-
- Faz ·muito sol na machamba ... - desculpou-se cia, mas todos o conheciam, e o cumprimentavam, quando
a voz ante o mutismo de Madala. passava.
- Sim, faz muito sol na machamba ... - Madala ! Eu não te disse logo, mas era só por
- E o branco não sai de cima de vocês ... causa do branco. Está ali a tua filha.
Madala fitou a cara jovem do seu interlocutor e ten- A Maria vinha já ao encontro deles:
tou lembrar-se de qualquer coisa que pudesse dizer, de - Boa tarde, pai! ...
maneira a fazê-lo compreender que não era necessário - Boa tarde, minha filha.
que continuasse a mostrar-se interessado. O Djimo aproximou-se de Maria:
- O branco é mau ... - continuava o rapaz. - - Maria, eu fui buscar o teu pai para o veres, mas
Ele demora muito antes de mandar largar. . . Eu vi isso só agora é que lhe disse que estás aqui, porque o branco
quando trabalhava na machamba. . . Também não deixa estava a comer num sítio perto do lugar onde ele estava
sentado ...
as pessoas endireitarem-se por um bocado para descansa-
- Como é que estão as pessoas lá de casa? ...
rem as costas. . . Eu vi isso uma vez. . . - Subitamente
- Madala, é melhor ires falar com a tua filha na-
inspirado, o jovem virou-se para os outros. - Uma vez, quela sombra. Lá não há sol. É melhor. . . Maria, vai
estávamos nós a trabalhar na machamba com o branco. para aquela sombra e leva o teu pai contigo para falares
Fazia muito sol. . . toda a gente sabe que faz muito sol com ele!
na machamba. . . vocês vão ver por que é que eu digo O Djimo parecia gostar muito da Maria, mas o velho
que o capataz é mau. - O jovem continuou a narração, sabia que, como ela dormia com muitos homens, ninguém
cada vez mais tomado pelo entusiasmo, transferindo a quereria casar com ela.
audiência das suas palavras de Madala para os seus com- - Maria, como é que estão as pessoas lá em
panheiros. casa? ...

44 1 kuka -
2 botw1 -
cozinheiro (em fanagalô).
panela de ferro com três pernas.
- Lá em casa estão todos bons, pai. Eu vim cá Tu pensas assim? ...
para te ver ... Tu precisas de ir comer, pai ...
- Eu estou bom, minha filha ... Mas eu não tenho fome nenhuma na minha bar-
Todos os homens do acampamento olhavam para a riga. . . - Madala abriu os braços como que admirado.
Maria, percorrendo-lhe as formas apetecíveis por sobre - E tu não queres comer, minha filha?
a capulana 1 • - Eu comi nas cantinas, antes de vir ver-te. Quan-
- Madalà, não queres vir comer? - Era outra do eu ia a passar pelas cantinas uma pessoa amiga viu-me
vez o Djimo. - Agora é mesmo para comer porque o e chamou-me lá para dentro. Essa pessoa amiga comprou-
n'Guiana e o Muthakati já acabaram de fazer a comida. -me umas coisas e disse - toma lá, isto é para tu comeres
- Eu fico aqui com a minha filha, Djimo. - e eu comecei a comer.
O capataz surgiu da esquina do celeiro e aproximou- - E agora já não tens fome? Não queres ir comer
-se com um cigarro na mão: da comida do meu grupo? - A voz de Madala estava
- Olá, Maria! O que é que vieste cá fazer? Estás ansiosa.
a engatar o Madala?. . . Ao Madala não deve ser porque - Não, meu pai, o que essa pessoa me ofereceu
está muito cocuana 2 • • • Talvez seja ao Djimo. . . Maria, deixou-me satisfeita e agora já não tenho fome. Eu fico
tu estás a engatar o Djimo? ... aqui à tua espera enquanto comes.
- Eu não está engatar Djimo. . . --- respondeu Djimo censurou o Madala:
Maria, tentando falar em português. - Madala, a tua filha está a dizer c01sas muito
certas ...
Divertido, o capataz interrompeu o movimento de
levar o cigarro à boca:
- Mas tu não gostarias de dormir com ele? Hein? O velho partiu um pedaço de coi 1 , molhou-o no ta-
Pe olhos postos no chão, Maria não respondeu. O cho do m'tchovelo i e levou-o à boca. Os outros imita-
capataz afastou-se sorrindo. ram-no. Comiam silenciosamente. O m'tchovelo estava
- Madala, vamos comer. . . As pessoas que traba- delicioso. todo cheio de gordura.
lham na machamba ou noutra parte qualquer precisam de Do ponto em que estava sentado, Madala podia ver
comer quando chega o dina! a Maria, meio oculta, à sombra de um celeiro. Embora
Madala olhava para a filha, tentando descobrir o que estivesse o tempo todo a olhar para lá, não viu o capataz
ela sentira quando o capataz lhe dirigiu a palavra. Maria a chegar.
desviou o olhar. Maria respondia às perguntas do branco sem tirar
- Pai. . . Eu penso que é melhor ires comer. os olhos do chão.
Madala aproximou-se mais da filha e tentou esprei- Madala sentiu pena de não poder ouvir.o que diziam,
tar-lhe os olhos ensombrados pelas pestanas descidas. e, por isso, perguntou ao seu íntimo o que é que um ho-
- Por que é que tu pensas assim? mem diz a uma mulher quando quer ir dormir com ela.
- Bem, eu não tenho nada . . . Eu não tenho nada O seu íntimo estava adormecido.
que me faça pensar assim ... - calou-se por um bocado, O capataz parecia zangar-se com a Maria, mas às
mas logo continuou, um pouco mais animada - eu não vezes falava docemente. Tirou um pacote de cigarros do
sei, pai, mas penso que tu precisas de ir comer ... bolso, abriu-o, escolheu um, acendeu-, e apagou o fósforo

1 capulana - pano, peça do vestuário feminino. , 1 col - ração de farinha de milho cozida.
46 2 cocuana __ velho. 2 m'tchovelo - molho {em·ronga· língua do grupo banto). 47
assoprando-lhe uma nuvem de fumo. Manteve a mão no O velho seguiu o par com a vista. Procurou no chão
ar, brandindo o palito ardido à medida que falava. algo que não encontrou. Os dedos cerraram-se-lhe em
Quando acabou de fumar o cigarro, voltou as costas volta de uma planta imaterial.
à Maria e desapareceu na esquina do celeiro. Pouco de-
pois Maria tomava o mesmo caminho.
O coi já estava muito reduzido, mas Madala tinha Já muito dentro da machamba, o capataz parou e
a certeza de que ninguém saciara a fome. O último boca- voltou-se para Maria. Esta também parou, a alguns me-
do era para o n'Guiana e o Muthakati, os kuka do grupo. tros de distância.
Os restos do m'tchovelo também eram para eles. - Madala, realmente não pensas em nada de que
Depois de sugar das mãos os últimos vestígios de gostes e que eu te possa fazer sem me custar nada?
comida, Madala esfregou as mãos uma à outra e passou- Madala viu o capataz a tentar retroceder até onde
-as pelo cabelo. Dando a refeição por finda, levantou-se. a Maria estava. e a parar como se mudasse de idéias,
Os outros imitaram-no. poucos passos volvidos.
Ainda faltava algum tempo para serem horas de Madala pensou que devia dizer qualquer coisa ao
voltar a mergulhar na machamba, e por isso Madala olhou Djimo. O quê?
em volta, procurando um sítio para descansar. O capataz fazia sinais à Maria mas esta parecia não
Os homens do grupo do curral afastaram-se e o velho entender.
voltou para o sítio onde antes tinha estado. O jovem que A planta que Madala segurava na mão oferecia ao
ainda há pouco lhe dirigira a palavra fitava-o agora com seu esforço uma resistência exagerada. Por isso, o punho
· uma expressão deliberadamente irônica: de Madala tremia.
- Madala, a tua filha está ali atrás, a conversar O homem mergulhou na machamba. Momentos de-
com o branco ... pois a Maria agitou os braços, apoiou-se aos f~ágeis pés
Elias, o encarregado dos homens do grupo do curral d~ milho e acabou por desaparecer também. No sítio por
não gostou da provocação: onde ela submergiu, as folhas do milho agitaram-se por
- Quando as pessoas não compreendem certas coi- um pedaço, mas depois a ondulação desapareceu.
sas devem calar-se. O tom da voz de Djimo revelava certo nervosismo:
Madala buscou com a mão uma planta que sentira - Madala ...
junto à sua perna esquerda. Prendendo-lhe os raminhos Mas o nervosismo desapareceu logo. Djimo deu uma
entre os dedos, enrolou uma boa parte do caulezito ma- ordem:
leável em volta do pulso e puxou com determinação. O - Madala, não olhes para lá!
arbusto desprendeu-se da terra com uma explosão surda.
Djimo aproximou-se:
- Madala, precisas de alguma coisa? Na confusão verde do fundo da machamba, Maria
Madala não respondeu. Por detrás do Djimo, pelo não viu o capataz imediatamente. Esbracejou com afli-
caminho que levava à machamba, o capataz avançava. ção, tentando libertar as pernas. Um braço rodeou-lhe
Dez passos atrás, Maria seguia-o. \ os ombros duramente.

48 49 .
J
O bafo quente e ácido do homem aproximou-se da - Assim não é bom. . . De noite é mais melhor!
sua face. - E houve pânico na sua voz. - Agora Madala viu! ...
A capulana da Maria desprendeu-se durante a breve Madala viu ... gemeu. Mas você disseste é só para com-
luta e a sensação fria de água tornou-se-lhe mais vívida. binar para gente encontrar de noite ...
Um arrepio fê-la contrair-se.
- Vamos, rapariga, acabou a festa. Depois dou-te
Sentiu nas coxas nuas a carícia morna e áspera dos
a massa ...
dedos calosos do homem.
O capataz foi o primeiro a aparecer.
A Maria surgiu à superfície, muito depois. Sacudiu
.
Madala olhou em volta. Ninguém o olhava direta- da capulana uns torrões de areia e tomou o caminho do
mente mas todos os homens do acampamento se tinham acampamento.
disposto pelas sombras de modo a poderem vigiá-lo. Os homens do grupo do curral afastaram-se para
Uma a uma, Madala esmagou as folhinhas da robusta Maria passar.
planta imaginária que tinha na mão. Escapou-se-lhe numa O jovem do grupo do curral conseguiu à quarta ten-
espécie de soluço, quando lhe ocorreu que não lhe sobra- tativa emitir alguns sons:
vam forças para desenterrar uma planta que se agarrasse ·_ Madala ... faz muito sol ... onde tu trabalhas ...
à terra um pouco mais solidamente do que as que arran- M.adala pensou que antes de achar as palavras cer-
cava na machamba. tas devia dizer qualquer coisa:
- Não chores, Madala . . . - era Djimo. - Sim, meu filho. Na machamba faz muito sol ...
- Maria, o que é que vieste fazer aqui? O capataz surgiu pela esquina de um dos celeiros ve-
A voz do capataz estava rouca. lhos e procurou Maria. Quando a descobriu, lançou-lhe
Esmagado pelo peso do homem, o peito de Maria para o regaço uma moeda de prata:
tinha um arfar brando e compassado. - Aí tens o que te devo. . . - Trazia nos lábios
A voz do capataz chegava-lhe misturada a um lon- um cigarro fumegante.
gínquo rumor de vagas. Maria desembaraçou o braço da capulana, mas logo
Por que fez isso? ... - murmurou. retraiu a mão. Cruzou os braços sobre o peito e apertou
Hum? ... as mãos às costas.
Por quê? ... - Maria sacudiu o homem com - Então, Maria?!
rudeza. Maria projetou o corpo contra a parede do celeiro
- Hum?. . . - A mão do capataz fechou-se pre- e desviou a cara.
guiçosamente sobre o seio de Maria. Madala observava-a com o seu olhar triste.
- Tu não gostaste?. . . - O homem pulou para - Mas o que é que tens, rapariga? Não queres o
o lado. - Hein? ... Não gostaste? - Compôs a roupa dinheiro? Tens medo de o receber? - Calou-se, aguar-·
e virou para a Maria. Hei! ... Acabou! ... Acorda! ... dando a resposta de· Maria. Mas continuou: - Tens
Os olhos da Maria brilhavam na meia obscuridade medo que os rapazes descubram que és uma puta?
do fundo da machamba: Madala viu nós . . . Madala viu ...
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- E o que é que tem isso? - O capataz abriu os era de um amarelo sujo, avermelhado. Bebeu-o de uma
braços, reforçando a admiração, e depois cruzou-os sobre única vez, deixando que uma boa parte lhe molhasse as
o peito. barbas e lhe escorresse pelo pescoço. Depois devolveu a
- Madala é minha pai! ... garrafa vazia ao capataz.
- O quê?! Essa é boa! - Filhos da puta! Pró trabalho, já disse! ...
O silêncio parecia exasperar o capataz. Gaguejando O jovem do grupo do curral cuspiu para os pés de
um gesto amistoso, explodiu: Madala:
. - Merda!.. . Como é que eu havia de saber? - - Cão! ...
Voltou-se para os homens do acampamento, estendendo- O velho desconheceu o insulto. Voltou-lhe as costas
-lhes a interrogação. e tomou o caminho da machamba. O n'Guiana e o Fili-
O velho encurvou-se um pouco mais. Maria soluçava mone seguiram-no.
mansamente. O Djimo voltou-se para os outros trabalhadores:
- Vamos ...

O capataz afastou-se em grandes passadas e quando


reápareceu trazia uma garrafa de vinho na mão: Madala inclinou-se para a frente e enrolou o caule
- Eh rapazes - a sua voz era firme. Encarou o de um arbusto em volta do pulso. Deu um ligeiro puxão
acampamento e berrou: - Vamos trabalhar que já são para lhe experimentar a resistência e depois deixou o corpo
horas! Vamos embora que já passa da uma e meia! Des- pender para trás até que o arbusto se soltou da terra.
bravamento! Maleísse! Elias! Alberto. . . homens do Colocou-o cuidadosamente no chão, alinhando-o com o
Desbravamento?. . . ala! Acabar com a mata do lado monte dos que já tinha arrancado à sua volta. Alongou
do rio. . . Horta! Embora, Horta! Morte aos· bichos a vista por entre os pés de milho até distinguir o vulto do
das couves! Curral! . Grupo do Curral, levar o gado a Djimo. O Filimone, o n'Guiana, o Muthakati, o Tandane,
beber! . . . . Sacha, comigo! o Muthambi também estavam perto, Madala conseguia
Os homens do acampamento continuaram imóveis. vê-los. Com um suspiro rouco retomou o trabalho.
- Então, rapazes?! Não ouviram?. . . Já tocou! Por sobre os seus estranhos peixes, a superfície do
Acabou o dina! - O capataz gritava com uma irritação mar verde era percorrida por uma brisa suave. A ligeira
crescente. Olhou para a garrafa que tinha na mão: ondulação que lhe era imprimida desfazia-se, avançada e
Madala! ... voltava a desfazer-se, murmurando o segredo dos búzios.
Madala levantou-se e aceitou a garrafa que lhe era
estendida.
- Cabrões! Caehorros! Pró trabalho, cachorros!
Todo o acampamento olhava para Madala. O jovem
do grupo do curral avançou um passo:
- Madala!
Madala relanceou o olhar pelas fisionomias ansiosas
que o cercavam. A garrafa estava toda suada e o vinho

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