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A LINGUAGEM DE WINNICOT

Dicionário das Palavras e Expressões


Utilizadas por Donald W. Winnicott
Jan Abram
Bibliografia Compilada por Harry Karnac
Tradução Marcelo Dei Grande da Silva
Psicanalista
Apresentação e Revisão Técnica
José Outeiral
Médico Psicanalista
Membro Titular da Associação
Psicanalítica Internacional
REVINTER
Título original em inglês:
The Language of Winnicott: A Dictionary of Winnicott‟s use of Words
Copyright © 1996 byjan Abram
Copyright © 2000 by Livraria e Editora Revinter Ltda.
Todos os direitos reservados. E expressamente proibida a reprodução deste livro, no seu
todo ou em parte, por quaisquer meios, sem o consentimento por escrito da Editora.
ISBN 85-7309-373-0
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L
Jonathan Pedder
Presidente do The Winnicott Trust*
A criação deste volume, A Linguagem de Winnicott, foi resultado da experiência de Jan
Abram naThe Squiggle Foundation e de seu envolvimento com o estudo, discussão e
ensino de Winnicott, tanto na The Squiggle Foundation quanto em diferentes cursos que
versavam sobre psicoterapia. Seu trabalho a convenceu da necessidade de um volume como
este.
Embora haja volumes similares que tentem abranger a totalidade da psicanálise (por
exemplo, Laplanche e Pontalis) e outras figuras de grande importância (tal como o fez (
com M. Klein), não existia nada ainda sobre Winnicott. Isso pode ter ocorrido por causa de
sua extraordinária habilidade em escolher palavras do cotidiano para exprimir conceitos
que estão nas raízes de nossa individualidade. Se lermos Winnicott com atenção veremos
que é bastante simples, ou muito complexo (as duas coisas simultaneamente...); até mesmo
os mais experimentados seguidores de Winnicott, por vezes, necessitam de uma referência
para que possam encontrar um caminho que guie seus pensamentos. Este livro satisfaz essa
necessidade de uma maneira admirável. O conhecimento instintivo de Jan Abram das
necessidades daqueles que se dedicam ao estudo de Winnicott será notado, assim como sua
extensa leitura dos tópicos escolhi dos para expor. Faz uso de abundantes e bem
selecionadas citações dos trabalhos originais a fim de ilustrar temas fundamentais em seu
trabalho, ao mesmo tempo que os localiza em um amplo contexto histórico. Seu estilo
direto de escrever é muito bem-vindo, parecendo haver se inspirado na habilidade própria
de Winnicott em colo car idéias complexas utilizando-se de palavras simples.
Embora este livro não seja, em um primeiro momento, uma iniciativa do The Winnicott
Trust, este, ao tomar conhecimento de sua concepção, regozijou-se em auxiliar no seu
nascimento. Ao ler pela primeira vez o esboço do manuscrito, fui colocado na posição
privilegiada de observar uma mãe e seu primeiro bebê interagindo. Muitas das idéias e
expressões de Winnicott, da forma como ele expôs em sua obra, remeteram-me
vividamente a esta mãe e à interação com o bebê, e vice-versa; ao observar o par fui levado
a buscar sua obra. Mais uma vez me pareceu que ele estava absolutamente certo, em
especial no que toca à maneira com que a mãe e o bebê criam um ao outro. Donald
Winnicott dizia que o bebê não existe... e que a mãe não existe (de forma isolada).
Podemos também dizer que um livro ou um leitor não existem se forem tomados em
separado: cada pessoa encontrará diferentes coisas neste livro, dependendo do que ele ou
ela oferecerem a ele. Para aqueles que ainda não encontraram Winnicott, este constitui-se
em um sinal que aponta para as riquezas que aguardam para serem desco bertas; para os
profissionais, será uma fonte de novos insights úteis à prática clínica; e para os estudantes,
será um recurso de enorme valor referente aos dados bibliográficos e temáticos sobre a obra
de Winnicott.
Enquanto refletia sobre como este livro poderia ser utilizado, fui conduzido à mútua
criatividade da brincadeira de rabiscos, na qual Winnicott e seus pequenos pacientes
podiam, alternadamente, construir os traços de uma linha, cada um contribuindo para a
construção de algo que possuía um significado para as duas partes. Então, — passei a
considerar por um momento as duas citações que jan nos apresenta no princípio do livro.
Uma fez-me pensar no próprio livro; a outra diz respeito à mãe e ao bebê — ou será uma
outra coisa?... agora é a sua vez...
AGRADECIMENTOS
Sou por demais agradecida aos editores, Cesare Sacerdoti, da Karnak Books, e Michael
Moskowitz, dajason Aronson Inc. Meu caloroso muito obrigado a Cesare Sacerdoti, que,
com enorme entusiasmo, deu resposta à sinopse que tão intensa mente me ocupou.
Por uma afortunada coincidência, Harry Karnak, fundador da Karnak Books, havia
concluído uma bibliografia dos trabalhos de Winnicott, que fora organizada em ordem
cronológica e alfabética exatamente ao iniciar minha pesquisa. Por isso fiquei muito
agradecida por havê-la recebido a tempo. Sou igualmente agradecida e feliz por Harry
haver concordado com sua inclusão nesse livro. Para qualquer estudioso de Winnicott, esse
é verdadeiramente um presente.
Agradeço ao Winnicott Trust, Mark Paterson e Associados, bem como aos editores que me
forneceram a permissão para a reprodução dos estratos dos trabalhos de Winnicott.
Fico em falta com muitas pessoas que estimularam meu interesse pela obra de Winnicott
em minhas primeiras participações nos encontros de sábado da Squiggle Foundation
— John Fielding, Stephen Haine, Sue Norrington, Vai Richards, Laurence Spurling e, em
especial, Nina Farhi, a anterior diretora da The Squiggle Foundation. O entusiasmo criativo
e a habilidade particular de Nina em encorajar o que há de melhor nas pessoas forneceram a
inspiração e o exemplo para todos nós, que tínhamos uma relação de trabalho com a
fundação. Minha gratidão também vai para Lindsay Welis, presidente do trustee, assim
como a cada um dos trustees da The Squiggle Foundation — Dee Fagin, Wille Henriques,
Bryce MacKenzie-Smith, Ellen Noonan, Bons Rumney e Joyce Wellings — pelo suporte
financeiro e emocional que proporcionaram a esse projeto.
Diversos colegas e amigos ofereceram seu tempo e energia na leitura de partes do
manuscrito, sendo que meus sinceros agradecimentos vão para Julia Casterton, Nina Farhi,
Rosemary Graham, Michel Gribinski, Marina Perris, Vai Richards, Viqui Rosenberg, Diane
Thurman e John van Rooyen. Suas considerações e sugestões foram de enorme valor.
Também estou em dívida com Amelie Noack eJonathan Pedder, que com meticu losidade
leram o manuscrito completo. Seus comentários tiveram importância funda mental no
resultado final.
Gostaria ainda de enviar meus sinceros e especiais agradecimentos à Jennifer Johns,
Jonathan Pedder e Ray Shepherd, do The Winnicott Trust, que ofereceram assistência
financeira em um momento crucial, o que possibilitou a finalização do manuscrito.
Também devo citar Klara e Eric King, da Comunication Crafts, pela forma primorosa com
que lidaram com o manuscrito. Longas conversas telefônicas com Klara foram de grande
ajuda, sugerindo formas de criação de um texto que pudesse ser tão leve quanto possível.
Aqui vão também meus agradecimentos a Graham sleignt cia r Books.
Meu apreço e meu muito obrigado à Caroline Dawnay da Peters, Fraser and Dunlop, pelos
aconselhamentos precisos e pelo auxílio baseado em seu conhecimento.
Pacientes, trainees, supervisores e participantes dos eventos da The Squiggle Foundation
puderam inconscientemente testemunhar minha compreensão da obra de Winnicott, e por
isso sou-lhes muito grata.
Alguns mentores pessoais estão sempre presentes em minha mente ao estudar os textos de
Winnicott — minha gratidão a Rosalie Joife, Christopher Boilas e Marion Milner.
Madeleine Davis pôde acompanhar minhas pesquisas, ainda que houvéssemos nos
encontrado poucas vezes antes de sua morte prematura. O profundo conhecimento que
Madeleine tinha da obra de Winnicott ainda vive e continua a influenciar as pessoas ligadas
à The Squiggle Foundation.
Por fim, meu grande apreço a minha família e amigos pelo seu continuado apoio à minhas
diversas obsessões — em especial a Ben, que com suas interferências ajudou clarear minha
mente; e a John, cujo suporte permanente é indispensável.
PREFÁCIO
M eu estudo da obra de Winnicott tomou uma dimensão mais intensa quando passei a
participar dos encontros realizados aos sábados pela The Squiggle Foundation, que tinham
por título The Original Themes of Winnicott. Através dos anos esses encontros anuais
possibilitaram que centenas de estudiosos se tornassem capazes de dissipar sua
perplexidade, enfrentar os paradoxos, encontrar, criar e formar uma visão própria de
Winnicott.
O poderoso desejo de tornar a obra de Winnicott mais acessível levou-me a organizar suas
idéias nesse léxico formado por 22 palavras e frases representativas da maior parte da teoria
de Winnicott — teoria profundamente enraizada na prática clínica e que revela o
pensamento tão original de um mestre da clínica. Cada incursão feita se constitui em uma
jornada através de seus trabalhos, desenvolvidos ao longo de quarenta anos, capaz de
revelar a extensão e a profundidade de seus conceitos, assim como a consistência e a
clareza de suas teorias. Meu propósito foi oferecer um guia imparcial, de tal forma que o
leitor possa desvendar os intrincados aspectos que a celebração da criatividade humana
promovida por Winnicott é capaz.
A propósito de “A linguagem de Winnicott” de Jan Abram
Desde há muito necessitávamos de um livro, como um dicionário, que nos introduzisse
mais exatidão no universo singular das palavras e das expressões utilizadas Donald
WinniCott em seus textos; esta lacuna vem a ser preenchida com o lançamento desta
edição, em nosso idioma, de A linguagem de Winnicott, de Jan Abram, pela Editora R ter.
Jan Abram é a atual diretora da Squiggle Foundation, de Londres, e se dedica a estudar e
divulgar o pensamento de Donald Winnicott. Profunda conhecedora da deste autor, seu
livro recebeu os seguintes comentários de André Green:
Jan Abram é conhecida na América Latina e, inclusive, no Brasil, onde já esteve em São
Paulo, Rio de janeiro e Porto Alegre. Nestas cidades coordenou seminários e su sões,
promovendo um profícuo debate sobre as idéias de Donald Winnicot. Em um simpósio
realizado pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo (PIJC-SP), no ar 1998, tive a
oportunidade de supervisionar com Jan Abram o caso clínico de uma ac cente borderline;
foi uma experiência instigante sob o ponto de vista clínico e muito agradável sob o ponto de
vista afetivo, que começou durante um breakfast na casa de AI Ferreira e continuou no
auditório da PUC-SP. Supervisionando depois o mesmo pa com Renata Gaddini,
psicanalista italiana que conheceu Donald WinflidOtt pessoal e que é citada por ele em
Plaiyng and Reality, foi interessante constatar a super poder das idéias e da “tradição” do,
digamos, “pensamento winnicottianno”.
O livro aborda 22 palavras e expressões do universo semântico de Donald Win com as
citações literais pertinentes e as indicações bibliográficas. A autora faz uma
lagem profunda de cada item, convidando o leitor a construir (e a desconstruir) conceitos
utilizados, nem sempre, com a necessária episteme. Um livro como este é oportuno ara
evitarmos personagens como José Dias, do livro Dom Casmurro de Machado de Assis, que
“era lido, posto de atropelo”, um personagem que buscava impressionar os outros ditando
cultura através dos maiores disparates; não querendo eu fazer, como esclarece também o
cinema, qualquer referência a pessoa ou a fatos da vida real.
Embora o pensamento de Donald Winnicott seja um “sistema aberto” ou um squigglegame
que convida o leitor a desenvolver suas próprias idéias, pois ele nunca pretendeu ser um
Mestre como M. Klein ou J. Lacan, é necessário precisar palavras e expressões.
Sobre esta questão escreveu Laurence Spurling (Winnicott and mother‟s face, in Winnicott
Studies, The Journal of the Squiggle Foundation, number 6, 1991, p. 60):
Estas considerações tornam necessário que o leitor dos textos de Donald Winnicott, que não
são papers e sim escritures, tenha disposição para “brincar”, para play (um brincar
espontâneo, criativo e prazeroso) e não para game (uma atividade regrada). Na
“Apresentação da edição Brasileira” de Explorações Psicanalíticas, de Donald Winnicott,
escrevi:
é necessário fazer como sugere ele para o jogo dos Rabiscos (Squi Game), com o leitor e o
autor criando juntos uma „leitura pessoal‟, um espaço transicional onde o leitor
„descobrirá‟, como um achado pessoal, o que Winnicott escreveu (...) Os textos estão aí
para serem „usados‟. (...) Deste espaço transicional é que surgirão elementos criativos,
espontâneos e concepções novas, às vezes prenhes de surpresas, indagacões, vazios e
paradoxos... assim é. Não tente „en tender tudo‟ em cada trabalho para só então seguir para
o outro. Faça como os Beatles (que Winnicott tanto gostava) e let it be, ou „deixe estar‟...
O livro de Jan Abram é uma peça deste squiggle, que pouco a pouco nos permitirá
encontrar o nosso próprio Winnicott.
O pensamento e a clínica de Donald Winnicott vem tendo uma divulgação crescente e
desperta um grande interesse em nosso país. Podemos, inclusive, dizer que todos os escritos
deste autor, publicados em língua inglesa, estão também disponíveis em nosso idioma e que
é o Brasil, provavelmente, o país que mais publica livros na linha de pensamento
Winnicottiano e do Middle Group.

AGRESSÃO
1. O conceito de agressão em psicanálise
2. Agressão primária
3. A crueldade do bebê
4. A versão do analista
5. A evolução da agressão na criança em desenvolvimento
6. A função da fusão
7. A necessidade de oposição e a realidade do objeto externo
8. O amor cruel
9. A tolerância da destrutividade que leva à preocupação
10. A sobrevivência: da relação de objeto ao uso do objeto
11. A pulsão de morte e o pai
A agressão no indivíduo, de acordo com Winnicott, tem seu início em seu próprio interior e
é sinônimo de atividade e motilidade. No princípio de sua obra Winnicott refere-se à
“agressão primária „ estabelecendo que a agressividade é originalmente parte do apetite.
A agressão modifica suas características à medida que o bebê cresce. Essa mudan;a
depende completamente do tipo de ambiente com que o bebê se depara. Com uma imagem
suficientemente-boa e um ambiente facilitador, a agressão na cri e desenvolve transforma-
se em algo integrado. Se o ambiente não for bom , a forma encontrada pela agressão para
manifestar-se é pintada em cores, ou seja, surge a destrutividade.
A agressão — e mais tarde a “destruição” — na obra de Winnicott desempenhou um papel
fundamental em sua teoria do desenvolvimento emocional, apresentando-se como o ponto-
chave de vários de seus mais conhecidos conceitos - “a tendência „ “criatividade “, “a mãe
suficientemente-boa “fenômenos transicionais „ verdadeiro e falso self‟ e, no fim da vida, e
com certeza o mais central de todos, “o objeto‟.
A idéia de uma pulsão agressiva, tomada em separado, não foi considerada por Freud senão
em 1920, em “Além do Princípio de Prazer”. Neste texto, Freud introduziu sua teoria
dualista das pulsões de vida e de morte, embora, como foi apontado, estivesse até certo
ponto equivocado (Pedder, 1992).
O trabalho de Melanie Klein com crianças bastante pequenas levaram-na a uma ampliação
da teoria da pulsão de Freud, vendo a agressão como a manifestação da pulsão de morte
que apresenta certas derivações, como o sadismo e a inveja. A agressão, por essa razão,
segundo a teoria kleiniana, é sinônimo de inveja, ódio e sadismo, que são manifestações da
pulsão de morte. Assim como a pulsão de morte é postulada como inata, também o é a
inveja, o ódio e o sadismo no bebê recém-nascido.
A versão proposta por Melanie Klein para a pulsão de morte de Freud transformou esta
teoria, que o próprio Freud estimava enormemente, em uma certeza. A questão da noção
exposta por Melanie Klein (bem como por seus seguidores) da pulsão de morte passou a ser
um dos fatores desencadeadores dos “debates sobre controvérisas acontecidos na Sociedade
Britânica de Psicanálise entre 1941 e 1945 (King & Steiner, 1992). Uma das censuras
dirigidas à Melanie Klein no transcorrer dos “debates” apontava para sua interpretação
equivocada de Freud, de tal forma que suas teorias repudiavam as dele.
Anna Freud e seus seguidores,juntamente com muitos outros analistas, não podiam
reconhecer a pulsão de morte proposta por Melanie Klein; alguns deles foram longe
demais, a ponto de desconsiderar completamente a teoria pulsional. Também houve
algumas críticas que diziam respeito à tradução do termo alemão Todestrieb em “instinto”
de morte; “pulsão” de morte seria uma tradução mais apropriada (Pedder, 1992).
Winnicott, em momento algum, fez transparecer seu pensamento no que respeita va à teoria
instintiva de Freud, embora fizesse uso do termo “instinto” a fim de denotar um certo
impulso biológico. No entanto, fez questão de deixar bem claro seu desacordo com
“instinto de morte” kleiniano, por acreditar que a inveja, o sadismo e o ódio constituem-se
em sinais de crescimento emocional do bebê em relação ao ambiente externo. Na teoria da
agressão de Winnicott é o ambiente externo que exerce influência sobre o modo com que o
bebê irá lidar com sua agressão inata. Em um ambiente bom, a agressão passa a integrar a
personalidade individual como uma energia proveitosa relacionada ao trabalho e ao brincar,
ao passo que em um ambiente de privação a agressão pode vir a se tornar carregada de
violência e destruição.
As divergências na Sociedade Britânica de Psicanálise, mais do que acentuar o valor da
pulsão de morte, tornaram-se uma questão política entre os seus diferentes grupos. Quatro
trabalhos escritos entre 1959 e 1969 apresentam a concepção que Winnicott tinha a respeito
do prolongamento (bastante extenso) dos “Debates sobre as Controvérsias”, foram
publicados postumamente em Psycho-Analytic Explorations (W 19, pp. 443-464), sob o
título geral “Melanie Klein: Sobre o Conceito de Inveja”. O tom desses trabalhos é
inflamado, defendendo um pensamento mais original do que simplesmente uma linha de
pensamento fendida.
“Em nossa sociedade atual, embora sirvamos à ciência, precisamos sempre que possível
fazer um esforço a fim de retornar a questões já estabelecidas. Não é apenas a inércia que se
coloca lado a lado com a dúvida; também somos leais. Associamos idéias específicas com
realizações que sinalizam o progresso alcançado pelos pioneiros. Assim, ao olharmos com
um novo olhar para as raízes da agressão, vemos dois conceitos em especial, sendo que
ambos devem ser descartados deliberadamente, a fim de que possamos examinar se
estamos melhores sem eles. Um deles é o conceito, estabelecido por Freud, de pulsão de
morte, um subproduto de suas especulações, no qual parece ter conseguido uma
simplificação teórica comparável à eliminação gradual dos detalhes técnicos de um escultor
como Michelangelo. O outro constitui-se no entronamento que MeIa- fie Klein fez da
inveja em Genebra, no ano de 1955.”
[ of Aggression”, 1968, p. 458]
Ninnicott refere-se ao texto fundamental de Melanie Kleín que é Envy and Gratitude, :ujo
ponto principal estabelece que a inveja advém ao bebê como resultado do desenvolvimento
emocional em relação ao ambiente e, conseqüentemente, não pode ser descrita como sendo
algo inato. Em um trabalho lido sem a sua presença por Enid alint, e escrito para o
Simpósio sobre a Inveja e o Ciúme, em 1969, ele escreveu:
11 de mais nada devo admitir que neste debate não estamos interessados na inveja e no
ciúme da mesma forma com que estas duas palavras são empre gadas na maior parte dos
textos clínicos apresentados nos últimos anos pelos kleiníanos. Chego a afirmar que no uso
vigente desses dois termos, a inveja constitui-se em um estado de mente pertencente a um
tipo de organização mental altamente sofisticada, enquanto que a característica do ciúme é
que seu uso implica que a pessoa total já tenha mobilizado a vingança ou até mes mo o
roubo.”
]“Symposium on Envy and Jealousy”, p. 462]
Em cada um dos quatro textos apresentou argumentos a fim de que o ambiente fosse levado
em consideração.
11 crítica concentra-se na sua determinação de conceitualizar de forma completa o
desenvolvimento individual do bebê somente a partir do bebê, sem qualquer referência ao
ambiente. Na minha opinião, isto é totalmente impossível... Toda tendência que visa à
maturação é herdada, sendo que a psicanálise interessa-se meramente na interação existente
entre aquilo que é herdado e o que faz parte do ambiente.”
O mundo psicanalítico atual, entre todos os clínicos, o debate relativo à interação entre que
é inato no indivíduo em relação ao ambiente ainda prossegue (ver AMBIENTE: 1).

2 A agressão primária
A primeira referência feita por Winnicott à agressão encontra-se em um trabalho intitula do
simplesmente Aggression, uma conferência dirigida a professores, datada de 1939. Não
devemos esquecer que 1939 marca o início da Segunda Guerra Mundial, embora nes se
texto este fato da realidade externa jamais tenha sido mencionado por Winnicott.
As opiniões fundamentais de Winnicott, no que tocava à agressão nunca se modifi caram
realmente, tanto nesse trabalho quanto nos seguintes, embora sua preocupação com o papel
da agressão no desenvolvimento do indivíduo o levasse a enriquecer e a elaborar as idéias
expostas nesse primeiro texto.
Winnicott forneceu ao público formado por professores diversos exemplos de como a
agressão primária manifesta-se nas relações externas, ao passo que expunha a idéia de um
mundo interno onde a agressão surge a partir da fantasia.
“Uma mãe que conheci certa vez disse-me, „quando me foi trazida minha filha, ela
procurou meu seio tão violentamente, mordendo meus mamilos, que em alguns momentos
cheguei a sangrar. Senti-me arrasada e apavorada. Levei um longo tempo para que pudesse
me recuperar do ódio que aflorou em mim contra a pequena besta. Penso ser esta a razão
principal pela qual ela jamais desenvolveu uma real confiança com relação ao alimento.‟
Eis o relato de uma mãe baseado em fatos reveladores de suas fantasias e daquilo que
aconteceu. O que quer que esse bebê realmente tenha feito, é cer to que a maioria deles não
destroem o seio que lhe é oferecido, ainda que tenhamos evidências de que o desejem, e
mesmo que creiam poder des tru í-los, alimentando-se deles.”
{“Aggression and !ts Roots”, 1939, pp. 86-87]
Winnicott introduz a idéia de investigar os mundos internos da mãe e do bebê
estabelecendo uma relação com o dado real que é a alimentação. O seio real não é
destruído; os sentimentos da mãe de ser destruída devem-se às suas fantasias e unem-se aos
seus sen timentos violentos em relação ao bebê, dos sentimentos de ódio da mãe voltados
ao seu bebê recém-nascido foram explorados por Winnicott oito anos mais tarde, em 1947,
em seu trabalho Hate in the Countertransference (ver ÓDIO: 7).l Nesse texto de 1939,
apesar de concentrar-se na experiência do bebê com sua própria agressão, Winnicott
prossegue na exploração da fantasia de destruição contida na agressão primária, bem como
da inibição do desejo verdadeiro de destruir. Isto é o que introduz a diferenciação elaborada
por Winnicott entre a destruição que ocorre na fantasia e aquela que é atuada. Essa noção é
central na teoria do uso do objeto de Winnicott, aparecida em 1968:
“Se é verdadeiro que o bebê possui uma enorme capacidade de destruição, é igualmente
verdade que possui uma grande capacidade de proteger aquilo que ama de sua própria
destrutividade. A maior destruição reside em sua fantasia. O que é digno de nota no que diz
respeito à agressividade instintiva é que apesar dela estar pronta para ser mobilizada a
serviço do ódio, originalmente é parte do apetite, ou de alguma outra forma de amor
instintivo. É algo que aumenta durante a excitação. Seu exercício é altamente prazeroso.
Talvez a palavra avidez convenha mais do que qualquer outra idéia que diga respeito à
fusão original do amor com a agressão, mesmo que aqui o amor restrinja-se ao amor-de-
boca.”
[ and Its Roots”, pp. 87-88]
Em sua descrição da agressão primária Winnicott faz uso dos termos “agressividade
instintiva”, “avidez teórica”, “amor-de-apetite primário e Aponta que todos estes aspectos
da agressão no bebê recém-nascido podem ser notados pelo observador (ou sentidos pela
mãe) como “cruéis, dolorosos e perigosos”, porém — e isso é fundamental na teoria de
Winnicott —, para o bebê todos eles são acidentais. Isso vem ao encontro da divergência de
opinião que Winnicott nutria em relação à Melanie Klein e seus seguidores. Pensava que ao
nomear uma emoção, tal como a inveja inata, e depois observar o bebê, percebia que havia
algum tipo de intenção por parte dele. A partir de suas observações de mães e bebês,
Winnicott pôde concluir que, a princípio, o bebê não é capaz de sentir inveja porque esta
pertence a um estágio posterior do desenvolvimento emocional.
A diferenciação entre intenção e possibilidade é colocada por Winnicott dois anos antes dos
“Debates sobre as Controvérsias”, e sete anos após Melanie Klein haver esta belecido que a
inveja se constitui em uma pulsão inata de outra ordem. Reiterando o que foi exposto acima
— Winnicott considera que a agressão precoce do bebê deve ser entendida pelo observador
como execrável (invejosa ou sádica) mas, a princípio, não é tomada dessa forma pelo bebê
e, portanto, não faz parte do vocabulário emocional do bebê.
Segundo Winnicott, a agressão precoce é parte do apetite e do amor — “amor-de- boca”.
Três anos antes, em seu texto de 1936, Appetite and Emotional Development, Winnicott
demonstrou a relação existente entre o apetite do bebê e seu desenvolvi mento emocional
através da observação do uso que o bebê fazia de uma espátula (ver ESPÁTULA, JOGO
DA). A maneira com que os bebês com idade entre 5 e 13 meses refe rem-se à espátula é
uma demonstração de como sua agressão inata havia sofrido altera ções e se desenvolvido,
isso de acordo com sua relação com a mãe, de modo que sua atitude em pegar a espátula,
tocá-la, segurá-la, deixá-la cair e colocá-la na boca corres ponderá à experiência vivida por
eles de ser seguro pela mãe, de ser alimentado, ama do e, muitas vezes, bem tratado. Aqui
existe uma ênfase implícita em que a mãe determina a saúde do bebê; no entanto, o
interesse de Winnicott estava voltado para a comunicação entre a mãe e o bebê, e para
como a intermutualidade inconsciente de ambos contribuía para os processos maturacionais
do bebê (ver COMUNICAÇÃO: 2).
Em 1945, o pensamento de Winnicott quanto à agressão alargou-se consideravelmen te.
Este ano marca não apenas o término da Segunda Guerra Mundial, mas também o fim dos
Debates sobre as Controvérsias, quando a Sociedade Britânica de Psicanálise dividiu-se em
dois grupos: freudianos e kleinianos. Os analistas que não desejavam identificar-se com
nenhuma das facções tornaram-se conhecidos como o Midd!e Group. Esse grupo tardou em
nomear-se Grupo Independente. Embora Winnicott não tivesse o desejo de tomar parte de
qualquer grupo, sua obra é freqüentemente associada à tradi ção independente da
psicanálise britânica, o que também ocorre com outros clínicos como Marion Milner,
Michael Balint, Ronald Fairbairn e, hoje em dia, com nomes como Christopher Bollas e
Charles Rycroft.
Em seu importante e emblemático trabalho, Primitive Emotional Deveiopment (1945),
vários dos temas que continuarão a preocupar Winnicott pelo resto de sua vida são expostos
como pano de fundo para todas as suas especulações posteriores (Phillips, 1988, p. 76).
Postula o princípio de três processos relativos ao início da vida:
“Existem três processos que me parecem ter um início bastante precoce: (1) a integração,
(2) a personalização, (3) após estes dois, o reconhecimento do tem po e do espaço, bem
como de outras propriedades da realidade — resumida- mente, realização. São fatores
essenciais ao desenvolvimento.”
“Primitive Emotional Development”, p. 149]
Mesmo que os três processos acima mencionados tenham seu início para o bebê nas
primeiras 24 horas devida após o nascimento, Winnicott aposta no que chamou de “seif
cruel primitivo”. Esta crueldade se dá antes mesmo de o bebê ser capaz de sentir-se
preocupado. Assim o self cruel antecede o self implicado. Mas o se!f com capacidade para
a preocupação (se!f concerned) — ou a capacidade de sentir-se preocupado — depen de,
para seu desenvolvimento, que o self cruel permita sua expressão.
“Mesmo considerando que o indivíduo torna-se integrado e personalizado, e que o início do
processo de realização foi satisfatório, resta ainda um longo caminho a ser coberto antes
que ele se relacione como uma pessoa total com uma mãe total, preocupando-se com os
efeitos que seus próprios pensamentos e ações possam ter sobre ela.
Temos que postu lar uma relação de objeto precoce cruel.
A criança que é normal vive uma relação cruel com sua mãe que é revelada no brincar. Ela
necessita de sua mãe, pois é somente dela que pode ser espera da uma certa tolerância no
que diz respeito à relação cruel que encontramos no brincar, uma vez que isto a fere e a
deixa esgotada. Sem este brincar não resta à criança outra coisa senão ocultar seu seIf cruel,
dando lugar a um esta do de dissociação.”
] Emotional Development”, p. 154]
Neste trabalho Winnicott não foi muito específico, se levarmos em conta a idade
aproximada do bebê cruel com sua mãe. No entanto, como veremos, a crueldade que o bebê
e a criança em crescimento demonstram constitui-se dos primeiros dois anos de vida. O
brincar, associado ao se!f cruel refere-se à criança de aproximadamente 6 meses em diante
— um bebê/criança que seja capaz de brincar (ver BRINCAR: 4).
Entretanto, o aspecto cruel do brincar é a determinação do se!f cruel precoce em um tempo
anterior às relações de objeto. Eis aqui um ponto de evolução no pensamen to de Winnicott;
no texto de 1945, Primitive Emotiona! Deve!opment, Winnicott refere-se à relação de
objeto cruel aparecida no início da vida. Em 1952, em um curto trabalho,
AnxietyAssociated with !nsecurity, Winnicott expõe o porquê de dizer, em 1942, “o bebê
não existe!”. E em seu trabalho de 1952 que ele se mostrou preparado para postular um
tempo em que a mãe e o bebê estão fundidos e que precede a relação de objeto. A cru
eldade do bebê pertence a esse tempo, que é a época da dependência absoluta, quando ele
não é capaz de reconhecer sua dependência em relação a sua mãe e nem seu amor cruel por
ela (ver DEPENDÊNCIA: 2; SER: 3; ÓDIO: 5).
Devemos lembrar que esse é um período estabelecido por Winnicott como “pré-remorso”
ou “pré-preocupação”. Em outras palavras, o bebê não possui qualquer consciência de sua
crueldade. Apenas ao entender que é capaz, é que, então, se volta e diz “Eu fui cruel” (ver
PREOCUPAÇÃO: 6).
Como este se!f cruel obtém uma resposta da mãe é um aspecto crucial de como a agressão
afeta o desenvolvimento emocional do bebê que cresce.
Se o bebê é obrigado a ocultar seu self cruel por causa de um ambiente incapaz de tolerar a
agressão, isso acarretará uma dissociação, — isto é, uma não-integração, um
desconhecimento e uma divisão. E esta dissociação que Winnicott explora em 1947 em um
de seus mais importantes trabalhos, Hate in the Countertransference (ver ÓDIO: 1).
4 A aversão do analista
Este trabalho de 1947 discorre sobre os sentimentos de agressão primitiva surgidos no
analista no decorrer de seu trabalho com pacientes borderline ou psicóticos, chamados por
Winnicott de “casos de pesquisa” (ver ÓDIO: 3).
A importância deste item reside nas citações feitas por Winnicott do texto de Freud,
intitulado “A Pulsão e suas Vicissitudes” (1915c), texto atravessado pela clareza e que
ilustra as razões de acreditar que os conceitos de ódio constitucional, sadismo e inveja são
insustentáveis.
“De uma forma bastante superficial, poderíamos dizer que a pulsão „ama‟ o objeto... assim
percebemos que as atitudes de amor e ódio não podem servir de exemplo para caracterizar a
relação das pulsões com seus objetos, mas estão reservadas para as relações entre o ego
total e os objetos.”
“... Penso ser isto verdadeiro e extremamente importante. Isto não quer dizer que a
personalidade deva estar integrada antes mesmo que possamos dizer que o bebê odeia?
Mesmo que a integração possa ser alcançada — talvez a integração
mais precoce surja no auge da excitação ou da raiva—, existe um estágio teórico
que é anterior onde o que quer que o bebê faça para ferir não é feito com ódio.
Empreguei o termo “amor cruel” a fim de descrever este estágio. Isto é aceitável?
A medida que o bebê vai tornando-se capaz de sentir-se como uma pessoa total,
a palavra ódio passa a significar a descrição de um agrupamento de sentimen
tos.”
[ in the Countertransference”, pp. 200-2011
11
Dando continuidade aos debates travados com Melanie Klein, Winnicott sustenta que a
inveja, o ódio e o sadismo são emoções dependentes da intenção, e que o bebê imaturo
ainda não conquistou a intenção consciente. Uma pessoa total, segundo Winnicott, é o
indivíduo que conseguiu alcançar um “status unificado” e capaz de distinguir entre “eu” e
“não-eu”, dentro e fora (ver EGO: 3; DEPRESSÃO: 3).
O que se destaca da teoria do desenvolvimento de Winnicott é que, no princípio, a agressão
no bebê surge para ser necessariamente cruel. Assim é o bebê durante a fase de
dependência absoluta (ver DEPENDÊNCIA: 1,2).
Do princípio da década de 50 em diante, o pensamento de Winnicott sobre a agres são
desenvolve-se de uma forma que passa a oferecer à psicanálise uma perspectiva alternativa
relativa ao bebê diversa da de Melanie Klein.
5 A evolução da agressão
Em um trabalho de 1950-54, Aggression in Relation to Emotiona! Development, que é uma
combinação de três textos, é exposta a afirmação definitiva de Winnicott a respeito do
papel da agressão.
Inicia por demarcá-la em três diferentes estágios do desenvolvimento do ego:
Um estudo completo pode traçar a agressividade como ela aparece em vários estágios de
desenvolvimento do ego:
Inicial
Intermediário
Pessoa total
Pré-integração
Propósito sem preocupação
Integração
Propósito com preocupação
Culpa
Relações interpessoais
Situações triangulares etc.
Conflito consciente e inconsciente”
[ in Relation to Emotional Development” pp. 205-206]
Deve ser notado que, embora Winnicott — diferentemente de Melanie Klein e Freud —
faça uma distinção entre o ego e o se!f, por toda sua obra a forma com que se utilizou des
ses termos é, com bastante freqüência, contraditória e ambígua (ver EGO: 1; SELF: 1).
Winnicott é muito explícito sobre seu desejo de retomar a expressão cunhada por Melanie
Klein, “posição depressiva”. Concomitantemente, elabora suas idéias sobre o destino da
agressão:
Estágio de preocupação
Chegamos ao estágio descrito por Melanie Klein como “posição depressiva” do
desenvolvimento emociona!. A fim de melhor servir aos meus propósitos, chamarei esta
fase de estágio de preocupação. A integração do ego do indiví duo é suficiente para que
possa avaliar a personalidade da figura materna, sen do que aquilo que resulta daí é de
extrema importância, ou seja, ele fica preocupado com os resultados de sua experiência
pulsional, tanto física como ideacionalmente.
O estágio de preocupação traz em seu interior a capacidade de sentir cul pa. A partir daí
alguma agressão surgirá clinicamente na forma de tristeza ou de um sentimento de culpa,
ou ainda de um equivalente físico, como o vômi to. A culpa refere-se ao dano que sentimos
ter causado à pessoa amada na rela ção de excitação. Quando é sadio, o bebê pode sustentar
a culpa e, assim, com a ajuda de uma mãe presente e viva (que personifica o fator
temporal), é capaz de descobrir seu próprio impulso pessoa! de dar, construir e reparar.
Desta forma, uma parte significativa da agressão é transformada em funções sociais,
surgindo como tal. Em períodos de desesperança (como quando não encontramos ninguém
que aceite um presente ou que reconheça o esforço dirigido à reparação), esta
transformação perde força, reaparecendo, então, a agressão. As atividades sociais não serão
satisfatórias, a não ser que estejam fundadas em um sentimento de culpa pessoal em função
da agressão.
Raiva
Em minha descrição agora se coloca o momento de explorar a raiva motivada pela
frustração. A frustração, que é inevitável em algum grau em qualquer experiência, encoraja
a seguinte dicotomia: 1. impulsos agressivos inocentes dirigidos aos objetos frustrantes, e 2.
impulsos agressivos produtores de culpa dirigidos a objetos bons. A frustração atua no
sentido oposto da culpa e ali menta um mecanismo de defesa, a saber, o amor e o ódio que
tomam cami nhos distintos. Se esta cisão dos objetos em bons e maus tiver sucesso,
percebemos um certo alívio do sentimento de culpa; mas, em troca, o amor vem a perder
uma parte de seu valioso componente agressivo, tornando-se assim o ódio ainda mais
destruidor.
[ in Relation to Emotionai Development”, pp. 206-2071
O último parágrafo traz a teoria kleiniana em seu bojo. O bebê, na teoria de Melanie Klein,
opera a separação entre o bom e do mau desde o princípio (posição paranói de-esquizóide),
mesmo assim, ainda que o bebê de Winnicott venha a separar o bom do mau, isso se dará
como resultado da frustração. A ênfase dada por Melanie Klein é
13
sobre o mundo interno do bebê; para Winnicott a coloração do mundo interno do bebê é
absolutamente contingente no que diz respeito a sua relação com o mundo externo
(ver SER: 5; AMBIENTE: 1; PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 1).
Como relatado acima, Winnicott jamais aceitou a teoria instintiva (de vida e de morte) de
Melanie Klein; em seu lugar descobriu em seu trabalho clínico o que descre veu como
sendo as duas raízes da vida pulsional: a raiz agressiva e a raiz erótica. O que abalou
Winnicott foi...
“... que quanto mais o paciente empenha-se na descoberta das raízes da agres sividade, mais
o analista fica esgotado pelo processo, de uma forma ou de outra, do que quando o paciente
está descobrindo as raízes eróticas da vida instintiva.”
[ in Relation to Emotional Development”, p. 2141
Sua alusão diz respeito a uma diferença de qualidade, mas não é tão esclarecedor como
quando se refere ao termo “erótico”. Por toda sua obra o uso da palavra “erótico” é muito
raro, sendo que sua teoria é freqüentemente vista como uma “fuga do erótico” (Phillips,
1988, p. 152). Parece que, ao dirigir-se naquele período a seus colegas da Socie dade
Britânica de Psicanálise, sentiu-se frustrado por estes tentarem dar cores patoló gicas a algo
que pensava ser normal:
“... existe muita confusão em torno do uso que fazemos do termo agressão, principalmente
quando o empregamos de uma forma espontânea.”
[ in Relation to Emotional Development”, p. 2171
A inclinação de Winnicott é sempre no sentido de buscar a saúde no indivíduo, enten dida
como o oposto da patologia, porém, seu uso idiossincrático da terminologia freudia na,
misturada à linguagem dos pacientes, pode tornar algumas das passagens de seu texto de
1950-54 confusas e de dificil entendimento. As quatro áreas-chave relativas à agressão São:
a função da fusão;
• a necessidade de oposição;
• a necessidade da realidade de um objeto externo para sentir-se real;
• a necessidade de um objeto antes da necessidade de prazer.
6 A função da fusão
Fusão é um termo utilizado por Freud em sua teoria das pulsões. Winnicott entende que a
fusão dos componentes erótico e agressivo não pode ser entendida como já determinada; ao
contrário, deve ser vista como um objetivo:
“Admitimos a existência de uma fusão de componentes agressivos e eróticos na saúde,
porém nem sempre damos a importância necessária ao período de pré-fusão e à função da
fusão. Com muita facilidade podemos tomar a fusão como algo corriqueiro, mas assim nos
afundamos em futilidades logo que deixamos de considerar um caso real.
Deve-se considerar que a função da fusão é de extrema relevância e que, mesmo na saúde, é
impossível de ser realizada. Além disso, é muito comum encontrarmos grandes quantidades
de agressão não-fundida, o que vem a agravar a psicopatologia do indivíduo que se submete
a uma análise.
Em perturbações severas que envolvem uma falha na fusão, a relação do paciente com o
analista apresenta-se algumas vezes agressiva e outras eró tica. Sendo assim, afirmo que o
analista terá uma chance maior de esgotar-se com o primeiro do que com o segundo tipo de
relação parcial.”
[ in Relation to Emotional Development”, pp. 214-21 51
Winnicott refere-se ao paralelo existente entre o paciente que regride na análise e o bebê
recém-nascido. Se a função que devia ser operada pela fusão não for estabelecida no
indivíduo por causa de uma falha no ambiente, então deverá ser estabelecida por meio da
relação de transferência (ver REGRESSÃO: 7).
Winnicott não esclarece com precisão suficiente o que queria dizer com “a relação do
paciente com o analista apresenta-se algumas vezes agressiva e outras erótica”, porém
podemos pensar nos vínculos “agressivos” que a crueldade do bebê estabelece com a mãe e
que, no entanto, não a sufocam. O fator erótico, ao contrário, está relacio nado à
“coexistência sensual” do bebê em um estado não integrado com sua mãe em sua
preocupação materna primária.
Estas duas vertentes distintas da vida instintiva dizem respeito à tese do “estágio de
preocupação” de Winnicott, escrita em 1963, quase dez anos após as citações expostas
acima. Foi no texto de 1963, The Deve!opment ofthe Capacity for Concern, que Winnicott
funda a idéia de que para o bebê existem duas mães: a mãe-objeto e a mãe-ambiente. A
primeira constitui-se na mãe experimentada pelo bebê em seu estado de excitação. A
segunda é a mãe que é tomada como outro pelo bebê em um estado de paz e tranqüilidade.
O advento dessas duas mães na mente do bebê é um fator necessá rio ao desenvolvimento
que o torna capaz de desenvolver o sentido de preocupação. Portanto, a “função da fusão”
pode ser entendida como a primeira teoria de Winnicott que em 1963 evoluiu para a
“junção de duas mães” (ver PREOCUPAÇÃO: 3).
Também podemos supor que o sufocamento da mãe pelo seu bebê executa a fun ção de
fusão; e que o analista, ante o paciente regredido que se debate em fundir as duas vertentes
da vida, apresenta algum parentesco com o ódio engendrado na mãe pelo bebê, assim como
no analista pelo paciente. E por demais doloroso, mas necessá rio (ver ÓDIO: 3, 7).
7 A necessidade de oposição e a realidade do objeto externo
“... os impulsos agressivos não produzem qualquer experiência de satisfação, a menos que
haja oposição. Esta oposição deve vir do ambiente, do não-eu que gradualmente se
diferencia do eu... no desenvolvimento normal a oposi ção vinda do exterior traz consigo o
desenvolvimento do impulso agressivo.”
O que Winnicott conceituou como sendo “agressão primária” em um trabalho anterior,
agora denomina de “força vital” — “a prova da vida dos tecidos” — que, segundo ele, é a
mesma em cada feto:
“A questão que se coloca é que a quantidade de potencial agressivo que o bebê traz consigo
depende da quantidade de oposição encontrada até então. Em outras palavras, a oposição
influencia a conversão da força vital em agres são potencial. Além disso, um excesso de
oposição traz problemas que tornam impossível a existência daquele indivíduo que,
possuindo um potencial agres sivo, consegue fundi-lo ao erótico.”
[ in Relation to Emotional Development”, p. 2161
Essa última frase faz referência à ruptura do desenvolvimento emocional a partir das
reações de choque (ver AMBIENTE: 7). No caso da oposição externa ser por demais intru
siva, o bebê pode apenas reagir em lugar de responder. Na terminologia de Winnicott,
reagir ao choque significa que o sentido de se!fdo bebê, bem como o continuar-a-ser é
abortado. Conseqüentemente, a função da fusão fica suspensa, o que se constitui em uma
violação do se!f (ver AMBIENTE: 7; COMUNICAÇÃO: 12).
Winnicott acentua que a quantidade — que a partir de agora passa a chamar de “potencial
agressivo:”
“... não depende de fatores biológicos (que determinam a motilidade e o ero tismo), mas das
contingências da invasão ambiental precoce e, com bastante freqüência, das anormalidades
psiquiátricas da mãe e do estado do ambiente emocional materno.”
1”Aggression in Relation to Emotional Development”, pp. 217-218]
Na terceira parte desse texto, intitulada The Externa! Nature of Objects, originalmente apre
sentada a um pequeno grupo no ano de 1954, Winnicott formulou uma personalidade
constituída de três selves:
“A personalidade é constituída de três partes: um verdadeiro self, com um eu e um não-eu
claramente estabelecido, e que funde os elementos agressivo e eró tico; um se/f que com
bastante facilidade é seduzido pela experiência erótica, sendo que o que resulta daí é uma
perda do sentimento de realidade; e um self que fica inteira e cruelmente entregue à
agressão. Esta agressão não é nem mesmo organizada no sentido da destruição, mas possui
um enorme valor para o indivíduo, pois traz consigo um sentimento de realidade e de
relação, porém só existe através de uma oposição ativa, ou (posteriormente) pela perse
guição.”
[ in Relation to Emotional Deve Iopment”, p. 21 7]
Winnicott não voltou mais a referir-se a esses três selves em nenhuma outra oportuni dade.
No entanto, em 1960, o desenvolvimento de suas idéias sobre a dissociação no
desenvolvimento da idéia de se!f faz-se presente em seu trabalho intitulado Ego Distortion
in Terms of True and False Se!f (ver SELF: 4).
1”Aggressive in Relation to Emotional Development”, p. 2151
Na teoria instintiva de Freud o princípio do prazer desempenha o principal papel no que diz
respeito à necessidade do bebê de um objeto, ou seja, o bebê busca o prazer quando procura
o objeto. Winnicott não compartilha dessa opinião, embora jamais houvesse reconhecido
categoricaniente que discordasse de Freud. Suas divergências eram com Melanie Klein.
“O gesto impulsivo dirige-se ao exterior e torna-se agressivo ao alcançar a oposição. Existe
realidade nessa experiência, que facilmente funde-se às expe riências eróticas que
aguardam o recém-nascido. Sugiro o seguinte: é esta impulsividade, bem como a agressão,
que se desenvolve a partir dela, e que faze com que o bebê necessite de um objeto externo e
não, simplesmente, de um objeto de satisfação.”
V‟Aggression in Relation to Emotional Development”, p. 21 71
O parágrafo final deste texto antecipa um dos mais complexos, e quem sabe o mais
ingênuo dos conceitos de Winnicott. Este texto foi trabalhado até perto de sua morte,
e tinha por título The Use ofan Object and Relating Through Ident
“No intercurso sexual maduro e saudável talvez seja verdadeiro que não é apenas a
satisfação erótica que necessita de um objeto específico. E o elemento agressivo ou
destrutivo do impulso fusional que fixa o objeto e determina a necessidade de sentir a
presença, a satisfação e a sobrevivência reais do parceiro.”
[ o Relation to Emotional Development”, p. 218]
The Use ofan Object and Relating Through ldent foi escrito em 1968 e publicado em um
volume que recebeu o título de “O Brincar e a Realidade”‟. No entanto, de 1954 em diante,
antes desse trabalho ser concluído, o tema da agressão é exposto em diferentes textos de
Winnicott, como estando especificamente vinculado à depressão e à posição depressiva,
bem como à idéia de culpa e reparação, à criatividade e à capacidade de estar preocupado
(ver ANTI-SOCIAL, TENDÊNCIA: 10; PREOCUPAÇÃO: 8; CRIATIVIDADE: 5; MÃE:
8).
8 O amor cruel
O trabalho escrito por Winnicott em 1954, The Depressive Position and Normal Develop
ment, inicia-se com uma descrição da “posição depressiva” descrita por Melanie Klein (ver
PREOCUPAÇÃO: 2).
Reitera que originalmente o “amor instintivo” do bebê é “cruel”. Em poucas pala vras,
introduz a idéia, mais tarde desenvolvida em The Use ofan Object e em “O Brincar e a
Realidade”, segundo a qual o amor cruel do bebê inicialmente ajuda a “localizar o objeto
exteriormente ao self”.
A noção de “círculo benigno”, entendido como inserido na “capacidade de estar
implicado”, assim como a idéia de duas mães — a mãe-objeto e a mãe-ambiente — foi
apresentada nesse trabalho e desenvolvida melhor no decorrer da década de 60 (ver
PREOCUPAÇÃO: 3, 5).
Foi quatro anos depois, em 1958, em um texto comemorativo do centenário de Freud, que a
“crueldade” torna-se positivamente vinculada à criatividade do artista. Em um parágrafo
bastante enigmático intitulado “O Artista Criativo”, Winnicott demonstra sua aprovação ao
“self cruel” do artista.
“As pessoas habitualmente governadas pelo sentimento de culpa entendem ser isso um
tanto surpreendente; assim mesmo guardam um respeito enganoso pela crueldade que leva
de fato, em tais circunstâncias, a algo mais do que o trabalho orientado pela culpa.”
[ and the Sense of Guilt”, 1958, p. 261
Em maio de 1960, em conferência proferida na Progressive League, que teve por título
Aggression, Gui!t and Reparation, Winnicott insiste na exploração do amor cruel precoce e
de sua natureza destrutiva:
“Irei basear-me em minha experiência como psicanalista para descrever um tema que se
repete no trabalho analítico e que é sempre de enorme importân cia. Ele diz respeito às
raízes da atividade construtiva e à relação entre constru ção e destruição.”
[ Guilt and Reparation”, p. 1361
O que se seguiu foi uma homenagem a Melanie Klein, que foi quem, de acordo com
Winnicott, “investigou a destrutividade inerente à natureza humana, fazendo com que
passasse a fazer parte do vocabulário psicanalítico”.
9 A tolerância à destrutividade que leva à preocupação
Winnicott mostra, em Aggression, Guilt and Reparation, a importância para cada pessoa em
compreender que seu impulso destrutivo primitivo faz parte de seu amor precoce.
“Talvez fosse melhor dizer que os seres humanos não podem tolerar o objetivo destrutivo
de seu amor precoce. No entanto, essa idéia pode ser tolerada se o indivíduo que tende a ela
demonstra certas evidências de um objetivo constru tivo de que possa se recordar.”
1”Aggression, Guilt and Reparation”, p. 139]
Este objetivo construtivo, segundo ele, é um aspecto do sentimento de culpa:
“Estamos lidando com apenas um dos aspectos do sentimento de culpa. Sua origem reside
na tolerância dos impulsos destrutivos do indivíduo no amor pri mitivo. A tolerância dos
impulsos destrutivos resulta em algo completamente novo, ou seja, a capacidade de
desfrutar das idéias, mesmo com a destruição que faz parte delas, e das excitações corporais
próprias delas. Esse desenvolvimento amplia a experiência de preocupação, que se constitui
na base para tudo aquilo que é construtivo.”
í”Aggression, Guilt and Reparation”, p. 142]
Quando escreveu sobre o valor da destruição, Winnicott referia-se especificamente à
destruição que se dá nas fantasias inconscientes, o que é o oposto da destruição que fica a
descoberto. Isso pode ser confirmado por uma carta escrita a um colega e datada de 1963,
onde descreve a elaboração do significado da destruição inconsciente na bus ca de uma
correlação com a relação de objeto e o uso deste. Descreve um sonho que é dividido em três
partes: na primeira delas, ele fazia parte do mundo que era destruído; na segunda, era o
agente da destruição; e na terceira, despertava de seu sonho:
“... e tinha plena consciência de que tive um sonho em que ao mesmo tempo em que era
destruído, era o agente da destruição. Não existia dissociação, e os três eus interligavam-se.
Era imensamente satisfatório, embora o trabalho ope rado demandasse muito de mim.”
[ Dream Related to Reviewing Jung”, 1963, p. 229]
Para Winnicott, esse sonho possuía uma “importância toda especial” por alertá-lo do
significado do papel da agressão relativa ao estágio do desenvolvimento emocional onde o
uso do objeto reinstaura a relação de objeto. A “agressão primária” e a “cruelda de” são os
diferentes aspectos de um tipo de destrutividade primária que, no caso do objeto/ambiente
sobreviverem a ela, tornará o sujeito capaz de encarar o mundo real da forma com que ele
realmente se apresenta.
“Na terceira parte do sonho e ao despertar, estava absolutamente ciente de que a
destrutividade relaciona-se aos objetos exteriores ao mundo subjetivo ou à área de
onipotência. Em outras palavras, primeiramente existe a criativi dade que é própria do estar
vivo, sendo que o mundo é um mundo subjetivo. A partir daí surge o mundo objetivamente
percebido e a destruição absoluta dele e de tudo aquilo de que dele faz parte.”
[ Dream”, p. 229]
lnicialmente o bebê não pode distinguir entre o “eu” e o “não-eu”, sendo que os obje tos (ou
seja, o ambiente) são percebidos subjetivamente — é o que se constitui na rela ção de
objeto. Enquanto o bebê se desenvolve, dependendo do ambiente facilitador e da mãe
suficientemente-boa que se apresentar, ele passa objetivamente a perceber o mundo: é isso
o uso do objeto.
Winnicott sabia o quão difícil seria a aceitação da idéia de destrutividade.
“Com o intuito de ajudar, gostaria de dizer que defino estas coisas como avidez.”
]“Comments on My Paper „The Use of an Object‟ “, 1968, p. 240]
“... poderíamos fazer uso com um extraordinário proveito da idéia do fogo lan çado pela
boca do dragão. Cito Plínio, que (em um tributo ao fogo) interroga:
„Quem poderia dizer se, em essência, o fogo é construtivo ou destrutivo?‟ Na verdade, a
base fisiológica do que acabo de fazer referência são as primeiras respirações e as
subseqüentes, a exalação.”
]“Comments on My Paper”, p. 239]
Isto é uma reminiscência da origem filológica da inspiração, que é a respiração; uma
conspiração significa respirar em conjunto. O respirar (o espírito) é sagrado para a cul tura
judaico-cristã.
“O artigo apresentado por mim proporciona à psicanálise a oportunidade de repensar este
tema. Neste estágio precoce de vital importância, a „destrutivida de‟ viva (fogo-ar ou ainda
uma outra) do indivíduo constitui-se simplesmente em um sintoma de estar vivo, e nada
tem a ver com a raiva do indivíduo em relação às frustrações referentes a seu encontro com
o princípio de realidade.
Como tentei estabelecer, a pulsão é destrutiva. A sobrevivência do objeto conduz ao uso do
objeto, e ele, à separação de dois fenômenos distintos:
1. a fantasia; e
2. a localização real do objeto fora da área de projeção.
Conseqüentemente, esse ímpeto destrutivo tão precoce desempenha uma função positiva
vital (quando, através da sobrevivência do objeto, ela conse gue operar), ou seja, a
objetivação do objeto (o analista na transferência).”
]“Commer,ts on My Paper”, p. 239]
Posteriormente, Winnicott postula o que se convencionou chamar de “impulso destru tivo”
e que poderia ser denominado de “impulso combinado de amor-conflito” — o que não são
duas pulsões distintas, a de vida e a de morte, mas sim uma combinação das duas em uma,
a princípio.
Nota-se aqui uma semelhança com a teoria deJung.Jung não se ocupou da agres são, mas
referiu-se aos processos destrutivo e construtivo da psique. Estabeleceu a natureza neutra
da energia psíquica, bem como uma energia vital indivisível (também apresentada coma
pulsão de vida), que servem aos propósitos tanto do processo regressivo quanto do
progressivo; ao servir ao primeiro, desencadeia a dissolução ou “morte” do ego,
precipitando uma alteração psíquica ou “renascimento”. A criatividade diz respeito a ser
capaz de suportar esse processo de “morte”, além da tensão dos opostos que lhe é própria.
„10 A sobrevivência: da relação de objeto ao uso do objeto
Em uma referência ao “destino da pulsão destrutiva”, Winnicott destacou o papel
desempenhado pelo ambiente que sobrevive à destruição do sujeito. E desta forma que o
indivíduo tem acesso ao uso do objeto:
“O destino dessa unidade pulsional não pode ser estabelecido sem que esteja referida ao
ambiente. A pulsão é potencialmente „destrutiva‟, mas se ela é des trutiva ou não depende
do objeto; o objeto sobrevive, isto é, mantém seu cará ter, ou reage? No primeiro caso, não
há destruição, ou pelo menos não muita.
10 • AGRESSAO
A LINGUAGEM DE WINNICOTT
Existe um momento que se segue em que o bebê pode tornar-se, e gradual mente se torna,
ciente de um objeto catequizado, além da fantasia de ter des truído, ferido, danificado ou
provocado o objeto. O bebê, nesse extremo da provisão ambiental, insiste em um padrão de
desenvolvimento da agressivida de pessoal que fornece o pano de fundo a uma continuada
fantasia (inconsci ente) de destruição. Aqui podemos empregar o conceito de reparação
proposto por Melanie Klein, que vincula o brincar e o trabalho construtivos com este pano
de fundo de fantasia (inconsciente) de destruição ou provocação (talvez uma palavra mais
apropriada não tenha sido encontrada). Mas a destruição de um objeto que sobrevive, que
não reagiu ou desapareceu, conduz ao uso.”
[ Use of an Object in the Context of Moses and Monotheism”, p. 245]
O bebê que está apto a perceber o mundo objetivamente experienciou o objeto que
sobrevive a sua destrutividade (agressão primária). Isso significa que o objeto permane ce
sendo, de certa forma, o mesmo, uma vez que não sofre qualquer retaliação por rejei ção ou
punição. A mãe que não for suficientemente-boa e que não puder responder aos sinais
espontâneos emitidos pelo bebê não consegue sobreviver e, conseqüentemente, desencadear
o desenvolvimento emocional de seu bebê. Uma conseqüência disso é que o bebê corre o
perigo de desenvolver uma complacência, um falso self, ou coisa muito pior (ver
AMBIENTE: 4, 7; MÃE: 6).
Em algumas notas escritas no ano de 1965, Winnicott nos fornece exemplos do
estabelecimento literal da destruição e da destruição na fantasia.
“Para servir de exemplo: a pessoa anti-social que entra em uma galeria de arte e retalha
uma tela pintada por um antigo mestre não está movida pelo amor à pintura, nem está sendo
tão destrutiva quanto aquele amante da arte que pre serva a pintura e a usa em toda sua
plenitude, mas na sua fantasia inconsciente a destrói infinitas vezes. Apesar disso, este ato
de vandalismo afeta a socieda de, que tem que se proteger. Este exemplo, grosso modo,
pode servir para mos trar a existência de uma enorme diferença entre a destrutividade
inerente à relação de objeto e a destrutividade surgida da imaturidade do indivíduo.”
[ Made on a Train, Part 2”, p. 232]
Em outras palavras, de acordo com Winnicott, existe uma destruição que é sadia e outra
que é patológica. A destruição saudável é inconsciente e localiza-se na fantasia, o que
significa integração e maturidade emocional. A destruição que atua e que é patoló gica
indica uma agressão que não pôde integrar-se à personalidade e que permanece dividida,
apontando para uma imaturidade emocional.
Em uma passagem muito citada de The Use ofan Object and Relating through Ident cations,
Winnicott ilustra como a passagem da relação de objeto para o uso do objeto engendra a
destruição inconsciente.
“Esta mudança (da relação para o uso) significa que o sujeito destrói o objeto. A esse
respeito, um filósofo de gabinete poderia afirmar que, em vista disso, na prática não existe
algo como o uso de um objeto: se ele for externo, o objeto é destruído pelo sujeito. O
filósofo deveria, isto sim, levantar-se de sua poltrona
e sentar-se no chão com o paciente. Assim perceberá que existe uma posição intermediária.
Em outras palavras, descobrirá que após „o sujeito relacionar-se com o objeto‟ surge „o
sujeito que destrói o objeto‟ (quando se torna externo) e, então, teremos „o objeto que
sobrevive à destruição operada pelo sujeito‟. Mas tanto pode haver como não haver
sobrevivência. Surge, então, um novo fator na teoria da relação de objeto. O sujeito diz ao
objeto: „Eu te destruí‟, e o obje to lá está para receber esta comunicação. A partir daí o
sujeito diz: „Eu te des truí. Eu te amo. Tua importância para mim reside na tua
sobrevivência à destruição que te infligi. Ao amar-te, permanentemente estou te destruindo
(inconscientemente) em minha fantasia‟. Aqui tem início a fantasia para o indi víduo. O
sujeito pode agora usar o objeto que sobreviveu. E importante salien tar que não se trata
apenas da destruição do objeto pelo sujeito, uma vez que o objeto está situado fora da área
de controle onipotente. E igualmente impor tante colocar a questão de uma outra maneira,
ou seja, que é a destruição do objeto que o situa fora da área de controle onipotente do
sujeito. É dessa forma que o objeto desenvolve uma autonomia e uma vida próprias e
(sobrevivendo) que contribui com o sujeito conforme as propriedades que apresentar.”
[ of an Object and Relating”, pp. 89-90]
Vale a pena observarmos outra diferença fundamental entre Winnicott e Melanie Klein:
o objeto que é destruído não é reconstituído pelo sujeito porque a sobrevivência do objeto
constitui-se como total, isolada e externa, pela percepção do sujeito:
“A teoria ortodoxa abraça a suposição de que a agressão é reativa ao encontro como
princípio de realidade, enquanto que aqui é a pulsão destrutiva que cria a qualidade da
externalidade. Isto é fundamental em minha argumentação... Não existe raiva na destruição
do objeto ao qual me refiro, embora possamos dizer que haja alegria em sua
sobrevivência.”
[ of an Object and Relating”, p. 93]
No final deste trabalho Winnicott esclarece o que quis dizer com a palavra “uso”:
“Desejaria concluir com uma nota a respeito do usar e do uso. Por „uso‟ não pre tendo
significar „exploração‟. Como analistas, sabemos perfeitamente o que é ser usado, o que
significa que podemos vislumbrar o final do tratamento, mesmo que esteja ainda muito
distante. Diversos de nossos pacientes chegam a nós com esse problema já solucionado —
podem usar objetos, podem usar-nos e podem usar a análise, da mesma forma que usaram
seus pais, irmãos e lares. Contudo, existem muitos pacientes que necessitam de nós para
que consigam adquirir a capacidade de usar-nos. Para eles, esta constitui-se na tarefa
analítica. Indo ao encontro das necessidades desses pacientes, precisamos saber a que está
relacionada nossa sobrevivência a sua destrutividade. Um pano de fundo de destruição
inconsciente do analista é estruturado. Ou nós sobrevivemos a ela, ou teremos mais uma
análise interminável.”
[ of an Object and Relating”, p. 94]
Nos últimos anos de sua vida, a principal preocupação de Winnicott foi com os temas
relacionados ao papel da pulsão de destruição na relação de objeto e no uso do objeto.
O que é fundamental no desenvolvimento saudável é a capacidade de encontrar e usar
o objeto, e para Winnicott ser usado pelo outro era um elogio.
“Para a maior parte das pessoas o elogio definitivo é ter sido encontrado e usa do. Por essa
razão suponho que essas palavras poderiam representar a comu nicação estabelecida entre o
bebê e sua mãe.
Eu encontrei você;
Você sobreviveu a tudo o que eu fiz, e eu passo, então, a reconhecê-la como não-eu;
Eu uso você;
Eu esqueço de você;
Mas você se recorda de mim;
Continuo a esquecer-me de você;
Eu perco você;
Fico triste.”
[ between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and Contrasted”, 1968, p.
103]
Se existe um trabalho que reúne a totalidade das idéias de Winnicott desenvolvidas nos
anos 40 sobre as questões relativas à agressão, este é The Use ofan Object and Relating
through Ident que foi apresentado à Sociedade Psicanalítica de New York em 1968.0
princípio central desse texto, como pode ser visto acima, é a agressão, descrita como
“destruição” — um aspecto essencial do desenvolvimento emocional ordinário. Entretanto,
o uso que Winnicott faz do paradoxo, a cunhagem de palavras do dia-a-dia, tais como
“destruição” e “sobrevivência”, aliada à invenção de novas combinações de palavras, como
“relação de objeto” e “uso do objeto” torna o texto de difTcil entendi mento para alguém
que não seja versado em sua obra. A resposta inicial da Sociedade Psicanalítica de New
York a seu trabalho possui uma história particularmente penosa (ver Goldman, 1993, pp.
197-212; Kahr, 1996, pp. 118-120).
A falta de compreensão por parte da Sociedade Psicanalítica de New York experi mentada
por Winnicott levaram-no a produzir dois outros textos curtos que tinham por tema o uso
do conceito de objeto (in: Psycho-Analytic Explorations*, W19, pp. 238-246). O segundo
destes trabalhos, The Use ofan Object in the Context of Moses and Monotheism, data do de
janeiro de 1969, põe em destaque a importância do pai, o que era bastante raro em sua obra
(descrita em Psycho-Analytic Explorations, pp. 217-2 18).
11 A pulsão de morte e o pai
É em The Use ofan Object in the Context ofMoses and Monotheism, que foi publicado
postu mamente, que Winnicott comenta o legado da pulsão de morte de Freud. No que
concerne às últimas afirmações tecidas por Winnicott sobre a forma com que a agressão se
desenvolve no bebê, dois pontos principais são examinados:
• o papel desempenhado pelo pai verdadeiro no desenvolvimento da habilidade do bebê de
integrar-se;
• o papel desempenhado pelo ambiente na etiologia das psicoses.
Winnicott desejava aliviar Freud da carga que era a teoria da pulsão, colocando que o
trabalho com psicóticos conduzia a diferentes conclusões:
“A fim de advertir o leitor, devo dizer que jamais morri de amores pela pulsão de morte, e
ficaria bastante feliz se pudesse aliviar Freud do ônus de carregá-la por toda a eternidade
em seus ombros como Atlas... E sempre possível que a formulação da pulsão de morte
tenha sido onde Freud mais aproximou-se de uma compreensão, mas não pôde fazê-lo
porque, embora soubesse tudo aquilo que sabemos a respeito da psicologia humana da
repressão do id em relação aos objetos catequizados, não fazia idéia do que os casos
fronteiriços e esquizofrênicos iriam ensinar-nos nas três décadas que transcorreram após
seu falecimento.”
[ Use of an Object in the Context of Moses”, p. 2421
Winnicott raramente referiu-se ao papel desempenhado pelo pai. Não há nada que seja
realmente novo nas idéias de Winnicott sobre a função do pai. Esteve sempre atento à
importância da parceria dos pais e ao impacto causado por ela sobre o crescimento da
criança (ver MÃE: 6, 7, 8, 9). No entanto, é nesse trabalho, datado de pouco mais de um
ano antes de sua morte, que o papel do pai como terceiro recebeu destaque — não ape nas o
pai e quem ele é como pessoas em relação à mãe, mas também o pai que a mãe contém em
sua mente durante a maternagem.
“... o que significa a presença efetiva do pai, e o papel que desempenha na experiência que
é a relação constituída entre ele próprio e a criança e entre a criança e ele? O que isso causa
ao bebê? Pois existe uma diferença que depen de do pai estar lá ou não, se está apto para
estabelecer uma relação ou não, se é sadio ou insano, se possui uma personalidade flexível
ou rígida.
Se o pai morre isso é verdadeiramente importante. Quando isso acontece durante a vida do
bebê, existem vários fatores a serem considerados que estão relacionados à imago paterna
pertencente à realidade interna da mãe e com o seu destino.”
[ Use of an Object in the Context of Moses”, p. 242]
Por isso Winnicott postula a existência de um pai que é sempre um objeto total para o bebê.
“... a terceira pessoa desempenha ou parece desempenhar para mim um importante papel. O
pai pode ou não pode ser uma mãe substituta, porém, em algumas vezes, é percebido em
um lugar diverso. E aqui que proponho que o bebê, provavelmente, faça uso do pai como
um exemplo para sua própria inte gração, quando acabava de ter início sua unificação...
Desta forma podemos ver que o pai pode ser o primeiro vislumbre dado pela criança em
direção à integração e à totalidade pessoal...
É fácil presumir que pelo fato da mãe inicialmente constituir-se em um objeto parcial ou
em um ajuntamento de objetos parciais, o pai, da mesma for ma, transforma-se em um
punhado de egos. Sugiro, no entanto, que em casos favoráveis o pai apresenta-se como um
todo (isto é, como um pai, e não como uma mãe substituta), tornando-se posteriormente
dotado de um objeto parcial significativo, mostrando-se como integrado na organização do
ego e na con ceitualização mental do bebê.”
[ of an Object in the Context of Moses”, pp. 242-243]
Winnicott propõe que o ambiente suficientemente-bom depende de uma mãe adapta da às
necessidades do bebê, enquanto que o pai, ou terceiro, está sempre presente na mente da
mãe, como também a mãe e o bebê estão presentes na mente do pai (ver
AMBIENTE: 12).
Referências
Aggression and Its Roots [ 3]
Primitive Emotiona] Development [
Hate in the Countertransference [
Aggression in Relation to Emotional Development [
Psychoanalysis and the Sense of Guilt ]W9]
Aggression, Gui and Reparation [ 3]
lhe Development of the Capacity for Concern [
D.W.W‟s Dream Related to Reviewing Jung ]W1 9]
Notes Made on a Train, Part 2 [ 9]
Comments on My Paper “The Use of an Object” [ 19]
Communícatjon between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and
Contrasted rwi 6]
Roots of Aggression [ 9]
lhe Use of an Object and Relating through Identifications [ 0]
Contribuijon to a Symposium on Envy and Jealousy [
lhe Use of an Object in the Context of Moses and Monotheísm [ 9]
1. O impacto do ambiente sobre o desenvolvimento humano
2. O setting analítico
3. A psicose - um distúrbio por deficiência do ambiente
4. A ansiedade psicótica
5. A intrusão
6. O medo do colapso
7. “Somos de fato pobres se formos apenas sãos”
8. O pai — o ambiente indestrutível
A teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott enfatiza o ambiente e sua influência
sobre a saúde emocional do bebê.
O primeiro ambiente que se constitui para o bebê é a mãe, sendo que no princí pio ambos
estão fundidos em uma estrutura ambiente-indivíduo.
O ambiente não pode ser totalmente responsabilizado pelo que sucede ao bebê em termos
de sua saúde mental; ele pode tão-somente fornecer um espectro da expe riência a ser
considerada: tanto pode ser facilitador quanto danoso.
O ambiente facilitador possibilita ao indivíduo a chance de crescer, freqüente mente em
direção à saúde, enquanto que o ambiente que falha, principalmente no início, mais
provavelmente levará à instabilidade e à doença.
1939
1945
1947
1 95 0-54
1958
1960
1963
1963
1965
1968
1968
1968
1968
1969
1969

AMBIENTE:
1. O impacto do ambiente sobre o desenvolvimento humano
2. O setting analítico
3. A psicose - um distúrbio por deficiência do ambiente
4. A ansiedade psicótica
5. A intrusão
6. O medo do colapso
7. “Somos de fato pobres se formos apenas sãos”
8. O pai — o ambiente indestrutível
A teoria do desenvolvimento emocional de Winnícott enfatiza o ambiente e sua influência
sobre a saúde emocional do bebê.
@@@ O prímefro ambiente que se constitui para o bebê é a mãe, sendo que no princí pio
ambos estão fundidos em uma estrutura ambiente-indivíduo.
O ambiente não pode ser totalmente responsabilizado pelo que sucede ao bebê em termos
de sua saúde mental; ele pode tão-somente fornecer um espectro da expe riência a ser
considerada: tanto pode ser facilitador quanto danoso.
O ambiente facilitador possibilita ao indivíduo a chance de crescer, freqüente mente em
direção à saúde, enquanto que o ambiente que falha, principalmente no início, mais
provavelmente levará à instabilidade e à doença.
1 O impacto do ambiente sobre o desenvolvimento humano
A literatura psicanalítica faz diversas referências ao papel da mãe em relação ao bebê, mas,
até por volta de 1950, a investida teórica era muito maior sobre o indivíduo e seu mundo
interior. O impacto do ambiente sobre a saúde mental do indivíduo não estava
verdadeiramente em consonância com a importância que tinha a partir do momento em que
foi adotada pela teoria analítica. A contribuição oferecida por Winnicott nesse campo não
pode ser esquecida.
Winnicott, em 1942, estava um encontro, quando levantou-se repentinamente dizendo, “o
bebê não existe!” Este foi para ele o momento de nascimento de uma ver dadeira
descoberta, relatado dez anos depois em seu texto AnxietyAssociated with Inse curity,
apresentado à Sociedade Psicanalítica Britânica, em 1952. O indivíduo passou a ser, a partir
de então, não mais considerado como uma unidade, mas como uma estru tura ambiente-
indivíduo — o par que provê cuidados.
“... se me for apresentado um bebê, certamente também me será apresentado alguém que
cuida desse bebê, ou ao menos um carrinho de bebê com os olhos de alguém grudados nele.
Podemos entrever os cuidados próprios a esse par... antes das relações objetais o estado das
coisas é este: a unidade não é o indiví duo. A unidade é a estrutura ambiente-indivíduo. O
centro de gravidade do ser não se coloca no indivíduo, mas sim no todo da estrutura.”
[ Associated with Insecurity”, p. 991
Em outras palavras, o indivíduo não existe — o que existe é o indivíduo em relação ao
mundo externo. Winnicott esforça-se, assim, em demonstrar que a relação de uma uni dade
corporal não precede a relação de um par corporal, mas, sim, a sucede.
“Algumas vezes afirmamos vagamente que antes da relação de objeto de dois corpos existe
uma relação de objeto de um corpo, o que é incorreto se olhar mos mais de perto. A
capacidade para uma relação de um corpo é posterior àquela de dois corpos, a introjeção do
objeto.”
[ Associated with Insecurity”, p. 991
Este é um tema desenvolvido por Winnicott seis anos mais tarde, em 1958, em The
Capacity to be Alone, onde estabelece que a capacidade de estar só é paradoxalmente
baseada na experiência de estar só na presença do outro — a saber, a mãe-ambiente (ver
SÓ: 1,2).
2 O setting analítico - um ambiente de holding
Em seu trabalho de 1954, Metapsychological and Clinical Aspects ofRegression within the
Psycho-Analytica! Set-Up, Winnicott tece um comentário a respeito de como Freud veio a
escolher, de forma intuitiva, um setting para seus pacientes psiconeuróticos. Esse set ting
espelha-se no ambiente primitivo, sendo que Freud o criou porque inconsciente- mente
sabia sobre o ambiente precoce suficientemente-bom.
“Freud pressupõe a situação de maternagem precoce. A polêmica que propo nho é que isso
aparece na provisão de um setting em seu trabalho, quase sem que soubesse o que estava
fazendo. Freud foi capaz de analisar-se como uma pessoa independente e completa,
interessando-se pelas ansiedades inerentes às relações interpessoais.”
V‟Metapsychologicat and Clinical Aspects”, p. 2841
Winnicott, em seu trabalho, começa por estabelecer uma divisão das técnicas da psica
nálise em interpretação e setting. E o setting que, em fins da década de 50, transforma-se no
ambiente que proporciona o ho!ding.
Existem dois aspectos fundamentais que dizem respeito às observações feitas por Winnicott
do desenvolvimento psicanalítico daquele período. Em primeiro lugar, atra vés de seu
extenso trabalho com mães e bebês, Winnicott veio a descobrir a diferença entre um
ambiente bom e um que não é bom. Em segundo lugar, pôde observar que este primeiro e
essencial ambiente bom é duplicado no setting freudiano, de que, é evi dente, faz parte a
personalidade do analista. Por esse motivo, o paciente lesado por uma falha ambiental
precoce pode vir a ter a chance de curar-se a partir do altamente específico setting
freudiano (ver HOLDING: 4; REGRESSÃO: 2). No entanto, é o paciente psi cótico quem
necessita, de uma forma mais literal, da estabilidade e da confiança forne cidas pelo
ambiente de holding (ver ÓDIO: 5).
“Gostaria de esclarecer como artificialmente dividi a obra de Freud em duas partes. A
primeira delas é a técnica da psicanálise e como ela foi desenvolvida passo a passo, tal
como é aprendida pelos que a estudam. O material é apre sentado pelo paciente,
compreendido e interpretado. A segunda é o setting no qual o trabalho é desenvolvido.”
[ and Clinical Aspects”, p. 2851
Winnicott enumera doze aspectos imprescindíveis para o estabelecimento do set ting.
Distintamente de Freud, não deixa o setting em segundo plano; ele até mesmo esclarece e
define cada um dos aspectos fundamentais do ambiente de ho!ding:
1. “Cinco ou seis vezes por semana em sessões diárias Freud colocava-se a disposição de
seus pacientes. (Estas sessões eram acomodadas de acordo com a conveniência do analista
e de seu paciente.)
2. O analista inspira confiança, é pontual, presente, respirando.
3. Pelo período de tempo preestabelecido (cerca de uma hora) o analista está alerta e
preocupado com o paciente.
4. O analista expressa seu amor através de um interesse positivo, O ódio, rigorosamente,
tem um início e um fim com a questão do pagamento. Amor e ódio foram honestamente
expressos. Isso quer dizer que não foram negados pelo analista.
5. O objetivo da psicanálise é entrar em contato com o processo do paciente, compreender o
material apresentado, e comunicar esta compreensão em palavras. A resistência implica um
sofrimento que pode ser atenuado atra vés da interpretação.
6. O método empregado pelo analista é o da observação objetiva.
7. O trabalho deve ser executado em um cômodo, e não em um lugar de passa gem. O
cômodo deve ser tranqüilo e não pode estar sujeito a ruídos indesejá veis, contudo, não
deve ter uma quietude que lembre a morte, e nem livre dos ruídos comuns a uma casa. E
preciso que receba uma iluminação apropriada. A luz não deve ser dirigida para o rosto e
nem deve ser irregular. Este cômodo certamente não pode ser escuro. Deve ser também
convenientemente aque cido. O paciente deita-se no divã confortavelmente, se for capaz de
ficar con fortável, ficando à disposição um cobertor e um pouco de água.
8. O analista (como é bem sabido) mantém o julgamento moral afastado da relação, não
entra em detalhes quanto a sua vida particular ou suas idéias, e não toma partido nos
sistemas persecutórios, nem mesmo quando isso aparece na forma de situações
compartilhadas reais, locais, políticas etc. Naturalmente, se uma guerra for deflagrada, ou
ocorrer um terremoto, ou se o rei morrer, o analista não está desavisado.
9. Na situação analítica o analista inspira uma maior confiança do que outras pessoas da
vida comum; de uma maneira geral, está livre de acessos de rai va, livre de apaixonar-se
etc.
10. Existe uma distinção bastante clara na análise entre o fato e a fantasia, de tal forma que
o analista não é atingido por um sonho agressivo.
11. A ausência da reação de um Talião pode ser esperada.
12. O analista sobrevive.”
VMetapsychological and Cli nical Aspects”, pp. 285-286]
Winnicott acentua que a conduta do analista é o que realmente possui relevância no
ambiente fTsico e temporal. Embora não seja específico, são a transferência e a contra-
transferência que se constituem nos dois aspectos basilares deste ambiente específico. Além
disso, o funcionamento deste ambiente segue as mesmas linhas traçadas pelo ambiente
parental.
“Encontramos aqui um riquíssimo material para estudo. Podemos notar uma similaridade
marcante entre todas essas coisas e a incumbência dos pais, espe cialmente aquela que a
mãe tem para com seu bebê ou do pai que desempe nha o papel da mãe, e de alguma forma
com a tarefa materna inicial.”
í”Metapsychological and Clinical Aspects”, p. 286]
3 A pskose - um distúrbio por deficiência do ambiente
Winnicott situa a etiologia da psicose na estrutura ambiente-indivíduo. Conseqüente mente,
se a mãe não for capaz de ingressar no estado de preocupação materna primá ria, deixará
que ele caia. Essa “queda”, entendida como oposta ao holding, significa que mais cedo ou
mais tarde ela irá se deparar com o fato de que falhou com seu bebê no mais crucial dos
períodos:
“Na prática o que se passa é que as mulheres, tendo produzido uma criança, mas perdido o
trem nos primeiros estágios, deparam-se com a incumbência de restabelecer aquilo que foi
perdido. Elas passam por um longo período no qual devem adaptar-se às necessidades da
criança em crescimento, mas não é certo
que obtenham sucesso na correção da distorção precoce. Em lugar de supor certos efeitos
benéficos na preocupação precoce e temporária, elas insistem em que a criança precisa de
uma terapia, ou seja, de um período prolongado de adaptação às necessidades, ou então
insistem em mimá-la. Elas preferem a terapia em vez de serem mães... Esta tarefa da mãe
(ou da sociedade) é exerci da com um enorme esforço, pois não se dá de uma forma
espontânea. Esta incumbência, nas mãos certas, faz parte de um período precoce, nesse
caso à época em que o bebê começa a existir como indivíduo.”
[ Maternal Preoccupation”, 1956, p. 3031
O sentimento de ser real, acentuado por Winnicott, não está disponível para o bebê que não
teve a sorte de experienciar uma dedicação ordinária:
“... sem uma provisão ambiental suficientemente-boa este self (que pode dar-se ao luxo de
perecer) jamais se desenvolve. O sentimento de ser real está ausente. Se não existir um caos
extremo, o sentimento definitivo é ode inutili dade. As dificuldades inerentes à vida não
podem ser alcançadas, muito menos as satisfações.”
[ Maternal Preoccupation”, pp. 304-3051
A mãe que não atravessar o estado de preocupação materna primária torna-se incapaz de
estabelecer uma empatia com o bebê e, portanto, não poderá oferecer-lhe o neces sário
suporte egóico. O bebê é deixado por conta própria.
“... o destino do bebê que não recebeu cuidados suficientemente-bons nos pri meiros
estágios antecede o do bebê que consegue separar o „não-eu‟ do „eu‟. Este é um tema
bastante complexo por causa dos graus e variações da falha materna. Seria de grande
proveito inicialmente nos referirmos às:
1. distorções da organização egóica que estabelecem as bases das caracterís ticas
esquizóides, e
2. à defesa específica do auto-holding, ou ao desenvolvimento de um seU zeloso e à
organização de um aspecto da personalidade que é falso (falso naquilo que está sendo
mostrado é um derivado não do indivíduo, mas da maternagem referente ao par bebê-mãe).
Esta é uma defesa, que se for bem sucedida, pode constituir-se em uma nova ameaça ao
núcleo do seU, embora ela exista para encobri-lo e protegê-lo.”
[ Integration in Child Development”, 1962, p. 581
A segunda destas distorções é explorada por Winnicott em um texto de 1960, Ego Dis
tortion in Terms of True and False Seif (ver SELF: 7, 8).
A falha ambiental pode provocar incontáveis efeitos sobre a saúde mental.
As conseqüências de um suporte egóico deficiente por parte da mãe podem ser mutiladoras.
Essas conseqüências incluem:
A. EsQUIZOFRENIA INFANTIL OU AUTISMO
Este agrupamento clínico é bem conhecido e dele fazem parte distúrbios secundários
relativos a lesões cerebrais e deficiência, assim como algum grau de cada tipo de falha nos
primeiros aspectos maturacionais. Em uma parcela dos casos não existe qualquer evidência
de deficiência ou enfermidade neurológica.
B. ESQUIZOFRENIA LATENTE
Existem diversas variações clínicas da esquizofrenia latente em crianças que aparentam ser
normais, que demonstram um brilhantismo intelectual especial ou um desempenho precoce.
O distúrbio é instável no que toca a sua “progres são”. Alguma pressão ou tensão nos
últimos estágios do desenvolvimento poderá desencadear uma doença.
C. [ FALSO SELF CoMo DEFESA]
O emprego das defesas, em especial a de um falso se/f que obteve sucesso, faz com que
muitas crianças dêem a impressão de terem um bom futuro, mas eventual- mente um
colapso revela o fato de que o verdadeiro se/f está ausente da cena.
D. PERSONALIDADE ESQUIzÓIDE
É bastante comum a personalidade desenvolver distúrbios ligados ao fato de que um
elemento esquizóide encontra-se oculto em uma personalidade que é aparentemente sadia.
Graves elementos esquizóides tornam-se socializados na medida em que conseguem
ocultar-se por meio de um padrão de distúrbio esquizóide aceito pela cultura local da
pessoa.
[ 1 ntegration”, pp. 58-59]
As etiologias citadas acima situam-se nos primórdios da relação mãe-bebê:
“Esses graus e tipos de defeitos da personalidade podem relacionar-se, a partir da
investigação de casos particulares, a várias formas e graus de falha do hol ding, do manejo
e apresentação do objeto nos estágios iniciais.”
[ Integration”, p. 591
Winnicott sustenta que as ramificações da falha nesse estágio precoce levam ao medo da
MULHER, o que se associa ao medo da dependência (ver DEPENDÊNCIA: 3).
“... o reconhecimento, por parte da mãe, da dependência absoluta e da capa cidade de
ingressar na preocupação materna primária.., é algo de uma extre ma sofisticação que faz
parte de um estágio que nem sempre é atingido pelos adultos. O fracasso geral do
reconhecimento inicial da dependência absoluta contribui para o medo da MULHER, que é
o destino de homens e mulheres.”
4 A ansiedade psicótica
[ Maternal Preoccupation”, p. 304]
As formas acima estabelecidas de psicose são, de acordo com Winnicott, organizações
psicológicas surgidas a fim de proteger o núcleo do se!f contra as ansiedades impensá veis
ou angústias primitivas. Elas são apresentadas como segue:
Um acréscimo foi feito seis anos mais tarde, em 1968:
“ Isolamento completo por não existir qualquer meio de comunicação.”
[ between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and Contrasted”, p. 99]
Essas ansiedades são “impensáveiS” porque esse tipo de ansiedade não pode ser conce
bido, provocando impacto e trauma (reação „a intrusão). Para Winnicott, as angústias
primitivas constituem a intrusão. A intrusão causa no bebê o sentimento de que o self foi
aniquilado. E o oposto do ser; é o trauma de aniquilação, é o que violenta o núcleo do self
(ver COMUNICAÇÃO: lO).
“A ansiedade nesses estágios iniciais da relação mãe-bebê está associada à ameaça de
aniquilação. E preciso esclarecer o que isso significa.
Nessa posição caracterizada pela existência fundamental de um ambiente de holding, o
„potencial herdado‟ transforma-se na „continuidade do ser‟. A alter nativa ao ser é a reação,
o que o aborta e aniquila. Ser e aniquilação são as duas alternativas. O ambiente de holding,
portanto, tem como sua principal função reduzir a um mínimo a invasão a que o bebê deve
reagir, apesar da conseqüente aniquilação do ser pessoal.”
[ Theory of the Parent-Infant Relationship”, 1960, p. 47]
A aniquilação dá-se por causa de uma ameaça de isolamento do núcleo do se!f. O supor te
egóico da mãe é necessário a fim de proteger o núcleo do self do bebê; sem o suporte
egóico, o bebê é forçado a manter a proteção por sua própria conta, ou seja, a desen volver
defesas psicóticas.
“Um outro fenômeno que merece ser considerado nessa fase é a ocultação do núcleo da
personalidade. Examinemos o conceito de verdadeiro self ou de se/fcentral. Poderíamos
dizer que o se/f central é o potencial herdado que experimenta a continuidade do ser,
adquirindo, ao seu próprio modo e num ritmo particular, uma realidade psíquica e um
esquema corporal característicos. E necessário levarmos em consideração o conceito de
isolamento desse seU central como sendo uma característica da saúde. Qualquer ameaça a
esse iso lamento do verdadeiro se/f transforma-se em uma tremenda ansiedade nesse
estágio inicial. As defesas do princípio da infância surgem com as falhas mater nas (ou dos
cuidados da mãe) para rechaçar as intrusões que podem ameaçar o isolamento.”
1. Ficar em pedaços.
2. Cair para sempre.
3. Ausência de relação com o corpo.
4. Ausência de orientação.
31
Posteriormente, Winnicott acrescentou à relação de angústias primitivas uma espécie de
defesa que pode ser mobilizada tanto no bebê quanto no indivíduo que sofreu uma quebra
na continuidade do ser:
“... é possível elaborarmos uma relação das agonias primitivas (ansiedade não é a palavra
apropriada aqui).
Eis algumas delas:
1. Retorno a um estado de não-integração. (Defesa: desintegração.)
2. Cair para sempre. (Defesa: desintegração.)
3. Perda do intercâmbio psicossomático, falha de um habitar num corpo. (Defesa:
despersonalização.)
4. Perda do sentimento de ser real. (Defesa: exploração do narcisismo primário.)
5. Perda da capacidade de relacionamento com os objetos. (Defesa: estados autistas
relacionados unicamente a fenômenos do seIf.)”
[ of Breakdown”, 1963, p. 90]
Assim Winnicott entendia a doença psicótica, isto é, como uma defesa contra a angús tia
primitiva.
“É minha intenção demonstrar aqui que aquilo que vemos na clínica é sempre uma
organização defensiva, até mesmo no autismo presente na esquizofrenia infantil. A agonia
subjacente é impensável.
É um equívoco pensarmos na doença psicótica como um colapso. Ela é uma organização
defensiva que diz respeito à agonia primitiva, tendo freqüen temente sucesso (a não ser
quando o ambiente facilitador não for falho, mas ameaçador, talvez a pior coisa que possa
acontecer a um bebê humano).”
5 A intrusão
[ of Breakdown”, p. 90J
Winnicott denomina por “intrusão” aquilo que interrompe a continuidade do ser do bebê. A
natureza de uma intrusão deriva essencialmente do ambiente; entretanto, a invasão pode ser
tanto traumática (como descrito acima), quanto reconstituinte. Se o bebê for
adequadamente protegido no princípio — recebendo um suporte egóico sufici entemente-
bom do ambiente — então, aprenderá gradualmente a enfrentar a intrusão, o que resultará
no restabelecimento de sua consciência de self. No entanto, se a intru são for por demais
prematura ou intensa, o resultado será traumático, sendo que o bebê não poderá fazer outra
coisa que não reagir. São as reações à intrusão ocorridas em determinado período as
responsáveis pelos danos causados à personalidade, o que resulta em fragmentação:
“Se a reação que vence o continuar-a-ser persistir, é estabelecido um padrão de
fragmentação do ser. O bebê, cujo padrão é o de fragmentação da linha de continuidade do
ser, tem uma tarefa referente ao desenvolvimento que anda, praticamente desde o início, na
direção da psicopatologia. Portanto, deve
6 • AMBIENTE
haver um fator inicial (que pode ser localizado nos primeiros dias ou horas de vida) na
etiologia da inquietação, da hipercinese e do déficit de atenção (pos teriormente
denominado incapacidade de concentração).”
[ Integration”, pp. 60-611
33
A tese da intrusão proposta por Winnicott está vinculada ao estado de prontidão e de estar
preparado, o que pode ser associado à capacidade de permitir que as coisas cor ram o seu
curso. Por exemplo, o nascimento é o primeiro grande impacto ambiental que, no caso de
ser normal, por si só, não causa qualquer dano ao bebê:
“Antes do nascimento, e especialmente se houver uma demora, é muito fácil repetir as
experiências de um bebê que, por enquanto, dá uma maior impor tância ao ambiente do que
ao seIf E bem provável que o bebê ainda não nasci do envolva-se cada vez mais com esse
tipo de troca com o ambiente quando o momento do nascimento chega. Portanto, em um
processo natural, a expe riência do nascimento é uma amostra ampliada de algo já
conhecido do bebê.
Por enquanto, durante o nascimento, o bebê reage, e a coisa mais importante é o ambiente;
após o nascimento há o retorno a um estado onde o mais impor tante é o bebê... Na saúde, o
bebê, antes de nascer, está preparado para uma invasão ambiental, já tendo vivido a
experiência de um retorno natural a partir da reação a um estado de não precisar mais
reagir, que é o único estado em que o seIf pode ter seu início.”
[ Memories, Birth Trauma, and Anxiety”, 1 947, p. 183]
Se um padrão de reação for constituído, existirão poucas oportunidades para o senti mento
de se/f desenvolver-se (ver SELF: 1 ,2).
6 O medo do colapso
Este trabalho de Winnicott, The Fear of Breakdown, publicado postumamente em 1974,
mas idealizado em 1963, explora um dos efeitos de um ambiente falho para o indivíduo em
estágios precoces:
“O medo do colapso é uma falha importantíssima para muitos de nossos paci entes, mas
não para outros. A partir dessa observação, e se ela estiver correta, podemos tirar a
conclusão de que o medo do colapso está relacionado à expe riência passada do indivíduo e
aos caprichos do ambiente.”
[ of Breakdown”, p. 87]
A tese desenvolvida nesse trabalho é que o medo de colapso apresentado pelo paciente no
futuro fundamenta-se em um colapso acontecido no passado.
No caso do medo do colapso emergir como um sintoma no decorrer de uma aná lise, isto é
um sinal de progresso. O paciente torna-se dependente da análise, o que vem a fortalecer o
sentimento de confiança. Isto, por sua vez, leva o paciente a sen
34
A lINGUAGEM DE WINNICQTT
tir-se seguro o bastante para que possa experimentar o trauma original (angústia pri mitiva)
no contexto da análise e da transferência, O “colapso”, pois, refere-se ao colapso das
defesas, originalmente estruturadas (como acima) contra ansiedades impensáveis.
Conseqüentemente, o paciente permite-se estar mais aberto a sua pró pria sensibilidade.
“... nos fenômenos claramente psicóticos que estamos examinando é um colapso do
estabelecimento de uma unidade do self o que está sendo aponta do. O ego organiza defesas
contra o colapso da organização egóica, e é esta organização egóica que está sob ameaça.
Mas o ego não pode organizar-se contra uma falha do ambiente, na medida em que a
dependência constitui-se em um fato real.”
[ of Breakdowri”, p. 88]
Ao afirmar que uma defesa foi bem sucedida, Winnicott quer dizer que o sofrimento do
indivíduo é, por assim dizer, mantido ao largo. Em um texto de 1967, The Concept of Cli
nicalRegression Compareci with That ofDefence Organization, esse “manter-se ao largo”
diz respeito, de acordo com Winnicott, a uma organização voltada à invulnerabilidade,
como é o caso da esquizofrenia e do autismo.
“O que observamos nas crianças e nos bebês que adoecem de uma tal forma que nos obriga
a empregar a palavra „esquizofrenia‟, embora originalmente esta palavra tenha sido
aplicada a adolescentes e adultos, é que existe clara mente uma organização voltada para a
invulnerabilidade. Algumas dife renças podem ser esperadas de acordo com o estágio do
desenvolvimento emocional em que se encontra o adulto, a criança ou o bebê que adoece.
O que é comum ao bebê, à criança, ao adolescente e ao adulto, é que eles nunca mais
experimentarão a ansiedade impensável que está na raiz da doença esquizóide.
A criança autista que viveu quase todas as formas de deficiência mental não sofre mais; a
invulnerabilidade quase foi alcançada. O sofrimento é dos pais. A organização voltada para
a invulnerabilidade foi bem sucedida, e é isso que demonstra clinicamente, juntamente com
os aspectos regressivos, que não são realmente essenciais para o quadro.”
[ of Clinical Regression”, pp. 197-198]
Esta “invulnerabilidade” remete à questão que Winnicott havia postulado em 1963:
“Como estar separado sem estar isolado?” (ver COMUNICAçÃo: 10).
Com base na descoberta de que “o medo do colapso é o medo de um colapso já
experimentado”, Winnicott recomenda que o paciente deva ser informado que...
“Diz a minha experiência que existem momentos em que é necessário dizer
ao paciente que o colapso, o medo de sua vida ser destruída, já se deu. Este
é um fato que permanece oculto no inconsciente... Neste contexto especial,
o inconsciente implica que a integração do ego não é capaz de abarcar algo.
6 • AMBIENTE
O ego é demasiado imaturo para poder reunir todos os fenômenos no campo da onipotência
pessoal.”
[ of Breakdown”, pp. 90-91]
35
Em outras palavras, a reação à intrusão do ambiente constitui-se em um choque e em um
trauma para a psique do bebê, pelo fato de ele ainda não estar preparado para rece bê-la,
não podendo, por isso, concebê-la, ou seja, compreendê-la como uma experiên cia e
integrá-la. E o que ocorre, porém, não é experimentado no sentido de ser processado.
Winnicott, então, propõe a seguinte interrogação:
“Uma questão coloca-se aqui: por que o paciente continua atormentado por isto que faz
parte do passado? A resposta é que a experiência original da agonia primitiva não pode
pertencer ao tempo passado, a menos que o ego primeiramente adquira suas próprias
experiências no tempo presente e um controle onipotente (aceitando a função de suporte do
ego auxiliar da mãe analista]).
Dizendo de outra forma, o paciente deve continuar em busca dos aspectos do passado que
ainda não foram experimentados. Esta procura toma a forma de uma busca desses aspectos
no futuro.
A menos que o terapeuta possa ser bem sucedido em seu trabalho, baseando-se em que
esses aspectos já são um fato, o paciente continua temendo encontrar aquilo que é
compulsivamente buscado no futuro.”
[ of Breakdown”, p. 91]
Winnicott sugere que tanto o terapeuta quanto o paciente precisam estar atentos ao fato de
que aquilo se passou no início da vida deste em termos de falha ambiental deve se passar
também na relação terapêutica, que é onde existe a esperança de ser experi mentado pela
primeira vez.
“O propósito deste estudo é atentar à possibilidade de que o colapso já se deu próximo ao
princípio da vida do indivíduo, O paciente precisa „lembrar-se‟ disso, mas não é possível
lembrar-se de algo que ainda não ocorreu. Esta coisa que pertence ao passado ainda não
ocorreu porque o paciente não estava lá para que ela pudesse ocorrer. Nesse caso, a única
forma de o paciente „lem brar-se‟ é vivenciar este algo do passado pela primeira vez no
presente, ou seja, na transferência. Esse algo que é do passado e do futuro transforma-se em
uma questão do aqui e agora, de tal forma que o paciente a experimenta pela primeira vez.
Este é o equivalente do relembrar, que, por sua vez, equivale à suspensão da repressão...”
[ of Breakdown”, p. 92]
Essa tese também pode ser aplicada ao medo da morte e ao medo do vazio: a morte tanto
quanto o vazio, apresentaram-se no começo da vida, na falha ambiental.
As recomendações feitas por Winnicott aos terapeutas, nesse ponto, são similare àquelas
dirigidas aos terapeutas que trabalham com crianças privadas, com adolescen tes ou
adultos. O terapeuta deve auxiliar a criança a retornar ao momento anterior
perda (ver ANTI-SOCIAL, TENDÊNCIA: 5).
36
7 “Somos de fato pobres se formos apenas sãos”
Os textos de Winnicott deixam bem evidente que, embora não faça uma distinção clara
entre saúde e não-saúde, a psicose é algo suscetível a qualquer um, conforme estabele ceu
nos primórdios de sua obra:
“Admitimos, por vezes, que na saúde o indivíduo sempre está integrado e vivendo em seu
próprio corpo. Ele é capaz de sentir que o mundo é real. Existe, entretanto, uma sanidade
que possui uma qualidade sintomática, que é inves tida do medo ou negação da loucura, do
medo ou negação da capacidade ina ta de todo ser humano de tornar-se não-integrado,
despersonalizado e de sentir que o mundo é irreal. Um sono insuficiente produz essas
condições em qualquer um.”
[ Emotional Development”, 1945, p. 150]
Aqui acrescentou uma de suas mais conhecidas notas de rodapé:
“Através da expressão artística esperamos manter contato com nossos selves primitivos, de
onde os mais intensos sentimentos e as sensações mais terrivel mente pungentes derivam.
Somos de fato pobres se formos apenas sãos.”
[ Emotional Development”, p. 150]
Talvez seja isto o que Winnicott, em 1960, quisesse dizer quando escreveu que “as pes soas
saudáveis são capazes de envolver-se com a psicose”:
“A psicose é muito mais terra a terra e diz muito mais respeito aos elementos da
personalidade humana e à existência do que a psiconeurose; (citando a mim mesmo!)
somos de fato pobres se formos apenas sãos.”
[ Effect of Psychosis ori Family Life”, 1960, p. 61]
No seu último ano de vida, em Creativity and its Origins, acrescentou:
“É fundamental para nós que não encontremos clinicamente nenhuma linha nítida que
demarque os limites entre a saúde e a esquizofrenia já instalada. Enquanto reconhecemos a
importância do fator hereditário na esquizofrenia, e enquanto esperamos ver as
contribuições feitas em casos individuais de doen ças físicas, olhamos com desconfiança
para qualquer teoria da esquizofrenia que distancie o sujeito dos problemas da vida
cotidiana e dos universos do desenvolvimento individual em um dado ambiente.
Reconhecemos a vital importância da provisão ambiental, em especial no início da vida
infantil do indivíduo; sendo, por essa razão, que damos um destaque maior ao estudo do
ambiente facilitador em termos humanos e em termos de crescimento huma no, na medida
em que a dependência adquire significado.”
8 O pai - o ambiente indestrutível
37
Ainda que na obra de Winnicott o papel do pai não seja sempre apontado de uma forma
específica, em termos de ambiente, ele oferece uma importante contribuição na sustenta ção
da família como um “promotor do estágio de preocupação”. Em um texto intitulado What
about Father?, escrito em 1945, e por isso mesmo referente ao papel desempenhado pelos
homens e mulheres de então, porém guardando muita pertinência como conceito, Winnicott
tece algumas observações em torno do valor do pai em três campos principais: a relação
entre os pais, o suporte proporcionado pelo pai à mãe em sua autoridade, além de ser ele
“aquele que faz a distinção entre quem ele é e os outros homens”:
“A criança é realmente muito sensível à relação entre seus pais. Se tudo corre bem nos
bastidores, por assim dizer, a criança é a primeira pessoa a dar valor ao fato, tendendo a
demonstrar essa valorização ao levar a vida com mais leve za, sendo mais satisfeita e mais
fácil de manejar. Suponho ser isto o que um bebê ou uma criança entendem por „segurança
social‟.
A união sexual do pai e da mãe constitui-se em um fato, um fato marcante, em torno do
qual a criança irá estruturar uma fantasia; é um rochedo ao qual ela pode agarrar-se e contra
o qual pode espernear; além do mais, ela é parte do início de uma solução pessoal para o
problema de uma relação triangular.”
[ about Father?”, pp. 114-115]
Proporcionar à mãe um suporte e ser ele próprio, bem como amar e desfrutar da relação
com a mãe, são fatores que contribuem para o ambiente suficientemente-bom. Em seguida,
Winnicott esclarece que a sustentaçãO de um ambiente como este pela criança que cresce
constitui-se exatamente no que não pode ser destruído pelo seu ódio e agressão. E a
sobrevivência do ambiente o que possibilita ao bebê sentir-se em segu rança e migrar da
relação de objeto para ouso do objeto (ver AGRESSÃO: 10).
Muito depois, em 1967, Winnicott destaca a importância do ambiente indestrutí vel no que
se refere ao pai e à sociedade.
“A criança.., imagina poder ter sentimentos agressivos e ser agressiva por cau sa da
estrutura da família, que representa a sociedade em uma escala mais reduzida. A confiança
depositada pela mãe em seu marido ou no suporte que ela irá receber, se ela o exigir, talvez
da sociedade local ou do policial, torna possível à criança explorar de maneira incipiente as
atividades destrutivas relacionadas ao movimento de uma forma geral, assim como
também, mais especificamente, à destruição que está associada às fantasias que giram em
torno do ódio. Desta forma (em função da segurança social, do suporte propor cionado pelo
pai à mãe etc.), a criança torna-se capaz de fazer algo extrema mente complexo, ou seja,
integrar todos os seus impulsos destrutivos amando alguém... A fim de alcançar esse fim
em seu desenvolvimento, a criança exige um ambiente que seja indestrutível em
circunstâncias essenciais: certamente o tapete ficará sujo e as paredes devam receber um
novo revestimento, ou casualmente uma janela quebre, mas de qualquer maneira o lar
mantém-se unido, sendo que por trás de tudo isso está a confiança que a criança deposita na
relação de seus pais; a família é um promotor do estágio de preocupação.”
[ as a Sign of Hope”, 1967, p. 941
Este é o reconhecimento da condição humana (ver DEPENDÊNCIA: 2).
Temas atravessados pela “sobrevivência do objeto” são uma constante na obra de Win
nicott, embora apenas em 1968, em The Use ofan Object, pudesse tornar mais clara sua
teoria da destruição e da sobrevivência, assim como a importância da função do pai (ver
AGRESSÃO: 10,11).
Um dos debates mais relevantes travados entre o Grupo Independente e o grupo kleiniano
na Sociedade Psicanalítica Britânica diz respeito ao grau com que o ambiente contribui para
a saúde mental do indivíduo. Em 1962, enquanto avaliava a contribuição oferecida por
Melanie Klein ao mundo interno do bebê, Winnicott levantou uma crítica sobre o que lhe
pareceu ser a destituição da função do ambiente:
“Sustento que Melanie Klein não poderia desenvolver sua argumentação em torno do „seio
bom‟ do analista sem ingressar na questão que é a qualidade do trabalho do analista, isto é,
a capacidade que o analista tem de adaptar-se às necessidades do paciente. Associado a isso
temos a capacidade da mãe de fazer adaptações nas origens das necessidades egóicas do
bebê recém-nascido (o que também inclui as necessidades do id). O argumento de Melanie
Klein a conduz a um ponto em que deve escolher entre a dependência do bebê de sua mãe
(paciente ou analista), ou deliberadamente ignorar a variante externa que é a mãe (analista),
e voltar-se para os mecanismos primitivos próprios do bebê. Ao eleger este último
caminho, Melanie Klein implicitamente nega a pró pria infância do ambiente, que se
constitui em um período de dependência. Dessa forma ela foi forçada prematuramente a
admitir um fator hereditário.”
[ Beginnings of a Formulation of an Appreciation and Criticism of Klein‟s Envy State
ment”, 1962, p. 448]
Referências
1945 What about Father? [
1945 Primitive Emotional Development {W6]
1949 Birth Memories, Birth Trauma, and Anxiety {W6]
1952 Anxíety Associated with lnsecurity {W61
1954 Metapsychological and Clinical Aspects of Regression [
1956 Primary Maternal Preoccupation {W61
1 960 The Effect of Psychosis on Family Life {W81
1960 The Theory of Parent-lnfant Relationship [
1962 The Beginnings of a Formulation of an Appreciation and Criticism of Klein‟s Envy
Statement Iwi 91
1962 Ego Integration in Child Development 1W91
1963 The FearofBreakdown [
1967 The Concept of Clinical Regression Compared with Defence Organization [ 91
1967 Delinquency as a Sign of Hope 1W14]
1968 Communication between lnfant and Mother, and Mother and lnfant, Compared and
Contrasted [ 6]
1971 Creativíty and lts Origíns IW1 0]

BRINCAR
1 A evolução da teoria do brincar
2 A qualidade do brincar como um indicador
3 A agressão
4 A ansiedade
5 A experiência de self e a amizade
6 O brincar e o inconsciente
7 O brincar em relação a uma seqüência do desenvolvimento
8 O brincar e a psicoterapia
O brincar apresenta-se como uma grande aquisição da teoria do desenvolvi mento
emocional de Winnicott. Ao brincar, o bebê/criança/adulto estabelece uma ponte entre o
mundo interno e o mundo externo com e através do espaço transicional. Para Winnicott, a
qualidade do brincar na terceira área — os fenômenos transicionais — é sinônimo de viver
criativamente, e constitui a matriz da experiência de self que se estende por toda a vida.
Transposto para a relação analítica, o brincar constitui-se na definitiva realização da
psicoterapia, pois é somente através do brincar que o self é descoberto e fortalecido.
57
A observação feita por Winnicott de bebês e crianças demonstra a atenção que dispensou à
função do brincar dentro das relações humanas. Primeiramente sua atenção foi despertada
pela importância e função do brincar na década de 30. Em sua última década de vida
destacou o valor deste brincar, em especial com relação à psicoterapia e à busca e à
descoberta do self.
Em seu estudo, Playing: A Theoretical Statement (1971), escrito nos seus dois últimos anos
de vida, Winnicott reflete a respeito da evolução de suas idéias no que toca ao brincar:
“Ao examinar os trabalhos que marcam o desenvolvimento de meu pensa mento e
entendimento, percebo que meu interesse presente no brincar, que faz parte da relação de
confiança que deve se estabelecer entre o bebê e a mãe, foi sempre um aspecto de minha
técnica na clínica, como demonstra um exemplo exposto em meu primeiro livro. Dez anos
mais tarde ele foi melhor elaborado em meu texto „The Observation of lnfants in a
SetSituationY‟
Como ele próprio reconhece, a teoria do brincar dentro de sua obra parte de “um aspecto de
sua técnica na clínica” — inicialmente o jogo da espátula, que funciona como uma
ferramenta diagnóstica (ver ESPÁTUlA, JOGO DA). Posteriormente, Winnicott cria o jogo
dos rabiscos para ser utilizado com crianças com um pouco mais de idade — uma outra
ferramenta diagnóstica para sua terapêutica clínica (ver RABISCOS,JOGO Dos).
A evolução do jogo da espátula e dos rabiscos contribuiu para a compreensão da natureza
do objeto transicional no desenvolvimento do bebê, como pode ser visto em seu texto de
1951, Transitional Objects and Transitional Phenomena (ver TRANSICIONAIS,
FENÔMENOS : 4). Durante a década de 60 a principal preocupação de Winnicott torna-se
o papel e a função do brincar em termos de um viver criativo e da descoberta do self (ver
CRIATIVIDADE: 6; SELF: 11).
2 A qualidade do brincar como um indicador
Winnicott valoriza a qualidade do brincar como um indicador do desenvolvimento e do
sentimento de ser do bebê. já em 1936, em seu estudo Appetite and Emotional Disorder,
postula uma escala para o brincar:
“Ao classificar uma série de casos podemos fazer uso de uma escala: na ponta normal dessa
escala encontramos o jogo, que é uma simples e prazerosa dra matização da vida do mundo
interno: na ponta anormal da escala temos o jogo de que faz parte uma negação do mundo
interno, sendo o jogo, nesse caso, sempre compulsivo, exaltado, conduzido pela ansiedade,
e mais voltado para a exploração dos sentidos do que da alegria.”
Passados dez anos, em um trabalho escrito para os pais — What Do We Mean by a Normal
Child? (1946) — Winnicott adverte para aquilo que surge como uma conduta anormal
pode, de fato, ser normal em determinadas crianças em determinados períodos. O prazer no
brincar é a garantia da saúde da criança que cresce.
“Em lugar de continuar tentando explicar a razão da vida ser normalmente tão difícil,
encerrarei com uma sugestão vinda de um amigo. Valorizem a capacidade de brincar da
criança. Se a criança brinca existe espaço para um sintoma ou dois. Se ela tem prazer em
brincar, tanto só como com outras crianças, é porque não temos sérias preocupações a
caminho. Se uma rica imaginação for empregada nesse brincar, e se prazer advir desses
jogos que dependem de uma percepção exata ou da realidade externa, poderemos nos dar
por satisfeitos, até mesmo se a criança em questão ainda molhar a cama, gaguejar, exibir
um temperamento raivoso, ou repetidas vezes sofrer de ataques de cólera ou depressão. O
brincar demonstra que essa criança está apta, dadas as circunstâncias razoavelmente boas e
estáveis, a criar um modo de vida particular, eventualmente tornando-se um ser humano
completo, desejado como tal, e sendo acolhido pelo mundo como livre.”
What Do We Mean?”, p. 1 301
O “emprego de uma rica imaginação ao brincar” indica que a criança faz uso da terceira
área, o que se constitui em um sinal de saúde.
Winnicott, estando mais envolvido com o brincar da criança e do adulto do que com o
conteúdo deste brincar, destaca a forma com que o indivíduo emprega o brincar a fim de
efetivar a vivência do self e, paralelamente, comunicar-se.
Segundo ele, a linguagem é meramente uma ampliação e uma extensão do brincar e da
comunicação, sendo a capacidade de brincar tão relevante para o adulto quanto para a
criança (ver COMUNICAÇÃO: 1).
“O terapeuta esforça-se por alcançar a comunicação com a criança. Ele sabe que ela
normalmente não possui um domínio da linguagem que possa abarcar todas as infinitas
sutilezas que estão para ser descobertas no brincar por aqueles que as procuram...
O que quer que diga a respeito do brincar das crianças também pode ser aplicado aos
adultos, sendo a questão um pouco mais difícil de expor quando o material trazido pelo
paciente surgir principalmente como uma comunicação verbal. Sugiro que devamos ter o
brincar como algo manifesto, tanto na análise de adultos quanto em nosso trabalho com
crianças. Isso evidencia-se, por exemplo, na escolha das palavras, na inflexão da voz e, é
claro, no senso de humor.”
[ A Theoretical Statement”, pp. 39-401
Em um pequeno texto dirigido aos pais e datado de 1942, Why Children Play, Winnicott
esboça algumas funções que o brincar tem para a criança. Nessa curta e simples obra,
Winnicott percorre tudo aquilo que será central e que será desenvolvido por ele até 1970: a
agressão, a ansiedade, a experiência do self, a amizade e a integração.
59
Em 1942, uma prévia do conceito que viria a se constituir na sobrevivência do objeto,
presente em seu estudo de 1968, The Use ofan Object and Relating through Identifications,
já é evidente. O brincar implica a constituição de sentimentos agressivos tidos em relação
ao ambiente — um ambiente que deve ser “tolerante”. E o “tolerar” que em 1968
transforma-se no “sobreviver” (ver AGRESSÃO: 10):
“Freqüentemente afirmamos que as crianças „descarregam seu ódio e agressividade‟ no
brincar, como se a agressão fosse uma coisa nociva que pudesse ser jogada fora. Isto é em
parte verdadeiro, pois os ressentimentos guardados por muito tempo e o produto da
experiência de raiva podem parecer à criança algo nocivo que está dentro de si. Mas é mais
importante expor essa mesma coisa dizendo que a criança valoriza a constatação de que o
ódio e os impulsos agressivos podem ser manifestados em um ambiente já conhecido, sem
que haja uma resposta de ódio ou violência por parte desse ambiente. A criança perceberá
que um bom ambiente será capaz de tolerar os sentimentos agressivos se estes forem
expressos de uma forma razoavelmente aceitável. Aceita mos que a agressão esteja presente
na constituição da criança. Seria desleal se aquilo que faz parte dela fosse ocultado e
negado.”
{“Why Children PIay”, p. 143]
Em seu texto de 1971 — Playing: A Theoretical Statement —, Winnicott retoma a série de
sessões com uma mãe e seu bebê sobre a qual havia escrito em seu primeiro livro, data do
de 1931. Não deixa suficientemente claro, contudo, que ponto desejava atingir ao retornar a
esse caso, mas o que resulta disso é que, colocando este bebê em seu colo e permitindo que
ele mordesse seu dedo “tão fortemente que a pele estava prestes a se romper”, possibilitou a
ele dar início ao brincar, O momento crítico parece ser aquele em que o bebê foi capaz de
morder o dedo de Winnicott “sem que houvesse a demonstração de qualquer sentimento de
culpa”, o que nos faz perceber que (a) o bebê necessita expressar sua agressividade e
permitir que seu “self cruel” reine livremente, além da (b) sobrevivência de Winnicott a sua
agressão primária.
“Em uma determinada sessão observava a criança que estava em meu colo. Ela havia feito
três tentativas furtivas de morder meu dedo tão fortemente que a pele estava prestes a se
romper. Ela então passou a brincar no chão com as espátulas antes desprezadas por quinze
minutos ininterruptos. Durante todo esse tempo chorou como se realmente estivesse infeliz.
Passados dois dias, fiquei com ela em meu colo por meia hora. Havia tido quatro
convulsões nos últimos dois dias. Inicialmente, chorou como sempre costumava fazer. Uma
vez mais mordeu meu dedo fortemente sem que houvesse a demonstração de qualquer
sentimento de culpa, logo passando a brincar com o jogo de morder e jogar fora as
espátulas; enquanto estava em meu colo era capaz de ter prazer no brincar. Após alguns
instantes começou a mexer em seus dedos do pé, quando então fiz com que tirasse os
sapatos e as meias. O resultado disso foi um período de experimentação que absorveu todo
seu interesse. Parecia estar descobrindo e experimentando, repetidas vezes, para sua grande
satisfação que, enquanto as espátulas pudessem ser colocadas na boca, jogadas fora e
perdidas, os dedos dos pés não seriam arrancados.”
Da capacidade de brincar desse bebê enquanto estava no colo de Winnicott faz parte um
aspecto da auto-descoberta do mundo externo, que é a elaboração do eu e do
não-eu.
4 A ansiedade
O controle da ansiedade é um outro fator do brincar:
“A ansiedade é sempre um fator constitutivo do brincar infantil, muitas vezes um dos mais
importantes. O perigo de uma ansiedade excessiva conduz a um brincar compulsivo, ou
repetitivo, ou então a uma busca exagerada dos prazeres que fazem parte do brincar; se a
ansiedade for muito grande, o brincar degrada-se em uma exploração pura e simples da
gratificação sensual.
Na medida em que a criança brinca por prazer, pode ser solicitada a interromper o brincar.
Se este lida com a ansiedade, não podemos proteger a criança dela sem originar angústia,
ansiedade real, ou novas defesas contra a ansiedade (tais como a masturbação ou o
devaneio).”
“Why Children PIay”, p. 144]
Uma vez mais o ambiente está envolvido. Se o brincar da criança está a serviço de uma
forma de lidar com a ansiedade, então sua interrupção tem que ser realizada com
sensibilidade pelo adulto.
A relação do brincar com a ansiedade não é realmente elaborado dentro da obra de
Winnicott, quem sabe por causa da ênfase dada sobre a saúde, o processo criativo do
brincar.
5 A experiência de self e a amizade
Do brincar faz parte o enriquecimento da experiência de viver. Winnicott acredita ser
apenas através do brincar que a criança e o adulto tornam-se capazes de descobrir o self.
“A criança adquire experiência ao brincar. O brincar é uma parte importantíssima de sua
vida. Tanto as experiências externas quanto as internas podem ser muito ricas para o adulto,
mas para a criança as mais enriquecedoras estão para ser descobertas principalmente no
brincar e na fantasia. Da mesma forma que a personalidade do adulto é desenvolvida
através de suas experiências de vida, a da criança desenvolve-se através de seu brincar,
assim como do brincar criativo de outras crianças e adultos. Ao enriquecer-se, a criança
gradualmente aumenta sua capacidade de enxergar a riqueza do mundo real externo, O
brincar constitui-se na constante evidência da criatividade, o que implica estar vivo.”
60
A criatividade, o estar vivo e o sentimento de ser real são a garantia da sanidade do
indivíduo e — como conceitos — da obra de Winnicott.
É somente através do brincar que as amizades podem surgir. Winnicott aponta para que o
brincar com os outros é fundamental em uma relação para que ela se transforme em
amizade. Em um contexto de amizade, o outro é capaz de ser diverso e separado.
“É através do brincar, onde as outras crianças são colocadas em papéis preestabelecidos,
que a criança começa a admitir que esses outros possuem uma existência independente.
Assim como alguns adultos com bastante facilidade fazem alguns amigos e inimigos no
trabalho, outros esperam sentados durante anos a fio e não fazem outra coisa senão
admirarem-se de que ninguém lhes quer bem. Da mesma forma, a criança faz amigos e
inimigos ao brincar, o que seria mais difícil em outra situação. O brincar proporciona uma
certa organização para que tenham início as relações emocionais, o que torna possível os
contatos sociais.”
Da mesma forma que Freud entendia o sonhar como sendo o “nobre caminho que leva ao
inconsciente”, Winnicott via o brincar como o “portão de entrada para o inconsciente”:
“O inconsciente reprimido deve permanecer encoberto, mas o restante do inconsciente é
algo sobre o qual todo indivíduo deseja saber. O brincar, assim como os sonhos, tem a
função de uma auto-revelação.”
Em 1968, Winnicott acrescentou quatro observações ao seu texto de 1942 relativo ao
brincar da criança e do adulto.
“1. O brincar é essencialmente criativo.
2. O brincar é sempre estimulante por lidar com o limite extremamente precário entre
aquilo que é subjetivo e aquilo que pode ser objetivamente percebido.
3. O brincar se dá em um espaço potencial localizado entre o bebê e a figura materna. Este
espaço potencial faz parte da mudança que tem que ser leva da em consideração quando o
bebê que está fundido à mãe sente que ela está se afastando.
4. O brincar desenvolve-se nesse espaço potencial a partir do momento em que o bebê
experimenta a separação sem que ocorra uma separação, o que se torna possível porque o
estado fusional com a mãe é substituído pela sua adaptação às necessidades do bebê. Em
outras palavras, a inibição do brincar está associada à experiência de vida do bebê que
adquiriu confiança na figura materna.”
7 O brincar em relação a uma seqüência do desenvolvimento
61
Em 1968, Winnicott situa o brincar dentro do contexto das relações. A sequência do
desenvolvimento das relações transforma a natureza do brincar.
“É possível descrevermos uma seqüência de relações relacionada ao processo do
desenvolvimento e percebermos de qual delas o brincar faz parte.
A. O bebê e o objeto estão fundidos um ao outro. A visão que o bebê tem do objeto é
subjetiva. A mãe está empenhada em tornar real aquilo que o bebê está prestes a descobrir.”
Isto está associado ao período de dependência absoluta, à preocupação materna primária e
ao papel que a mãe tem de apresentar o objeto (ver DEPENDÊNCIA: 2; MÃE: 8;
PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 2).
“B. O objeto é repudiado, novamente aceito, e percebido objetivamente. Este processo tão
complexo é altamente dependente da existência de uma mãe ou de uma figura materna
preparada para participar e devolver aquilo que havia sido abandonado.
Isto significa que a mãe (ou parte dela) fica „de um lado para o outro‟, por um lado sendo
aquilo que o bebê é capaz de descobrir e, por outro, sendo ela própria esperando para ser
descoberta.
Se a mãe puder desempenhar esse papel por algum tempo sem permitir impedimentos
(digamos assim), então o bebê experimenta o controle mágico, ou seja, a experiência
daquilo que chamamos „onipotência‟ na descrição dos processos intrapsíquicos.”
Todos os aspectos do pensamento de Winnicott referentes ao ambiente facilitador e ao
holding são de extrema relevância aqui, sobrepondo-se à capacidade de estar só e ao estágio
de preocupação (ver SÓ, CAPACIDADE DE ESTAR: 1; SER: 3; PREOCUPAÇÃO: 5;
AMBIENTE:
1; I-IOLDING: 3).
Isso faz com que o bebê seja capaz de confiar no ambiente e, conseqüentemente, nas
pessoas que o rodeiam.
“No estado de confiança que se desenvolve quando a mãe pode desempenhar bem essa
difícil tarefa (mas não se ela for incapaz disso), o bebê começa a desfrutar de experiências
fundadas em um „casamento‟ da onipotência própria dos processos intrapsíquicos com o
controle tido do que é real. A confiança na mãe cria aqui um pia yground intermediário,
onde a idéia de mágico tem sua origem, já que o bebê, até certo ponto, experimenta a
onipotência... Chamo isso de piayground porque o brincar inicia-se aqui. O playgroundé um
espaço potencial existente entre a mãe e o bebê que os une.”
A essa altura Winnicott introduz um novo componente, a “precariedade” presente no
brincar.
“O brincar é imensamente estimulante. Que seja bem entendido que não é estimulante
primariamente porque as pulsões encontram-se envolvidas!
O que gira em torno do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade
psíquica pessoal e a experiência de controlar os objetos reais. Esta é a precariedade da
própria magia, magia essa que resulta da intimidade de uma relação que é descoberta como
confiável. Para ser confiável a relação deve ser necessariamente motivada pelo amor
materno, pelo seu amor-ódio, ou pela sua relação de objeto, e não por formações reativas.”
Essa magia é inspirada pela experiência tida pelo bebê da empatia de sua mãe através de
sua comunicação e mutualidade — um sentimento de que “a mãe conhece mais” (ver
COMUNICAÇÃO: 2; MÃE: 3, 4).
O estágio seguinte é o de ficar só na presença de alguém. A partir dele a criança brinca
baseada na suposição de que a pessoa que ama e que, por tanto, é confiável e está
disponível, permanece disponível quando é lembrada após ser esquecida. Essa pessoa é
sentida como se refletisse aquilo que ocorre no brincar.”
A capacidade de estar só está fundada no paradoxo da experiência de estar só na presença
do outro: em geral a mãe (ver SÓ, CAPACIDADE DE ESTAR: 1, 2).
“D. Agora a criança está preparada para o estágio seguinte, que se constitui em permitir e
ter prazer na sobreposição das duas áreas do brincar. Primeira mente, é evidente, é a mãe
quem brinca com o bebê, tendo o cuidado de haver se adaptado às atividades lúdicas do
bebê. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, ela introduz o seu próprio brincar, descobrindo
como o bebê oscila, segundo sua capacidade, entre aceitar ou não a introdução das idéias
que lhe são estranhas.
Dessa maneira, abre-se o caminho para um brincar em conjunto dentro de uma relação.”
8 O brincar e a psicoterapia
Para Winnicott a psicoterapia implica que duas pessoas brinquem em conjunto duas pessoas
capazes de usar o espaço potencial.
“A psicoterapia se dá pela sobreposição das duas áreas do brincar, a do paciente e a do
terapeuta. A psicoterapia diz respeito a duas pessoas que brincam juntas. O corolário disso
é que quando o brincar não se torna algo possível, o esforço do terapeuta volta-se para o
resgate do paciente do estado de não ser capaz de brincar para um estado de ser capaz de
brincar.”
63
Assim, Winnicott pinta com novas cores a relação terapêutica dentro da psicanálise, o que
altera radicalmente, e sem atropelos, a síntese freudiana. Enquanto a interpretação freudiana
enfatiza o analista como alguém que sabe algo sobre o inconsciente do paciente, Winnicott
considera ter uma maior importância o brincar e a capacidade de brincar. Para ele, de fato, a
psicanálise é uma “forma altamente especializada de brincar”:
“... o brincar é universal e faz parte da saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a
saúde; o brincar origina as relações dentro de um grupo; o brincar pode ser um tipo de
comunicação na psicoterapia; e, por último, a psicanálise desenvolveu-se como uma forma
altamente especializada de brincar, que está a serviço da comunicação com si mesmo e com
os outros.
O brincar é algo natural. Já a psicanálise constitui-se em um fenômeno altamente
sofisticado pertencente ao século XX. E de extrema importância para o analista sempre ter
em mente não apenas aquilo que é devido a Freud, mas também o que devemos àquilo que
é natural e universal, o brincar.”
Winnicott sugere ao terapeuta de crianças que o espaço de brincar apresenta-se como algo
que possui uma maior importância do que a interpretação, precisamente porque favorece a
criatividade infantil em lugar da habilidade do analista em interpretar.
“Meu propósito aqui é simplesmente fazer lembrar que o brincar das crianças abrange tudo,
embora o psicoterapeuta trabalhe apenas com o material trazido, com o conteúdo do
brincar. Naturalmente, no contexto profissional da sessão de uma hora, encontramos uma
constelação mais precisa do que aquela que se apresentaria em uma experiência no chão de
casa, onde o tempo não possui a mesma significação; no entanto, isso fornecerá um grande
auxílio para a compreensão de nosso trabalho se soubermos que a base para aquilo que
fazemos é o brincar do paciente, uma experiência criativa tomada no espaço e no tempo,
que é intensamente real para ele.
Esta observação também nos ajuda a compreender como a psicoterapia profunda pode ser
levada a cabo na ausência do trabalho interpretativo. Um ótimo exemplo disso é o trabalho
de Axline (1947), de New York. Seu trabalho em psicoterapia possui uma grande
importância para nós. O aprecio especialmente por sua relação com aquilo a que chamo
„sessões terapêuticas‟, o momento tão significante onde a criança se surpreende a si própria,
e não o momento de minha hábil interpretação.”
]“Playing: A Theoretical Statement”, pp. 50-51]
A tarefa do analista constitui-se em criar o espaço dentro do qual a criança ou o paciente
possa ser capaz de descobrir algo por si próprio. Winnicott afirma que um grande perigo
reside no fato de que as interpretações do analista podem acarretar ao paciente o
desenvolvimento de um falso self, conseqüência de uma pseudo-análise (ver SELF: 7, 10).
“As interpretações feitas sem que haja um amadurecimento do material são doutrinação e
produzem submissão. O que resulta dai é que a resistência surge da interpretação dada fora
da área de sobreposição do brincar do paciente e
[ A Theoretica! Statement”, p. 38]
do analista em conjunto. A interpretação feita quando o paciente não possui a capacidade
de brincar é simplesmente inútil, ou então provoca equívocos. Quando existe um brincar
mútuo, a interpretação, de acordo com os princípios psicanalíticos vigentes, pode fazer
avançar o trabalho terapêutico. Esse brincar tem que ser espontâneo, e não submisso ou
aquiescente, se quisermos levar a cabo uma psicoterapia.”
[ A Theoretical Statement”, p. 51]
O gesto espontâneo origina-se a partir do verdadeiro self. O indivíduo capaz de
espontaneidade, portanto, vive criativamente. Esses assuntos, assim como o brincar tomado
como uma atividade criativa, são explorados mais detalhadamente no livro de Winnicott,
Playing and Reality (W1O)

2 - CAPACIDADE DE ESTAR SÓ

1 A afinidade egóica
2 Eu estou só
3 Isolamento e solidão
A capacidade de estar só baseia-se no paradoxo de estar só na presença do outro. É
expressão de saúde e o a finalidade da maturidade emocional.
@@@ A experiência de estar só na presença do outro tem suas raízes na relação precoce
que é a relação mãe-bebê, chamada por Winnicott como “afinidade egóica” — e mais tarde
substituída em sua obra por “relação de objeto „ Ela diz respeito ao período em que a mãe
atravessa o estado de preocupação materna primária e o bebê, a fase de dependência
absoluta.
A capacidade de estar só não deve ser confundida com o estado de separação.
O sentimento de solidão, por sua vez, aponta para uma lacuna na experiência de estar só na
presença de uma mãe/outro fundamental.
1. A afinidade egóica
The Capacity to Be Alone foi apresentado à Sociedade Psicanalítica Britânica no ano de
1957, sendo publicado em 1958 no Internationa/Journal of Psycho-Analysis. Embora diver
sos dos assuntos abordados por Winnicott houvessem contribuído para a elaboração dessa
obra, o tema da capacidade de estar só é explorado unicamente aqui.
A capacidade de estar só fundamenta-se em um paradoxo.
“Embora vários tipos de experiência desemboquem na capacidade de estar só, existe uma
que é fundamental, e sem a qual a capacidade de estar só não é estabelecida; esta é a
experiência de estar só, como bebê ou criança pequena, na presença da mãe. Assim, a base
da capacidade de estar só constitui-se em um paradoxo; é a capacidade de estar só na
presença de outra pessoa.”
[ Capacíty to Be Alone”, p. 30]
@@@ A possibilidade de que a capacidade de estar só desenvolva-se no bebê está
vinculada à constituição do holding, em especial nos primeiros dois anos de vida (ver
HOLDING: 4, 5).
Foi em 1956, um ano antes da apresentação desse trabalho, que Winnicott introduziu a
expressão “afinidade egóica” em dois outros textos seus — Primary Maternal @@@
Preoccupation e Antisocial Tendency. A afinidade egóica diz respeito ao período em que a
@@@ mãe e o bebê encontram-se em estado de fusão. No decorrer deste estado fusional o
bebê, ao ver a mãe, vê a si mesmo; por sua vez, a mãe, ao ver seu bebê, rememora
(inconscientemente) seus próprios primeiros dias e semanas de vida, o que a torna capaz de
identificar-se com as necessidades do bebê. E como se ela encontrasse a si mesma. Essa é a
mãe no transcorrer do estado de preocupação materna primária. Estes momentos, dias e
semanas tão precoces, demonstram ser extremamente vitais como ponto de partida para um
desenvolvimento emocional saudável do indivíduo (ver SER: 4, 5; PREOCUPAÇÃO
MATERNA PRIMÁRIA).
Em seu trabalho de 1957, Winnicott explora a natureza da afinidade egóica a partir de um
contexto estabelecido tanto pela teoria freudiana da cena primária, quanto pela teoria
kleiniana do objeto interno bom.
Na cena primária de Freud a capacidade de estar só pretende que o bebê/deambulador seja
capaz de tolerar o intercurso sexual dos pais. Pensando no objeto interno bom de Melanie
Klein, estar só implica que o objeto interno bom pôde ser internaliza do e estabelecido no
mundo interno do bebê.
Ao localizar o conceito de capacidade de estar só dentro das teorias freudiana e kleiniana,
Winnicott aproveita-se do Edipo e das relações com o objeto interno a fim de poder ser
mais bem compreendido pelo seu público, ao passo que dispensa a “bem-vestida
fraseologia psicanalítica” para poder fazer uso de uma linguagem única, enfatizan do
particularmente os fenômenos da relação precoce mãe-bebê.
2 - Eu estou só
@@@ Ao centrar-se na frase de “eu estou só”, Winnicott distingue três diferentes estágios
do desenvolvimento emocional, sempre colocando em destaque a importância do ambiente/
250
3 . CAPACIDADE DE ESTAR SÓ
“Originalmente existe a palavra „eu‟, que indica um grande crescimento emocional. O
indivíduo é constituído como uma unidade. A integração já é um fato. O mundo externo é
repudiado e um mundo interno faz-se possível...
A seguir temos o „eu sou‟, que representa um outro estágio do crescimento individual.
Através dessas palavras o indivíduo adquire não apenas uma for ma, mas também uma
@@@ vida. No início do „eu sou‟ o indivíduo é (por dizer assim) bastante cru, indefeso,
vulnerável, potencialmente paranóide. Ele só pode alcançar o estágio do „eu sou‟ porque
existe um ambiente que é protetor; esse ambiente que o protege é, de fato, a mãe
preocupada e voltada para as exigências do ego do bebê através das identificações com ele.
Não há necessidade de postularmos que o bebê, nesse estágio do „eu sou‟, já possua cons
ciência da mãe.
@@@ Em seguida surge o „eu estou só‟. Segundo a teoria que apresento, esse estágio
envolve o reconhecimento, por parte do bebê, da existência continuada da mãe. Com isso
não quero dizer necessariamente que se dê um reconhecimento com a mente consciente.
Considero, entretanto, que o „estar só‟ tem sua origem no „eu sou‟, e depende da
consciência que o bebê possui da existência continuada de uma mãe confiável, cuja
confiança faz possível ao bebê estar só e obter prazer disso por um período de tempo
limitado.”
[ Capacity to Be Alone”, p. 33]
O estágio do “eu” representa a emergência do self a partir da estrutura ambiente-indivíduo
(período de fusão). Caracteriza-se pelo bebê já ser capaz de poder estabelecer a diferença
entre o “eu” e o “não-eu” (ver SER: 3). O estágio do “eu sou” se dá entre a idade de 3 e 6
meses, e diz respeito ao postulado desenvolvimentista de Melanie Klein, que é a posição
depressiva, e ao estágio de preocupação de Winnicott (ver PREOCU PAÇÃO: 6). Por
@@@ conseqüência, o “eu estou só” instaura-se no bebê a partir dos 6 meses em diante.
No entanto, a presença da mãe, que deve ser inspiradora de confiança, exige uma
continuidade, a fim de que a capacidade (de estar só) possa estruturar-se.
Winnicott enfatiza especialmente o aspecto da afinidade egóica.
“Todos podem perceber que atribuo uma enorme importância a essa relação, pois considero
que ela seja a matéria de que é feita a amizade. Também penso que seja a matriz da
transferência...
Acredito ser de aceitação geral que o impulso do id só pode ter alguma importância se
estiver envolvido pelas vivências do ego. Um impulso provindo do id tanto pode dilacerar
um ego enfraquecido como fortalecer ainda mais um ego forte. E possível afirmar que as
relações com o id fortalecem o ego quando se dão em um contexto de afinidade egóica. Se
isso for aceito, a com; preensão da importância da capacidade de estar só é uma
conseqüência. E apenas ao estar só (mas na presença de alguém) que o bebê consegue
descortinar uma vida pessoal própria. A alternativa patológica é uma falsa vida construída
sobre reações a estímulos externos. E quando, no sentido em que emprego o termo, e
apenas quando, o bebê é capaz de fazer algo que se põe como o equivalente ao que no
adulto chamamos relaxar. O bebê adquire a capacidade de estar não-integrado, de debater-
se, de ingressar em um estado em que não existe qualquer orientação, de ser capaz de
existir, mesmo que por alguns instantes apenas, sem ser alguém que reage às circunstâncias
externas, nem uma pessoa ativa que direciona seus interesses ou atos. Tudo está pronto para
que se estabeleça uma experiência do id. Com o tempo surge uma sensação ou impulso.
Assim, a sensação ou o impulso será sentido como sendo real, e será verdadeiramente uma
experiência pessoal...
É somente sob essas condições que o bebê terá uma experiência que poderá ser sentida
como real. Várias dessas experiências reunidas formam os alicerces de uma vida que possui
realidade, e não futilidade. O indivíduo que desenvolveu a capacidade de estar só está
sempre capacitado a redescobrir o impulso pessoal. O impulso pessoal não é desperdiçado,
@@@ pois o estado de estar só é alguma coisa que (mesmo paradoxalmente) sempre
implica que alguém esteja por perto.”
[ Capacity to Be Alone”, pp. 33-34]
Por experiência do id, Winnicott identifica os impulsos fisiológicos (como a fome, por
exemplo) aos quais a mãe, por causa de sua capacidade de identificar-se com seu bebê, é
capaz de oferecer uma resposta. A qualidade da resposta dada pelo ambiente vai ao
encontro da necessidade do bebê de transformar a experiência do id, fortalecendo assim o
sentimento de self. O efeito cumulativo das incontáveis repetições de tentativas de
satisfação das necessidades do bebê por parte da mãe confirmam que ele se tornou capaz de
sentir-se real e de viver criativamente (ver COMUNICAÇÃO: 2; CRIATIVIDADE: 4;
EGO: 2; HOLDING: 2; SELF: 6).
Winnicott não esclarece o motivo de referir-se à relação precoce mãe/bebê como “afinidade
egóica”, sendo que no “sumário” de seu trabalho afirma que a utilização dessa expressão
era, em verdade, temporária. O fato é que, no texto que se segue a este, a substitui por
“relação de objeto” — precursora do “uso do objeto” (ver AGRESSÃO: 10).

3 Retraimento e solidão
A capacidade de estar só não deve ser confundida com o estado de retraimento. O indivíduo
que se afasta das relações com outros, de acordo com a teoria de Winnicott experimentou
inicialmente fortes impactos, necessitando isolar-se, a fim de poder preservar o núcleo do
self de uma violação (ver COMUNICAÇÃO: 12). O retraimento estabelece uma relação
com os objetos subjetivos que vem a facilitar o sentir-se real. Winnicott sustenta que existe
um aspecto do retraimento que é saudável. Entretanto, o retrai mento também é uma
separação que, como o estado autista, não concorre para o enriquecimento nem para o
desenvolvimento do sentimento de self, mesmo que o sentir-5 real esteja presente.
Enquanto o indivíduo que consome grande parte de seu tempo sozinho pode vir a alcançar a
capacidade de estar só, segundo a tese de Winnicott, c estado de retraimento pode, sim,
estar demonstrando uma incapacidade de estar só.
(ver COMUNICAÇÃO: 9, 11; AMBIENTE: 9; REGRESSÃO: 14).
Da mesma forma, o indivíduo que experimenta uma intensa solidão também teve chance de
viver o impacto da falha da experiência de afinidade egóica com a mãe, capa de estar
seguramente presente por estar identificada com seu bebê.
252
“Será dito que estar só não é do que estou falando. Uma pessoa pode encontrar-se em um
confinamento solitário, e ainda assim não ser capaz de estar só. O quanto ela precisa sofrer
é algo que se coloca além da imaginação.”
[ Capacity to Be Alone”, p. 30]
Winnicott também entende a capacidade de estar só na presença do outro como um avanço
indispensável no decorrer da psicoterapia.
“Na maioria dos tratamentos psicanalíticos nos deparamos com momentos em que a
capacidade de estar só é de vital importância para o paciente. Clinica mente isso pode ser
representado por um período de silêncio, ou por uma sessão inteira tomada pelo silêncio,
sendo que esse silêncio, longe de ser uma evidência de resistência, representa uma grande
conquista do paciente. Talvez seja esta a primeira oportunidade em que o paciente tenha
estado realmente só.”
[ Capacity to Be Alone”, p. 29]
Por isso, para o paciente e para o analista, estar em uma sessão é uma aquisição. Poder estar
absorto, associar livremente, entregar-se, debater-se são todos sinais de que a capacidade de
estar só foi alcançada (ver SER: 7; SELF: 13).
Referência
1 Uma tripla exposição sobre a natureza humana
2 O verdadeiro objeto não-eu é uma posse
3 Os objetos transicionais e a passagem para o simbolismo
4 A função do objeto transicional
5 A experiência cultural
6 A amizade e os grupos
7 O espaço potencial e a separação

COMUNICAÇÃO
1 A simbolização não-verbal
2 A experiência de mutualidade
3 A polêmica quanto a tocar o paciente no decorrer da sessão
4 Duas categorias de bebês
5 Comunicar-se ou não comunicar-se
6 A função da insatisfação
7 A necessidade de recusar o objeto bom
8 Dois opostos na comunicação
9 O sentir-se real
10 A violação do self
11 Implicações para a técnica analítica
12 O isolamento e a adolescência
Segundo Winnicott, a comunicação tem sua origem na transmissão de estados afetivos
entre mãe e bebê, o que vem a constituir-se na mutualidade. Os sentimentos que a mãe
passa a nutrir em relação ao bebê ainda não nascido tem sua origem, que é bastante
imaginativa, na mais tenra infância dela. O bebê percebe os sentimentos que sua mãe lhe
dirige desde o útero.
Winnicott estabelece algumas diferenças entre certos tipos de comunicação que variam de
acordo com o estágio do desenvolvimento do bebê.
No centro da teoria da comunicação de Winnicott encontra-se a idéia paradoxal de um self
não-comunicado/isolado que não se comunica e que jamais se comunicou; no entanto, se a
comunicação começa a “insinuar-se‟ se dá uma violação, devendo o indivíduo estruturar
um sistema de defesa a fim de selar e proteger o núcleo/verdadeiro self.
O gesto espontâneo origina-se a partir do verdadeiro self. O indivíduo capaz de
espontaneidade, portanto, vive criativamente. Esses assuntos, assim como o brincar tomado
como uma atividade criativa, s explorados mais detalhadamente no livro de Winnicott,
Playing and Reality (WIO), em particular no capítulo 4, Playing: Creative Activity and the
Searchforthe Se!f (ver CRIATIVIDADE: 6; SELF: 11).

1 A simbolização não-verbal
Foi em sua última década de vida que Winnicott desenvolveu o estudo do significado da
comunicação, o que veio a colaborar com outras áreas de sua obra — a relação precoce
mãe-bebê, a relação de objeto, a transição dos objetos percebidos subjetivamente aos
objetos percebidos objetivamente, além da comunicação criativa do campo transicional (ver
SER: 2, 3; CRIATIVIDADE: 2, 3; HOLDING: 5; MÃE: 13; PREOCUPAÇÃO
MATERNA PRIMÁRIA: 2).
A partir da comunicação inconsciente Winnicott afirma que a habilidade de comunicar-se
não está fundada, inicialmente, na aquisição da linguagem, mas sim em uma interação pré-
verbal estabelecida por intermédio da “mutualidade”. Conseqüentemente, a habilidade do
bebê de brincar e simbolizar precede o período em que passa a fazer uso de palavras.
“... a mãe tanto pode falar como não falar com seu bebê; isso não é relevante, pois a
linguagem não é importante.
E nesse ponto que vocês esperam que eu diga algumas palavras a respeito das inflexões que
caracterizam o discurso, mesmo aquele mais sofisticado. O analista faz seu serviço, como
dizemos, O paciente verbaliza e o analista interpreta. Essa não se coloca apenas como uma
questão de comunicação verbal. O analista sente uma tendência presente no material trazido
pelo paciente que é evidenciada através da verbalização. E fundamental a maneira com que
o analista emprega as palavras, assim como a atitude que está por trás da interpretação. Um
determinado paciente cravou suas unhas em minha mão em um momento de intenso
sentimento. Minha interpretação foi a seguinte: „Ai!‟ São raras as vezes em que meu
preparo intelectual é colocado em jogo. Ele foi de grande utilidade por ter aflorado
imediatamente (e não após uma pausa para reflexão), e por ter apontado para o paciente que
minha mão estava viva, que ela era parte de mim, e que eu estava ali para ser usado. Ou,
diria eu, serei usa do apenas se sobreviver.”
O tom irônico desta obra não passou despercebido, bem como outro conceito fundamental
para a psicanálise. Isso não significa que as palavras sejam de menor impor tância, mas sim
que, em certas situações, elas são irrelevantes.
“Embora a psicanálise de certos tópicos esteja fundamentada na verbalização, cada analista
tem conhecimento de que, juntamente com o conteúdo das interpretações, sua atitude
reflete-se nas nuances e no timing, bem como em outras formas comparáveis à variedade
infinita da poesia.”
Keats sustenta que a poesia, como a medicina, é cura. Winnicott valoriza a maneira como é
conduzida a significação na sessão analítica:
“Por exemplo, a abordagem não-moral, fundante da psicoterapia e do trabalho social, é
comunicada não através de palavras, mas da qualidade não-moral de quem trabalha com
ela. E o lado positivo de uma canção ouvida em uma sala de espetáculos, cujo refrão diz:
„Não é exatamente o que ela diz, mas a forma marota com que ela o faz‟.
Em termos do cuidado dispensado ao bebê, a mãe que se sente desta for ma pode ter uma
atitude moral muito antes que palavras tais como „mau‟ façam sentido para o bebê. Ela
poderia preferir dizer: „Droga, seu pequeno desgraçado!‟, de uma forma delicada, para que
se sinta melhor e o bebê retribua com um sorriso, agradecido pelo que lhe foi murmurado.
Ou, sendo ainda mais sutil: „Fique quietinho na casa da árvore‟, que verbalmente não é
muito delicado, mas é um doce acalanto.”
[ between Infant and Mother”, p. 961
Em um trabalho de 1947, Hate in the Countertransference, Winnicott afirma que as mãe
odeiam seus bebês desde o princípio, e fornece uma relação de dezoito razões para que isso
ocorra. De sua tese referente ao ódio faz parte a necessidade da experiência subjetiva do
bebê do ódio de sua mãe, assim como de seu amor (ver ÓDIO: 7).
“É possível para uma mãe mostrar a seu bebê, que ainda não possui uma linguagem, o que
ela quer dizer com: „Deus fará você cair duro se novamente se sujar depois de eu ter-lhe
limpado‟, ou algo inteiramente diverso: „Você não pode fazer isso!‟, o que envolve um
conflito direto de desejos e personalidades.”
[ between Infant and Mother”, pp. 95-96]
2 A experiência de mutualidade
A preocupação materna primária — a submissão da mãe suficientemente-boa a seu bebê —
é definida por Winnicott como “mutualidade”. E similar ao que Daniel Stern chamou, com
respeito ao afeto, de “harmonização” (Stern, 1985). Segundo Winnicott, a mutualidade
pertence ao campo da comunicação pré-verbal:
“Desde o nascimento podemos notar que o bebê ingere alimento. Digamos que o bebê
encontra o seio, suga e ingere uma quantidade suficiente para a satisfação da pulsão e para
o crescimento. Isso não depende de o cérebro do bebê desenvolver-se satisfatoriamente ou
não. O que precisamos conhecer é a respeito da comunicação que acompanha ou não o
processo de alimentação. E extremamente difícil estar seguro quanto a estas questões
através de instru mentos como a observação de bebês, embora pareça que alguns bebês
mirem o rosto materno de uma maneira repleta de significação, mesmo nas primeiras
semanas de vida. Com doze semanas, contudo, esses bebês já têm condições de nos
oferecer certas informações, a partir das quais podemos fazer mais do que adivinhar que a
comunicação é um fato.
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Embora os bebês normais variem consideravelmente seu padrão de desenvolvimento (em
especial quando medido por meio de fenômenos observáveis), podemos afirmar que com
doze semanas eles já são capazes de brincar da seguinte maneira: acomodado para mamar,
o bebê olha para o rosto da mãe e sua mão se levanta, como querendo brincar de amamentá-
la através do dedo que introduz em sua boca.
Pode ser que a mãe tenha desempenhado algum papel no estabelecimento desse detalhe do
brincar, mas mesmo que isso corresponda à realidade, não invalida a conclusão que tirei do
fato de que este tipo de brincar pode acontecer.
Minha conclusão a partir daí é que, embora todos os bebês ingiram ali mento, não existe
uma comunicação entre ele e a mãe, exceto enquanto se desenvolve uma situação de
alimentação mútua, O bebê alimenta e de sua experiência faz parte a idéia de que a mãe
sabe é ser alimentada.
Se isso acontece na 1 2 semana de vida, é porque, de uma maneira ou de outra, pode (mas
não necessariamente) ser verdadeiro, de alguma maneira obscura, em um período anterior.”
V‟The Mother-Iníant Experience oí Mutuality”, 1969, p. 255]
Assim, tanto a comunicação inconsciente quanto os estados afetivos referentes à mãe e ao
bebê estão intrinsecamente ligados à habilidade da mãe em identificar-se com seu bebê
(fundir-se). O bebê cuja mãe encontra-se envolvida por essa identificação tão intensa e
beneficia-se da experiência de sentir-se compreendido (ver SER: 3).
Winnicott sugere que a experiência de mutualidade depende tanto da mãe, em função de
sua identificação com o filho, quanto do bebê, por causa de seu potencial interior de
crescimento. Para o bebê isto constitui-se em um grande feito.
“É desta forma que testemunhamos concretamente a mutualidade que é o princípio da
comunicação entre duas pessoas; isto é (no caso do bebê) uma conquista do
desenvolvimento que depende dos processos herdados por ele e que conduzem ao
crescimento emocional, dependendo, da mesma forma, da mãe, de sua atitude e capacidade
de tornar real aquilo que o bebê já está pres tes a alcançar, descobrir, criar.”
[ Experience”, p. 255]
Se o bebê desenvolve-se satisfatoriamente é porque depende de uma mãe que incentiva sua
capacidade de criar o mundo (ver CRIATIVIDADE: 2).
A esse respeito, Winnicott tece alguns comentários em uma nota de rodapé de um trabalho
elaborado por Sechehaye a respeito da “realização simbólica” — “isso significa incapacitar
algo real para torná-la um símbolo significativo da mutualidade dentro de um setting
particular” (Mother-Infant Experience, p. 255). E o que deve ser alcançado pelo paciente
que foi privado da experiência de criar o mundo em função de uma falha em seu ambiente
precoce (ver AMBIENTE: 3, 4; SELF: 9).
Winnicott prossegue na exploração das diferentes experiências individuais da mãe e do
bebê, que têm a tarefa de comunicar-se nos mais diversos níveis.
“Neste momento é necessário introduzir uma referência ao fato tão evidente segundo o qual
mãe e bebê chegam ao ponto de mutualidade por meios diversos. A mãe, uma vez, já foi
um bebê que recebeu cuidados; também brincou de bebê e mamãe; talvez tenha
experimentado a chegada de irmãos, cuidado de bebês menores em sua própria ou em
outras famílias; e, quem sabe, tenha aprendido ou lido a respeito dos cuidados dispensados
aos bebês; pode ser que tenha opiniões próprias e firmes quanto ao que está certo e o que
está erra do no contato com os bebês.
O bebê, por outro lado, é um bebê pela primeira vez, jamais foi uma mãe antes e, com toda
certeza, nunca recebeu qualquer instrução. O único passa porte que o bebê traz até a
barreira alfandegária é a soma dos fatores herdados e das tendências inatas voltadas ao
crescimento e ao desenvolvimento.
Conseqüentemente, enquanto a mãe puder identificar-se com o bebê, mesmo que seja um
bebê que ainda não nasceu ou que está em vias de nascer, este, de uma forma altamente
sofisticada, traz para a situação apenas uma capacidade em desenvolvimento de chegar a
identificações cruzadas na experiência de mutualidade que se transforma em um fato. Esta
mutualidade faz parte da capacidade materna de adaptar-se às necessidades do bebê.”
[ Experience”, p. 2561
“Identificações cruzadas” é uma expressão utilizada por Winnicott em seus últimos anos.
Ela aparece em três textos publicados em Playing and Reality (Wi O) — CreativitY and Its
Origins, Contemporary Concepts ofAdolescent Development and Their implications for
Hig. !ier Educa tion e interrelating apartfrom Instinctual Drive and in Terms of Cross
— como também em alguns textos que foram publicados postumamente em Psycho
Analytic Explorations (W19). Essa expressão refere-se basicamente à capacidade de
colocar-se em sintonia e em empatia com o outro (ver CRIATIVIDADE: 7).
À última frase — “Esta mutualidade faz parte da capacidade materna de adaptar-s€ às
necessidades do bebê” — Winnicott acrescenta uma nota de rodapé:
“A palavra „necessidade‟ possui aqui uma importância comparável à que tem a palavra
„pu!são‟ no campo da satisfação pulsional. O termo „desejo‟ está deslocado por estar
inserido em uma sofisticação que não pode ser admitida no estágio de imaturidade em
consideração.”
[ Experience”, p. 256]
A diferenciação que foi estabelecida entre “necessidade” e “desejo” está relacionada à:
fases do desenvolvimento emocional, aplicando-se particularmente ao trabalho analítico
com pacientes regredidos e com aqueles que regridem à dependência no decurso d uma
análise (ver DEPENDÊNCIA: 14; REGRESSÃO: 12).
A seguir, Winnicott empenha-se em “mergulhar nas águas profundas da mutualida de, as
quais não se relacionam diretamente com os impulsos ou com a tensão pulsional‟ Essa é
uma alusão a dois tipos distintos de mutualidade, uma que faz parte da necessidade, e outra
do desejo. A mutualidade destituída da tensão pulsional diz respeito às necessidades do
paciente, como também ao campo da “regressão à dependência”:
70
“Assim como muito do que sabemos a respeito dessas experiências tão precoces da
primeira infância, este exemplo originou-se do trabalho que tem que ser feito na análise de
crianças mais velhas ou mesmo de adultos, quando o paciente encontra-se em uma fase, que
se prolonga ou não, na qual a regressão à dependência é a característica principal da
transferência. Um trabalho desse tipo sempre tem duas faces. A primeira delas é a
descoberta positiva, dentro da transferência, de alguns tipos primordiais de experiência que
foram perdidos ou distorci dos pela própria história pregressa do paciente na relação
precoce com a mãe; a segunda é o uso que o paciente faz das falhas técnicas do terapeuta.
Essas falhas produzem muita raiva, o que é muito importante, uma vez esta raiva traz o
passado para o presente. No período em que se dá a falha inicial (ou falha rela tiva), a
organização egóica do bebê não se encontrava suficientemente organizada para dar conta de
uma questão tão complexa como é a raiva dirigida a algo em especial.”
] Experience”, p. 257]
Os equívocos e falhas do analista precisam fazer parte da transferência. É o que Winnicott
vem a explorar mais adiante, em 1963, em um trabalho intitulado Dependence in Infant-
Care, in Chi/d-Care, and in the Psyc/io- Setting (ver DEPENDÊNCIA: 7).
3 A polêmica quanto a tocar o paciente no decorrer da sessão
Nos exemplos clínicos fornecidos por Winnicott em um texto de 1969, The Mother-Infant
Experience of Mutuality, há uma crítica específica ao “analista possuidor de uma
moralidade analítica rígida que não admite o toque”. Winnicott aponta para a importância
do toque naqueles casos em que a mãe do paciente falhou sucessivamente com seu bebê em
um momento crucial do desenvolvimento:
Ilustração 3
“Este exemplo foi extraído da análise de uma mulher de quarenta anos (casada e com dois
filhos) que não obteve uma completa recuperação em uma análise anterior, que durou seis
anos, com uma colega minha. Concordei com minha colega em ver o que a análise com um
homem iria produzir, e então demos iní cio a um segundo tratamento.
O que escolhi para descrever tem a ver com a necessidade absoluta que esta paciente tinha
de—de tempos em tempos — me encontrar. (Temia dar esse passo com uma analista por
causa das implicações homossexuais que isso acarretaria.)
Uma variedade de intimidades foi tentada, em especial aquelas que se referiam à
alimentação e ao manejo. Houve episódios de violência, até que, em um momento em que
estávamos juntos, aconteceu de segurar sua cabeça entre minhas mãos.
Sem que houvesse uma ação deliberada por parte de qualquer um de nós o ritmo foi
aumentando cada vez mais. Era bastante acelerado, cerca de 70 por minuto (c.f. batimentos
cardíacos). Precisei esforçar-me a fim de adaptar-me a um tal ritmo. No entanto, ali
estávamos nós, com a mutualidade sendo expressa em termos de um leve, porém
persistente, movimento. Estávamos nos comunicando sem empregarmos uma única palavra,
o que se dava em um nível de desenvolvimento que não exigia da paciente que tivesse uma
maturidade mais avançada do que aquela que descobriu possuir na regressão à dependência
da fase de sua análise.
Esta experiência, com freqüência repetida, foi de grande valia para a terapia. A violência
que havia levado a ela foi entendida, então, como uma preparação e um teste complexo
para a capacidade do analista de ir ao encontro das diversas técnicas de comunicação dos
primórdios da infância.
Esta experiência rítmica compartilhada ilustra bem aquilo a que quero fazer referência nos
estágios precoces do cuidado do bebê. As pulsões instintuais do bebê não estão envolvidas
de uma forma específica. O que é essencial é a comunicação entre o bebê e a mãe em
termos da anatomia e da fisiologia de corpos que estão vivos. O assunto pode facilmente ser
elaborado, e os fenômenos mais importantes serão as evidências cruas da vida, como os
batimentos cardíacos, os movimentos e o calor da respiração, ou seja, os movimentos que
apontam para a necessidade de uma mudança de posição etc.”
[ Experience”, p. 258]
Na interação com o paciente, Winnicott transforma-se em uma parteira que facilita o
esforço da mãe e o movimento do bebê em direção ao exterior.
Entretanto, o destaque dado ao toque constitui-se em um campo bastante controvertido
entre os clínicos que trabalham dentro da tradição analítica. Alguns consideram que
qualquer forma de toque adquire uma conotação sexual para o paciente. No entanto,
existem muitos outros que se esforçaram em adaptar a técnica especialmente para aqueles
pacientes regredidos ou que se tornaram regredidos na relação transferencial.
A problemática relativa a se o analista poderia ou não tocar seu paciente no decurso da
sessão são ilustradas em dois textos de dois analistas capitais à tradição independente, que
são Jonathan Pedder e Patrick Casement. Em seu trabalho de 1976, Pedder justifica a razão
de haver decidido que o toque se constituía na mais apropriada intervenção junto a seus
pacientes. Já Casement, em um texto de 1982, diz por que opõe-se à demanda de o paciente
apertar sua mão.
Em 1969, da mesma forma que vários clínicos que trabalhavam com pacientes
extremamente privados e regredidos, Winnicott acreditava que estava se adaptando a uma
necessidade. Por isso, no caso citado em seu texto de 1969, escolheu tocar seu paciente do
modo que lhe pareceu mais apropriado. Sua atitude quanto a tocar os pacientes foi
grandemente criticada por alguns setores do mundo psicanalítico; ainda discute-se se esta é
a melhor técnica para certos tipos de paciente (ver REGRESSÃO: 9).
4 Duas categorias de bebês
Winnicott faz referência a duas categorias de bebês — aqueles que puderam experimentar
um ambiente confiável e aqueles que não. Os bebês que conhecem a confiabilidade
acolhem a comunicação “silenciosa” proveniente do holdin de strnr “
72
cujas mães não são capazes de proporcionar-lhes o holding necessário recebem uma
comunicação que é traumática e que se constitui em um “pesado choque” (ver
AMBIENTE: 7).
“Tentei em outro lugar apresentar o tema dos processos do desenvolvimento do bebê que
precisam, para que se tornem efetivos, do holding da mãe. A comunicação „silenciosa‟ é
uma comunicação baseada na confiança que, de fato, protege o bebê contra as reações
automáticas às intrusões da realidade externa, uma vez que essas reações interrompem a
linha de vida do bebê, dando lugar a traumas. Um trauma é aquilo contra o que um
indivíduo não possui defesas organizadas, deforma que um estado confusional é instalado,
seguido quem sabe por uma reorganização das defesas, defesas de um tipo mais primitivo
do que aquelas que eram suficientemente-boas antes da ocorrência do trauma”.
O exame do bebê que passa pelo holding nos mostra que a comunicação é silente (sendo a
confiabilidade tida como certa), ou traumática (produzindo a experiência de ansiedade
impensável ou arcaica).
Isto divide o mundo dos bebês em duas categorias:
1. Bebês que não foram significativamente „desapontados‟ na infância e cuja crença na
confiabilidade aponta para a aquisição de uma confiança pessoal, que se constitui em um
importante ingrediente do estado que podemos chamar de „em direção à independência‟.
Estes bebês possuem uma linha de vida e a capacidade de mover-se para frente e para trás
(em termos de desenvolvi mento), tornando-se capazes de correrem todos os riscos por
estarem seguros.
2. Bebês que foram significativamente „desapontados‟ uma vez ou em um padrão de falhas
ambientais (relacionadas ao estado psicopatológico da mãe ou da mãe-substituta). Esses
bebês trazem consigo a experiência da ansiedade impensável ou arcaica. Conhecem bem o
que é estar em um estado de confusão aguda e a agonia de desintegração. Conhecem bem o
que é a queda, cair eternamente, ou ser clivado em uma disjunção psicossomática.
Em outras palavras, viveram a experiência do trauma. Suas personalidades têm que ser
construídas em torno da reorganização das defesas que se seguem aos traumas, defesas
essas que necessitam reter certos aspectos primitivos, como a clivagem da personalidade.”
[ Experience”, pp. 259-2601
Esta “clivagem” refere-se à clivagem defensiva que resulta no verdadeiro e falso self. As
“comunicações silentes” do núcleo isolado do self, que foram apresentadas por Winnicott
em seu texto de 1963, Communicating and Not Comrnunicating Leading to a Study of
Certain Opposites, estão relacionadas à clivagem necessária que é característica dos bebês
saudáveis da primeira categoria. Estes bebês fazem uma escolha entre comunicar-se e o
direito a não comunicar-se, o que conduz à clivagem patológica do bebê que foi submetido
à violação de seu self, acarretando uma limitação relativa às escolhas (ver
COMUNICAÇÃO: 12).
5 Comunicar-se ou não se comunicar
O que é fundamental em Winnicott no que diz respeito à comunicação é que cada indivíduo
constitui-se como isolado e, em conseqüência disso, o direito a não se comunicar
73
deve ser respeitado. Essa idéia tem corno base um dos tão famosos paradoxos estabelecidos
por Winnicott — “E um júbilo estar escondido e não encontrar a desgraça” (Com unicating
and Not Comniunicating, p. 186).
O texto Cornmunicating and Not Communi Cating Leading to a Study of Certain Opposites
foi publicado em 1963, quando Winnicott tinha 67 anos de idade. E ele que simboliza suas
últimas inquietações, fruto de 40 anos de investigações no campo emocional, observações e
análise da relação mãe-bebê, o que foi aproveitado como paradigma para a relação analista-
analisando.
A extensão e elaboração dos temas pertinentes à mais importante das relações vividas pelo
indivíduo nos primórdios de sua vida desembocam na auto comunicação do indivíduo,
como também na necessidade de um “não-comunicado”, privado e secreto se!f. E este
secreto se!f que não apenas possui o direito de não se comunicar, mas, essencialmente,
“nunca deve se comunicar ou sofrer influência da realidade externa” (Communicating and
Not Comrnunicating, p. 187).
Winnicott dá início a seu texto citando um verso de Keats: “Cada pedaço de pensa mento é
o centro de um mundo inteligente”, colocando que seu texto contém tão somente uma
idéia”. Essa única idéia está subentendida no segundo parágrafo e, certa mente, diz respeito
à experiência subjetiva então vivida por Winnicott.
“Sem partir de nenhum ponto fixo logo cheguei, enquanto preparava este texto.., à
reivindicação do direito de não me comunicar, o que me causou grande surpresa. Isto foi
um protesto vindo do meu íntimo contra a aterradora fantasia de ser infinitamente
explorado. Dizendo de outra forma, esta seria a fantasia de ser engolido. Na linguagem
desse texto, é a fantasia de ser encontrado.”
]“Communicating and Not Communicating”, p. 1 79]
Posteriormente, com a finalidade de explorar o direito a não se comunicar, Winnicott faz
referência aos estágio precoces do desenvolvimento emocional, revisitando suas
formulações relativas à relação de objeto (até então denominada afinidade egóica). Isto veio
a proporcionar a oportunidade de recolocar a idéia de que é o bebê que cria o objeto. Isso
foi escrito cinco anos antes da publicação de The Use ofan Object and Relating Through
ident onde examina a passagem da relação de objeto ao uso do objeto (ver AGRESSÃO:
10).
“O bebê experimenta a onipotência sob a égide do ambiente facilitador que cria e recria o
objeto. O processo aos poucos vai se constituindo reunindo lembranças passadas.
Sem sombra de dúvida o intelecto afeta a capacidade do indivíduo imaturo de operar esta
tão difícil transição que é a passagem da relação com os objetos subjetivos para a relação
com os objetos objetivamente percebidos...
O bebê sadio cria o que de fato está apenas aguardando para ser descoberto. Na saúde o
objeto é criado, e não descoberto. Este aspecto fascinante da relação de objeto normal foi
estudado por mim em diversos trabalhos, inclusive em „Transitional Objects and
Transitional Phenomena‟ (1951). Um objeto bom não é bom para o bebê, a menos que seja
criado por ele. Poderia dizer,
74
criado a partir da necessidade? Mas o objeto ainda deve ser descoberto para que possa ser
criado. Isto deve ser aceito como um paradoxo...”
[ between Infant and Mother”, pp. 180-1811
Torna-se necessário que a intensa agressão do bebê obtenha uma resposta por parte do
ambiente — ou seja, da mãe, mas também da família e da sociedade — de uma forma não
retaliatória. E essa resposta que irá determinar a capacidade do bebê de atingir o estágio de
maturidade emocional e de operar a distinção entre eu e não-eu (ver
AGRESSÃO: 5).
O comunicar-se e o não comunicar-se são encarados por Winnicott como um dilema, em
especial para o artista.
“De todos os artistas penso ser apenas um capaz de detectar um dilema inerente, que faz
parte da coexistência entre duas tendências, que são a necessidade urgente em comunicar-se
e a necessidade ainda mais urgente de não ser descoberto.”
[ between Infant and Mother”, p. 1851
Esta sentença tão sincera sem sombra de dúvida refere-se ao dilema pessoal vivido por
Winnicott como escritor e comunicador.
6 A função da insatisfação
A fim de alcançar a capacidade de estabelecer uma distinção entre eu e não-eu, o bebê deve
apresentar algum desenvolvimento em termos de percepção. Winnicott faz referência a dois
tipos de percepção, uma subjetiva e outra objetiva, O objeto que é subjetivamente
percebido está vinculado ao período em que o bebê crê que aquilo que vê ao voltar seu
olhar para o rosto de sua mãe é ele próprio (o eu). Como está atento às diferenças existentes
entre seu próprio corpo e os objetos externos (o não-eu), pode começar a perceber
objetivamente.
Entretanto, para que possa fazer a passagem dos objetos subjetivamente percebi dos (o eu)
para os objetos objetivamente percebidos (o não-eu), uma ponte — um período colocado
entre as duas formas de percepção — torna-se necessária. Por isso, antes de alcançar o
estágio onde é capaz de perceber o mundo objetivamente, o sentimento de onipotência
(criei este objeto sem qualquer necessidade, então sou Deus) precisa ser estabelecido (ver
MÃE: 8). Um dos aspectos cruciais desse estágio intermediário é exatamente a experiência
de insatisfação:
“Outro ponto relevante deve ser levado em conta se considerarmos a localização do objeto.
A passagem do objeto de „subjetivo‟ para „objetivamente percebido‟ é feita menos
efetivamente pelas satisfações do que pelas frustrações. A satisfação derivada da
amamentação possui um valor menor no que diz respeito ao estabelecimento da relação de
objeto do que quando o objeto cai do céu, por assim dizer. A gratificação instintiva
proporciona ao bebê uma experiência pessoa!, mas é insignificante a forma com que afeta a
posição do obje
7
to; atendi um paciente esquizóide adulto para quem a satisfação eliminou o objeto, de tal
sorte que este não podia deitar-se no divã, o que reproduzia para ele a situação onde as
satisfações infantis eliminavam a realidade externa ou a exterioridade dos objetos. Coloquei
isto de uma outra maneira, dizendo que o bebê sente-se „enganado‟ por uma amamentação
que satisfaz, e que se pode perceber que a ansiedade de uma mãe que amamenta pode estar
baseada no medo de que, se o bebê não for satisfeito, ela será atacada e destruída. Depois
de mamar, o bebê satisfeito deixa de oferecer perigo por umas poucas horas...
Em contrapartida, a agressão experimentada pelo bebê, e que faz parte do erotismo
muscular, do movimento, e de forças irresistíveis que encontram objetos imóveis, esta
agressão, além das idéias ligadas a ela, conduz ao pro cesso de colocar o objeto separado do
self, uma vez que o se/f começa a surgir como uma entidade.”
É preciso que o bebê viva o sentimento de que é em conseqüência de seus esforços — o seu
vigoroso sugar — que recebe o leite (a criação do objeto). E este tipo de satisfação que
conduz ao sentir-se real, em vez da satisfação que surge sem a participação de seu
empenho, que, por isso mesmo, constitui-se em uma satisfação ilusória.
A função do tipo de insatisfação que capacita o bebê a desenvolver um sentimento de self
em relação ao mundo vincula-se ao processo de desilusão na obra de Winnicott (ver MÃE:
11).
7 A necessidade de recusar o objeto bom
Winnicott volta sua atenção para outro aspecto do estágio intermediário do
desenvolvimento saudável: a passagem da experiência subjetiva de eu para a experiência
objetiva de não-eu, ou seja, a capacidade de dizer não:
“Existe um estado intermediário no desenvolvimento sadio em que a experiência mais
importante vivida pelo paciente em relação ao objeto bom ou potencialmente satisfatório
constitui-se na sua recusa. A recusa do objeto é parte do processo de criá-lo.”
O paradoxo que se apresenta com a criação do objeto a partir do ato de recusá-lo provoca
uma alteração no propósito da comunicação através de todo o caminho:
Teoria da Comunicação
“Estas questões, embora as tenha colocado em termos de relações de objeto, parecem afetar
o estudo da comunicação, uma vez que ocorre naturalmente uma mudança no propósito e
nos meios da comunicação, à medida que o objeto passa de subjetivo a objetivamente
percebido, e ao mesmo tempo em que a criança, aos poucos, vai deixando a área de
onipotência, aqui entendida como uma experiência de vida. Na medida em que o objeto é
subjetivo, não se faz necessário que a comunicação com ele seja explícita. Quando o objeto
é
77
objetivamente percebido, a comunicação é explícita ou silenciosa. Surgem aqui duas coisas
novas, o uso e o deleite, por parte do indivíduo, dos modos de comunicação, e a não-
comunicação do self do indivíduo, ou do núcleo pessoal do self, que verdadeiramente é
isolado...”
O bebê que é saudável e que se beneficia de um ambiente confiável tem a escolha de
comunicar-se ou de não se comunicar. A capacidade de fazer essa escolha surge da relação
precoce mãe-bebê, e está vinculada à exploração levada a cabo por Winnicott das três mães
em uma só — a mãe-ambiente e a mãe-objeto—, em seu texto The Development of the
Capacity for Concern (ver PREOCUPAÇÃO: 3).
8 Dois opostos na comunicação
Tendo estabelecido as diferenças existente entre a comunicação dos bebês e o
desenvolvimento emocional, Winnicott passa a definir dois tipos de não-comunicação:
“A comunicação divide-se em dois opostos:
1. uma não-comunicação básica;
2. uma não-comunicação ativa ou reativa.
É fácil compreender a primeira delas. A não-comunicação básica é como o descanso. É um
estado em si que atravessa a comunicação, ressurgindo naturalmente.”
[ between lnfant and Mother”, p. 1 831
A não-comunicação básica refere-se aos momentos tão tranqüilos de não-integração
passados entre a mãe e o bebê, o que vem a ser o precursor do relaxamento (ver SER: 4).
A “não-comunicação ativa” diz respeito à saúde e tem sua origem na escolha.Já a “não-
comunicação reativa” é patológica e surge de um ambiente que não foi bom o bastante e,
conseqüentemente, falhou em facilitar o desenvolvimento.
“Na psicopatologia.., a facilitação falhou em algum aspecto e em algum grau. A questão da
relação de objeto do bebê desenvolveu uma clivagem. Por inter médio de uma das metades
resultantes dessa clivagem o bebê relaciona-se com o objeto presente. Para tal propósito
desenvolve o que denominei um falso ou complacente self. Com a metade restante o bebê
estabelece uma relação com o objeto subjetivo, ou então com fenômenos simples baseados
em experiências corporais, que são raramente influenciados pelo mundo que é percebido
objetivamente. (Clinicamente, não vemos isto nos movimentos oscilantes do autista, por
exemplo; nem na pintura abstrata, que é uma comunicação sem volta, e que não possui uma
validade geral?)”
Os bebês que sofrem pesados choques precisam criar uma estrutura defensiva que con siga
ooerar uma clivagem na personalidade. Winnicott entende ser este tipo de
clivagem o resultado de um choque traumático proveniente do ambiente. Em “Ego
Distortion in Terms of True and False SeIf”, de 1960, expõe com mais detalhes os aspectos
relati vos à verdadeira e à falsa comunicação que provêm do verdadeiro e do falso self (ver
SELF: 7, 10).
9 O sentir-se real
A tese desenvolvida por Winnicott abarca a idéia de que a comunicação cul-de-sac inerente
à patologia (a não-comunicação reativa) — ilustrada pelos estados do isolamento, por
exemplo — em verdade auxilia o indivíduo a sentir-se real, ao passo que a comunicação
vinculada ao falso se!f não provoca esse sentimento, uma vez que foi separada do
verdadeiro self. Por essa razão nenhuma comunicação é estabelecida com os objetos
subjetivos:
“Parece não restar dúvida de que é a futilidade do ponto de vista do observa dor, o beco-
sem-saída da comunicação (a comunicação com os objetos subjetivos), que traz consigo
todo o sentimento de real. Em contrapartida, a comunicação com o mundo, assim como
ocorre a partir do falso self não é sentida como sendo real; não é uma verdadeira
comunicação, pois o núcleo do self, que podemos chamar de verdadeiro se/f, não está
envolvido.”
Do ponto de vista de um observador, qualquer indivíduo pode obter sucesso no mundo,
contudo, o sucesso fundado no falso se!f conduz a uma intensificação do sentimento de
vazio e de desespero. Isso está relacionado ao falso self intelectual citado por Winnicott em
1960 (ver SELF: 8).
Winnicott vem a sugerir algo inteiramente revolucionário: a cisão ou dissociação, que é tão
óbvia na patologia (o isolamento), possui seu equivalente no indivíduo saudável, na
verdade, ela é parte da saúde.
“É fácil entender que no caso de enfermidades mais brandas, nas quais nota mos algo de
patológico e algo de sadio, podemos esperar encontrar uma não-comunicação ativa (uma
retração clínica) em virtude do fato de que a comunicação, com muita facilidade, pode vir a
unir-se em algum grau à falsa ou complacente relação de objeto; a comunicação silente ou
secreta com os objetos subjetivos, que traz consigo o sentimento de real, periodicamente
deve assumir seu lugar a fim de restabelecer o equilíbrio.
O que postulo é que na saúde (madura, ou seja, no que diz respeito ao desenvolvimento da
relação de objeto) a pessoa apresenta uma necessidade de algo que corresponda ao estado
em que se encontra alguém que está cliva do, em que uma parte daquilo que foi clivado
comunica-se silenciosamente
78
com os objetos subjetivos. Existe espaço para a idéia de uma relação importante e a
comunicação são silenciosas.”
É especificamente esta comunicação silenciosa estabelecida com os objetos subjetivos que
Winnicott relaciona „a “fundação do sentir-se real”. E tudo parte da apercepção criativa e
da capacidade de ser (ver SER: 3).
10 A violação do self
A idéia de ocorrer uma divisão no se/f, que pode resultar na não-comunicação e na
comunicação em um estado de saúde, relaciona-se com a tese de Winnicott de urna
violação do self. Em Communicating and Not Communicating, onde havia preparado o
caminho para o sujeito da violação, expõe dois breves exemplos clínicos de pacientes
femininas.
“A paciente relata que em sua infância (nove anos de idade) foi-lhe roubado um livro
escolar no qual reunia alguns poemas e dizeres, e onde escreveu „Meu livro pessoal‟. Na
primeira página havia escrito: „Aquilo que um homem traz em seu coração é o que ele é‟.
Sua mãe indagou-lhe: „Onde você conseguiu esses dizeres?‟ Isso era muito mau, uma vez
que significava que sua mãe devia ter lido o livro. Estaria tudo certo se sua mãe houvesse
lido o livro, mas não tivesse dito nada a respeito.
Eis o quadro de uma criança estabelecendo um self pessoal que não se comunica, mas que
ao mesmo tempo quer comunicar-se e ser descoberto. E uma brincadeira de esconde-
esconde bastante sofisticada, na qual é uma alegria estar escondida, mas um verdadeiro
desastre não ser descoberta.”
A lembrança da paciente de Winnicott surge por intermédio de uma associação feita com
um sonho em que era invadida. Sua lembrança da infância revelou a Winnicott o quão
violada sua paciente sentia-se pela intrusão da mãe em seu núcleo do self (aqui
representado pelo livro secreto).
Para Winnicott, o segundo exemplo clínico descreve a forma com que sua paciente
relaciona-se com os objetos subjetivos, ou seja, escrevendo poemas, sem jamais consi derar
o fato de que poderiam ser lidos por alguém.
“Quando precisava estabelecer uma ponte com a imaginação da infância, isso tinha que ser
cristalizado em um poema. Seria muito enfadonho se escrevesse uma autobiografia. Ela não
publica seus poemas nem os mostra a ninguém, porque, embora afeiçoe-se a cada um deles
por algum tempo, logo perde o interesse por eles. Sempre foi capaz de escrever poemas
com mais facilidade do que seus amigos em função de uma habilidade técnica que lhe
parece ser natural. Mas ela não está preocupada com a pergunta: Os poemas são real mente
bons? Ou não são? Ou seja: outras pessoas os acharão bons?”
79
Este exemplo constitui-se no ponto crucial do texto, que parece ser também central em sua
obra.
“Sugiro que na saúde existe um núcleo da personalidade que corresponde ao verdadeiro self
da personalidade clivada; sugiro que este núcleo jamais se comunica com o mundo dos
objetos percebidos, e que a pessoa sabe que não deve nunca se comunicar com ou ser
influenciada pela realidade externa. Este é o principal ponto que exponho, o ponto do
pensamento que está no centro de todo um mundo intelectual e de meu texto. Embora as
pessoas sadias comuniquem-se e apreciem comunicar-se, um outro fato também é
verdadeiro, o de que cada indivíduo é isolado, estando permanentemente sem comunicar-se,
permanentemente desconhecido, de fato nunca descoberto.
No decorrer da vida esse fato tão cruel é amenizado pelo compartilhar daqui lo que
pertence à extensa gama da experiência cultural. No âmago de cada pessoa existe um
elemento que não é comunicado, que é sagrado e merece ser preservado. Ignorando por
alguns instantes as experiências ainda precoces e per turbadoras da falha da mãe-ambiente,
diria que as experiências traumáticas que conduzem à organização das defesas primitivas
fazem parte da ameaça ao núcleo isolado, de que ele seja descoberto, transformado, e a
ameaça de comunicar-se com ele. A defesa consiste em um encobrimento posterior do se/f
secreto, mesmo no extremo de sua projeção e de sua disseminação infinita...
O estupro, ser devorado por canibais, tudo isso é café-pequeno se com parados com a
violação do núcleo do sei!, à transformação dos elementos centrais do self pela
comunicação que atravessa as defesas. Na minha opinião isto seria um pecado cometido
contra o self. Podemos compreender a raiva que as pessoas têm em relação à psicanálise,
que penetrou profundamente na personalidade humana, e que representa uma ameaça ao ser
humano individual em sua necessidade de ser secretamente isolado. A questão que se
coloca é: como ser isolado sem ter que ser solitário?”
Estabelecer que a violação psicológica do se/fé muito pior do que o estupro ou comer carne
humana é um ponto que desperta controvérsias, mas esta foi a maneira escolhida por
Winnicott para acentuar o quanto era poderoso esse tipo de violação.
Posteriormente veio a postular três formas de comunicação pertencentes ao
desenvolvimento saudável.
“Nas melhores circunstâncias possíveis desenrola-se o crescimento, a partir do qual a
criança passa a possuir três linhas de comunicação: a comunicação que é para sempre
silenciosa, a comunicação que é explícita, indireta e prazerosa, e a terceira ou uma forma
intermediária de comunicação que desliza do brincar em direção à experiência cultural dos
mais variados tipos.”
80
11 Implicações para a técnica analítica
A questão principal, que é “como estar isolado sem apartar-se”, acarreta importantes
implicações para um viver saudável e criativo, como também à técnica e à prática
psicoterápica. Esta é uma das mais notáveis contribuições feitas por Winnicott à técnica
analítica.
“Na prática existe algo que devemos admitir em nosso trabalho, a não-comunicação como
uma contribuição positiva. Devemos nos interrogar se nossa técnica permite ao paciente
comunicar que não está se comunicando. Para tal coisa acontecer nós, analistas, devemos
estar prontos para o sinal: „Não estou me comunicando‟. Precisamos ser capazes de
distingui-lo do sinal de perigo que está associado a uma falha na comunicação. Existe aqui
um elo de ligação com a idéia de estar só na presença de alguém, o que inicialmente é um
acontecimento natural na vida da criança, e que mais tarde transforma-se em uma questão
de aquisição de uma capacidade de retração sem a perda da identificação com aquilo que
originou esta retração. Isto surge com a capacidade de concentrar-se em uma determinada
tarefa.”
Isto vem a modificar os fundamentos da psicanálise. Enquanto Freud defendia a
necessidade do paciente de associar livremente e “dizer tudo”, Winnicott entendia que a
mãe/analista deveria respeitar a necessidade do se!f privado do bebê/paciente de não
comunicar-se.
Winnicott destaca esta diferença em razão dos perigos suscitados pela psicanálise no caso
do direito do paciente de permanecer em silêncio não ser respeitado pelo analista. A
natureza um tanto incomum da mensagem de Winnicott refere-se ao seu entendimento da
diferença existente entre o paciente que pode fazer uso da linguagem (e conseqüentemente
da área transicional) e aquele cujas palavras não têm qualquer proveito em função de ainda
não haver alcançado a capacidade de simbolização (ver TRANSICIONAIS,
FENÔMENOS: 3).
“Nos casos que são claramente de neurose não existe qualquer dificuldade, porque toda a
análise é feita através da intermediação da verbalização. Tanto o paciente quanto o analista
desejam que seja assim. Mas é muito fácil que uma análise (onde haja um elemento
esquizóide oculto da personalidade do paciente) transformar-se em um conchavo,
prolongado até o infinito, do analista com o paciente para a negação da não-comunicação...
Em uma análise assim, um período de silêncio pode ser a contribuição mais positiva que o
paciente pode oferecer, estando o analista envolvido em um jogo de espera. Pode-se,
naturalmente, interpretar os movimentos e gestos de todos as matizes como aspectos do
comportamento, mas neste tipo de caso penso ser melhor que o analista aguarde.”
Winnicott estimula os analistas a aguardar e proporcionar ao paciente o espaço necessário a
que chegue a suas próprias interpretações, particularmente enquanto o analista passa pelo
processo (na experiência do paciente) de tornar-se um objeto objetivamente percebido.
é no lugar em que o analista ainda não sofreu a transformação de objeto subjetivo para
objeto objetivamente percebido que a psicanálise é perigosa. Mas o perigo pode ser evitado
se soubermos como nos comportar. Se espera mos nos tornar objetivamente percebidos no
devido tempo pelo paciente, mas falharmos em nos comportar de uma maneira que facilite
o processo analítico do paciente (que é o equivalente ao processo maturacional do bebê e da
criança) repentinamente nos transformamos em um não-eu para o paciente, sabendo mais
do que devíamos, tornando-nos perigosos por nos comunicarmos próximos demais do
núcleo central quieto e silencioso da organização egóica do paciente.
Por esse motivo pensamos ser conveniente, mesmo no caso do neurótico comum, evitar
contatos fora da análise. No caso do paciente esquizóide ou borderline, a questão de como
manejar os contatos extratransferenciais torna-se parte de nosso trabalho com o paciente.”
Isto relaciona-se com a necessidade de limites que forneçam uma organização segura no
interior da relação analítica.
Utilizando-se de uma inversão paradoxal da interpretação freudiana, segundo a qual o
analista deve saber, Winnicott defende que o analista não saiba, o que se torna uma
experiência bastante proveitosa para o paciente.
“Podemos aqui colocar em discussão a proposta de interpretação do analista. Sinto que uma
das funções mais importantes da interpretação constitui-se no estabelecimento dos limites
da compreensão do analista.”
O paciente, assim como o bebê, precisa desiludir-se com o analista como parte constituinte
da passagem à simbolização e ao autoconhecimento.
12 O isolamento e a adolescência
Ao reiterar que compreende o indivíduo como isolado, Winnicott utiliza-se do adolescente
como o principal exemplo de isolamento próprio a todos os indivíduos.
“O tema do indivíduo como isolado tem sua importância no estudo da infância e da psicose,
mas igualmente tem importância no estudo da adolescência. O rapaz ou a moça, na
puberdade, podem ser descritos das mais variadas maneiras, sendo que uma delas diz
respeito ao adolescente como um isolado. A preservação do isolamento pessoal é parte da
busca de uma identidade e do estabelecimento de uma técnica pessoal de comunicação que
não acarreta a violação do seIf central. Esta pode ser uma das razões pelas quais os
adolescentes, em sua maior parte, evitam o tratamento psicanalítico, embora de-
82
monstrem certo interesse nas teorias psicanalíticas. Eles sentem que através da psicanálise
serão estuprados, não sexualmente, mas espiritualmente. Na prática o analista pode evitar
confirmar os temores adolescentes quanto a isso, mas o analista que trata de um adolescente
deve esperar ser testado inteiramente. Deve também estar preparado para empregar a
comunicação do tipo indireto, e para reconhecer a não-comunicação básica.
Na adolescência, que é quando o indivíduo passa pelas mudanças próprias da puberdade e
ainda não está inteiramente apto para tornar-se um membro da comunidade adulta,
podemos notar um fortalecimento das defesas contra ser descoberto, ou seja, ser descoberto
antes mesmo de estar lá para tal. Aquilo que é verdadeiramente pessoal e que é sentido
como real deve ser defendido a todo custo, mesmo que isto implique uma cegueira
temporária em relação ao valor do compromisso. Os adolescentes formam agrupamentos, e
não grupos. Por parecerem iguais acentuam a solidão que é essencial em cada indivíduo.”
A distinção entre compromisso e obediência é algo que o adolescente deve aprender (ver
SELF: 11). O que Winnicott coloca como central nesse texto, em particular, é o isola mento
existencial de cada indivíduo.
Referências
1963 Communicating and NotCommunicating Leadingto a Study of Certain Opposites [
1968 Communication between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and
Contrasted [ 6]
1969 The Mother-Infant Experience of Mutuality [ 91

A CONTINUIDADE DO SER
1 O centro de gravidade
2 O verdadeiro self não-comunicado
3 A apercepção criativa
4 O ser e o elemento feminino
5 O que a vida é

Hoje em dia, de uma forma mais tranqüila, diria que, antes das relações de objeto, a
situação é colocada da seguinte maneira: a unidade não é o indivíduo, mas sim uma
estrutura ambiente-indivíduo. O centro de gravidade do ser não tem sua origem no
indivíduo. Sua origem repousa na estrutura como um todo. Por meio de um cuidado
suficientemente-bom oferecido à criança, da técnica, do holdingg do manejo geral, a casca
aos poucos cede e o cerne (que todo o tempo nos pareceu um bebê humano) pode começar
a ser um indivíduo. Este começo é potencialmente terrível em função das ansiedades
mencionadas e do estado paranóide que se inicia logo após a primeira integração, e também
dos primeiros momentos pulsionais, que oferecem ao bebê um significado inteiramente
novo às relações de objeto. A técnica suficientemente-boa de cuidado do bebê vem
neutralizar as perseguições provenientes do exterior, impedindo o surgimento de
sentimentos de desintegração e de perda de conta to entre psique e soma.
Dizendo de outra maneira, sem uma técnica suficientemente-boa de cuidado do bebê, o
novo ser humano não tem qualquer chance. Mas com uma técnica suficientemente-boa, o
centro de gravidade do ser na estrutura ambiente-indivíduo pode localizar-se no centro, no
cerne em vez de na casca. O ser humano que agora desenvolve uma entidade surgida a
partir do centro começa a localizar-se no corpo do bebê, passando, assim, a criar um mundo
externo, ao mesmo tempo em que adquire uma membrana limitadora, bem como um
interior. Segundo esta teoria, inicialmente não existia um mundo externo, embora nós,
como observadores, pudéssemos ver um bebê em um ambiente.”
O narcisismo primário, como tantos outros termos freudianos, tem sua ênfase e significado
alterados de acordo com a interpretação dada pelo autor, bem como pelo uso que faz da
teoria. Winnicott utiliza-se desse termo com pouca freqüência, mas quando o faz refere-se
aos estados precoces da mãe e do bebê que são anteriores às relações objetais.
A mãe que ingressou no estado de preocupação materna primária é tomada pela
preocupação com o bebê em função de sua intensa identificação com sua condição. E o que
a torna capaz de fornecer a proteção psicológica e física que o bebê requer (ver
PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 1, 2, 3, 4).
Estar fundido, de acordo com Winnicott, significa que a mãe e o bebê são um só, embora a
mãe que é saudável cuide de si própria e aja em favor do bebê (ver EGO: 4). O estado
fusional, para o bebê, aponta para o fato de que ele não é ainda capaz de operar a distinção
entre o eu e o não-eu. Ao ver o rosto da mãe, acredita ser o seu próprio. Esse estado de
devaneio que se estabelece entre mãe e filho está intimamente relacionado às teorias
propostas por Winnicott, como a da mutualidade, da necessidade de ilusão e da
comunicação com objetos subjetivos (ver COMUNICAÇÃO: 9; DEPENDÊNCIA: 9;
MÃE: 4; SELF: 3).
A partir de então Winnicott passa a descrever o estado de “ser” como um estado de não-
integração. O que pensava sobre o assunto foi transferido para algumas notas preparatórias
de uma conferência escritas no ano de 1948.
“... nos momentos tranqüilos dizemos que não existe uma ordem, mas apenas uma profusão
de coisas distintas, o céu visto por entre as árvores, algo a fazer com os olhos da mãe que
vêm e vão vasculhando tudo. Falta a necessidade de qualquer integração... E extremamente
importante ser capaz de manter isso, de sentir falta de algo sem esse apoio. Algo a fazer
com o sossego, com a quietude, relaxado e sentindo-se único entre as pessoas e as coisas
quando nenhuma excitação está presente.”
A habilidade de relaxar e de entregar-se, então, depende inteiramente de um ambiente-
braços maternos que possam ser absolutamente confiáveis. A habilidade de não-integração
e de relaxar, paradoxalmente, constitui-se em um sinal de integração e maturidade (ver SÓ:
2).
Em 1960, o trabalho desenvolvido por Winnicott com bebês e suas mães desembocou em
um texto, The Theory ofthe Parent-Infant Relationship. Nele a ênfase é co1ocad sobre os
aspectos cruciais dos efeitos causados pelo ambiente suficientemente-bom sobre a
continuidade do ser do bebê. Winnicott expõem em detalhes os cuidado parentais e como
eles contribuem para o estabelecimento do sentimento de bem-estai (ver HOLDING: 4;
SELF: 6).
“A partir dos „cuidados recebidos pela mãe‟ o bebê torna-se capaz de adquirir uma
existência própria, passando a construir o que poderia ser chamado de continuidade do ser.
Em suas bases o potencial herdado evolui até chegar a um bebê-indivíduo. Se o cuidado
materno não for suficientemente-bom o bebê não saberá o que é a existência, desde que não
haja uma continuidade do ser; em lugar da personalidade estabelecem-se as bases das
reações ao choque ambiental.”
]“Parent-lnfant Relationship”, p. 54]
Uma vida fundada sobre os efeitos cumulativos das reações ao conflito resulta em um falso-
self, o que absolutamente não é vida (ver SELF: 7)
No entanto, pode existir um falso-se!f saudável capaz de proteger o núcleo/verdadeiro self.
2 O verdade iro self não-comunicado
Winnicott admite a existência de um self central desde os primórdios da vida. Esse s central
somente pode manifestar-se de forma autêntica e ativa se estiver protegido capaz de
permanecer isolado. É essa noção de self entendido como isolado que Winicott explora em
seu trabalho The Theory ofthe Parent-infant Relationship.
“Outro fenômeno que merece ser considerado nesta fase é o encobrimento do núcleo da
personalidade. Passemos, então, a examinar o conceito de self central ou verdadeiro self. O
self central poderia ser o potencial herdado que experimenta a continuidade do ser,
adquirindo a seu próprio modo e ritmo
242
uma realidade psíquica e um esquema corporal particulares. Me parece ser necessário levar
em conta o conceito de isolamento desse se/f central como sendo uma das características da
sanidade. Qualquer ameaça ao isolamento do verdadeiro se/f constitui-se em uma das
ansiedades mais poderosas desse estágio inicial, sendo que as defesas do princípio da
infância surgem como resposta às falhas maternas (ou do cuidado materno), e têm como
objetivo evitar as ameaças que podem perturbar este isolamento.”
O isolamento do verdadeiro se!f é elaborado em 1963 em um dos textos mais funda mentais
produzidos por Winnicott, Communicating and Not Communicating Leading to a Study of
Certain Opposites (ver COMUNICAÇÃO: 14).
“O que tento demonstrar e ressaltar é a importância que possui a idéia de isolamento
permanente do indivíduo, e afirmando que no núcleo do indivíduo não existe uma
comunicação com o mundo do não-eu de forma alguma...
O tema referente ao indivíduo tomado como isolado tem sua importância no estudo da
infância e da psicose, mas também no estudo da adolescência. Na puberdade, o garoto ou a
garota podem ser descritos das mais diferentes maneiras, sendo que uma delas refere-se ao
adolescente entendido como iso lado. Esta preservação do isolamento pessoal faz parte da
procura de uma identidade, e também do estabelecimento de uma técnica pessoal de
comunicação que não acarrete a violação do self central. Esta pode ser uma das razões pelas
quais os adolescentes, de uma maneira geral, esquivam-se do tratamento psicanalítico,
embora demonstrem interesse nas teorias psicanalíticas. Sentem que serão violados pela
psicanálise, não sexualmente, mas espiritualmente. Na prática o analista pode evitar
confirmar os temores do adolescente referentes a isso, mas o analista de um adolescente
deve esperar ser testado completa mente. Deve estar preparado para fazer uso da
comunicação do tipo indireto e também para reconhecer a simples não-comunicação.”
Em uma passagem anterior desse mesmo texto, Winnicott postulava que o medo despertado
na sociedade pela psicanálise estava associado à violação do self.
“É plenamente justificada a aversão que a psicanálise provoca nas pessoas, pois ela penetra
fundo na personalidade humana, ameaçando o indivíduo humano em sua necessidade de
estar secretamente isolado. Então, a questão que se coloca é a seguinte: como estar isolado
sem apartar-se?”
Esta paradoxal e tão importante questão está vinculada ao tema da violação do self e dos
estados de isolamento (ver SÓ: 3).
O respeito e o reconhecimento da necessidade do paciente em não comunicar-se constitui-
se em uma idéia radical dentro da psicanálise, uma vez que a tradição dita que o paciente
fale a respeito de tudo.
3 A apercepção criativa
Apercepção criativa é o nome dado por Winnicott à experiência subjetiva que o bebi tem da
mãe e do ambiente desde o início.
“A apercepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, faz com que o indivíduo sinta
que a vida vale a pena. Em contrapartida, existe uma relação de submissão para com a
realidade externa, onde o mundo e todos os seus componentes são reconhecidos apenas
como algo a que devem se ajustar ou que demandam adaptação.”
O bebê que se desenvolve a partir do centro de gravidade, e que por isso mesmo passa a ter
um lugar no seu cerne (seu próprio sentimento de self), tomado como o oposto d concha (a
necessidade narcísica que a mãe apresenta de ela própria ser olhada), é capa de aperceber
criativamente. É tão-somente isto o que conduz ao sentimento de se1f de sentir-se real. Este
sentimento empresta significado à vida e a faz valer a pena. É precisamente isso o que mais
preocupou Winnicott em sua última década de vida (ver CRIATIVIDADE: 6; SELF: 13).
Segundo Winnicott, existe um contínuo que se estende da apercepção à percepção. O bebê,
se pudesse, diria:
“Ao olhar sou visto, então existo. Agora tenho como olhar e ver.
Agora olho com criatividade, e o que apercebo eu também percebo.
Mas é bem verdade que procuro não ver aquilo que não está lá para ser visto (a menos que
esteja exausto).”
[ of Mother and Family in Child Development”, 1971, p. 114]
O que chama a atenção aqui em termos de “ser” é “ao olhar sou visto, então existo”. bebê
depende de ser visto (e precisa adaptar-se a isso) pela mãe para sentir-se vivo Olhar e ser
visto são as bases da identificação primária. Do sentimento de ser e do se visto surge o
espaço que propicia o sonhar e o brincar (ver CRIATIVIDADE: 1; MÃE: 4, 9j
BRINCAR: 1; TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 5).
O que foi exposto acima por Winnicott diz respeito ao processo que, no indivíduo saudável,
coincide com a comunicação silenciosa e com os objetos subjetivos. Este tipo de relação do
se!f vem a criar e enriquecer o sentir-se real (ver COMUNICAÇÃO: 4, 9).
4 O ser e o elemento feminino
Winnicott, em um trabalho intitulado Creativity and its Origins — a reunião de dois textos
escritos nos últimos anos de sua vida — faz referência aos “elementos masculino e
feminino”. Aí localiza o “fazer” no âmbito do elemento masculino, e o “ser” ao lado do ele
mento feminino. Dessa forma sua teoria passa a incluir a natureza tão fundamental d pai,
assim como a terceira área (ver TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 7).
“É preciso dizer que o elemento que escolhi chamar de „masculino‟ transita em termos de
uma relação ativa ou passiva.
Sugiro que, ao contrário, o puro elemento feminino está relacionado ao seio (ou à mãe), no
sentido de que o bebê se transforma no seio (ou na mãe), já que o objeto é o sujeito... Nessa
relação do puro elemento feminino com o „seio‟, podemos encontrar uma aplicação prática
da idéia de objeto subjetivo, sendo que essa experiência abre as portas para o sujeito
objetivo, ou seja, a idéia de um self e o sentimento de ser real que têm origem no
sentimento de possuir uma identidade.
Embora a psicologia do sentimento de self e do estabelecimento de uma identidade seja de
uma enorme complexidade, à medida que o bebê cresce, nenhum sentimento de self surge,
a não ser na base dessa relação no sentimento de SER. O sentimento de ser é algo que
antecipa a idéia de ser-um-único-com, porque ainda não existe nada além da identidade.
Duas pessoas que estão separa das podem sentir-se unidas, mas aqui, o bebê e o objeto são
um só. O termo identificação primária veio nomear isso que descrevo. Estou tentando
demonstrar a importância vital dessa primeira experiência para o início de todas as outras
experiências de identificação que se seguirão.
Tanto a identificação projetiva quanto a identificação introjetiva têm sua origem nesse
campo onde cada um é o mesmo que o outro.”
]“Creativity and Its Origins”, pp. 79-80]
O que nos anos 50 era chamado de afinidade egóica passa então a denominar-se “relação de
objeto”. Em seu centro está o ser:
“No crescimento do bebê humano, enquanto o ego organiza-se, o que chamo de relação de
objeto do puro elemento feminino estabelece aquilo que talvez seja a mais simples de todas
as experiências, a experiência de ser. Aqui nos deparamos com uma verdadeira
continuidade, que a passa de geração em geração, através do elemento feminino de homens
e mulheres e de bebês masculinos e femininos... Refiro-me aos elementos femininos
presentes tanto nos homens quanto nas mulheres.”
[ and !ts Origins”, p. 80]
Winnicott vem apontar para uma certa negligência por parte da psicanálise com relação a
um aspecto do elemento feminino: a capacidade de ser.
“Os analistas talvez tenham dispensado uma atenção especial a esse elemento masculino ou
ao aspecto pulsional da relação de objeto, negligenciando, entretanto, a identidade sujeito-
objeto para a qual chamo a atenção aqui e que está na base da capacidade de ser. O
elemento masculino faz, enquanto que o elemento feminino é. Isso nos faz lembrar
daqueles homens da mitologia grega que tentaram uma união com a divindade suprema.
Podemos encontrar também aqui uma maneira de classificar a inveja localizada tão
profundamente que uma pessoa do sexo masculino sente das mulheres, cujo elemento
feminino os homens entendem como evidente, muitas vezes de uma forma indevida.”
Isso refere-se á idéia que Winnicott formou da MULHER. A inveja das mulheres é baseada
na fantasia segundo a qual elas são as portadoras do elemento feminino, e que está
vinculada “ao medo da MULHER”. O medo da MULHER, que tanto pode mostrar-se nos
homens quanto na própria mulher, deve-se ao fato um tanto desconhecido de que em
determinado momento todos nós fomos dependentes de uma mulher (ver
DEPENDÊNCIA,1 2, 3, 4).
Ao mesmo tempo em que censurava a psicanálise por não dispensar a devida atenção ao
elemento feminino, Winnicott não foi capaz de reconhecer que a distinção que havia
estabelecido entre os elementos masculino e feminino era similar aos conceitos atribuídos a
Jung, de Eros e Logos.Jung afirma que ambos possuem a faculdade de coexistir em um
mesmo indivíduo, não importando a que sexo pertença. A Eros é atribuído elemento
feminino, que denota o princípio psíquico da afinidade, enquanto que Logos, que é
atribuído ao elemento masculino, é pensado como dinâmico e vinculado ao princípio
psíquico da diferenciação.
Para Winnicott, um debate a cerca do elemento feminino torna-se uma tarefa impossível a
menos que se estabeleça uma referência à mãe suficientemente-boa, aquele que é capaz de
oferecer um ambiente facilitador.
“Volto agora a considerar o estágio inicial no qual o padrão é estabelecido pela maneira
com que a mãe, das formas mais sutis possíveis, maneja o bebê. E necessário referir-me em
detalhes ao exemplo tão especial que é o fator ambiental. Ou a mãe possui um seio que é,
de forma que o bebê também pode ser, quando ele e a mãe não estão ainda separados na
mente rudimentar do primeiro, ou então a mãe é incapaz de oferecer essa contribuição, caso
esse em que o bebê tem que se desenvolver na ausência da capacidade de ser, ou com uma
capacidade de ser muito debilitada.”
[ and Its Origins”, p. 81 -82]
Em um recado dirigido claramente aos kleinianos, que acreditam ser a inveja inata
Winnicott sublinha seu desacordo teórico, vindo já de longa data, com Melanie Klein
apontando para que a inveja surge de uma falha no ambiente. A experiência de um mãe
atormentadora — por vezes boa, outras vezes má, mas jamais boa o bastante — venha
constituir-se na pior das mães (ver MÃE: 12).
“A mãe que é capaz de realizar esta coisa tão sutil a que me refiro faz com que o se/f
„puramente feminino‟ de seu filho não se torne invejoso do seio, uma vez que, para a
criança, o seio é o self e o se/fé o seio. Inveja é um termo que pode ser aplicado à
experiência vivida de uma falha atormentadora do seio, aqui entendido como algo que É.”
[ and ts Origins”, pp. 81-82]
A relação de objeto (ou afinidade egóica), se considerada em termos de puro elemento
feminino, não estabelece qualquer relação com a pulsão ou impulso.
“O estudo do elemento feminino puro, refinado e não contaminado, nos con duz ao SER,
que se constitui na única base para a autodescoberta e para o senti-
246
mento de existir (e, posteriormente, para a capacidade de desenvolver um interior, de ser
um continente, de possuir a capacidade de fazer uso dos mecanismos de projeção e
introjeção, e de relacionar-se com o mundo a partir da introjeção e da projeção).”
5 O que a vida é
[ and Its Origíns”, p. 82]
Winnicott parece não ter sido capaz de salientar o suficiente que o ser se localiza no centro
de qualquer experiência de vida. Na verdade, se o indivíduo não tiver a oportunidade de
tão-somente ser, seu futuro não pode se mostrar promissor em termos de qualidade
emocional de vida. Todas as probabilidades apontam para que o indivíduo venha a sentir-se
vazio.
“... acredito que a característica própria ao elemento feminino dentro do contexto da relação
de objeto é a identidade, que proporciona à criança a base para ser e, mais tarde, uma base
para um sentimento de seu. Creio ser aqui, na dependência absoluta da provisão materna,
que a qualidade especial de envolvimento da mãe ou de não envolvimento dela com o
funcionamento mais primitivo do elemento feminino, onde podemos buscar os
fundamentos da experiência de ser.
Agora posso dizer: „Após ser — fazer e ser feito. Mas, em primeiro lugar, ser‟.”
{“Creativity and lts Origins”, pp. 84-85]
No entanto, a habilidade de fazer é baseada na capacidade de ser. A busca e a descoberta de
um sentimento de self, tomado no contexto terapêutico, não tem outro fim senão encontrar
uma identidade.
Em 1967, Winnicott coloca a seguinte questão — que é mais familiar aos filósofos do que
aos psicanalistas — em seu texto The Location of Cultura! Experience:
“Faz-se necessário enfrentarmos a seguinte questão: o que a vida é? Os nossos pacientes
psicóticos obrigam-nos a prestar bastante atenção a esse tipo de problema básico... Ao
referirmo-nos a um homem, falamos dele juntamente com a soma de suas experiências
culturais. O todo forma uma unidade.
Resolvi empregar o termo „experiência cultural‟ como uma extensão da idéia de fenômenos
transicionais e de brincar, sem ter absoluta certeza de poder definir a palavra „cultura‟. Na
verdade, o destaque é colocado sobre a experiência. Ao empregar a palavra cultura estou
pensando na tradição que foi herdada. Estou pensando em algo que é comum a toda a
humanidade, algo para que indivíduos e grupos podem oferecer sua contribuição, e do qual
todos nós podemos usufruir se tivermos onde guardar aquilo que encontramos.”
De acordo com Winnicott a cultura diz respeito ao âmago da experiência vivida pe mãe e
pelo bebê nos primórdios, assim como com algo que se constitui em uma contingência — o
contexto no qual a mãe está inserida (ver CRIATIVIDADE: 3).
Entretanto, o bebê que não passou pela experiência de uma mãe suficientemente-boa é
impedido de desenvolver-se e de descobrir a capacidade de ser. Este é o bebe que irá
experimentar o que Winnicott chamou de ansiedade inimaginável, agonias primitivas e
aniquilação (ver AMBIENTE: 6).
“A ansiedade nesses primeiros estágios da relação mãe-bebê está relacionada à ameaça de
aniquilação. E preciso esclarecer o que significa esta palavra.
Nesse lugar que é caracterizado pela existência fundamental de um ambiente de holding, o
„potencial herdado‟ transforma-se em uma „continuidade do ser‟. A alternativa ao ser é a
reação, porém, essa reação suspende o ser e o aniquila. O ser e a aniquilação são as duas
alternativas. O ambiente de holding, portanto, tem como sua função principal a redução dos
conflitos a um mínimo a que o bebê deve reagir, o que acarreta a aniquilação do ser
pessoal. Sob condições favoráveis, o bebê estabelece uma continuidade da existência,
passando a desenvolver certas sofisticações que a tornam possível, pois os conflitos ficam
agrupados na área de onipotência.”
{ Relationship”, p. 47]
Aqui, mais uma vez, nota-se toda uma gama de coisas. De um lado há o ser, que esi
relacionado à saúde e à integração, bem como à habilidade de ser, que se segue ai fazer; de
outro, estão as agonias primitivas, onde notam-se apenas reações cruas e um incapacidade
em distinguir entre o que é interno e o que é externo, entre o eu e não-eu. Nesse caso existe
sempre a expectativa de que a psicoterapia venha a facilitar regressão necessária à
descoberta do centro de gravidade inerente à relação de transferência (ver SELF: 13).
Referências
Anxiety Associated with Insecurity [ The Theory of the Parent-Infant Relationship [
Communicating and Not Communicating Leading to a Study of Certain Opposito[
The Ordinary Devoted Mother [ 6]
The Location of Cultural Experience [ 0]
Creativity and lts Origins [ 01
Mirror-Role of Mother and Family in Child Development [ 0]

CRIATIVIDADE
1 O lugar ocupado pela criatividade
2 O recém-nascido como criador do mundo
3 A posição ocupada pela experiência cultural
4 E faz-se o viver criativo
5 A criatividade e o artista
6 Em busca do self
7 Os elementos masculino e feminino
8 O puro elemento feminino
9 O puro elemento masculino
P ara Winnicott, o centro de um viver criativo reside na ilusão onipotente do bebê, ou seja,
aquela segundo a qual ele é Deus e cria o mundo. Ela tem sua origem na mãe que, a partir
do estado de preocupação materna primária, torna-se capaz de proporcionar exatamente
aquilo de que o bebê mais necessita. Assim, o bebê passa a sentir que é ele quem cria os
objetos que lhe são oferecidos.
O ato criativo (como o pintar, o dançar etc.) não é um sinônimo de viver criativamente.
84 A LINGUAGEM DE W!NNICOTT
1 O lugar ocupado pela criatividade
A teoria da criatividade de Winnicott apresenta certas divergências em relação às de Freud
e Melanie Klein. Nela as raízes da criatividade situam-se nos primórdios da vida e no
centro da relação mãe-bebê. De uma forma bastante resumida, segundo Freud, a
criatividade do adulto está vinculada a sua teoria da sublimação.já para Melanie Klein, a
criatividade associa-se a aspectos reparadores inerentes à posição depressiva (que se
estabelece algumas semanas ou meses após o nascimento).
No decorrer dos anos 50, Winnicott desenvolveu algumas idéias a respeito da função
determinante da mãe anteriormente — e mesmo após o nascimento —, situando a
criatividade no centro e no início da relação primordial. Em 1953 Winnicott, em con junto
com Masud Khan, empreendeu uma releitura de Psychoanalytic Studies ofthe Persanality,
de WRD Fairbairn. A partir daí o conceito winnicottiano de criatividade primária começa a
tomar forma. Em uma referência à obra de Fairbairn, escreve:
“Em sua teoria a criatividade psíquica primária não se apresenta como uma característica
humana; uma série infinita de introjeções e projeções constitui a experiência psíquica do
bebê. A teoria de Fairbairn nesse ponto assemelha-se à de Melanie Klein, que também não
reconhece a idéia de criatividade psíqui ca primária.
Podemos dizer que na teoria freudiana este tema nunca foi levantado, pois a parte do
trabalho clínico em que a questão da criatividade primária deveria ser considerada jamais
foi alcançada. O analista está implicado em tudo que diga respeito à realidade e às fantasias
associadas às relações interpessoais e à aquisição gradual da maturidade dos elementos
pulsionais dessas relações; não estou afirmando, contudo, que estes tópicos abrangem a
totalidade da experiência humana. Podemos notar que comparativamente apenas recente
mente os analistas começaram a sentir a necessidade de elaborar uma hipótese que
contemplasse o campo da experiência infantil e do desenvolvimento egóico, que não estão
necessariamente associados ao conflito pulsional, e onde existisse intrinsecamente um
processo psíquico comparável àquele que denominamos aqui de „criatividade (psíquica)
primária‟.”
[ of Psychoanalytic Studies”, p. 420)
Segundo Winnicott, a criatividade primária apresenta-se como um impulso inato que se
dirige à saúde e que está inevitavelmente vinculado a muitos dos temas que abordou:
• a necessidade da ilusão nos primeiros dias ou semanas da relação do bebê com a mãe, que
conduz ao sentimento de onipotência (ver SER: 3; HOLDING: 4; PREOCUPAÇÃO
MATERNA PRIMÁRIA; 2);
• a capacidade demonstrada pela mãe de oferecer uma resposta ao gesto espontâneo do
bebê, assim facilitando o desenvolvimento do sentimento de self originado a par tir do
verdadeiro se!f (ver SELF: 6);
• o papel desempenhado pela agressão primária e pela exigência por parte do bebê de um
objeto (a mãe-objeto e a mãe-ambiente) a fim de que consiga sobreviver ao seu amor cruel
(ver AGRESSÃO: 2, 3, 8, 9; PREOCUPAÇÃO: 3, 4; MÃE: 3, 4; TRANSICIONAIS,
FENÔMENOS: 3).
2 O recém-nascido como criador do mundo
Em um texto de 1951, Transitional Objects and Tansitional Phenomena, Winnicott refere-
se à capacidade do bebê de estabelecer uma atividade criativa que resulta na criação do
seio:
“... o seio é criado pelo bebê constantemente através de sua capacidade de amar ou
(poderíamos dizer) pela necessidade. Um fenômeno subjetivo passa a desenvolver-se no
bebê e que chamamos de seio da mãe”.
Em seguida acrescenta a seguinte nota de rodapé:
“ aqui toda a técnica de maternagem. Quando é dito que o primeiro objeto é o seio, a
palavra „seio‟ é empregada, creio, tanto para representar a técnica de maternagem quanto o
próprio seio.)
A mãe apresenta o seio real apenas quando o bebê está preparado para criar e no momento
adequado.”
[ Objects”, pp. 238-239]
Situar o objeto no local e momento apropriados é algo que a mãe apenas é capaz de fazer se
houver ingressado no estado de preocupação materna primária, o que significa que assim
está profundamente identificada com o bebê, esforçando-se em descobrir suas necessidades
(ver MÃE: 8).
Nessa obra Winnicott enfoca qual é a forma de relação existente entre a subjetividade do
bebê e sua luta para que consiga perceber objetivamente o mundo:
“Portanto, é desde o nascimento que o ser humano lida com o problema que é a relação
entre o que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido. Na solução
deste problema a saúde ocupa um lugar importante para o ser humano que não teve uma
iniciação suficientemente-boa pela mãe.
A área intermediária à qual me refiro é a área que é oferecida ao bebê e que se localiza
entre a criatividade primária e a percepção objetiva fundada no teste de realidade. Os
fenômenos transicionais representam os primeiros está gios do uso da ilusão. Sem eles não
existe qualquer significado para o ser humano na idéia de uma relação com um objeto que é
percebido pelas outras pessoas como externo a esse ser.”
[ Objects”, p. 239]
Dezessete anos mais tarde, em 1968, Winnicott estabelece o significado e o valor
conferidos à experiência de onipotência do bebê ao parafrasear a mensagem da mãe dirigi
da ao bebê quando o objeto lhe é apresentado:
“É preciso dizer que o bebê cria o seio, mas não poderia fazê-lo se a mãe não estivesse ali e
naquele momento. O que é comunicado ao bebê é: „Venha ao mundo criativamente. Crie o
mundo. É apenas aquilo que você cria que tem significado para você‟. Posteriormente é
acrescentado: „Você controla o mundo‟. A partir desta experiência de onipotência inicial o
bebê torna-se capaz de poder experimentar a frustração e até mesmo de um dia chegar ao
outro extremo da onipotência, ou seja, de adquirir um sentimento de ser uma gota d‟água
87
no oceano, um oceano que já existia antes mesmo dele ser concebido por pais que tinham
prazer um com o outro. Não é sendo Deus que os seres humanos adquirem a humildade tão
peculiar à individualidade humana?”
[ between Infant and Mother, and Mother and Iníant, Compared and Contrasted”, p. 101]
3 A posição ocupada pela experiência cultural
Winnicott, em 1967, dedicou-se ao que chamou de “experiência cultural”. Particularmente
nesse período perseguiu o que posteriormente veio a tornar-se título de uma obra sua, The
Location of Cultural Experience. A teoria winnicottiana do “uso do objeto” já podia ser
vislumbrada nesse trabalho. Um ano após, em 1968, quando contava 72 anos de vida,
publicou outro texto, The Use ofan Object and Relating through Ident
Em essência a experiência cultural tem suas raízes calcadas na relação precoce de
separação do par mãe-bebê. Urna vez que o ambiente se apresenta como facilitador e
suficientemente-bom o bebê terá a ilusão de “ser Deus”. A partir desta experiência ele
passa a desenvolver e elaborar um processo de desilusão onde fica evidente que ele de fato
não é Deus. A fim de auxiliá-lo na passagem da ilusão à desilusão, o bebê que é saudável
ou a criança pequena irá fazer uso de um objeto transicional. Por isso a atitude adotada
pelos pais em relação ao objeto transicional é de vital importância (ver
TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 3, 4).
“Tenho afirmado que, ao observarmos o emprego que o bebê faz de um objeto transicional,
a primeira possessão de um não-eu, o que estamos testemunhando é tanto o primeiro uso
que a criança faz de um símbolo quanto a primeira experiência de brincar. Uma parte
essencial de minha formulação dos fenômenos transicionais está em jamais propor o
seguinte desafio ao bebê: „Foi você quem criou este objeto, ou ele caiu do céu? Isto é, uma
característica essencial dos fenômenos e dos objetos transicionais repousa sobre a qualidade
de nossas atitudes quando os observamos.
O objeto é um símbolo da união do bebê e da mãe (ou parte dela). Este símbolo pode ser
localizado. Ele situa-se em um lugar com características espaciais e temporais, onde e
quando a mãe passa por uma transição do estar fundida (na mente do bebê) com a criança
para o ser experimentada como um objeto a ser percebido em vez de ser concebido. O uso
de um objeto simboliza a união de duas coisas que agora estão separadas, o bebê e a mãe,
no ponto localizado no tempo e no espaço que é a origem de seu estado de separação.”
[ of Cultural Experience”, pp. 96-97]
Winnicott refere-se aqui à capacidade do bebê de estabelecer uma distinção entre eu e não-
eu; isto é ilustrado pelo destaque dado ao elemento tempo:
“Talvez valha a pena tentar formular isso de uma forma que seja conferido ao fator
temporal o devido peso. O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe
afastar-se por mais de x minutos, então a imago se desvanece e, juntamente com ela, cessa
a capacidade do bebê de fazer uso do símbolo da união. O bebê torna-se angustiado, mas
essa angústia é logo aplacada com o retorno da mãe em x + y. Em x + y minutos o bebê não
sofreu nenhuma alteração. Mas em x + y + z minutos ele fica traumatizado. Em x + y + z
minutos o retorno da mãe não consegue aplacar o estado alterado do bebê. O trauma
implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida, de tal forma que as
defesas primitivas agora organizam-se contra o retorno da „ansiedade impensável‟ ou
contra o restabelecimento de um estado confusional agudo que faz parte da desintegração
da estrutura nascente do ego.
Devemos considerar que a grande maioria dos bebês jamais experimentou a quantidade de
privação x + y + z. Isso significa que a maioria das crianças não carrega consigo por toda a
vida o conhecimento da experiência de ter enlouquecido. A loucura, aqui, significa
simplesmente que houve uma ruptura do que quer que se passe, no momento, na
continuidade da existência pessoal. Após a „recuperação‟ da privação x + y + z o bebê tem
que começar novamente, permanentemente privado da raiz do que poderia fornecer a
continuidade com o início pessoal. Isso implica a existência de um sistema de memória e
uma organização das lembranças.”
[ of Cultural Experience”, p. 97]
Winnicott expõe como a mãe deve agir no interesse de seu bebê a fim de protegê-lo de uma
quebra da continuidade do ser (ver PREOCUPAÇÃO: 5; AMBIENTE: 1, 2).
“Por outro lado, a partir dos efeitos do grau de privação x + y + z, os bebês são
constantemente curados pelo mimo localizado da mãe, que corrige a estrutura do ego. Essa
correção da estrutura egóica restabelece a capacidade do bebê de fazer uso de um símbolo
de união; o bebê então novamente permite que se dê uma separação, e até mesmo beneficia-
se dela. Este é o lugar que achei por bem examinar, a separação que não se constitui em
uma separação, mas em uma forma de união.”
[ of Cultural Experience”, pp. 97-98]
Se o bebê for realmente separado de sua mãe de uma forma gradual por um período não
superior a x + y minutos, então torna-se capaz de recordar-se dela e de retê-la na mente.
Isto guarda urna relação com o conceito winnicottiano de capacidade de estar só do bebê
(ver SÓ, CAPACIDADE DE ESTAR: 2). Entretanto como isto relaciona-se com a posição
ocupada pela cultura?
A ênfase na teoria da cultura de Winnicott é posta sobre a experiência subjetiva do bebê
onde a mãe vem e vai, bem como na idéia que constrói de sua linguagem, em conjunção
com suas tendências herdadas. Este último item refere-se a sua — do bebê — linguagem:
em outras palavras, às características essenciais únicas de sua personalidade e
temperamento. Os costumes vigentes, a linguagem e tudo aquilo que diz respeito a cada
sociedade em particular tem sua origem nesta cultura precoce:
“Empreguei o termo „experiência cultural‟ como uma ampliação da idéia de fenômeno
transicional e de brincar, sem estar certo de que pudesse definir a
89
palavra „cultura‟. O acento, na verdade, é posto na experiência. Ao utilizar-me da palavra
cultura estou pensando na tradição herdada. Estou pensando em algo que faz parte do
patrimônio comum da humanidade, para o qual indivíduos e grupos podem oferecer sua
contribuição, e do qual todos nós podemos usufruir se tivermos um lugar para colocar
aquilo que encontramos.
Aqui existe a necessidade de algum tipo de método de registro. Sem sombra de dúvida,
muito foi perdido das antigas civilizações, mas, dos mitos, um produto da tradição oral,
podemos dizer que eles são um patrimônio cultural que faz a história da cultura humana e
que se estende por seis mil anos. Esta história passada através dos mitos permanece até
hoje, a despeito dos esforços dos historiadores em serem objetivos, o que nunca alcançam,
embora devam tentar.”
[ of Cultural Experience”, p. 99]
Winnicott refere-se ao legado transmitido de uma geração à outra, o que não implica apenas
alguns costumes e tradições de uma dada sociedade, mas implica também seus
fundamentos simbólicos e emocionais. E evidente que cada família possui seus próprios
mitos e histórias relativas ao contexto de cada sociedade e que, também, desempenham um
importante papel na psique individual de cada bebê:
a... em nenhuma área cultural é possível ser original, a não ser baseando-se na tradição.
Contrariamente, alguém que oferece alguma contribuição de caráter cultural nunca se
repete, exceto deliberadamente. O plágio é um pecado imperdoável no terreno cultural. A
interação entre a originalidade e a aceitação da tradição, entendida como a base da
inventividade, me parece ser apenas mais um exemplo, mas um exemplo extraordinário, da
interação entre separação e união.”
[ of Cultural Experience”, p. 99]
Freqüentemente Winnicott coloca em destaque a natureza da criatividade, vista a partir do
viver, do estar vivo e do sentir-se real:
“... o que a vida é? É possível curarmos nosso paciente e não sabermos nada a respeito
daquilo que o faz continuar vivendo. É-nos extremamente importante reconhecer
abertamente que a ausência da doença psiconeurótica pode significar saúde, mas não vida.
Os pacientes psicóticos que constantemente oscilam entre o viver e o não-viver obrigam-
nos a encarar essa questão, questão essa que real mente é inerente não apenas aos
psiconeuróticos, mas a todos os seres humanos. Afirmo que esses mesmos fenômenos que
encarnam a vida e a morte para nossos pacientes esquizóides ou borderline surgem em
nossas experiências culturais. São elas que operam a continuidade da raça humana, que
transcendem a existência pessoal. Postulo que as experiências culturais estão em
continuidade direta com o brincar, o brincar daqueles que ainda não ouviram falar em
jogos.”
]“Location of Cultural Experience”, p. 100]
O que se impõe na teoria elaborada por Winnicott da posição ocupada pela experiência
cultural é a capacidade do sujeito de “lembrar-se” inconscientemente da proteção e da
apresentação do objeto bom proporcionadas pela mãe em seus primeiros momentos de vida.
Esta experiência é internalizada, vindo a criar meios que tornam possível o viver criativo.
4 E faz-se o viver criativo
Da mesma forma que o brincar e o ser são abrangidos pela relação precoce mãe-bebê, o
viver criativo também pertence a esse âmbito. Em um de seus últimos trabalhos, data do de
1970 e, portanto, pouco anterior a sua morte, Winnicott desenvolve mais extensamente os
temas da criatividade e do viver criativo:
“Qualquer definição a que cheguemos deverá incluir a idéia de se a vida merece ser vivida
ou não, de se a criatividade é parte integrante ou não da experiência de vida da pessoa.
Para ser criativa uma pessoa deve existir e possuir o sentimento de existir, não de uma
forma consciente, mas como algo básico a partir do qual pode operar.
A criatividade é, então, @fazer que brota do ser. Isso indica que quem é, está vivo. O
impulso pode estar em paz, mas quando a palavra „fazer‟ ganha peso, é porque já existe a
criatividade.
A criatividade, então, é a retenção por toda a vida de algo que pertence exatamente à
experiência do bebê: a capacidade de criar o mundo.”
[ Creatively”, pp. 39-40]
É a partir do sentimento de haver criado o mundo que se estabelece tudo aquilo que é
verdadeiramente importante. A desilusão não é alcançada sem que primeiramente surja a
ilusão, da mesma forma que o desmame não pode ocorrer sem que primeiro exista uma boa
alimentação, ou o fazer antes mesmo de ser. O que funda o viver criativo é a apercepção
criativa que, por sua vez, se funda na experiência de fusão com a mãe. E precisamente esta
experiência de “retenção da mãe na mente” que evolui até chegar às lembranças, tornando-
se o lugar por excelência da experiência cultural. E aqui que se dá uma comunicação
silenciosa com os objetos subjetivos pertencentes ao mundo interno do indivíduo. Este
constitui-se no elemento não comunicado inerente a todas as personalidades. O que é
fundamental é fazer a vida adquirir um sentido e viver com qualidade (ver SER: 2;
COMUNICAÇÃO: 9).
5 A criatividade e o artista
Viver criativamente, ao mesmo tempo, tem tudo e nada a ver com o artista.
“É preciso deixar clara a distinção existente entre o viver criativo e o ser artisticamente
criativo.
No viver criativo você ou eu pensamos que tudo aquilo que fazemos fortalece o sentimento
de que estamos vivos, que somos nós mesmos. Podemos olhar para uma árvore (que não
está necessariamente em uma fotografia) e
90
olhá-la criativamente. Se você já passou por uma fase depressiva do tipo esquizóide (e
muitas pessoas já passaram), você a verá em um negativo. E como tenho dito com bastante
freqüência: „Há um laburno quando olho através de minha janela, o sol está lá, e
intelectualmente sei que esta é uma grande visão para todos aqueles que podem vê-la. Mas
para mim, nesta manhã (manhã de segunda-feira), não vejo qualquer importância nela. Não
posso senti-la. Ela me deixa alerta quanto a eu não ser real‟.
Embora possuam alguma afinidade com o viver criativo, as criações ativas de
correspondentes, escritores, poetas, artistas, escultores, arquitetos, músicos, são diferentes.
Concordarão comigo que se alguém está envolvido na criação artística, esperamos que
possa invocar algum talento especial. Mas para o viver criativo não precisamos de nenhum
talento especial.”
[ Creatively”, pp. 43-44]
Esta idéia foi elaborada no trabalho que tem por título Playing: Creative Activity and the
Search for the SeIf(1971). Nele Winnicott postula que, no artista, o ímpeto criativo é a
busca da apercepção criativa que está inseparavelmente ligada „a posição da cultura e ao
sentimento do bebê de estar fundido à mãe. Assim, é apenas a partir desse senti mento que
o verdadeiro sentimento de self pode desenvolver-se.
“Na busca do self, a pessoa implicada pode haver produzido algo de valor em termos de
arte. Um artista que é bem sucedido pode ser aclamado universalmente e, ainda assim,
fracassar em encontrar o se/f pelo qual procura. Em verdade, o self não pode ser encontrado
nos produtos do corpo ou da mente, entretanto, essas construções podem ser extremamente
valiosas em termos de beleza, habilidade e impacto. Se o artista (não importando qual
forma de expressão escolheu) busca o self, então podemos dizer que, muito provavelmente,
já existe uma falha estabelecida no campo do viver criativo em geral. A criação que foi
acabada jamais remedeia a falta implícita do sentimento de self.”
6 Embuscadoself
[ Creative Activity”, pp. 54-55]
Em Playing: Creative Activity and the Search for the Se!f, Winnicott retoma a técnica
freudiana da associação livre de uma forma bastante peculiar. Para ele é o ambiente de
holding e a segurança oferecida pelo setting que tornam o paciente capaz de empreender
uma busca do se!f. No entanto, esta busca deve surgir naturalmente, respeitando-se o tempo
próprio a cada paciente, fora de qualquer disformidade:
“A pessoa a quem tentamos ajudar necessita de uma nova experiência em um set ting
especializado. Esta experiência é a de um estado não-intencional, um tipo de tique-taque,
por assim dizer, da personalidade não integrada. Referi-me a isto como amorfia.
Estou tentando referir-me ao que é essencial e ao que torna possível o relaxamento. Em
termos de associação livre, isso significa que ao paciente deitado no divã, ou à criança que
fica entre seus brinquedos sentada no chão, deve ser permitido que comuniquem uma
sucessão de idéias, pensamentos, impulsos e sensações que não possuem uma correlação,
exceto do ponto de vista neurológico ou psicológico, e que talvez não possam ser
detectados. Isto é: é ali, onde existe a intenção, ou onde existe a ansiedade, ou onde existe
uma falta de confiança fundada na necessidade de defender-se, que o analista será capaz de
reconhecer e de apontar a conexão (ou as várias conexões) entre os diferentes componentes
do material da associação livre.
No relaxamento que é inerente ao crédito e à aceitação da confiança profissional do setting
terapêutico (seja ele analítico, psicoterapêutico, de assistência social etc.) há um lugar para
a idéia de seqüências de pensamentos aparentemente não interligados que o analista fará
bem em aceitar como tal, não pressupondo a existência de uma linha significante.”
[ Playing: Creative Activity”, pp. 54-55]
Aqui Winnicott introduz um tema não muito familiar à psicanálise — o nonsense. Defende
que o analista deve entregar-se à disformidade e à atemporalidade comuns à estrutura da
sessão analítica. O que resulta disso é que, através da entrega „aquilo que é completamente
incerto, o paciente mais facilmente poderá encontrar algo que esteja relacionado ao seu
sentimento de criatividade.
“A diferença entre essas duas condições que estão interligadas talvez possa ser ilustrada se
pensarmos em um paciente que é capaz de descansar após o trabalho, mas não é capaz de
atingir um estado de repouso a partir do qual um alcance criativo pode ter lugar. De acordo
com essa teoria, a associação livre que revela algo coerente já está afetada pela ansiedade,
sendo a coesão das idéias uma organização defensiva. Talvez devamos aceitar que existem
pacientes que, às vezes, necessitam que o terapeuta perceba o nonsense que faz parte do
estado mental do indivíduo em repouso, sem que haja a necessidade de que o paciente
comunique esse contra-senso; ou seja, sem que haja a necessidade de que ele organize esse
contra-senso. O contra-senso organiza do é em si uma defesa, assim como o caos
organizado é a negação do próprio caos. O terapeuta que não consegue levar em conta essa
comunicação fica comprometido em uma tentativa vã de descobrir alguma organização no
con tra-senso, o que tem como conseqüência o abandono, por parte do paciente, da área de
contra-senso, em função de uma desesperança em comunicá-lo. Uma oportunidade de
repouso perdeu-se, pois a própria necessidade do terapeuta de descobrir um sentido
constitui-se em um contra-senso, O paciente não conseguiu repousar por causa da falha da
provisão ambiental que desarticulou o sentimento de confiança. Sem o saber, o terapeuta
renunciou ao seu papel profissional, e fez isso deixando sua habilidade de lado, vendo
ordem no caos.”
[ Creative Activity”, pp. 55-56]
Com a finalidade de ilustrar sua tese, Winnicott apresenta parte do trabalho clínico
desenvolvido no decorrer de duas longas sessões com uma de suas pacientes. A paciente
em questão, com alguma freqüência, chegava já elaborando uma indagação. Só após um
prolongado silêncio Winnicott intervinha.
92
“Ela fez uma pergunta, e disse-lhe que a resposta poderia conduzir-nos a uma longa e
interessante discussão, mas era na pergunta que residia meu interesse. Disse-lhe: „Você teve
a idéia de fazer essa pergunta.‟
Em seguida, ela disse as palavras que eu precisava a fim de expressar meus pensamentos.
Lentamente, e com um profundo sentimento, ela disse: „Sim, entendo que a partir da
pergunta, assim como da busca, se poderia admitir a existência de um EU.‟
Nesse momento ela fez uma interpretação essencial, na qual a pergunta surgiu daquilo que
só poderia ser chamado de criatividade, criatividade essa que se revela após o relaxamento,
e que é o oposto da integração.”
[ Creative Activity”, pp. 63-64]
As conclusões extraídas por Winnicott desta sessão dão um sabor cartesiano à sua obra:
questiono, logo sou. A tomada de consciência de um sentimento de self surge de uma
“disformidade desconexa” — a terceira área, denominada por Winnicott neste tex to como
“zona neutra” (ver SELF: 11; TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 5, 7).
7 Os elementos masculino e feminino
Em Creativity and lts Origins (1971), Winnicott inclui um trabalho apresentado em 1966 na
Sociedade Psicanalítica Britânica chamado Male and Female Elements to be Found in Men
and Women. Este texto tão difícil e denso foi provocado pelo seu trabalho clínico àquele
período — o que era absolutamante verdadeiro para todos as suas obras teóricas.
Em um breve relato, Winnicott expõe que, enquanto escutava um paciente masculino,
ocorreu-lhe que estava escutando uma mulher. Compartilha a contratransferência com o
paciente.
O que surge aqui é que a descoberta feita pelo analista de que embora seu paciente
masculino sinta-se como um homem sob todos os aspectos, em estágios precoces de sua
vida sua mãe viu-o como uma menina. E precisamente isso o que foi repetido na relação de
transferência. Foi por isso que Winnicott (como a mãe) escutou uma mulher. Mas de que
forma isto se relaciona aos elementos masculino e feminino?
Winnicott traz mais detalhes desta experiência com seu paciente masculino, expondo quais
foram os efeitos que ela surtiu nele. Segue associando livremente:
“Quando dei tempo a mim mesmo para refletir a respeito do que aconteceu, fiquei confuso.
Não existia um conceito teórico novo, nenhum novo princípio técnico. De fato, eu e meu
paciente já conhecíamos esse terreno. Entretanto, tínhamos algo que era inteiramente novo,
algo novo em minha própria atitude e novo em sua capacidade de tirar proveito de meu
trabalho interpretativo. Decidi render-me ao que quer que aquilo pudesse significar para
mim, podendo o resultado disso ser encontrado neste trabalho que apresento.
Dissociação
A primeira coisa que percebi foi que nunca antes havia aceito totalmente a completa
dissociação que existe entre o homem (ou mulher) e o aspecto da personalidade que possui
o sexo oposto. No caso desse paciente a dissociação era quase completa.”
[ and Its Origins”, pp. 75-76)
93
A “clivagem do elemento feminino” no paciente de Winnicott remontava à convicção de
sua mãe (presumivelmente em função de seu desejo) de que ao dirigir o olhar para seu
menininho, o que via era uma menininha. (Seu primeiro filho era um menino.) Embora isso
não acometa todas as pessoas, foi a partir daí que Winnicott passou a refletir e repensar
sobre algo que foi apresentado por Freud como a “bissexualidade” inerente a todos nós.
“... Encontrei-me com uma velha arma com um fio novo. Surpreendeu-me como isto
poderia afetar ou realmente afeta o trabalho que estava em anda mento com outros
pacientes, tanto homens quanto mulheres, rapazes ou moças. Decidi, portanto, examinar
essa forma de dissociação, deixando de lado, sem esquecê-los, todos os outros tipos de
clivagem.”
[ and Its Origins”, p. 76]
O que faz a complexidade desse texto é o fato do material clínico referir-se a uma
identidade de gênero que foi dissociada em um dos pacientes de Winnicott, o que suscitou
suas idéias no que tange aos elementos masculino e feminino, tanto no homem quanto na
mulher. Embora essas idéias se sobreponham, existe uma diferença fundamental entre a
identidade de gênero e a convivência dos elementos masculino e feminino em cada um. A
questão representada pela identidade de gênero apresenta-se como um vasto campo de
pesquisa que passou a ser desenvolvido a partir dos escritos de Winnicott — os elementos
masculino e feminino os quais desejava estudar referem-se à metapsicologia, embora
estejam associados à realidade da relação mãe-bebê presente nas primeiras semanas.
A tese principal do comentário apresentado por Winnicott a respeito dos elementos
masculino e feminino vem a afirmar que o sentimento de self depende de um casamento
desses dois elementos oriundos de uma determinada fase do desenvolvimento.
8 O elemento feminino puro
O elemento feminino faz parte dos primórdios da vida, quando a mãe e o bebê estão
fundidos, não apenas sentindo-se como um, mas sendo um (ver SER: 1). A fim de que um
sentimento de self seja viável é necessário que se estabeleça o ser-um:
“... nenhum sentimento de self surge, a não ser numa relação com o sentimento de SER. O
sentimento de ser é algo que precede a idéia de ser-um-com, pois ainda não existe nada,
exceto a identidade. Duas pessoas separadas podem sentir-se como uma única, mas no que
estou examinando, o bebê e o objeto são um só. A expressão identificação primária talvez
tenha sido empregada
94
exatamente para isso que descrevo. Estou tentando demonstrar a importância vital dessa
primeira experiência para o começo de todas as subseqüentes experiências de
identificação.”
[ and Its Origins”, p. 80]
De acordo com Winnicott, o elemento feminino tem suas raízes na experiência fusional
com a mãe. Esta identificação primária, em que as experiências do bebê em absoluto
estabelecem uma diferença entre ele próprio e a mãe, é a precursora e a fundadora de todo o
desenvolvimento futuro.
É assim que Winnicott situa o elemento feminino, no centro da estrutura ambiente-
indivíduo, o mesmo local em que posiciona a cultura e a criatividade.
Winnicott entende o elemento feminino como ancorado no ser, entre a mãe e o bebê
fundidos e não integrados. A partir dessa identificação primária têm origem os processos de
identificação que conduzem à diferenciação entre eu e não-eu.
“Tanto a identificação projetiva quanto a introjetiva têm sua origem nesse lugar em que
cada um é o mesmo que o outro.
No crescimento do bebê humano, enquanto o ego começa a organizar-se, isso que chamo de
relação de objeto do puro elemento feminino estabelece o que talvez seja a mais simples de
todas as experiências, a experiência de SER. Encontramos aqui uma verdadeira
continuidade de gerações, onde o ser é transmitido de uma para a outra através do elemento
feminino de homens e mulheres, e de bebês masculinos e femininos. Imagino que isso já
tenha sido dito anteriormente, mas sempre em termos de mulheres e meninas, o que pode
causar alguma confusão. Estou me referindo ao elemento feminino próprio aos homens e às
mulheres.”
[ and Its Origins”, p. 801

“Depois de ser — fazer e ser feito. Mas primeiramente, ser”.


[ and Its Origins”, p. 85]
Winnicott conclui que a dissociação dos elementos masculino e feminino impede o
indivíduo de viver criativamente, embora devamos estabelecer uma diferenciação entre isto
e a identidade de gênero.
As idéias de Winnicott a respeito dos elementos masculino e feminino com toda certeza
assemelham-se às de Jung no que tange aos aspectos masculino e feminino da
personalidade (anima e animus), assim como à união dos opostos no que toca ao self.
Também podem ser tecidas comparações entre a função transcendente proposta por Jung e
a teoria do viver criativo de Winnicott. No entanto, é o uso que Winnicott faz desses
conceitos no contexto da relação mãe-bebê que estabelece a diferença entre sua teoria e a
deJung.
Referências
Transitional Objects and ratisilional Phenomena [
Review of Psychoanalytic Studies of the Personality íW1 91
The Location of Cultural Experience [ 01
Communication between lnfant and Mother, and Mother and Infant,
Compared and Contrasted [ 6]
1970 Living Creatively [
1971 Creativety and lts Origins 1W 101
1971 Playing: Creative Activity and the Search for the Self [ 01

9 O elemento masculino puro


O elemento masculino associa-se ao brincar na luta travada pelo bebê para que consiga
estabelecer a distinção entre eu e não-eu; faz parte do processo de separação, estando
relacionado ao estágio de preocupação, onde existe um precário intercâmbio entre duas
mães: a mãe-ambiente e a mãe-objeto (ver PREOCUPAÇÃO: 3).
“Em contrapartida, a relação de objeto do elemento masculino com o objeto
pressupõe uma separação. Assim que a organização egóica está estabelecida, o bebê
concede ao objeto a qualidade de ser um não-eu, algo que é separado, e experimenta as
satisfações do id, o que inclui a raiva relativa à frustração.”
[ and Its Origins”, p. 80]
Sendo assim, o elemento masculino puro denota uma capacidade de diferenciação que está
fundada sobre uma separação, bem como no desenvolvimento egóico.
O viver criativo está associado à união dos elementos masculino e feminino à capa cidade
de ser e fazer, sendo necessário que surjam nessa seqüência:

1 • DEPENDÊNCIA
97
1 Uma viagem através da dependência
1 Uma viagem através da dependência
2 Um fato chamado dependência
3 OmedodaMULHER
4 A dependência relativa
5 Desadaptação e falha
6 As origens de uma compreensão intelectual
7 A tomada de consciência - rumo à independência
S egundo Winnicott, a realidade da dependência do bebê de seu ambiente cons titui-se no
mais importante dos fatores determinantes do desenvolvimento emocionaL Propôs três
estágios de dependência: “dependência absoluta „ “de pendência relativa” e “rumo à
independência „ Uma relação bem-sucedida do bebê dos primeiros dois estágios de
dependência baseia-se em um ambiente suficientemen te-bom desde o princípio. É o
estabelecimento desses estágios que levará ao estágio de maturidade, - também chamado
estágio de “rumo à independência “
O que Winnicott estabeleceu a respeito dos sucessivos estágios de dependência pode ser
encontrado em sua obra referente aos anos 60, em especial em três trabalhos per tencentes
ao segundo volume de seus textos teóricos, The Maturational Processes and the Facilita ting
Environment (W9): The Theory ofthe Parent-!nfant Relationsiiip (1960), Providing for the
Child in Hea!th and Crisis (1962) e From Dependence towards independence in the Deve
lopment of the Individual (1963).
Em essência, Winnicott entende o desenvolvimento emocional do indivíduo como uma
passagem da dependência absoluta (citada com alguma freqüência como “dupla
dependência” em seus textos da década de 50) à independência. Os últimos estágios desta
passagem foram chamados de “rumo à independência”, o que quer significar que ninguém
chega a alcançar uma completa independência. Estes estágios estão dinamica mente
relacionados ao mundo interno do indivíduo, apesar de a vida adulta ter como uma de suas
características um entrelaçamento com a responsabilidade. Em determina dos períodos,
como na doença, o indivíduo adulto pode vir a sucumbir ao estado de dependência absoluta.
Em The Tlieory ofthe Parent-Infant Relationship os três estágios da dependência são
definidos rapidamente:
“Dependência
Na fase de holding o bebê é dependente ao extremo. Poderíamos classifi car a dependência
da seguinte maneira:
1. Dependência absoluta: neste estado o bebê não possui meios para perceber os cuidados
maternos, que é em grande parte uma questão de profilaxia. Ele não tem qualquer controle
sobre o que é bem ou malfeito, mas está em posi ção de obter algum proveito ou de sofrer
algum distúrbio.
2. Dependência relativa: aqui o bebê sente a necessidade de alguns fatores do cuidado
materno, e pode, de uma forma crescente, relacioná-los ao impulso pessoal, e
posteriormente, em um tratamento psicanalítico, pode repeti-los na transferência.
3. Rumo à independência: o bebê desenvolve meios de se articular sem cuida dos reais. Isto
é possível graças ao acúmulo de lembranças de cuidados, da projeção de necessidades
pessoais e da introjeção de fatores do cuidado, com o desenvolvimento da confiança no
ambiente. Devemos acrescentar aqui mais um elemento, a compreensão intelectual que traz
consigo consi deráveis implicações.”
[ of Parent-Infant Relationship”, p. 46]
Dois anos mais tarde, em Providing for the Child In Health and Crisis, Winnicott divide os
estágios em graus de dependência relacionados às necessidades e ao provimento. Seu
@@@ enfoque sobre o provimento ambiental aqui torna-se bastante claro. Uma falha no
ambiente precoce é o que de mais desastroso pode acontecer à saúde mental de um
indivíduo. Se as necessidades do bebê forem satisfeitas ao longo dos estágios tão pre coces
e precários do desenvolvimento, então ele poderá ocupar uma posição privilegia da que lhe
permitirá sobreviver a uma falha do ambiente daí por diante.
96
98 A LINGUAGEM DE WINNICOTT
“Levamos em conta uma provisão para a criança — e para a criança que existe dentro do
adulto, O adulto maduro, de fato, toma parte na provisão. Em outras palavras, a infância é
um processo que se estende da dependência à indepen dência. Precisamos examinar as
necessidades sempre mutantes da criança como mudanças que vão da dependência à
independência. Isto nos conduz ao estudo das necessidades precoces das crianças pequenas
e dos bebês, e também aos limites da dependência. Podemos pensar nos graus de dependên
cia como uma série:
a) Dependência extrema. Aqui as condições devem ser suficientemen te-boas, pois de outra
forma o bebê não pode dar início ao desenvolvi mento que nasceu com ele.
Falha do ambiente: deficiência mental não-orgânica; esquizofrenia infantil; predisposição a
uma posterior hospitalização por doença mental.
b) Dependência. Quando as condições são falhas de fato ocorre um trauma, pois já existe
uma pessoa para ser trau matizada.
Falha do ambiente: predisposição para distúrbios afetivos; tendência anti-social.
c) Um misto de dependência e independência. A criança faz experiências com a
independência, mas precisa poder experimentar novamente a dependência.
Falha do ambiente: dependência patológica.
d) Independência-dependência. É o mesmo, mas a independência é predomi na nte.
Falha do ambiente: rebeldia; surtos de violência.
e) Independência. Implica um ambiente internalizado: a capacidade própria da criança de
tomar conta de si mesma.
Falha do ambiente: não é necessariamente prejudicial.
f) Sentimento social, O indivíduo pode identificar-se com adultos e com um grupo social,
ou com a sociedade, sem que haja uma perda muito significa tiva do impulso pessoal ou da
originalidade, e sem uma perda importante dos impulsos destrutivos e agressivos que têm,
presumivelmente, uma expressão satisfatória em formas deslocadas.
Falha do ambiente: o indivíduo falha parcialmente em sua responsabilidade como pai ou
mãe, ou como figura parental dentro da sociedade.”
[ for the Chiid”, pp. 66-671
@@@ Winnicott não classifica os estágios em função de uma idade cronológica.
Entretanto, ao longo de sua obra, fica evidente que a dependência absoluta e suas diferentes
gradu ações apresenta-se ao bebê a partir do nascimento, estendendo-se de seis semanas a
três ou quatro meses; o que se segue é o estágio de dependência relativa, que se pro longa
dos dezoito meses aos dois anos de vida, O estágio de “rumo à independência” tem início,
uma vez que o bebê que ainda engatinha ultrapasse todos esses estágios.
2 Um fato chamado dependência
Com bastante freqüência Winnicott refere-se ao “fato” situado no início da vida que é a
dependência.
2 • DEPENDÊNCIA
“Seria de grande valor reconhecer o fato que é a dependência. A dependência
é real. O fato de que os bebês e crianças maiores não podem consigo mesmos
é tão óbvio que as evidências tão simples da dependência são facilmente
esquecidas.
Poderíamos dizer que a história do crescimento infantil é a história da de pendência
absoluta que caminha com firmeza pelos diversos graus de depen dência, mas que anda às
cegas rumo à independência.”
[ in Child Care”, 1970, p. 83]
Na condição em que o bebê está inserido, o fato da dependência que se apresenta nos
primórdios de sua vida é a fase de holding. Com o intuito de sublinhar a contribuição
oferecida pelo ambiente ao desenvolvimento do bebê, Winnicott vem a afirmar que a
dependência absoluta do bebê se constitui em metade da teoria da relação mãe-bebê.
“Uma metade da teoria da relação parento-infantil diz respeito ao bebê, sendo a teoria da
passagem empreendida por este através da dependência absoluta, da dependência relativa,
da independência e, paralelamente, da passagem que ele faz do princípio do prazer ao
princípio da realidade, e do auto-ero tismo às relações de objeto. A outra metade da teoria
da relação paren to-infantil diz respeito ao cuidado materno, ou seja, às qualidades e
mudanças que a mãe sofre e que satisfazem as necessidades específicas do desenvolvi
mento do bebê para as quais ela se orienta.”
[ of Parent-Infant Relationship”, p. 421
Winnicott utiliza-se do termo “dependência absoluta”, particularmente, a fim de des crever
a condição do bebê — ele necessita do ventre da mãe para que possa se desenvol ver. Ao
nascer precisa que sua mãe “adapte-se perfeitamente” as suas necessidades. Se ela houver
ingressado no estado de preocupação materna primária (uma intensa identi ficação com o
bebê), é bastante provável que ele cresça satisfatoriamente, tanto fisica quanto
emocionalmente.
Winnicott dedica uma especial atenção ao paradoxo inerente à condição do bebê recém-
nascido:
“... em termos de psicologia podemos afirmar que o bebê é ao mesmo tempo dependente e
independente. E este paradoxo que precisamos examinar. Existe muita coisa que é herdada,
inclusive os processos maturacionais e, talvez, as tendências patológicas, que possuem uma
realidade toda própria, e ninguém pode alterar isto; ao mesmo tempo, os processos
maturacionais dependem, para sua evolução, da provisão do ambiente.”
Winnicott aponta para um fator fundamental:
[ Dependence towards Independence”, p. 841
“Podemos dizer que o ambiente facilitador torna possível um progresso cons tante dos
processos maturacionais. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses ele
possibilita à criança realizar seu potencial.”
99
[ Dependence towards Independence”, pp. 84-851
100 A LINGUAGEM DEWINNICOTT‟
Os pais não podem saber em que resultarão as tendências herdadas pelo bebê. É lín gua
particular da criança que eles precisam adaptar-se e oferecer uma resposta. Tudo o que
podem fazer é prover o ambiente mais apropriado (adaptação às necessidades), uma vez
que não podem converter o bebê no bebê de suas fantasias.
O período de tempo no qual o bebê permanece absolutamente dependente tem muito em
comum com diversos outros temas abordados por Winnicott, tais como a continuidade do
ser, reações ao choque, preocupação materna primária, fusão, objetos que são
subjetivamente percebidos, comunicação e holding (ver SER: 1; CRIATIVIDADE: 1;
EGO: 2; AMBIENTE: 4; MÃE: 11, 12; BRINCAR: 9; SELF: 6).
Do ponto de vista do bebê, o fator principal no que diz respeito à dependência absoluta é
@@@ que ele não toma absolutamente consciência dos cuidados oferecidos por sua mãe e
de sua dependência dela. Sua mãe é ele próprio. Ao receber o que necessita, crê que isso
aconteceu por ser ele Deus (a experiência de onipotência).
3 O medo da MULHER
A misoginia não faz parte do vocabulário utilizado por Winnicott; contudo, nos primei ros
anos da década de 50, faz alusão as suas raízes ao escrever sobre o medo da MULHER em
um texto intitulado Some Thoughts on the Meaning ofthe Word „Democracy‟, que foi
publicado em 1950 em Human Relations:
“No trabalho analítico e em outras áreas afins, comprovamos que todos os indivíduos
(homens e mulheres) experimentam um certo medo da MULHER. Alguns indivíduos
experimentam este medo em um maior grau que outros, mas podemos afirmar que ele é
universal. Isso não significa que um indivíduo tenha medo de uma mulher em particular. O
medo da MULHER constitui-se em um poderoso agente na estrutura da sociedade que é
responsável pelo fato de que em poucas delas as mulheres detêm o controle político. Ele
também é o responsável pela imensa crueldade para com as mulheres, o que pode ser
observado nos costumes adotados por quase todas as civilizações.
As raízes do medo da MULHER são bem conhecidas. Relacionam-se ao fato de que na
história precoce de cada indivíduo que se desenvolveu satisfatoria mente, que é sadio, e que
foi capaz de descobrir-se, existe uma dívida para com uma mulher: a mulher que se devotou
a este indivíduo quando bebê, cuja devoção foi absolutamente essencial para seu
desenvolvimento saudável. A dependência original não é lembrada, e por isso a dívida não
é reconhecida, exceto na medida em que o medo da MULHER representa a primeira etapa
deste reconhecimento.”
Em uma nota de rodapé Winnicott acrescenta:
[ of Word „Democracy”, p. 252]
“Não é este o lugar mais adequado para examinar em detalhes este problema,
mas a idéia básica será mais fácil de entender se for enfocada deforma gradual:
1) Medo dos pais no início da infância.
2) Medo de uma figura combinada, uma mulher que possui a potência de um homem entre
seus poderes (bruxa).
3) Medo da mãe detentora de um poder absoluto no começo da existência do bebê para
proporcionar-lhe, ou não, os elementos essenciais para o estabe lecimento precoce do se/f
como indivíduo.”
[ of Word Democracy”, p. 2521
Nos dois parágrafos que se seguem Winnicott tece comentários revolucionários (o que gera
uma grande polêmica) a respeito da compreensão psicanalítica das razões pelas quais foi
estabelecida a preponderância das sociedades patriarcais.
“As bases da saúde mental do indivíduo são estabelecidas desde o início, quando a mãe é
dedicada apenas a seu bebê, e quando este é duplamente dependente dela porque não possui
nenhuma consciência dessa dependên cia. A relação como pai não apresenta esta qualidade.
E por essa razão que um homem que, em um sentido político, tenha atingido o topo, é
considerado pelo grupo de uma forma muito mais objetiva do que uma mulher que ocupa
uma posição similar.
As mulheres freqüentemente afirmam que, se controlassem o mundo, não haveria guerras.
Existem motivos para duvidar da veracidade dessa afirmação, mas, ainda que fosse
justificada, não implicaria que os homens e mulheres tolerariam o princípio geral segundo o
qual estas últimas devessem ocupar as mais altas posições do poder político. (A Coroa, por
estar fora ou além da polí tica, não é afetada por estas considerações.)”
[ of Word „Democracy”, pp. 252-2531
Nos outros dois parágrafos Winnicott amplia esta idéia a fim de aplicá-la às ditaduras e aos
grupos humanos que demandam líderes dominadores:
“... temos que considerar a psicologia do ditador, que se encontra no pólo oposto a tudo o
que a palavra „democracia‟ pode significar. Uma das raízes da necessidade de ser um
ditador pode ser a compulsão a lidar com o medo da mulher, cercando-a e agindo por ela. O
curioso costume dos ditadores de exi gir não somente obediência e dependência absolutas,
como também „amor‟, pode ser derivada dessa fonte.
Além do mais, a tendência dos grupos de pessoas em aceitar ou mesmo pro curar por uma
dominação real nasce do medo de ser dominado por uma mulher que só existe na fantasia.
Esse medo os leva a buscar, e até a aceitar de bom gra do, a dominação por um ser humano
conhecido, sobretudo quando se trata de alguém que tomou para si o encargo de
personificar e, conseqüentemente, limi tar as qualidades mágicas da mulher detentora de
todo o poder e que pertence à fantasia, e com a qual se tem uma dívida tão grande. O
ditador pode ser destruí do e, eventualmente, morrerá; mas a figura feminina da fantasia
inconsciente primitiva não conhece limites para sua existência e para seu poder.”
[ of Word „Democracy”, p. 2531
Ao longo dos escritos de Winnicott são notados poucos pontos que se relacionam de uma
forma tão explícita à política, embora sempre existam aplicações potenciais para suas
teorias nesse campo. O medo da MULHER é a contribuição oferecida por WinnicOtl
3 • DEPENDÊNCIA
101
5 • DEPENDÊNCIA
102
A LINGUAGEM DE WINNICOTT
à compreensão do tipo de tratamento dispensado às mulheres na grande maioria das
sociedades. Embora seja potencialmente de enorme relevância, esta foi uma teoria que
jamais elaborou.
Em um pós-escrito a uma coletânea de seus pronunciamentos radiofônicos, datado de 1957
e que recebeu o título de TheMother‟s Contribution to Society, Winnicott coloca a
importância do reconhecimento, por parte de cada indivíduo, do fato que é a depen dência,
e de como esse reconhecimento aplaca o medo.
“Uma vez mais, permitam-me destacar, o resultado de um reconhecimento como esse,
quando ele vem, não será bem-vindo, muito menos aplaudido. O que resulta dele será a
diminuição em nós de um medo. Se nossa sociedade pro tela o reconhecimento pleno desta
dependência, que se constitui em um fato histórico no estágio inicial do desenvolvimento
de cada indivíduo, resta um obs táculo ao progresso e à regressão, um obstáculo fundado no
medo. Se não exis tir um verdadeiro reconhecimento por parte da mãe, restará um leve
medo da dependência. Este medo, por vezes, assumirá a forma do medo da MULHER, ou
do medo de uma mulher. Outras vezes assumirá formas não reconhecíveis tão facilmente,
mas que sempre incluem o medo da dominação.”
[ Contribution to Society”, p. 1251
Mais uma vez refere-se à necessidade que o ditador possui de dominar e à necessidade das
pessoas de serem dominadas — uma conseqüência do não reconhecimento do fato da
dependência.
“Infelizmente, o medo da dominação não faz com que os grupos humanos dei xem de ser
dominados; pelo contrário, empurra-os para uma dominação espe cífica ou a que for de sua
escolha. Na verdade, ao estudarmos a psicologia do ditador, esperaríamos encontrar, entre
outras coisas, que ele, em seu esforço pessoal de tentar obter o controle sobre a mulher cuja
dominação ele incons cientemente teme, tenta controlá-la, cercá-la, agir em seu lugar,
demandando uma sujeição e um „amor‟ absolutos.
Muitos estudiosos da história social pensam ser o medo da MULHER uma poderosa razão
para o comportamento aparentemente irracional do ser huma no reunido em grupos, porém
esse medo raramente conduz às suas raízes. Alcançando as raízes históricas de cada
indivíduo, o medo da MULHER trans forma-se no medo do reconhecimento do fato, que é
a dependência.”
[ Contribution to Society”, p. 125]
Alguns anos depois, em 1964, em um trabalho apresentado à Progressive League, Winni
cott resumidamente desenvolveu esses temas fazendo uso da palavra “MULHER” a fim de
designar “a mãe não reconhecida dos primeiros estágios de vida de todos os homens e
mulheres” (This Feminism, 1964, p. 192).
Esta é a maneira pessoal de Winnicott estabelecer uma diferença entre homens e mulheres.
Em cada mulher habitam três outras:
“... precisamos encontrar uma nova forma de estabelecer a diferença entre os sexos. As
mulheres têm uma relação com a MULHER por meio da identificação
com ela. Para cada mulher existem sempre três outras mulheres: (1) a bebê; (2) a mãe; (3) a
mãe da mãe.
Nos mitos, constantemente nos deparamos com três gerações de mulhe res, ou com três
mulheres que exercem três funções distintas. Se uma mulher tem um bebê ou não o tem, ela
está inserida nessa série infinita; ela é bebê, mãe ou avó, ela é mãe, bebê e a bebê da bebê...
ao passo que o homem princi pia com um poderoso anseio de ser um. Um é um e único, e
tudo o mais tam bém deve ser assim.
O homem não pode fazer aquilo que a mulher faz, o que se confunde com a raça, sem que
haja uma violação do conjunto de sua natureza.
Mas um fato embaraçoso permanece para homens e mulheres. Cada um deles uma vez foi
dependente de uma mulher, e por qualquer razão o ódio referente a esse fato tem que ser
transformado em uma forma de gratidão se a maturidade plena da personalidade for
alcançada.”
[ Feminism”, pp. 192-1 93)
103
De acordo com Winnicott, os homens invejam na mulher o perigo a que ela fica exposta
durante o nascimento do bebê, o que os leva a buscarem esportes perigosos em que são
submetidos aos mais variados riscos. Entretanto, Winnicott aponta para algo extre mamente
enigmático: “Ao morrer, um homem está morto, ao passo que as mulheres sempre foram e
sempre serão.” (This Feminism, p. 193.)
@@@ 4 A dependência relativa
A fase em que o bebê passa a distinguir entre o eu e o não-eu envolve cinco importantes
fatores que estão interligados, todos relacionados ao processo de desmame que se opera
tanto com a mãe quanto com o bebê.
Winnicott estipula que esta fase geralmente estende-se dos seis meses aos dois anos,
indicando que o objetivo do desmame é “usar a capacidade do bebê de desenvol ver-se com
o fim de desfazer-se das coisas, permitindo que a perda do seio não se cons titua meramente
em um caso contingente”.
Os cinco principais fatores do estágio de dependência relativa são:
• a falha gradual da mãe e sua desadaptação como resposta ao desenvolvimento apre
sentado pelo bebê;
• o início de uma compreensão intelectual por parte do bebê;
• a apresentação resoluta e confiante do mundo pela mãe ao bebê, que se subordina à sua
capacidade de ser ela mesma (a apresentação do objeto);
• o aumento da consciência do bebê de sua própria dependência;
• a capacidade do bebê de identificar-se.
5 DesadaptaçãO e falha
A mãe resultante do estado de preocupação materna primária começa a recordar-se que é
um indivíduo independente no mundo. Convalesce, tanto fisica como emocioflal
O bebê exige que a mãe se desadapte, o que faz parte de sua recordação. Esta “falha”
materna inaugura o “princípio de realidade” para a criança, além de participar do processo
@@@ de desilusão que está vinculado ao desmame (ver MÃE: 11). Ao “falhar”, a mãe,
sem sabê-lo, permite ao bebê sentir e experimentar suas próprias necessidades. Esta “falha”
contribui para o desenvolvimento de seu sentimento de self— um self que é eu e separado
da mãe.
Contudo, se a mãe não pode “falhar” (isto é, relaxar-e-permitir-que-seu-bebê-cresça), o
impulso do bebê que é voltado para a auto-realização não pode se manifestar.
“... o bebê que iniciava uma separação de sua mãe não possui os meios de assumir o
controle de todas as coisas boas que estão se passando. O gesto cria tivo, o choro, o
protesto, todos os pequenos sinais envolvidos na produção daquilo que a mãe realiza, tudo
isso se perde, pois a mãe já satisfez as necessi dades, como se o bebê estivesse ainda
fundido com ela e ela com o bebê. Assim, a mãe, sendo aparentemente uma boa mãe, faz
algo pior do que castrar o bebê. A ele restam apenas duas alternativas: ou permanece em
um eterno estado regressivo, fundido à mãe, ou encena uma rejeição total à mãe, mesmo
que ela seja aparentemente boa.
Vemos, portanto, que na infância e no manejo dos bebês existe uma dis tinção bastante sutil
entre a compreensão que a mãe tem das necessidades dele, que é baseada na empatia, e a
mudança que ela sofre na direção de uma compreensão baseada em algo do bebê ou da
criança pequena que aponta para a necessidade. Isto é especialmente difícil para as mães
por causa do fato de as crianças oscilarem entre um estado e outro; em um momento elas
estão fundidas com a mãe, exigindo empatia. No momento seguinte estão separadas dela.
Se a mãe conhecer suas necessidades antecipadamente, acabará por se tornar perigosa, uma
bruxa.”
í”Theory of Parent-Infant Retationship”, pp. 51-521
@@@ Vale a pena apontar para o uso que Winnicott faz da palavra “falha”. A falha
grafada com “f‟ minúsculo está associada à desadaptação. Ela é salutar por tratar-se de um
aspecto necessário do desenvolvimento do bebê — necessário por facilitar (inconscien
temente e en passant) o processo de desilusão que acontece quando a mãe/mulher é ela
mesma (ou continua a desenvolver-se e a viver sua vida).
A mãe que não pode operar isto por conta própria e que se apega a seu bebê, além da idade
conveniente, impede que o bebê atinja o estágio de preocupação e a capacida de de utilizar
o espaço transicional (ver PREOCUPAÇÃO: 7; TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 3).
Por outro lado, a mãe que não corresponde aos anseios do bebê e provoca uma repentina
quebra em sua continuidade do ser instaura a falha com “F”. A etiologia da tendência anti-
social origina-se a partir dessa forma de falha ambiental (ver ANTI-SOCIAL,
TENDÊNCIA: 2, 3).
• DEPENDÊNCIA 105
Um dos principais fatores dessa fase da dependência relativa é que o bebê permite que a
mãe saiba quais são suas necessidades. O “sinal” enviado pelo bebê a sua mãe também
pode ser aplicado à relação paciente-analista.
“.,. No final da fusão, quando a criança torna-se separada do ambiente, um fator importante
é que o bebê tem que enviar um sinal. Vemos essa sutileza surgir claramente, em nosso
trabalho analítico, na transferência. É muito importante, quando o paciente regride à
infância mais precoce e a um estado fusional, que o analista não dê as respostas, a não ser
que o paciente aponte para isso.”
“Theory of Parent-Infant Relationship”, p. SOj
Winnicott investiga a dependência na relação terapêutica em um trabalho de 1963 inti
tulado Dependence in Infant-Care, in Child-Care, and in the Psychoanalytic Setting. Este
texto articula-se com outro de 1954, Metapsychological and Clinical Aspects ofRegression
within the Psychoanalytical Set-Up, referindo-se a aspectos dos cuidados dispensados ao
bebê que estão relacionados à relação analítica. Ambos os textos dizem respeito às fases da
dependência que os pacientes reeditam na relação terapêutica.
Em Dependence in !nfant-Care, in Chi!d-Care, and in the Psychoanalytic Setting, Win
nicott coloca a importância dos enganos cometidos pelo analista na relação transferen daI.
Se estes enganos forem cometidos cedo demais podem provocar a repetição de um trauma
para o paciente. No entanto, se cometidos no momento mais propício da relação
terapêutica, contribuem para o estabelecimento das tão necessárias fases de desilusão
análogas à desadaptação e à “falha” da mãe.
6 As origens de uma compreensão intelectual
O despertar da inteligência no bebê tem sua origem na fase de holding da dependência
absoluta, evoluindo para uma capacidade do bebê de compreender intelectualmente contida
no estágio de dependência relativa. Winnicott apresenta um exemplo:
“Pensemos em um bebê aguardando para ser alimentado. Chega um momento em que ele
só consegue esperar uns poucos minutos, pois os ruídos provenien tes da cozinha indicam
que o alimento está prestes a aparecer. Em vez de sim plesmente ficar excitado com esses
ruídos, o bebê passa a fazer uso dessa nova informação a fim de que consiga esperar.”
[ Dependence towards Independence”, p. 871
Este exemplo de como o bebê é capaz de aguardar também ilustra como a mãe pode tirar
vantagem da capacidade de pensar do bebê. No decorrer da fase de dependência absolu ta
ela precisa pensar pelo bebê como um ego auxiliar. Durante essa fase da dependência
relativa, ela permite ao bebê que pense por conta própria. Esta capacidade desenvolvida
pelo bebê desobriga a mãe de possuir uma preocupação materna primária. A partir daí ela já
é capaz de reaver seu sentimento de self e de separar-se de seu bebê:
104 A LINGUAGEM DE WINNICOTT
mente, do período de gravidez, do parto e da fusão onde ocorre a identificação com a
dependência absoluta do bebê em relação a ela.
w
6
* N. do T. Em francês no orig De passagem, rapidamente, superfidalmente.
106
A LINGUAGEM DE WINNICOTT. 7 • DEPENDÊNCIA
107
“Podemos afirmar que inicialmente a mãe precisa adaptar-se quase totalmente às
necessidades do bebê a fim de que sua personalidade se desenvolva sem qualquer distorção.
Contudo, ela pode fracassar em sua adaptação, e fracassar mais e mais. Isto ocorre porque a
mente do bebê e seus processos intelectuais são os responsáveis pelas falhas de adaptação.
Desta forma, a mente do bebê alia-se à mãe, participando de sua função. No cuidado
dispensado ao bebê, a mãe fica dependente dos seus processos intelectuais, sendo isso o que
a possi bilita a, gradualmente, readquirir uma vida própria.”
[ First Year of Life: Modern Views of Emotiona Development”, p. 7]
Existem riscos inerentes ao fato de depender do intelecto do bebê durante este estágio do
desenvolvimento; o bebê que for obrigado a colocar-se na posição de renunciar a sua mãe e
que tem que se utilizar de sua própria inteligência, além do aconselhável, pode vir a
desenvolver um falso self intelectual cindido (ver SELF: 8).
A capacidade que o bebê possui de pensar depende de como o mundo é-lhe apre sentado
pela mãe:
“Naturalmente os bebês variam muito em sua capacidade de usar sua compre ensão
intelectual precoce, sendo que, muitas vezes, a compreensão que pos sam ter é protelada
pela existência de uma dissipação da forma com que a realidade é apresentada. Esta idéia
deve receber destaque, pois todo o procedi mento referente aos cuidados dispensados ao
bebê tem como característica principal uma apresentação constante do mundo à criança.
Isso é algo que não pode ser feito através do pensamento, nem pode ser manejado
mecanicamen te. Só pode ser feito através do manejo contínuo efetuado por um ser
humano, que é ele mesmo, de uma forma consistente. Aqui não se deve indagar sobre a
perfeição. A perfeição diz respeito às máquinas; aquilo que o bebê necessita é, com
freqüencia, aquilo que ele obtém, ou seja, o cuidado e a atenção de uma pessoa que é
sempre ela mesma. E claro que isso se aplica também ao pai.”
[ Dependence towards Independence”, pp. 87-88
A capacidade da mãe de apresentar o objeto constitui-se em uma de suas funções mais
importantes (ver MÃE: 8).
Winnicott distingue entre os pais que “desempenham” seu papel daqueles que são capazes
de serem pais, além de serem eles mesmos, o que introduz a noção de verdadei ros e falsos
pais.
“É importante enfatizar este „ser ela mesma‟, uma vez que poderíamos separar a pessoa do
homem ou da mulher, da mãe ou da babá, que desempenha sua função, algumas vezes até
bem, porque aprendeu como cuidar dos bebês em livros ou em aulas. Mas esse desempenho
não é suficientemente-bom. O bebê só pode encontrar uma apresentação não-dissipada da
realidade externa rece bendo cuidados de um ser humano que for devotado a ele e à tarefa
de cui dá-lo. A mãe surgirá deste estado de devoção natural. Ela logo retornará a sua
escrivaninha, ou a escrever novelas, ou à vida social junto a seu marido, mas por algum
tempo ainda estará envolvida nisso até o pescoço.”
A palavra “falha” é reintroduzida nesse momento do texto. Winnicott aponta para que “ser
ela mesma” é sinônimo de “ser humana”, e os seres humanos cometem erros e também
falham. Paradoxalmente, Winnicott coloca que são as falhas da mãe que irão comunicar ao
bebê sua verdadeira confiança:
“Com o progresso do desenvolvimento, o bebê adquire um interior e um exte rior. Desta
forma a confiança no ambiente transforma-se em uma convicção, em uma introjeção
baseada na experiência de confiança (humana, e não mecanicamente perfeita).
Não é verdadeiro que a mãe se comunica com seu bebê? Ela diria: „Inspiro confiança - não
porque sou uma máquina, mas porque sei o que você necessi ta; eu cuido, e quero lhe
fornecer o que você necessita. A isso chamo amor nesse estágio de seu desenvolvimento‟.
Mas esse tipo de comunicação é silenciosa. O bebê não ouve ou registra a comunicação,
mas tão-somente os efeitos da confiança; isto fica registrado em termos de um
desenvolvimento que ainda está se desenrolando. O bebê não sabe nada a respeito da
comunicação, mas sabe dos efeitos da falha da con fiança. E onde a diferença entre a
perfeição mecânica e o amor humano se tor na nítida. Os seres humanos falham
constantemente; no decorrer do cuidado cotidiano o tempo todo a mãe tenta corrigir suas
falhas. Essas falhas relativas que recebem uma correção imediata, sem sombra de dúvida,
somam-se final mente à comunicação, de tal forma que o bebê venha a conhecer o sucesso.
Uma adaptação bem sucedida, portanto, conduz a um sentimento de seguran ça, a um
sentimento de ser amado.”
[ between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and Contrasted”, 1 968, pp.
97-98]
As falhas humanas apenas fazem sentido para o bebê por causa da “correção imediata”
— são as falhas corrigidas que contribuem para o sentimento de bem-estar do bebê:
“São as incontáveis falhas, seguidas de um tipo de cuidado que corrige, o que estabelece
uma comunicação amorosa, pelo fato de existir um ser humano que cuida. Quando a falha
não é corrigida dentro do tempo necessário, em segundos, minutos, horas, então
empregamos o termo privação. Uma criança privada, após ter contato com as falhas
corrigidas, experimenta uma falha não-corrigida. E, então, que o esforço da vida da criança
cria as condições nas quais as falhas corrigidas mais uma vez servem de exemplo para a
vida.”
[ between Infant and Mother”, p. 98
É necessário que certas falhas sejam corrigidas na relação analítica, como por exemplo os
enganos do analista.
7 A tomada de consciência - rumo à independência
A dependência absoluta caracteriza-se pela ausência de consciência por parte do bebê de
sua dependência em relação a sua mãe. Durante o estágio de dependência relativa o bebê
inicia o processo de tornar-se consciente de sua dependência. Esta consciência
[ Dependence towards Independence”, p. 88]
108
A LINGUAGEM DE W!NNICOTT, 7 • DEPENDÊNCIA
109
desemboca em um sentimento de ansiedade no bebê ao separar-se de sua mãe; demonstrar
ansiedade indica que o bebê já sabe sobre o cuidado e a proteção dispensa dos por sua mãe:
“O estágio seguinte, onde o bebê de alguma maneira sente a necessidade da mãe, é aquele
em que ele passa a saber em sua mente que a mãe é necessária.
Aos poucos a necessidade de uma mãe real (na saúde) torna-se ameaçado ra e
verdadeiramente terrível, de tal forma que as mães realmente detestam deixar seus filhos,
sacrificando-se ao extremo para não provocar aflição ou mesmo causar raiva ou desilusão
no decorrer desta fase de necessidades espe ciais. Podemos dizer que esta fase dura
(aproximadamente) de seis meses a dois anos.”
[ Dependence towards Independence”, p. 88]
A demonstração que o bebê faz de sua ansiedade ao ser separado de sua mãe também revela
que já está apto a efetuar a distinção entre o eu e o não-eu.
A identidade é também parte deste processo. O bebê que é capaz de identificar-se com sua
mãe e de vê-la como separada de si próprio alcançou um estágio importantíssimo do
desenvolvimento, descrito por Winnicott como “status unitário”. A partir daí o bebê
apresenta-se como uma pessoa que está por sua própria conta (Theoiy of Parent-!nfant
Relati onship, p. 44).
“Gostaria de citar uma forma de desenvolvimento que afeta especialmente a capacidade do
bebê de fazer identificações complexas. Isso diz respeito ao estágio no qual as tendências
voltadas à integração do bebê desembocam em um estágio em que ele é uma unidade, uma
pessoa completa, que tem um inte rior e um exterior, que tem uma pessoa habitando em seu
corpo, e que é mais ou menos limitada pela pele. Já que o exterior refere-se ao „não-eu‟, o
interior significa „eu‟, o que quer dizer que agora existe um lugar onde guardar as coi sas.
Na fantasia da criança a realidade psíquica pessoal está localizada no inte rior. Se estiver
localizada no exterior é porque haverão boas razões para tal.
Agora o crescimento do bebê toma a forma de um contínuo intercâmbio entre a realidade
interna e a externa, cada uma delas sendo enriquecida pela outra.”
]“From Dependence towards Independence”, pp. 90-91]
É este “contínuo intercâmbio entre a realidade interna e a externa” que faz da “percep ção
quase um sinônimo de criação”. E esta a estrutura do status unitário.
“A criança é agora não apenas uma criadora em potencial do mundo, mas também é capaz
de povoar o mundo com amostras de sua vida interior. Assim, pouco a pouco, ela é capaz
de „abarcar‟ quase que qualquer fato externo, sen do que a percepção passa a ser
aproximadamente um sinônimo de criação.”
Isto vem a articular-se com o conceito elaborado por Winnicott de apercepção criativa, que
diz respeito aos objetos subjetivos e à necessidade da ilusão para um viver criativo
(ver SER: 3; COMUNICAÇÃO: 9; CRIATIVIDADE: 2; MÃE: 4).
Em The Theory of the Parent-Infant Relationship, Winnicott descreve o estágio de “busca
da independência” da seguinte forma:
“... O bebê desenvolve meios de passar sem o cuidado real. Isso se dá através do acúmulo
de lembranças de cuidados recebidos, da projeção das necessidades pessoais e da introjeção
de aspectos dos cuidados, juntamente com o desenvol vimento da confiança no ambiente.
Devemos acrescentar um outro elemento, que é a compreensão intelectual, que traz consigo
poderosas implicações.”
]“Theory of Parent-Iníant Relationship”, p. 46]
Winnicott afirma que os primeiros dois estágios de dependência foram transpostos
satisfatoriamente, de modo que a pequena criança que ainda engatinha pôde esta belecer um
mundo interno bastante sólido baseado em suas próprias experiências. Este estágio anuncia
um desenvolvimento que irá se prolongar pelo restante de sua vida.
A crescente independência desta pequena criança anda de mãos dadas com a dependência.
Esta contradição demonstra uma intensidade maior durante a adoles cênci a:
“Os pais são essenciais no manejo de seus filhos adolescentes que exploram um círculo
social depois do outro, porque são capazes de ver melhor do que estes quando esta
progressão de um círculo social limitado para um círculo social ilimitado é rápida demais,
talvez em função dos elementos sociais per niciosos da vizinhança mais próxima, ou por
causa dos desafios próprios da puberdade e do desenvolvimento acelerado da capacidade
sexual. Eles são necessários especialmente por causa das tensões pulsionais e dos padrões
que reaparecem e que foram estabelecidos na mesma idade em que a criança começa a
engatinhar.”
[ Dependence towards Independence”, p. 92]
A obra de Winnicott realça a batalha travada pelo bebê no decurso dos dois primeiros
estágios da dependência, uma vez que o desenvolvimento a partir daí baseia-se sobre esse
início. Ser um adulto não significa que a maturidade emocional tenha sido alcança da. A
vida adulta inicia-se quando o indivíduo...
“... encontra seu lugar na sociedade através do trabalho, e... estabelece um padrão que é um
meio termo entre copiar os pais e, desafiadoramente, estabe lecer uma identidade pessoal.”
]“From Dependence towards Independence”, p. 92]
Referências
1950 Some Thoughts on the Meaning of the Word “Democracy” [ 4]
1957 lhe Mother‟s Contribution to Society [
]“From Dependence towards Independence”, p. 91]
110
A LINGUAGEM DE WINNICOTT
The First Year of Life: Modern Views of Emotional Development [
The Theory of the Parent-Infant Relationship [
Providing for lhe Child in Health and in Crisis [
From Dependence towards Independence in lhe Development oí lhe
Individual [
1964 This Feminism [
1968 Communication between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and
Contrasted [ 6
1970 Dependence in Child Care [
ft
1 A depressão e a sua importância
2 A depressão saudável
3 O desmame em relação à ilusão e à desilusão
4 O humor depressivo
5 Esperar, e não tratar
O pensamento de Winnicott concernente à depressão cobre um vasto espectro que, em uma
ponta, tem a depressão como um sinal de realização que faz parte do desenvolvimento
emocional normal e, na outra, uma desordem patológica e afetiva que está associada à
interrupção do desenvolvimento emocional.
A forma com que a depressão, aqui compreendida como um estado de ânimo, é encarada
por cada indivíduo depende daquilo que ocorreu entre a mãe e o bebê, par ticularmente no
decorrer do período de desmame, que é quando o bebê passa a poder estabelecer as
diferenças existentes entre o eu e o não-eu.
1958
1960
1962
1963
111

DEPRESSAO
1 A depressão e a sua importância
2 A depressão saudável
3 O desmame em relação à ilusão e à desilusão
4 O humor depressivo
5 Esperar, e não tratar
O pensamento de Winnicott concernente à depressão cobre um vasto espectro que, em uma
ponta, tem a depressão como um sinal de realização que faz parte do desenvolvimento
emocional normal e, na outra, uma desordem patológica e afetiva que está associada à
interrupção do desenvolvimento emocional.
A forma com que a depressão, aqui compreendida como um estado de ânimo, é encarada
por cada indivíduo depende daquilo que ocorreu entre a mãe e o bebê, particularmente no
decorrer do período de desmame, que é quando o bebê passa a poder estabelecer as
diferenças existentes entre o eu e o não-eu.
112
1 A depressão e a sua importância
Do começo ao fim da obra de Winnicott, o uso que faz da palavra “depressão” surge nos
mais variados contextos e com as mais diversos enfoques. Em essência, elegeu a palavra
“depressão” para indicar uma forma de humor ou estado mental. Entretanto, muito
facilmente pode utilizar-se desse termo de maneiras bastante contraditórias. Um exemplo
disso é seu trabalho de 1954, The Depressive Position in Normal Emotional Development,
onde afirma com muita clareza que a expressão “posição depressiva” está incorreta, já que
“depressiva” implica que o desenvolvimento saudável relaciona-se a uma “desordem do
humor”, que não toma parte do desenvolvimento normal (ver PREOCUPAÇÃO: 2). Em
1958, no texto The Family Affected by Depressive !l!ness in One or Both Parents,
Winnicott sustenta que a depressão é normal e experimentada por pessoas “de valor” (ao
utilizar a expressão “de valor” passa a estabelecer a importância da depressão).
Em uma obra datada de 1963 e intitulada The Value of Depression, Winnicott parece estar
praticamente celebrando a depressão como um sinal de saúde e criadora de indivíduos que
são responsáveis membros da sociedade. E neste trabalho que estabelece as distinções entre
o que é puro e o que é impuro no que toca ao humor depressivo.
Uma aparente contradição surge por Winnicott referir-se a um humor que afeta cada pessoa
de uma forma diversa. O indivíduo que atingiu o “status unitário” será capaz de
experimentar uma depressão valiosa e benéfica; já o indivíduo que não pôde alcançá-lo
mobilizará certas defesas contra o sentimento de dor, surgido a partir da depressão, ou
sucumbirá à apatia.
Winnicott teceu críticas à expressão “posição depressiva” empregada por Melanie Klein,
pois ela também abarca a doença ao descrever determinado aspecto da saúde emocional.
Ele mesmo elegeu um termo psiquiátrico da mesma forma pesado, “depressão”, para
referir-se tanto à saúde emocional quanto à patologia.
Em um esforço a fim de diferenciar qualitativamente os diversos tipos de depressão na obra
de Winnicott, seria bastante proveitoso definir (artificialmente) três áreas principais:
• A depressão, entendida como uma capacidade, desenvolve-se como parte normal dos
processos maturacionais. Esta forma “normal” de depressão constitui-se em um fator
significativo de que a passagem pelo desmame foi bem-sucedida, e de que o sentimento de
perda, o sentimento de culpa/capacidade de preocupação atravessam a desilusão. Isso
conduz o indivíduo da relação de objeto ao uso do objeto, o que indica que o objeto pôde
sobreviver (ver AGRESSÃO: 9, 10). Não é conhecida nenhuma cura para a depressão deste
primeiro tipo. O humor deve ser suportado pelas outras pessoas. A única prescrição
possível é apenas esperar.
• A depressão como uma desordem afetiva surgida como resultado da falta de oportunidade
de colaboração (ver PREOCUPAÇÃO: 7). Este tipo de depressão resulta de uma
interrupção do desenvolvimento devida a uma falha no ambiente precoce. E indicativa de
que o objeto não sobreviveu e de que o sujeito não atingiu o uso do objeto.
• Defesas mobilizadas afim de evitar a dor proveniente da depressão, tais como as defesas
maníacas, a hipomania e a psicose.
2 A depressão saudável
Winnicott sustenta que a capacidade de sentir-se deprimido constitui-se em um sinal de
saúde. Este tipo de “depressão” é mais próxima à tristeza que se associa ao senti mento de
perda e ao sentimento de culpa. Ter consciência da perda e da culpa conduz o indivíduo a
aceitar as responsabilidades, motivando um desejo de colaborar. É um indicativo de que o
indivíduo alcançou o “status unitário” e a capacidade de preocupação (ver
PREOCUPAÇÃO: 5, 6). Em The Family Affected by Depressive lllness, texto de 1958,
Winnicott propõe uma escala.
“... em um extremo da escala temos a melancolia, e no outro a depressão, uma condição
comum a todos os seres humanos integrados. Quando Keats diz, referindo-se ao mundo:
„Quando penso estar entristecido e com os olhos pesa dos de desespero‟, não quer dar a
entender que ele mesmo não possuía valor ou que estivesse mentalmente enfermo. Trata-se
aqui de um indivíduo que correu o risco de sentir as coisas profundamente e que assumiu a
responsabilidade sobre isso. Em um extremo, portanto, situam-se os melancólicos, que se
sentem responsáveis por todos os males do mundo, em especial aqueles que não lhes dizem
respeito, e no outro, as pessoas verdadeiramente responsáveis do mundo, aquelas que
aceitam a realidade de seu próprio ódio, sua mesquinhez, sua crueldade, ou seja, coisas que
coexistem com sua capacidade de amar e construir. Por vezes, o sentimento de sua própria
maldade as abate.”
Se considerarmos a depressão desta forma, veremos que são as pessoas realmente valiosas
deste mundo que se deprimem...”
[ Family Affected by Depressive Illness”, 1958, pp. 51-52]
Ao escrever a respeito das “pessoas que entram em depressão”, Winnicott não está se
referindo às crises ou à hospitalização, mas sim, às “pessoas que se sentem tristes”. A
tristeza é a conseqüência da capacidade de reconhecer a própria monstruosidade, o que com
alguma freqüência leva a aceitar a responsabilidade.
Esta responsabilidade foi citada, en passant, em um trabalho apresentado em 1963 à
Associação de Trabalhadores Sociais Psiquiátricos, intitulado The Value of Depression.
Ali afirma que as pessoas que trabalham com pacientes depressivos, como analistas e
trabalhadores sociais psiquiátricos, estão, em algum nível, tratando de sua própria
depressão. Este é um bom exemplo dos aspectos construtivos da depressão.
Nesse mesmo trabalho Winnicott associa o status unitário e a força do ego à depressão (ver
EGO: 3):
O desenvolvimento e o estabelecimento de um ego vigoroso é o fator mais importante
indicativo da saúde. Naturalmente a expressão „ego vigoroso‟ adquire uma importância
cada vez maior ao passo que a criança amadurece. Inicialmente o ego toma força apenas em
função do suporte egóico fornecido pela mãe que se adaptou, e que, por um momento, foi
capaz de identificar-se proximamente com seu bebê.
115
Chegamos em um estágio em que a criança tornou-se uma unidade capaz de sentir EU
SOU, que tem um interior, que pode atravessar suas tempestades pulsionais, e que também
é capaz de conter o ímpeto e a pressão originadas da real idade psíquica interna pessoal. A
criança torna-se capaz de deprimir-se. Esta é uma aquisição do crescimento emocional.”
[ of Depression”, p. 73]
Isto poderia ser compreendido erradamente, uma vez que Winnicott não entende que a
criança apresente uma patologia depressiva; ela, sim, é capaz de sentir-se triste e implicada,
o que se articula com um sentimento saudável de culpa (ver PREOCUPAÇÃO: 3).
Dando continuidade ao que foi exposto acima, Winnicott vem esclarecer qual sua idéia a
respeito da depressão:
“Nossa visão da depressão, então, é bastante próxima de nosso conceito de vigor egóico, de
auto-afirmação e da descoberta de uma identidade pessoal. E por essa razão que podemos
discutir se a idéia de depressão possui algum valor.”
3 O desmame em relação à ilusão e à desilusão
[ of Depression”, p. 73]
A capacidade de sentir-se triste na inf por essa razão, é um aspecto do estágio de desmame
que tem continuidade com uma desilusão:
“O desmame é um tema bastante amplo dentro da desilusão. O desmame implica em uma
alimentação bem sucedida. A desilusão, por sua vez, implica a provisão de uma
oportunidade para que a ilusão tenha sucesso.”
[ and Child Care”, p. 221]
O sujeito da ilusão/desilusão está relacionado ao que Freud estabeleceu quanto à transição
do bebê do princípio do prazer para o princípio de realidade. As observações feitas por
Winnicott de mães e bebês, auxiliadas por seu trabalho como analista, conduziram-no a
explorar o que denominou a área intermediária da experiência (ver TRANSICIONAIS,
FENÔMENOS: 3).
Uma alimentação bem sucedida e o conseqüente desmame, como referido acima, retratam o
bebê que experimentou um sentimento de onipotência no decorrer da fase de dependência
absoluta, quando sua mãe era capaz de adaptar-se as suas necessidades (ver MÃE: 8;
PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 4). Sem esta experiência primária de
onipotência Winnicott crê não ser possível ao bebê “desenvolver uma capacidade de
experimentar uma relação com a realidade externa, ou mesmo formar um conceito de
realidade” (Transitional Objects and Transitional Phenomena, 1951, p. 238).
Na obra de Winnicott, uma importante e saudável depressão é parte do processo pelo qual
atravessa o bebê ao elaborar a transição do estar fundido com a mãe ao percebê-la como
distinta dele, um não-eu.A depressão—ou, com rna propriedade,a tristeza período de fusão
— o modelo típico de luto. Ela faz parte do processo de desilusão, no qual o bebê se dá
conta de que não é o centro do universo (ver DEPENDÊNCIA: 5, 6; MÃE: 8).
4 O humor depressivo
Winnicott aplica a metáfora do fogo a fim de descrever o humor depressivo:
o fog que cobre a cidade representa o humor depressivo. Tudo é aborreci do e lembra um
estado que parece a morte. Este estado de morte relativa abrange tudo, sendo que no caso
do indivíduo humano obscurece as pulsões e a capacidade de relacionamento com os
objetos externos. Gradativamente o fog vai ficando menos espesso em alguns lugares ou
mesmo começa a dissipar-se. Diminui de intensidade e a vida recomeça...
Devemos aqui considerar não tanto a ansiedade ou seu conteúdo, mas a estrutura do ego e a
economia interna do indivíduo. A depressão avança, progride e dissipa-se, indicando que a
estrutura do ego conseguiu evitar um período de crise. E um triunfo da integração.” [ of
Depression”, pp. 75-76]
Winnicott associa o humor depressivo a uma “nova experiência de destruição e às idéias
destrutivas que acompanham o amor. Estas novas experiências necessitam de uma
reavaliação interna, sendo isso o que entendemos por depressão” (Value of Depression, p.
76).
A destruição surge a partir da “agressão primária” inata, que busca um objeto a fim de
poder compreender o fato que é a realidade (o não-eu). Uma destruição que é repeti da na
fantasia cria a exterioridade do objeto, o que tem por conseqüência a capacidade de
diferenciação entre o eu e o não-eu (ver AGRESSÃO: 7, 8).
Esta destruição é particularmente pertinente ao período da adolescência descrito por
Winnicott como “calmaria” (Adolescence: Struggling through the Doldrums, 1961).
O humor depressivo está, portanto, associado à preocupação incluída no que Winicott
chamou de criatividade primária: a criatividade de um viver criativo e/ou a preocupação
implícita na criatividade do artista (ver CRIATIVIDADE: 4, 5, 6).
Em The Value of Depression, Winnicott refere-se ao extremo patológico do espectro da
depressão como impurezas do humor depressivo. Esboça sete categorias. Na prime ira
inclui todas as falhas da organização egóica que indiquem uma tendência do paciente para
uma forma mais primitiva de doença, como a esquizofrenia” (Value of Depression, p. 77).
Essa categoria, com toda certeza, refere-se àquelas pessoas que não alcançaram o “status
unitário”, e que jamais experimentaram um ambiente de holding suficientemente-bom.
As demais categorias dizem respeito às diferentes defesas utilizadas pelo indivíduo a fim de
evitar aquilo que a “pureza” do humor depressivo pode alcançar ( Value of Depression, pp.
78-79).
116
Uma dessas defesas é investigada por Winnicott em Reparation in Respect of Mother‟s
Organized Defince against Depression, trabalho de 1948 em que descreve como a
depressão materna é absorvida pela criança, tornando-a incapaz de estabelecer a diferença
entre sua depressão pessoal e a da mãe.
“Tendo acompanhado muitos desses casos continuadamente por períodos de dez ou mesmo
doze anos posso entender que a depressão infantil é o reflexo da depressão materna. A
criança usa a depressão da mãe como uma fuga da sua própria; isto produz uma falsa
restituição e uma falsa reparação em relação à mãe, o que impede o desenvolvimento de
uma capacidade de restituição pessoal, uma vez que a restituição não está relacionada ao
sentimento de culpa da criança...
Podemos notar que essas crianças, em casos extremos, têm uma tarefa que jamais poderá
ser executada. Primeiramente sua tarefa é lidar com o humor da mãe. Se houver sucesso
nessa tarefa passam a criar uma atmosfera na qual elas podem dar início às suas vidas.”
[ in Respect of Mother‟s”. pp. 92-93]
Winnicott acentua que a depressão do pai ou da mãe também pode ser facilmente utilizada
pelo paciente com a finalidade de evitar sentimentos pessoais depressivos, sendo que por
meio da análise o paciente pode estabelecer uma distinção entre a depressão de seus pais e a
própria.
5 Esperar, e não tratar
Winnicott previne contra a tendência muito comum de “animar” o paciente depressivo:
“Não queremos jogar nosso humor para lá e para cá, mas sim um amigo de verdade que nos
tolere, nos ajude um pouco, e espere.”
]“Family Affected by Depressive Illness”, p. 52]
“Como estudante de medicina me foi ensinado que a depressão trazia consigo o germe da
cura. Este é um ponto luminar em psicopatologia, que relaciona a depressão ao sentimento
de culpa (uma capacidade que é um sinal de um desenvolvimento sadio) e ao processo de
luto. O luto finalmente chega ao final de sua tarefa. A tendência incorporada de cura liga a
depressão também ao processo de maturação próprio da infância do indivíduo, processo
esse que (em um ambiente facilitador) conduz à maturidade pessoal, que é a saúde.”
[ of Depression”, p. 72]
O indivíduo que é saudável e que se sente deprimido ingressou em um processo em que
realiza algo e elabora a perda, como no caso do luto.
“... a depressão é um mecanismo de cura; ela cobre o campo de batalha como a neblina,
permitindo que haja uma escolha a um custo reduzido; dando tem-
0 de ação a todas as defesas possíveis, promovendo, também, uma elabora ção, a fim de que
se dê a cura espontânea. Clinicamente, a depressão (de todos os tipos) tende a se dissipar...”
[ Position”, p. 275]
No que tange à depressão adolescente, Winnicott tece o seguinte comentário:
“... se o adolescente passa por este estágio do desenvolvimento através de processos
naturais, então deve ser esperado que surja um fenômeno que poderíamos chamar de
calmaria da adolescência. A sociedade precisa aceitá-la como um fator permanente, e
tolerá-la, para que possa reagir ativamente contra ela, ou vir ao seu encontro, mas não curá-
la.”
[ pp. 85-86]
Como a depressão contém um elemento de saúde, o melhor auxílio constitui-se em sua
“aceitação sem que haja uma urgência em curá-la” (The Family Affected by Depressive
Illness, p. 60).
Nos anos 60, Winnicott dá um destaque especial em sua obra à importância de aguardar. A
espera do analista, que pode apresentar-se como o mais receptivo aspecto da análise,
juntamente com o holding, implica a convicção de que o paciente irá elaborar suas
dificuldades e que alcançará um lugar seu, sempre em um tempo próprio.
Referências
1948 Reparation in Respect of Mother‟s Organized Defence against Depressi on [
1951 Transitional Objects and Transitional Phenomena [
1952 Psychoses and Child Care [
1954 The Depressive Position in Normal Emotional Development [
1958 The Family Affected by Depressive lllness in One or Both Parents [
1961 Adolescence: Struggling through the Doldrums [
1963 The Value of Depression [

EGO
1 A terminologia psicanalítica
2 A integração
3 A cobertura egóica
4 Não-integração e desintegra ção
@@@ W innicott, numa tentativa de ser específico, estabelece uma distinção entre o “ego”
e o self quando não é específico, emprega ambos os termos quase como se fossem
sinônimos.
@@@ De uma maneira geral, a utilização da palavra “ego” dentro da obra de Winni cott,
refere-se a algum aspecto do verdadeiro e/ou falso self, assim como ao psi que-soma. É este
aspecto que vem a integrar a experiência de seff.
A linguagem técnica da psicanálise de língua inglesa é um tanto problemática devido à obra
de Freud ter sido traduzida a partir de critérios médicos por Strachey (Bettelheim, 1983). O
emprego da palavra “ego” possui uma história bastante complexa.
Já havia sido indicado que Winnicott apresentava a propensão de fazer uso de mui tos dos
termos psicanalíticos sem uma referência estrita a seu significado original (Phil lips, 1988);
a palavra “ego” não se constitui em uma exceção.
Em Human Nature (W1 8), Winnicott torna claro que as teorias topológica e estrutu ral de
Freud lhe são bastante familiares. Contudo, através de toda sua obra — e particu larmente
em sua última década — a noção de “ego” que defendeu é um tanto distinta da de Freud.
A exposição definitiva sobre a especificidade do papel e da função do ego no
desenvolvimento emocional pode ser encontrada em um texto de Winnicott datado de 1962,
Ego integration in Child Development.
@@@ Nele a descrição feita do ego é dividida em duas partes. Ele é uma “parte da perso
nalidade que busca as condições adequadas a fim de integrar-se em uma unidade”,
sugerindo que em suas origens o ego existia apenas como um potencial. A realização deste
potencial é baseada em um cérebro intacto capaz de operar experiências de for ma
organizada, uma vez que “sem um aparelho eletrônico não pode haver qualquer experiência
e, conseqüentemente, nenhum ego”. Entretanto, a capacidade de organi zar a experiência
depende também de condições favoráveis, ou seja, de uma materna gem suficientemente-
boa.
@@@ Na teoria de Freud o ego origina-se a partir do id. Winnicott, assim como Melanie
Klein, pensa existir um ego ainda não desenvolvido no princípio.
“Nos primeiros estágios do desenvolvimento da criança humana, portanto, o funcionamento
egóico precisa ser tomado como um conceito que é insepará vel do conceito de existência
do bebê como pessoa. O que a vida pulsional separa do funcionamento egóico pode ser
ignorado, uma vez que o bebê ain da não é uma entidade que vive experiências. Não existe
um id antes do ego.”
{“Ego Integration in Child Development”, p. 56]
@@@ Para Winnicott, o ego é responsável por recolher as informações (as experiências
exter nas e internas), organizando-as. Contudo, isto somente é possível se a mãe for
suficien temente-boa, já que inicialmente o ego do bebê é ela. Durante a fase de
dependência absoluta, o estado de preocupação materna primária da mãe faz com que ela se
consti tua no suporte egóico necessário ao bebê por meio de sua adaptação às necessidades
dele. A intensidade deste suporte egóico depende inteiramente da capacidade de adaptação
da mãe (ver PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 4).
@@@ O termo “afinidade egóica”, bastante utilizado na década de 50, diz respeito à fusão
precoce mãe/bebê. Nos anos 60, Winnicott refere-se ao mesmo fenômeno como “relação de
objeto”. E o período em que o bebê não sabe de que necessita, em que depende do
ambiente, que é sua mãe, para que possa sabê-lo. Ela, por meio de sua intensa identificação,
precisa ser seu ego a fim de protegê-lo e sustentá-lo (ver SÓ, CAPACIDADE DE ESTAR:
1; DEPENDÊNCIA: 2; HOLDING: 4).
121
@@@ Com a ajuda deste poderoso suporte egóico desde o início, o bebê torna-se apto a
desenvolver-se e crescer. E desta forma que funda-se a saúde mental.
Baseado nisso, o bebê consegue atingir os próximos estágios do desenvolvimento,
atravessar os estágios de dependência e alcançar um estado saudável e de maturidade. Esta
é uma dinâmica constante vivida por cada indivíduo em cada período da vida (ver
DEPENDÊNCIA).
@@@ 2 A integração
A partir da matriz de uma relação mãe-bebê suficientement-boa o ego é capaz de
desenvolver-se. Constitui-se em função do ego, de acordo com o esquema traçado por
Winnicott, integrar certas experiências à personalidade.
“O desenvolvimento do ego é caracterizado por várias tendências:
(1) A principal tendência do processo de maturação anda passo a passo com os diversos
significados da palavra integração. A integração temporal pode unir-se (ao que deveria ser
chamado) integração espacial.”
[ Integration in Child Development”, p. 59]
Winnicott passa a referir-se ao ego como fundado no corpo, assim como ao ego que
inaugura a relação de objeto:
“(2) O ego é fundado a partir de um ego corporal, mas é apenas quando tudo corre bem que
@@@ a pessoa do bebê passa a estabelecer um vínculo entre o corpo e as funções
corporais, tendo a pele como uma membrana limitadora. Tenho empregado o termo
personalização a fim de descrever esse processo...”
[ Integration in Child Development”, p. 59]
@@@ O trato que o bebê recebe de sua mãe e de outros — toda uma enormidade de
aspectos do cuidado corporal — contribui para que se sinta urna pessoa. Ao empregar o
termo “personalização, Winnicott acentua sua oposição à “despersonalização”: a cisão psi
que-soma do paciente que não experimentou o trato suficientemente-bom (ver
HOLDING: 2).
@@@ “(3) O ego inaugura a relação de objeto. Com uma maternagem suficientemen te-
boa inicial o bebê não fica sujeito às gratificações pulsionais, exceto enquan to existir uma
participação do ego. Quanto a isso, coloca-se uma questão bastante pertinente: devemos
proporcionar satisfação ao bebê, deixando-o des cobrir e chegar a um acordo com o objeto
(o seio, a mamadeira, o leite etc.)?”
[ Integration in Child Development”, pp. 59-60]
Winnicott passa a referir-se ao bebê cuja mãe responde a todas as suas necessidades antes
mesmo que ele peça. Assim, o bebê sente-se responsável por receber aquilo que precisa.
“Deve ser entendido que, quando me refiro à capacidade adaptativa da mãe isso tem pouca
coisa a ver com sua capacidade de satisfazer a pulsão oral do
bebê, como pela alimentação adequada. O que está sendo discutido aqui está em paralelo
com uma consideração como esta. E realmente possível satisfazer a pulsão oral e, feito isso,
violar a função egóica do bebê, ou aquilo que mais tarde será zelosamente guardado como o
self, o núcleo da personalidade. A satisfação através da alimentação pode seduzir e ser
traumática se encontrar o bebê sem a cobertura do funcionamento egóico.”
[ Integration in Child Development”, p. 57]
Este aspecto da alimentação do bebê é diversas vezes referido por Winnicott; em 1945, em
um texto que recebeu o título de Priinitive Emotional Development, apresenta o caso de um
paciente seu que “tinha por medo mais importante a satisfação”. Em uma nota de rodapé,
escreve:
“Citarei uma outra razão por que o bebê não fica satisfeito com a satisfação. Ele se sente
enganado. Ele pretende, poderíamos dizer, empreender um ataque canibal, mas foi
colocado fora do jogo por uma droga, o alimento. O melhor que tem a fazer é postergar o
ataque.”
[ Emotional Development”, p. 154]
Não estar satisfeito com a satisfação é um dos paradoxos mais notáveis propostos por
Winnicott. Ele está associado àquela mãe incapaz de sobreviver às necessidades do bebê
por serem por demais cruéis (ver AGRESSÃO: 3, 8; AMBIENTE: 7; MÃE: 11).
Esta forma de “engano” poderia acarretar uma distorção egóica através de uma ini bição da
integração.
A capacidade de integração tem por origem os primeiros estágios da vida:
@@@ “(1) Integração de quê?
Seria de bastante utilidade pensarmos no material de onde a integração se ori gina em
termos de elementos motores e sensoriais, a matéria-prima do narci sismo primário. Esta é
uma tendência voltada para o sentimento de existir. Uma outra linguagem pode ser utilizada
para descrever essa parte tão obscura do processo de maturação, mas o germe de uma
elaboração imaginativa do puro funcionamento corporal deve ser considerado se
reivindicamos que este novo ser humano começou a existir, acumulando experiências que
podería mos chamar de pessoais.”
@@@ 3 A cobertura egóica
[ Integration in Child Development”, p. 60]
Winnicott emprega a expressão “cobertura egóica” ao referir-se especificamente à tarefa
desempenhada pela mãe de proteger o bebê contra as agonias primitivas, tam bém
denominadas de ansiedades impensáveis e ansiedades psicóticas.
“A primeira organização do ego surge da experiência que é a ameaça de ani quilação, que
não conduz à aniquilação, e onde, repetidas vezes, existe cura.
123
Excetuando-se tal experiência, a confiança na cura passa a ser algo que con duz a um ego e
a uma capacidade egóica de enfrentar a frustração.
Será entendido , por parte do bebê, da mãe como uma mãe frustradora. Isso será verdadeiro
mais tarde, mas não nesse estágio inicial.”
[ Maternal Preoccupation”, 1956, p. 304
Com uma cobertura egóica apropriada a continuidade do ser do bebê resultará no que
Winnicott, em um trabalho de 1962, Ego Integration in Child Development, chamou de
“self unitário”, que se constitui naquilo que o bebê lança mão a fim de integrar sua expe
riência, formar uma personalidade e tornar-se ele mesmo.

@@@ (2) Integração com o quê?
não podemos dar uma ênfase exagerada ao fato de que aquilo que se passa neste estágio tão
precoce depende de uma cobertura egóica atribuída à mãe do par bebê-mãe.
Podemos afirmar que uma cobertura egóica suficientemente-boa da mãe (relativa às
ansiedades impensáveis) possibilita à nova pessoa humana cons truir uma personalidade
nos moldes de uma continuidade do continuar-a-ser.”
[ Integration in Child Development”, p. 601
Winnicott fecha este trabalho definindo o processo de integração e substituindo o ter mo
“ego” por “eu”.
“A integração está intimamente vinculada à função ambiental de holding. O objetivo da
@@@ integração é a unidade. Inicialmente existe o „eu‟, de que faz parte „tudo aquilo que
não é eu‟. Posteriormente temos o „eu sou, eu existo, eu reúno experiências e me enriqueço,
tendo uma interação introjetiva e projetiva com o NAO-EU, o mundo real da realidade
fragmentada‟. Acrescente-se a isso:
@@@ „Eu só existo porque sou visto e compreendido por alguém‟; e mais ainda: „Eu
retorno (como um rosto visto em um espelho) ao fato de que preciso ser reco nhecido como
um ser‟.
Em circunstâncias favoráveis, a pele transforma-se no limite entre o eu e o não-eu. Dizendo
de outra forma, a psique passa a habitar o soma, dando início a toda uma vida
psicossomática.”
[ Integration in Chi Development”, p. 611
É esta também a descrição de “status unitário” — expressão ocasionalmente empregada por
Winnicott que pretende denotar o estabelecimento de uma diferenciação, por par te do
bebê, entre eu e não-eu. No decorrer dos anos 60, Winnicott refere-se também ao self
unitário.
Seria de grande utilidade, além de mais exato, dizer que Winnicott, ao utilizar o termo
“ego”, está na verdade definindo um aspecto do self que é auxiliar à função específica de
integração. Pode ser bastante útil ter isto em mente ao depararmo-nos
com toda a variedade de “egos” hifenizados que Winnicott propõe ao longo de toda sua
obra. Na teoria do verdadeiro e falso selfde Winnicott, isso implica que o “ego” sau dável
está vinculado a esses selves fazendo, conseqüentemente, parte deles (ver SELF: 1).
@@@ 4 Não-integração e desintegra ção
Winnicott emprega o termo “não-integração” para descrever os “estados mais tranqüi los”
do bebê.
“O oposto da integração parece ser a desintegração. Isto é parcialmente verda deiro. O
oposto, inicialmente, exige um termo como não-integração, O rela xamento, para o bebê,
significa não sentir a necessidade de estar integrado, considerando a função de suporte
egóico da mãe.”
[ Integration in Child Development”, p. 611
Tanto o bebê quanto o adulto capazes de relaxar e de não-integrar-se conhecem exis
tencialmente a experiência de confiar e de sentir-se a salvo. Esta é uma experiência que
@@@ conduz à capacidade de gozar das atividades culturais. A não-integração está
associada ao ser e à criatividade. A capacidade de não-integrar-se, assim, também constitui-
se em uma aquisição do desenvolvimento.
A desintegração, por sua vez, apresenta-se como uma defesa.
“O termo desintegração é empregado a fim de descrever uma defesa bastante sofisticada,
@@@ uma defesa que é uma produção ativa do caos que se defende da não-integração na
ausência de um suporte egóico materno, ou seja, contra a ansiedade impensável ou arcaica
resultante da falha do ho/ding no estágio de dependência absoluta. O caos da desintegração
pode ser „mau‟ como a confi ança do ambiente, mas possui a vantagem de ter sido
produzido pelo bebê e, portanto, não dizer respeito ao ambiente. Ele faz parte da área de
onipotência do bebê. Em termos psicanalíticos, é analisável, enquanto que as ansiedades
impensáveis não o são.”
[ Integration in Child Development”, p. 611
A desintegração sempre implica que um certo grau de integração pôde ser alcançado; por
isso, o analista deverá ser capaz de interpretar na transferência, o que vem a facili tar a
integração do paciente.
O paciente que experimentou as ansiedades impensáveis e as agonias primitivas não é
capaz de utilizar-se do setting analítico da mesma forma que aquele que não as experi
mentou tão intensamente. O analista deve adaptar-se às necessidades e aguardar até que o
paciente esteja apto para usufruir da interpretação (ver REGRESSÃO: 3).
Referências
1945 Primitive Emotional Development [
1956 Primary Maternal Preoccupation [
1962 Ego Integration in Child Development [
* N. do T. Ino original.

HOLDING
1. Os limites e a estrutura
2. A função do holding
3. A personalização
4. O manejo

Todas as particularidades do cuidado materno que antecedem e advêm depois do


nascimento convergem para a composição do ambiente de holding. Isto inclui a
preocupação materna primária da mãe, que lhe possibilita fornecer ao bebê o necessário
suporte egóico.
Tanto o holding psicológico como o físico são essenciais ao bebê ao longo de seu
desenvolvimento, e o serão por toda sua vida, O ambiente de holding jamais perde sua
importância.
1. Os limites e a estrutura
Embora Winnicott reconheça a influência que o holding exerceu diretamente no início de
sua obra, apenas veio a empregar este termo em meados da década de 50. Foi durante a
Segunda Guerra Mundial, trabalhando com Clare Britton, que posteriormente tornou-se sua
esposa, que ambos compreenderam a necessidade do estabelecimento de um ambiente de
holding com relação ao manejo e ao tratamento da criança anti-social (ver ANTI-
SOCIAL, TENDÊNCIA: 1).
Nos anos 50, o emprego que Winnicott faz do paradigma bebê-mãe suficientemente-boa,
apresentado como uma forma de compreender melhor aquilo que poderia ser provido pela
relação analítica, torna-se a base da teoria do holding. Sua atenção voltou-se para um reter-
o-bebê-na-mente psicológico combinado com um alimentar, banhar e vestir físicos:
o bebê é amparado pela mãe, e somente compreende o amor que é expresso em termos
físicos, ou seja, através da vida, do holding humano. Eis a dependência absoluta. A falha do
ambiente nesse estágio inicial não pode ser contestada, a não ser por um impedimento ao
processo de desenvolvimento ou pela psicose infantil.., estamos mais interessados no
holding que a mãe ofe rece ao bebê do que com a mãe que o alimenta.”
[ Influences and the Maladjusted Child”, 1955, pp. 147-1 481
@@@ É em função do holding suficientemente-bom que o bebê torna-se apto para
desenvolver a capacidade de integrar a experiência e desenvolver um sentimento de “EU
SOU” (eu).
“Sem sombra de dúvida as experiências pulsionais oferecem uma valiosa contribuição ao
processo de integração, mas o ambiente suficientemente-bom também está presente o
tempo todo através do holding, adaptando-se suficientemente bem às necessidades que vão
se modificando. E apropriado a esse estágio que alguém atue apenas através do amor, do
amor que carrega consigo a capacidade de identificação com o bebê, além de um
sentimento de que a adaptação às necessidades é que vale a pena. Podemos dizer que a mãe
é devotada ao seu bebê, temporária, mas verdadeiramente...
Proponho que o momento do EU SOU se constitua em um momento cru; o novo indivíduo
sente-se infinitamente exposto. Nesse período, apenas se alguém colocar seus braços em
volta do bebê é que o momento do EU SOU poderá ser suportado, ou melhor, talvez
arriscado.”
[ Influences”, p. 1481
Este é exatamente o período de dependência absoluta, ao qual Winnicott refere-se como a
“fase de holding”. De uma maneira geral, acreditava ser a melhor coisa possível que
houvesse alguém que fosse a principal pessoa a dispensar cuidados no princípio da vida do
bebê. Em circunstâncias ideais esta pessoa seria a mãe biológica. Entretanto, a polêmica
desencadeada ao longo de toda a sua obra é se uma mãe adotiva que seja capaz de ingressar
em um estado de preocupação materna primária igualmente será capaz de fornecer os
ingredientes necessários ao ambiente de holding (ver MÃE: 5).
A idéia de Winnicott de um ambiente de holding suficientemente-bom inaugura-se com a
relação mãe-bebê dentro da família, e expande-se para outros grupos sociais. No prefácio
de uma coletânea de seus trabalhos intitulada The Family and Individual Development
(W8), acentua este ponto:
“A família tem uma posição claramente definida no momento em que a criança que se
desenvolve depara-se com as forças que operam na sociedade. O protótipo dessa interação
pode ser encontrado na relação bebê-mãe original de uma forma extremamente complexa.
O mundo representado pela mãe auxilia ou obstrui a tendência herdada do bebê que cresce.
Essa idéia é desenvolvida ao longo desta compilação de estudos...”
[ to The Family and Individual Development”, 1965, p. vii]
A colocação definitiva que Winnicott faz a respeito do holding aparece em 1960 em The
Theory of the Parent-Infant Relationship. O ambiente de holding inclui necessariamente o
pai.
“O cuidado parental satisfatório pode ser classificado aproximadamente em três estágios
sobrepostos:
a. Haiding.
b. A convivência de mãe e bebê. A função do pai (de intervir no ambiente para a mãe) não
é conhecida.
c. Pai, mãe e bebê, os três convivendo.”
A “convivência” diz respeito à capacidade de o bebê estabelecer uma separação entre o eu e
o não-eu, e poder ver mãe e pai como separados, pessoas inteiras. Isto apenas pode ocorrer
como conseqüência de um holding bem-sucedido proporcionado pelos pais, o que conduz a
uma apreciação da realidade e “a uma relação tridimensional ou espacial onde o tempo é
gradualmente acrescentado” (Parent-Infant Relationship, p. 44).
Existe uma séria questão colocada por Winnicott a partir de sua teoria do holding, segundo
a qual o holding suficientemente bom do ambiente é o responsável pelo desencadeamento
de certos processos do desenvolvimento.
2 A função do holding
Os pais devem proporcionar ao bebê um ambiente compatível com suas necessidades. Não
teria qualquer utilidade para a criança se lhe fosse oferecido algo que apenas eles
considerem ser necessário, Isto fará dela uma criança dócil, uma vez que, sob a pressão dos
pais, a criança dirá desejar alguma coisa que na verdade não deseja. Winnicott quer dizer
com isso que os pais devem sempre considerar a integridade do bebê ao tentar suprir as
suas necessidades, respeitando-o como um ser humano distinto deles próprios, o que
forçosamente inclui o direito a ser diferente.
Winnicott enumera as características necessárias à provisão ambiental.
“Isso vai ao encontro das necessidades fisiológicas. Aqui a fisiologia e a psicologia ainda
não se diferenciaram, ou estão a caminho disso.
A provisão do ambiente é confiável, mas não mecanicamente confiável. Ela é confiável por
implicar a empatia da mãe.
Holding:
Protege de agressões fisiológicas.
Leva em conta a sensibilidade da pele do bebê: o toque, a temperatura, a sensibilidade
auditiva, a sensibilidade visual, a sensibilidade do cair (uma ação da gravidade) e a falta de
conhecimento por parte do bebê da existência de alguma outra coisa que não o self. Isso
inclui toda a rotina do cuidado que se estende pelo dia e pela noite. Não ocorre o mesmo
com dois bebês diferentes, pois isso faz parte do próprio bebê. Um bebê não é igual a outro.
Sucede, também, um momento do dia-a-dia que opera uma mudança e que faz parte do
crescimento e do desenvolvimento do bebê, tanto físico como psicológico.”
[ Parent-Infant Relationsh ip”, pp. 48-491
Winnicott afirma que a qualidade dos cuidados maternos no início da vida é a responsável
pela saúde mental do indivíduo, pois livra-o da psicose.
Isto transposto para a relação terapêutica, podemos estabelecer que é o setting analítico que
fornece o ambiente de holding necessário ao paciente (ver AMBIENTE: 2). (Setting
analítico = ambiente de holding.)
3 A personalização
O toque é parte do holding proposto por Winnicott — a forma com que a mãe toca seu bebê
nos cuidados maternos do dia-a-dia. Aqui inclui-se o prazer proporcionado pelo bebê à
mãe, uma expressão do seu amor (ver MÃE: 9).
O toque que é suficientemente-bom inaugura uma “psique que habita o soma”; Winnicott
refere-se a isto como “personalização”, o que significa que o bebê passa a sentir, como uma
conseqüência do toque amoroso, que seu corpo constitui-se nele mesmo (o bebê) e/ou que
seu sentimento de se!f centra-se no interior de seu próprio corpo (ver PSIQUE-SOMA: 1).
Winnicott emprega a palavra “personalização” opondo-a à “despersonalização”, a condição
através da qual o indivíduo experimenta a cisão mente-corpo em que não se sente como
pertencente a seu próprio corpo:
“No início, ser amado significa ser aceito... A criança possui uma cópia daquilo que é
normal, o que é certamente uma questão de forma e funcionamento de seu próprio corpo...
A maioria das crianças foram aceitas no último estágio anterior ao nasci mento, mas o amor
é demonstrado em termos de cuidados físicos, o que é geralmente adequado quando se trata
do feto que está no ventre. Nesses ter mos, a base daquilo que denominei personalização,
ou a falta de uma possibilidade especial de despersonalização, tem sua origem antes mesmo
do nascimento da criança. É com toda certeza uma questão fundamental, uma vez que a
criança precisa ser segurada por uma pessoa cuja necessidade de envolvimento emocional
esteja em jogo, assim como as respostas fisiológicas. O início dessa parte do
desenvolvimento do bebê a que chamo personalização, e que pode ser descrita como um
habitar da psique no soma, encontra-se na capacidade da mãe de envolver-se
emocionalmente, o que originalmente se dá em termos físicos e psicológicos.”
[ the Basis for SeIf in Body”, 1970, p. 264]
Na situação analítica é a atenção do analista — em combinação com o aspecto físico do
ambiente, o divã, o calor, a cor da sala, e assim por diante — que refletem a preocupação
materna primária da mãe. Do conceito de holding proposto por Winnicott no setting
terapêutico não faz parte a idéia do analista tocar o paciente (ver COMUNICAÇÃO: 3;
ÓDIO: 4; REGRESSÃO: 1).
4 O manejo
Com bastante freqüência Winnicott faz referência ao holding como uma espécie de manejo
— em especial ao dirigir-se aos profissionais que no cotidiano lidam com pessoas que não
podem tomar conta de si mesmas. Manejo foi também o termo utilizado em relação ao
cuidado dispensado a determinados pacientes no setting psiquiátrico, bem como na relação
analítica. A graduação do manejo depende da patologia apresentada pelo paciente para que
se possa estabelecer que tipo de holding é necessário:
“No tratamento de pessoas esquizóides o analista necessita conhecer tudo a respeito das
interpretações que devem ser feitas a partir do material apresenta do, mas também deve ser
capaz de abster-se de afastar-se demasiado ao executar seu trabalho, o que é inapropriado,
pois a principal necessidade é de um suporte egóico impróprio, ou do haiding. Esse
„holding‟, como a incumbência da mãe no cuidado do bebê, vem a confirmar a tendência
que o paciente pos sui de desintegrar-se, de deixar de existir, de eternamente cair.”
[ Disorder in Terms of Infantile Maturational Processes”, 1963, p. 2411
Winnicott sublinha a importância do manejo, aqui entendido como um ambiente de
holdirig, empregado no tratamento de crianças e adolescentes que apresentam uma
tendência anti-social. Entretanto, tinha consciência de quanto holding estas pessoas
necessitavam a fim de poderem trabalhar com indivíduos que apresentam uma demanda
emocional tão pesada em relação aos que cuidam deles. Um trabalho escrito em con junto
com Clare Britton, datado de 1947, Residential Management as Treatment for D Children,
expõe em detalhes todos as faces do cuidado residencial relativos aos aspectos mais
importantes de um ambiente de holding. As conclusões postas aí são de extrema relevância
ainda hoje.
Em termos de relação analítica é o setting, a atenção dispensada pelo analista, jun tamente
com o trabalho interpretativo, que criam o ambiente de holding que norteia as necessidades
psicológicas e físicas do paciente. E apenas a partir do ho/ding que um
139
140
A LINGUAGEM DE WINNICOTT
1 Pediatria e psicanálise
2 A mãe “natural” e “sadia”
3 A mãe suficientemente-boa
4 Uma ilusão suficientemente-boa
5 A biologia e o corpo materno
6 A mulher que se torna mãe e o homem que se torna pai
7 As fantasias que envolvem o intercurso sexual
8 As inúmeras funções da mãe suficientemente-boa
9 O prazer materno confiável
10 A função especular da mãe
11 A importância do processo de desilusão
12 A mãe que não é suficientemente-boa
A mãe é essencial para a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott.
Para o bebê ela é o prime iro ambiente, tanto em termos biológicos quanto psicológicos. A
maneira como a mãe se comporta e se sente em relação a seu filho exercerá uma grande
influência sobre a saúde do bebê — particularmente durante a gravidez e logo após o
nascimento — pelo resto de sua vida.
Da idéia de mãe como ambiente faz parte a mulher que ela é; isto é, a mulher que foi antes
do nascimento de seu bebê e continuará a ser enquanto se desenvolver, assim como o pai,
os irmãos, o restante da família, a sociedade e o mundo, de uma maneira geral.
O reconhecimento das particularidades da boa maternagem é utilizado como um paradigma
por Winnicott no setting analítico. As técnicas empregadas pelo analista
em sua clínica refletem simbolicamente as técnicas da boa maternagem.
espaço potencial pode ser concebido (ver TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 7). (As
conseqiiências de uma falha no ambiente de holding s mais bem exploradas em
AMBIENTE: 3, 4, 5, 6.)
Referências
1955 Group Influences and the Maladjusted Child íW8]
1960 The Theory of the Parent-Infant Relationship [
1 963 Psych Disorder in Terms of Infantile Maturational Processes [
1965 The Family and Individual Development {W8J
1970 On the Basis for SeIf in Body [ 9]
— ffiW4We fl E 1 tV

JOGO DA ESPÁTULA
125
1 A situação estruturada
2 Os três estágios
3 O período de hesitação e o papel da fantasia
4 A espátula como seio ou pênis
5 O consentimento do ambiente
6 Hesitação, resistência e ilusão
O jogo da espátula consiste na observação da maneira pela qual o bebê com idade entre
cinco e treze meses responde a uma espátula reluzente colocada beira de uma mesa e que
está facilmente acessíveL E necessário que este bebê tenha ingressado naquilo que
Winnicott descreve como uma “situação estruturada‟.
Winnicott destaca que pode ser observada na maioria dos bebês uma seqüência de três
estágios, estabelecidos de acordo com aquilo que o bebê opera com a espátula. Um
afastamento desses estágios aponta para que algo não vai bem. Sendo assim, o jogo da
espátula é utilizado por Winnicott como um instrumento diagnóstico.
Winnicott habilitou-se como psicanalista em 1935, e como analista de crianças no ano de
1936. Após sua habilitação como analista, permaneceu como clínico no Paddington Green
Children‟s Hospital, onde realizou milhares de consultas.
O jogo da espátula é descrito em maiores detalhes no trabalho de Winnicott, The
Observatjon ofinfants in a Set Situation, de 1941, mas já em 1936, emAppetite and Emotio
na! Disorders, o jogo da espátula é citado como um instrumento de avaliação do mundo
interno do bebê.
É importante mencionar que no decorrer da década de 30 uma grande variedade de
espátulas estava à disposição, dependendo da idade da pessoa que iria utilizá-la. Elas eram
objetos metálicos prateados e brilhantes que eram dispostos em ângulo reto.
Em uma seção de Appetite and Emotional Disorder intitulada The Hospital Out Patient
Clinic, Winnicott descreve a clínica de Paddington Green. Com isso queria “dar a
impressão de uma opulência matutina”, como se estivesse em uma corte, talvez mesmo em
uma igreja ou um teatro.
“Primeiramente, quero apresentar um relato daquilo que um bebê faz quando
sentado no colo de sua mãe, estando a quina da mesa entre ambos e eu.
Uma criança de um ano de idade comporta-se da seguinte maneira. Enxerga a espátula e
logo estende a mão em sua direção, mas, possivelmente, desinteressa-se por ela uma ou
duas vezes antes de realmente pegá-la, não deixando de olhar para meu rosto e o de sua
mãe para que possa conferir nossas atitudes. Mais cedo ou mais tarde irá pegá-la e levá-la à
boca. Ela agora desfruta de sua posse, ao mesmo tempo em que esperneia e demonstra uma
atividade corporal impulsiva. Ainda não está preparada para que a espátula lhe seja tirada.
Logo a deixa cair no chão; a princípio, isso pode parecer um fato casual, mas, quando a
espátula lhe é devolvida, ela eventualmente repete o erro, jogando-a finalmente ao chão
pretendendo obviamente deixá-la cair. Olha para ela e, com freqüência, o barulho de seu
contato com o chão transforma-se em uma nova fonte de prazer. Se permitir, repetidas
vezes irá jogá-la ao chão. Agora quer abaixar-se para poder ficar com ela no chão.”
[ and Emotiona! Disorder”, pp. 45-46]
Estes são os três estágios que estão associados à normalidade: (a) ver e buscar a espátula,
desinteressando-se quando alguma atitude do adulto é percebida; (b) pegá-la e levá-la à
boca; (c) deixá-la cair.
De uma maneira geral, podemos afirmar que a existência de desvios desse comportamento
aponta para certos desvios do desenvolvimento emocional normal. E frequentemente
possível estabelecermos uma correlação desses desvios com o restante do quadro clínico. E
evidente que existem certas diferenças quanto à idade. Crianças com mais de um ano
tendem a apressar o processo de incorporação (levando a espátula à boca), e a demonstrar
um interesse cada vez maior naquilo que pode ser feito com a espátula ao brincar.”
[ and Emotional Disorder”, p. 461
127
A partir de dois casos, Winnicott ilustra o emprego sadio e patológico que é feito da
espátula. Existem dois que se destacam nessa descrição. Em primeiro lugar, Winnicott
acredita e confia na capacidade da mãe de prever o comportamento do bebê, sabendo se
algo está errado. Em segundo lugar, as mães e os bebês — que aguardavam a sessão com
Winnicott — ficavam a uma certa distância de onde se desenrolava a sessão na mesma peça
espaçosa. De qualquer maneira, estavam todos inseridos na situação estruturada como
audiência. Sua resposta é determinada pelo protagonista: o bebê com a espátula.
“Uma mãe traz seu bebê, que tem a aparência bastante saudável, para que eu o veja como
uma medida rotineira, três meses após a primeira consulta. O bebê, chamado Philip, está
com onze meses de vida, sendo esta sua quarta visita. A fase mais difícil já passou, estando
agora muito bem, tanto física quanto emocionalmente.
Nenhuma espátula lhe é apresentada, então pega a tigela, o que não é permitido pela mãe. O
que é importante aqui é que procura por algo imediata mente, recordando das visitas
anteriores.
Apresento-lhe, então, uma espátula. Quando a pega, sua mãe diz: „Ele fará mais barulho
dessa vez do que da última‟, no que estava certa. As mães geralmente me dizem
corretamente o que o bebê irá fazer, mostrando, se alguém colocar em dúvida, que o quadro
formado a partir do que é observado no ambulatório não está desvinculado da vida.
Evidentemente a espátula é colo cada na boca, sendo logo empregada para bater na mesa ou
na tigela. A tigela recebe diversos golpes. Durante todo o tempo olha para mim. Já estou
envolvi do. De certa forma ele está expressando sua atitude para mim. Outras mães e outros
bebês aguardam na sala localizada alguns metros apenas atrás da mãe de Philip. O humor
de toda a sala é determinado pelo humor do bebê. Uma das mães diz: „Ele é o ferreiro do
vilarejo‟. Ele está contente com o que está ocorrendo, e acrescenta à brincadeira um
elemento de exibição. Posiciona a espátula na direção de minha boca de uma forma
extremamente doce, demonstrando contentamento quando entro no jogo e ensaio comê-la,
sem realmente ter um contato com ela; ele compreende perfeitamente se eu apenas
demonstrar-lhe que estou jogando seu jogo. Também a oferece a sua mãe e, então, com um
gesto magnânimo vira-se e a presenteia magicamente à audiência que está um pouco mais
afastada. Então, retoma a tigela e a panca daria continua.
Após alguns instantes, passa a comunicar-se a sua maneira com um dos bebês que estão do
outro lado da sala. Elegeu-o entre cerca de oito adultos e crianças que ali estavam. Todos
agora estão bem-humorados e a clínica vai muito bem.”
Í”Appetite and Emotional Disorder”, p. 461
É evidente que também Winnicott estava contente, ao mesmo tempo que estava atento à
importância do que acontecia em termos da relação mãe-bebê e da comunicação do seu
mundo interno.
“Agora sua mãe permite que vá para o chão, onde pega a espátula. Brinca com ela e, pouco
a pouco, avança em direção ao outro bebê com quem havia se comunicado por meio de
ruídos.
Podemos notar como ele se interessa não apenas por sua própria boca, mas também pela
minha e pela de sua mãe. Acredito que sente haver alimentado à todas as pessoas presentes
na sala, o que fez com a espátula, mas não poderia tê-lo feito se não sentisse que a havia
incorporado da forma como descrevi.
Isto é o que, por vezes, chamamos de „possuir um seio bom internalizado‟, ou apenas
„confiar na relação com o seio bom, o que é baseado na experiência‟.
O que quero afirmar com isso é que quando o bebê pega fisicamente a espátula para si,
brinca com ela e a deixa cair, ao mesmo tempo a incorpora fisicamente, a possui e desfaz-se
de sua idéia.
O que faz com a espátula (ou com uma outra coisa qualquer) entre o pegar e o deixar cair é
um positivo de um pedaço de seu mundo interno que está relacionado a mim e a sua mãe
naquele momento. A partir daí, podemos pres supor muitas coisas referentes a experiências
de seu mundo interno, ocorridas em outras oportunidades, e com outras pessoas e objetos.”
{“Appetite and Emotional Disorder”, pp. 46-47]
Nessa época, 1936, Winnicott introduz a idéia de brincar, bem como as diferentes formas
de brincar que são relevantes para o mundo interno do indivíduo.
“A fim de classificarmos uma série de casos, podemos fazer uso de uma escala:
na ponta normal dessa escala encontra-se o brincar, que é uma dramatização simples e
prazerosa da vida do mundo interno; na ponta anormal da escala encontra-se o brincar que
encerra em si uma negação do mundo interno. Nes se último caso, o brincar é sempre
compulsivo, agitado, impulsionado pela ansiedade, e mais voltado para a exploração dos
sentidos do que propriamente para a alegria.”
V‟Appetite and Emotionai Disorder”, p. 47]
O outro caso contrasta nitidamente com o primeiro, embora haja fatores comuns, tais como
a capacidade da mãe de prever as ações do bebê, seu conhecimento de que algo vai mal,
além da capacidade que o bebê tem de determinar a atmosfera da clínica.
“O outro menino, David, tem dezoito meses e seu comportamento tem uma característica
toda especial.
Sua mãe o traz e o senta em seu colo, próximo à mesa. Ele logo dirige-se à espátula que
havia colocado a seu alcance. Sua mãe sabe o que ele irá fazer, pois isso faz parte do que
está errado com ele. Ela diz: „Ele irá jogá-la no chão‟. Ele pega a espátula e imediatamente
a joga no chão. Repete isso com aquilo que estiver a seu alcance. O primeiro estágio, que é
o de aproximação tímida, e o segundo, de levar à boca e brincar ativamente, estão ausentes.
E um sinto ma com o qual estamos todos familiarizados, mas que patológico nesse caso. A
mãe estava certa ao trazê-lo por esse motivo. Ela o deixa ir buscar o objeto que está no chão
e ele o apanha, deixa-o cair, e sorri em uma tentativa artificial de adquirir confiança.
Enquanto isso, se contorce em uma posição na qual
129
seus antebraços são pressionados contra a virilha. Enquanto faz isso, olha esperançoso a sua
volta, mas os outros pais da sala estão ansiosos em distrair seus filhos da visão daquilo que
a eles tem algo a ver com masturbação. O menininho, de uma maneira bastante peculiar,
sorri, indicando que tenta desesperadamente negar a aflição e o sentimento de rejeição. E
importante notar a forma com que esta criança cria um ambiente anormal para si mesma.”
(Appetite and Emotional Disorder”, p. 47]
Evidentemente, este “ambiente anormal” criado pela criança constitui-se em uma
comunicação dirigida a Winnicott de que o ambiente precoce falhou com ela. Em 1936,
Winnicott ainda não havia feito a descoberta de que “o bebê não existe”. Ela só foi
apresentada em 1942, seis anos mais tarde (ver AMBIENTE: 3, 4). Conseqüentemente,
neste período Winnicott enfatiza a descrição do mundo interno do bebê, sem qualquer
implicação com o conceito de ambiente que começou a elaborar alguns anos mais tarde.
Em 1941, Winnicott estendia consideravelmente suas observações iniciais, sendo que a
importância do ambiente passava a primeiro plano; na década de 50, a situação estruturada,
assim como todos os seus componentes, são descritos como “ambiente de holding” (ver
HOLDING: 2).
2 Os três estágios
Em 1941, fazia aproximadamente vinte anos que Winnicott desenvolvia seu trabalho no
Paddington Green Children‟s Hospital e, há seis, já era psicanalista. O estudo que explora
os detalhes e significados do jogo da espátula, The Observation of Infants in a Sel
Situation, antecipa tudo aquilo que estava para desenvolver no decorrer dos próximos vinte
anos: o brincar, a criatividade, os fenômenos transicionais e o uso do objeto.
“Eis a nossa frente o bebê que é atraído por um objeto muito sedutor. Descreverei agora o
que, em minha opinião, apresenta-se como sendo a seqüência normal dos eventos. Afirmo
que qualquer variação, o que é normal acontecer, é significativa.
Estágio 1. O bebê estende a mão para a espátula, mas nesse momento descobre
surpreendentemente que a situação deve ser melhor avaliada. Está num dilema. Ou fica
com a mão repousada sobre a espátula e com seu corpo imóvel, olhando para mim e para
sua mãe com os olhos arregalados observando e aguardando, ou, o que ocorre apenas em
alguns casos, se desinteressa completamente e esconde seu rosto por baixo da blusa da mãe.
Geralmente é possível lidar com a situação, a fim de que não seja oferecida uma renovação
da confiança. E bastante interessante observarmos o retorno gradual e espontâneo do
interesse tido pela criança pela espátula.
Estágio 2. Durante o período de hesitação (que foi como o denominei), o bebê mantém seu
corpo imóvel (porém não rígido). Pouco a pouco vai tomando coragem para que seus
sentimentos se desenvolvam. E então que o quadro muda com extrema rapidez. O momento
no qual se dá a passagem da primeira fase para a segunda é evidente, uma vez que a
aceitação da realidade de seu desejo pela espátula é anunciada por uma alteração ocorrida
no interior da boca, que se torna flácida, ao passo que a língua se apresenta espessa e macia
e a saliva flui copiosamente. Dentro em breve levará a espátula à boca e a morderá com
suas gengivas, ou então imitará seu pai que fuma cachimbo. A alteração do comportamento
do bebê constitui-se em um fator importantíssimo. Em lugar de expectativa e imobilidade,
desenvolve agora autoconfiança. Passa a existir um livre movimento corporal que está
vinculado à manipulação da espátula.
Experimentei em diferentes momentos levar a espátula à boca do bebê durante o estágio de
hesitação. Se a hesitação corresponde aquilo que considero normal ou diferir disso em grau
ou qualidade, penso ser impossível durante esse estágio colocar a espátula na boca da
criança, a menos que empreguemos força bruta. Em determinados casos em que a inibição é
intensa, qualquer esforço de minha parte que resulte em um movimento da espátula em
direção à criança produz choro, aflição mental, ou mesmo cólicas.”
[ of Infants”, pp. 53-54]
Este tema é abordado em Morais and Education, de 1963. Nesse estudo, Winnicott postula
uma moralidade inata no bebê que emana do verdadeiro self. Portanto, os valores morais
podem ser compreendidos e avaliados pela criança apenas se ela houver experimentado um
ambiente facilitador que lhe permitiu desenvolver um sentimento de self. Para aquele bebê
que não teve esse início de vida suficientemente-bom, a tendência anti-social pode
apresentar-se como um fator importante. Seu tratamento não pode ser encaminhado através
do ensino de valores morais pela força. Em outras palavras, o objeto não pode ser imposto
ao bebê; deve ser criado por ele, pois pode adquirir qual quer significado (ver
PREOCUPAÇÃO: 9; CRIATIVIDADE: 2; DEPENDÊNCIA: 6).
Este segundo estágio está associado com o sentimento de controle do bebê; seu sentimento
de onipotência, que é considerado por Winnicott como de fundamental importância para o
desenvolvimento normal do bebê. Esta “área de onipotência” consiste na ilusão do bebê de
que ele é Deus e de que possui o controle completo do ambiente.
“O bebê parece sentir que está de posse da espátula, que talvez exerça algum poder sobre
ela, e que certamente ela está à disposição de seus propósitos de auto-expressão. Ele bate
com ela na mesa ou em uma tigela de metal que está próxima, fazendo tanto barulho quanto
puder; ou então leva a espátula a minha boca ou à boca de sua mãe, muito contente se
fingimos ser alimentados por ela. Definitivamente ele deseja que brinquemos de ser
alimentados por ela, ficando preocupado se nos comportamos como tolos, colocando a
espátula em nossas bocas, estragando o que deveria ser o jogo.
Neste ponto devo mencionar que jamais descobri qualquer evidência de que um bebê tenha
ficado desapontado pelo fato de que a espátula não é nem comida, nem algo que contenha
comida.”
À
[ of Infants”, p. 541
Eis, pois, a demonstração de que o bebê é capaz de usar sua imaginação para brincar, que é
o efeito positivo da ilusão que está relacionada ao mundo interno, O terceiro
130
estágio está associado ao repúdio do objeto, e nesse sentido a espátula pode servir como
representante de um objeto transicional (ver TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 4).
“Estágio 3. Há um terceiro estágio. Nele, o bebê começa por deixar a espátula cair como se
por engano. Se ela lhe for restituída, fica contente, brinca com ela e a deixa cair novamente,
mas desta vez não por engano. Quando ela lhe é restituída, a deixa cair de propósito,
diverte-se desfazendo-se dela com agressivida de, ficando especialmente contente quando
ela ressoa ao contato com o chão.
O final dessa terceira fase vem quando o bebê quer descer até a espátula que está no chão,
quando passa a mordê-la e a brincar com ela novamente, ou estão quando se entedia dela e
procura por outros objetos que estejam a seu alcance.”
[ of infants”, p. 54]
Estes são os três estágios do jogo da espátula pelos quais normalmente passa o bebê que
tem entre cinco e treze meses de vida. Winnicott afirma que a situação estruturada
—juntamente com a observação que faz do bebê ao colo da mãe com a espátula — pode ser
proveitosa e terapêutica. Descreve em detalhes o caso de um bebê que tinha convulsões e
de outro que sofria de ataques de asma. Em ambos os casos Winnicott expõe que através da
habilidade do clínico em sustentar a situação estruturada é possibilitado ao bebê,
ocasionalmente pela primeira vez, processar as dificuldades internas. Em cada caso a
questão está associada ao momento de hesitação.
E importante mencionar que em 1936 Winnicott refere-se ao momento de hesita ção como
um “período de dúvida”. Como palavra, “hesitação” apresenta uma conotação mais
positiva, implicando saúde, normalidade e, acima de tudo, valor. Apesar disso, a dúvida
também pode ser saudável.
3 O período de hesitação e o papel da fantasia
O período de hesitação, embora normal, aponta para a ansiedade. O bebê hesita, não por
causa de uma expectativa de desaprovação por parte de seus pais — mesmo que tenha algo
a ver com ela —, mas principalmente em função de seu esforço de elaborar a realidade da
situação (da situação estruturada) e de seu mundo interno pessoal de impulsos, sentimentos,
lembranças, e assim por diante:
se é ou não a atitude da mãe aquilo que determina o comportamento do bebê, sugiro que a
hesitação signifique que ele espera criar uma mãe raivosa, e talvez vingativa, através da
satisfação de suas vontades. A fim de que o bebê sinta-se ameaçado, mesmo por uma mãe
verdadeira e evidentemente raivosa, ele deve ter em mente a idéia de uma mãe raivosa...
Se a mãe for realmente raivosa, e se a criança tiver razões reais para esperar raiva dela
durante a consulta ao apanhar a espátula, somos conduzidos às fantasias apreensivas do
bebê, da mesma maneira como ocorre nos casos normais, onde a criança hesita apesar de a
mãe ser tolerante em relação a tal comportamento, até mesmo esperando por ele, O „algo‟
que provoca a ansiedade está na mente do bebê, uma idéia de mal ou rigor potencial. Na
nova situação, o que quer que esteja na mente do bebê pode ser projetado. Quando não
houve uma experiência de proibição, a hesitação aponta para um conflito ou para a
existência de uma fantasia na mente do bebê, que corresponde à lembrança que um outro
bebê tem de sua mãe realmente rigorosa. Em ambos os casos, como conseqüência, o bebê
precisa inicialmente restringir seus interesses e seus desejos. Ele apenas torna-se capaz de
encontrar novamente seu desejo se a avaliação que fizer do ambiente resulte satisfatória. Eu
forneço o setting para tal avaliação.”
[ of Infants”, p. 601
131
Winnicott não esclarece realmente a razão pela qual o bebê que não possui uma mãe
rigorosa permanece ainda ansioso. Isso poderia ter uma conexão com a comunicação
inconsciente do ódio que a mãe sente pelo bebê, e que é explorada por Winnicott em um
trabalho datado de 1947? (Ver ÓDIO: 6.)
4 A espátula como seio ou pênis
Winnicott admite que a espátula pode representar tanto o seio quanto o pênis, símbolos
materno e paterno, pois é possível a um bebê de cinco ou seis meses de idade estabelecer a
diferença entre o eu e o não-eu, o que significa que as pessoas passam a ser percebidas
como objetos totais. Entretanto, a situação estruturada do bebê sentado no colo da mãe, a
que se opõe um estranho (que também é um homem), é uma réplica do triângulo edípico;
aqui o bebê é colocado na posição de ter que negociar sua relação com duas pessoas
simultaneamente.
“Sendo o bebê normal, um dos principais problemas com que se depara é ter que manejar
duas pessoas ao mesmo tempo. Nessa situação que é estruturada parece que às vezes estou
testemunhando os primeiros passos nessa direção. Em outros momentos, vejo refletidos no
comportamento do bebê os sucessos e as falhas que experimenta em suas tentativas de
tornar-se capaz de relacionar-se em seu lar com duas pessoas simultaneamente. Em
determinadas oportunidades testemunho o início de uma fase de dificuldades, mas também
uma recuperação espontânea.”
[ of Infants”, p. 661
É aí que reside a verdadeira natureza da situação estruturada em relação não apenas a duas
pessoas, mas à mãe e ao pai. Winnicott não ignora as questões edípicas, porém, escolhe dar
um maior destaque à tolerância tida pelos pais no que diz respeito ao bebê e à influência
que isto terá sobre seu sentimento de self que se desenvolve e que está vinculado aos seus
desejos.
“É como se os pais concordassem com a gratificação dos desejos do bebê, acerca dos quais
ele possui sentimentos conflituosos, tolerando, inclusive, a expressão de seus sentimentos
com relação a eles próprios. Na minha presença ele nem sempre consegue fazer uso da
consideração que tenho por seus interesses ou, então, pouco a pouco vai se tornando capaz
disso.
132
A experiência de atrever-se a querer e pegar a espátula, de fazê-la sua, sem de fato interferir
na estabilidade do ambiente imediato, funciona como uma espécie de lição dada pelo objeto
que possui um valor terapêutico para o bebê. Na idade que consideramos, assim como
através de toda a infância, uma experiência como esta não pode ser tomada como
possuidora de um poder meramente temporário de renovar a confiança: o efeito cumulativo
das experiências felizes e de uma atmosfera estável e amistosa que circunda a criança é o
desenvolvimento de sua confiança nas pessoas pertencentes ao mundo externo e de seu
sentimento geral de segurança.”
5 O consentimento do ambiente
[ of Infants”, p. 66]
O ambiente que é bom, de acordo com Winnicott, é aquele que permite ao bebê viver toda
uma experiência com o mínimo de interrupção possível. Isto é representado pelos pais que
conseguem ver aquilo que o bebê está fazendo e lhe permitem a tranqüilidade necessária
para que possa realizar sua tarefa. E este o ambiente facilitador, que tam bém pode ser
aplicado ao ambiente analítico.
“EXPERIÊNCIAS TOTAIS
Penso que o que há de terapêutico nesse trabalho reside no fato de o curso completo da
experiência ser algo permitido. A partir daí podemos tirar algumas conclusões no que diz
respeito a um dos elementos que compõem um ambiente bom para o bebê. Uma mãe, em
seu manejo intuitivo, naturalmente permite o desenvolvimento integral das mais variadas
experiências, mantendo-se nessa posição até que o bebê tenha idade suficiente para que
possa compreender seu ponto de vista. Ela não admite qualquer interrupção das
experiências de amamentação, sono ou evacuação. Em minhas observações, artificialmente
dou ao bebê o direito de concluir uma experiência que possua um valor particular para ele
como uma lição dada pelo objeto.”
[ of Infants”, p. 67]
As “lições dadas pelo objeto” acarretam um aumento da capacidade do bebê de fazer uso
dos objetos (ver AGRESSÃO: 5). Uma seqüência de começo, meio e fim é constituída para
as experiências que estão sob o controle do sujeito. Nesse sentido, a psicanálise também
apresenta-se como uma lição dada pelo objeto:
“Na psicanálise propriamente dita existe algo similar a isto, O analista deixa que o paciente
estabeleça o andamento. Faz o que de melhor estiver a seu alcance para que ele decida
quando ir e vir. E por isso que fixa a hora e a duração da sessão, restringindo-se ao tempo
determinado anteriormente. A psicanálise diferencia-se do trabalho com bebês pelo fato de
que o analista está constantemente tateando, buscando um caminho entre a massa de
material oferecido, esforçando-se em encontrar, naquele momento, a forma daquilo que irá
oferecer ao paciente, ao que dá o nome de interpretação. Em determinados momentos o
analista achará ser relevante olhar por trás de toda a imensidão de detalhes para ver até
onde a análise, que ele conduz, poderia ser pensada, nos mesmos termos em que pensamos,
a relativamente simples situação estruturada que acabo de descrever. Cada interpretação é
um objeto reluzente que excita a avidez do paciente.”
V‟Observation of Infants”, p. 67]
Portanto, a questão que se coloca aqui, e essa é a atitude de Winnicott em relação à
psicanálise de uma maneira geral, é que a interpretação não é tão importante quanto a for
ma pela qual é oferecida pelo analista e, posteriormente, usada pelo paciente.
E Perto do final da vida, Winnicott podia dizer que o maior prazer que experimentou em
sua clínica era quando seus pacientes chegavam a suas próprias interpretações.
a... foi apenas recentemente que me tornei capaz de esperar por uma evolução natural da
transferência surgida da crescente confiança do paciente na técnica psicanalítica e no
setting, e de evitar uma interrupção desse processo natural através do engendramento de
interpretações. Deve ser ressaltado que refiro-me ao engendramento de interpretações, e
não à interpretação como tal. Fico assustado em imaginar quantas mudanças importantes
em meus pacientes impedi ou retardei... em função de uma necessidade pessoal de
interpretar. Se nos for possível esperar, o paciente chegará ao entendimento de uma forma
criativa e com um imenso prazer. Posso agora gozar desse prazer mais do que costumava
fazer quando tinha a sensação de ter sido engenhoso. Penso que inter preto
fundamentalmente para que o paciente conheça os limites de minha compreensão. E o
paciente, e tão-somente o paciente, que detém as respostas.”
]“The Use of an Object and Relating through Identifications”, 1968, pp. 86-87]
6 Hesitação, resistência e ilusão
A teoria do “período de hesitação” do paciente em relação aos “objetos reluzentes” de seu
analista (espátulas que brilham?) vem modificar o conceito freudiano de resistência. Em
lugar de trabalhar contra a análise, como considerava Freud, a resistência é par te integrante
dos acontecimentos normais da relação analítica. O analista que é capaz de esperar e de
permitir que o paciente caminhe no seu próprio ritmo pode ser compa rado à mãe que seja
capaz de permitir que seu bebê processe as coisas no seu tempo todo particular e vivencie
uma “experiência total”.
A elaboração que Winnicott faz da necessidade de hesitação levou-o a afirmar em
Communicating and Not Comniunicating Leading to a Study of Certain Opposites, texto de
1963, que cada indivíduo possui o direito de não se comunicar. Enquanto Freud
recomendava que o paciente deveria dizer tudo aquilo que lhe viesse à mente (associação
livre), Winnicott, em 1963, defendia que ao paciente era reservado o direito de guardar
certas coisas para si, isto é, ter uma privacidade e permanecer “não-comunicado” (ver
134
A mutualidade existente entre mãe e bebê pode ser percebida através da forma com que o
bebê usa a espátula/objeto. O uso do objeto, por conseguinte, se dá por meio de uma
“experiência vivida em conjunto” pelo bebê e pela mãe.
Quatro anos após Observation of Infants in a Set Situation, em 1945, Winnicott escreve
Primitíve Emotiona! Development. Nesse estudo reúne seus vinte anos de experiência
como pediatra e dez anos como psicanalista de adultos e crianças. Vislumbra o passado e
antecipa o futuro com sua teoria psicanalítica do desenvolvimento. O emprego de palavras
tais como “personalização”, “realização”, “ilusão” e “desilusão” aponta para as descobertas
que fez, ao mesmo tempo que alterna a terminologia freudiana com a kleiniana.
Seis anos mais tarde, em 1951, em Transitionai Objects and Transitional Phenomena, as
idéias desenvolvidas por Winnicott baseadas em sua observação do jogo da espátula
culminam na elaboração do conceito de fenômenos transicionais.
Como uma derivação do jogo da espátula, Winnicott cria o jogo dos rabiscos para as
crianças de mais idade. A pedra fundamental das consultas terapêuticas com a utilização do
jogo dos rabiscos é lançada na década de 30 na clínica de Paddington Green.

JOGO DOS RABISCOS


1 Um instrumento diagnóstico e terapêutico
2 Uma crença
3 “Vamos brincar”
4 A técnica
5 A tela do sonho
Winnicott introduzia o jogo dos rabiscos em sua primeira entrevista de avaliação com as
crianças. Começava por traçar um rabisco sobre um pedaço de papel; pedia, então, à
criança que fizesse o seu. No decorrer da entrevista inicial Winnicott e a criança
rabiscavam algo, um em resposta ao outro. Desta maneira os rabiscos algumas vezes
transformavam-se em desenhos. Em cada entrevista eram freqüentemente produzidos em
torno de trinta destes desenhos.
Para Winnicott, o jogo dos rabiscos não se constituía apenas em um instrumento
diagnóstico, mas no que denominou de “consulta terapêutica „
199
1 Um instrumento diagnóstico e terapêutico
O “jogo dos rabiscos” foi criado por Winnicott. Surgiu de um interesse particular pelo
desenho combinado a uma habilidade de descobrir a forma mais apropriada de comunicar-
se com a criança, convidando-a a brincar.
Da mesma maneira que o jogo da espátula teve origem na clínica diagnóstica de mães e
bebês de Winnicott, o jogo dos rabiscos surgiu de sua prática psiquiátrica com crianças.
The Squiggle Carne, publicado postumamente, é a reunião de dois outros trabalhos, um
deles publicado em 1964 e o outro em 1968, em um período em que Winnicott aproximava-
se do final da vida.
Os aspectos fundamentais do jogo dos rabiscos são os seguintes:
• é não apenas um instrumento diagnóstico, mas também psicoterapêutico para a criança
num ambiente suficientemente-bom;
• é baseado na esperança e na confiança da criança (e de sua família) de que encontrará
amparo;
• após ser iniciado deve ser sustentado, mas jamais através da dominação de quem conduz a
consulta: a igualdade é fundamental;
• a técnica é direcionada; o objetivo é facilitar o brincar e o elemento surpresa;
• os resultados da interação obtidos no papel podem ser associados ao sonho, entendido
como uma representação do inconsciente.
Winnicott chamou o uso que fez do jogo dos rabiscos de “consulta psicoterapêutica” com a
intenção de distingui-la da psicanálise e da psicoterapia, além de indicar que a primeira
consulta, por si só, pode ser terapêutica.
A prática psiquiátrica com crianças me fez descobrir que a primeira entrevista merece um
lugar todo especial. Pouco a pouco fui desenvolvendo uma técnica que visava a explorar
integralmente o material surgido na primei ra entrevista. Com a finalidade de estabelecer
uma distinção entre este trabalho e a psicoterapia e a psicanálise, empreguei a expressão
„consulta psicoterapêutica‟, que consiste em uma entrevista diagnóstica fundada na idéia,
segundo a qual nenhum diagnóstico pode ser feito em psiquiatria, a não ser que passe pelo
teste da terapia.”
[ Game”, p. 299]
Por “teste da psicoterapia” Winnicott entende uma avaliação, que é feita ao longo de todo o
jogo, da forma com que a criança usa a situação com que se depara, da mesma maneira
como avalia o bebê em relação à espátula e o paciente no setting analítico (ver
ESPÁTULA, JOGO DA 1).
Winnicott sustenta que a criança necessita estar em um ambiente em que possa fazer uso da
consulta:
“Existe uma categoria de casos na qual este tipo de entrevista psicoterapêutica deve ser
evitado. Não afirmaria ser impossível fazer um bom trabalho com crianças muito doentes.
O que diria é que, se a criança deixa a consulta terapêutica, retornando logo em seguida a
uma família ou a uma situação social anormais, a provisão ambiental do tipo que é exigido
não ocorre, tenho plena certeza. Baseio-me em um „ambiente previsível mediano‟, a fim de
ir ao encontro e fazer uso das mudanças sofridas pelo menino ou pela menina no decorrer
da entrevista, mudanças essas que indicam um afrouxamento do nó dado no processo de
desenvolvimento.”
2 Uma crença
[ Consultations in Child Psychiatry”, 1971, p. 5]
Winnicott tinha fé na crença inconsciente do indivíduo de encontrar amparo. Isso foi
percebido em todos os indivíduos e famílias que sofriam de privação e doenças
psicossomáticas com que teve contato ao longo dos anos. Os sintomas eram entendidos
como um sinal de esperança dos pacientes que tinham sua comunicação escutada. A
psicoterapia e o manejo forneciam a oportunidade para um reviver da privação passa da, a
fim de integrar a experiência (ver ANTI-SOCIAL, TENDÊNCIA: 4, 5; PSIQUE-SOMA: 4,
5, 6).
“A base para este trabalho especializado é a idéia de que um paciente — criança ou adulto
— traz consigo para a primeira entrevista uma certa capacidade de acreditar que irá obter
amparo e confiar naquele que o oferecer. O que é exigi do de quem o oferece é um setting
estritamente profissional no qual o paciente tem liberdade para explorar a oportunidade
excepcional de comunicação que a consulta fornece. A comunicação do paciente com o
psiquiatra está associa da às tendências emocionais específicas que possuem uma forma
geralmente aceita, com raízes que remontam ao passado ou que estão profundamente
alojadas na estrutura de sua personalidade, bem como na sua realidade interna pessoal.”
3 “Vamos brincar”
[ Game”, p. 299]
Da mesma forma que a “situação estruturada” tem uma importância fundamental para o
jogo da espátula, no jogo dos rabiscos a estrutura oferecida por quem conduz a consulta é
essencial como um fundamento, a partir do qual os movimentos serão mais livres, Isto
dependerá da capacidade daquele que conduz a consulta de oferecer o holding à criança,
tanto metafórica quanto emocionalmente.
“Neste trabalho, aquele que conduz a consulta ou o especialista não tem tanto a necessidade
de ser engenhoso quanto de ser capaz de propiciar uma relação humana movida pela
naturalidade e liberdade no contexto do setting profissional, enquanto o paciente
gradualmente vai se surpreendendo com a produção de idéias e sentimentos que
anteriormente não haviam sido integrados à personalidade total. Talvez o trabalho mais
importante a ser feito seja o de integração, que é possível através da confiança adquirida na
relação profissional, mas que é também humana: uma forma de „holding‟.”
[ Game”, p. 299]
201
O papel de quem conduz a consulta é sustentar a situação de consulta de avaliação, assim
como participar do jogo. Isto significa que a consulta consiste de dois seres humanos, um
em relação com o outro, iguais em sua condição humana, em vez de um técnico que “sabe
tudo” e um paciente que “nada sabe”.
“O fato de aquele que conduz a consulta desempenhar livremente seu papel na troca de
desenhos é com toda certeza fundamental para que a técnica seja bem sucedida; de forma
alguma um procedimento como este faz com que o paciente sinta-se inferior como, por
exemplo, quando é examinado por um médico por apresentar uma doença física ou, o que é
mais freqüente, quando é testado psicologicamente (especialmente com um teste de
personalidade).”
[ Game”, p. 3011
Na verdade, Winnicott estava muito relutante em escrever sobre o jogo dos rabiscos,
receoso de que fosse tomado como um teste psicológico:
“... hesitei muito em descrever esta técnica, que empreguei inúmeras vezes ao longo dos
anos, não apenas por ser um jogo natural que duas pessoas podem jogar, mas também, se
descrever aquilo que faço, provavelmente alguém reescreverá que minha descrição aponta
para uma técnica estrutura da a partir de regras e regulamentos. Sendo assim, a validade do
procedimento é perdida. Descrevendo aquilo que faço, corro o perigo de que outros tomem
isso com a finalidade de criar algo que corresponda ao Teste de Apercepção Temática. Em
primeiro lugar, a diferença entre minha técnica e o TAT é que ela não se constitui como um
teste. Em segundo lugar, aquele que conduz a consulta contribui com sua própria
ingenuidade quase da mesma maneira como o faz a criança. Naturalmente, a contribuição
oferecida por quem conduz a consulta deixa de existir, pois é a criança, e não ele, quem está
comunicando sua aflição.”
4 A técnica
Winnicott descreve a simplicidade da técnica:
(”Squigg de Game”, p. 301)
“Em um momento apropriado após a chegada do paciente, com freqüência depois de
solicitar aos pais que aguardem na sala-de-espera, digo à criança:
„Vamos brincar de alguma coisa. Sei de que quero brincar e vou lhe mostrar.‟ Existe uma
mesa entre a criança e eu onde há folhas de papel e dois lápis. Apanho primeiro algumas
das folhas dividindo-as ao meio, dando a impressão de que aquilo que estamos fazendo não
possui qualquer importância, e logo digo:
„Este jogo de que eu gosto tanto não possui regras. E só pegar o lápis e fazer assim...‟. E
bem provável que eu feche os olhos e faça um rabisco cego. Dou continuidade a meu
esclarecimento dizendo: „Me diga se isso se parece com algo ou se você pode transformar
isso em alguma outra coisa. Depois irá fazer o mesmo comigo. Aí eu verei se nosso fazer
algo com o que você me mostrar.‟
Esta é a técnica. Devo mencionar que sou absolutamente flexível mesmo nesses estágios
tão precoces, de modo que, se a criança escolhe desenhar, falar, brincar com os brinquedos,
tocar uma música ou fazer bagunça, sinto-me à vontade para aceitar suas vontades.
Geralmente o menino gostará de brincar com o que chama de „jogo que conta pontos‟; ou
seja, algo onde pode vencer ou perder. Contudo, em uma grande quantidade de entrevistas
iniciais, a criança ajusta-se suficientemente bem ao que proponho e ao que ofereço, em
termos de brincar, para que algum progresso ocorra. Logo surgem alguns resultados, de
modo que o jogo tem continuidade. Em geral, fazemos em uma hora vinte ou trinta
desenhos juntos. A combinação desses desenhos vai ganhando cada vez maior importância.
A criança sente estar tomando parte da comunicação dessa coisa tão importante.”
[ Game”, pp. 301 -302]
Com o intuito de pôr em prática a técnica, Winnicott afirma ser vital ter em mente — ou
melhor, nos ossos — a teoria do desenvolvimento emocional.
“A única companhia que tenho na exploração do território desconhecido que é um novo
caso é a teoria que trago comigo, que se tornou parte de mim e que sobre a qual não penso
de uma forma deliberada. Refiro-me à teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo,
que, na minha opinião, inclui a história integral da relação da criança com seu ambiente
específico. Não é possível evitarmos que alterações na base teórica de meu trabalho
ocorram com o passar do tempo ao levarmos em consideração a experiência. Minha posição
poderia ser comparada àquela do violoncelista que se empenha na técnica, tornando-se
realmente capaz de executar música em função da própria técnica. Tenho consciência de
que executo meu trabalho com mais facilidade e com um maior êxito do que era capaz há
trinta anos. Minha intenção é comunicar-me com aqueles que se empenham ainda na
técnica, ao mesmo tempo que lhes ofereço a esperança de que algum dia executarão
música.”
5 A tela do sonho
{“Therapeutic Consultations”, p. 6]
O exame que Winnicott e de como os rabiscos estão relacionados uns com os outros levou-
o a traçar um paralelo com a conversa travada no setting analítico no desenrolar da primeira
entrevista:
“É interessante comentar, considerando os rabiscos em si, que:
1. Sinto-me melhor do que a criança quando estou fazendo os rabiscos, da mesma forma
que a criança, em geral, se sente melhor do que eu ao fazê-los.
2. Eles contêm um movimento impulsivo.
3. Eles encerram algo de loucura, mesmo que sejam executados por uma pessoa sadia. Por
esta razão algumas crianças sentem-se amedrontadas com eles.
4. Eles não são pautados pela moderação, a menos que lhe sejam impostas limitações.
Assim, algumas crianças perdem o controle sobre eles. Isto alia-se ao tema
203
da forma e do conteúdo. O tamanho e a forma da folha de papel se constitui em um fator
importante.
5. Existe uma integração em cada rabisco oriunda da integração que faz parte do eu; creio
que esta não seja uma integração obsessiva típica que contenha a negação do caos.
6. Com bastante freqüência, os resultados obtidos com um rabisco são satisfatórios em si. É
como se um „objeto fosse encontrado‟, por exemplo, uma pedra ou um pedaço de madeira
velha que um escultor encontrasse e, a partir daí, elaborasse uma forma de expressar-se,
sem que houvesse a necessidade de trabalho. Isto provoca um encantamento nos meninos e
meninas preguiçosos, ao mesmo tempo que joga uma luz sobre o significado da preguiça.
Qualquer atividade causa danos ao que principiou como um objeto idealizado. Isto pode ser
sentido por um artista cujo texto ou tela seja de extrema beleza, o que não pode ser perdido.
Potencialmente, é uma obra-prima. Na teoria psicanalítica temos o conceito que é a tela do
sonho, um lugar onde o sonho deve ser sonhado.”
[ Game”, pp. 302-303]
Por “tela do sonho” Winnicott entende a natureza inconsciente dos rabiscos, semelhante a
um lápis que desenha um sonho reproduzindo aspectos da relação precoce mãe-bebê.
Ocasionalmente, Winnicott apresentava os rabiscos aos pais, o que resultava em
determinadas implicações terapêuticas.
“Existe também uma conseqüência prática presente no material contido nos rabiscos ou
desenhos que pode ser considerada um progresso quando inspira mos confiança nos pais,
fazendo-os saber que seu filho estava na situação especial que é a consulta terapêutica. Isto
é mais real para eles do que se eu relatasse o que disse a criança. Reconhecem o tipo de
desenho que enfeita as paredes do berçário ou aqueles que a criança fez na escola e traz
para casa, mas com freqüência surpreendem-se ao ver os desenhos em seqüência, desenhos
estes que exibem as qualidades da personalidade e as habilidades perceptivas que não
estavam em evidência no setting do lar.”
Entretanto, Winnicott acrescenta uma advertência:
[ Consultations”, pp. 3-4]
“Coloca-se o princípio segundo o qual a psicoterapia é conduzida através de uma
sobreposição da área do brincar da criança e da área do brincar do adulto ou do terapeuta. O
jogo dos rabiscos é um exemplo da maneira com que um interjogo como esse pode ser
facilitado.”
(Game”, p. 317)
(Relatos detalhados de como Winnicott utilizava-se do jogo dos rabiscos podem ser
encontrados em Therapeutic Consultations in Child Psychiatry [W11.)

MÃE
1 Pediatria e psicanálise
2 A mãe “natural” e “sadia”
3 A mãe suficientemente-boa
4 Uma ilusão suficientemente-boa
5 A biologia e o corpo materno
6 A mulher que se torna mãe e o homem que se torna pai
7 As fantasias que envolvem o intercurso sexual
8 As inúmeras funções da mãe suficientemente-boa
9 O prazer materno con fiável
10 A função especular da mãe
11 A importância do processo de desilusão
12 A mãe que não é suficientemente-boa
A mãe é essencial para a teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott.
Para o bebê ela é o primeiro ambiente, tanto em termos biológicos quanto psi cológicos. A
manefra como a mãe se comporta e se sente em relação a seu filho
exercerá uma grande influência sobre a saúde do bebê — particularmente durante a
gravidez e logo após o nascimento — pelo resto de sua vida.
Da idéia de mãe como ambiente faz parte a mulher que ela é; isto é, a mulher que foi antes
do nascimento de seu bebê e continuará a ser enquanto se desenvolver, assim como o pai,
os irmãos, o restante da família, a sociedade e o mundo, de uma maneira geraL
O reconhecimento das particularidades da boa maternagem é utilizado como um paradigma
por Winnicott no setting analítico. As técnicas empregadas pelo analista
em sua clínica refletem simbolicamente as técnicas da boa maternagem.
Referências
1955
1960
1963
1965
1970
1 Pediatria e psicanálise
A posição tão incomum na qual Winnicott se encontrava — um pediatra em formação
analítica — fez com que em seu trabalho como analista a relação mãe-bebê estivesse
sempre presente. Embora não tenha dado continuidade a seu trabalho como pediatra após a
Segunda Guerra Mundial, prosseguiu trabalhando no Paddington Green, onde oferecia o
que chamava de “consultas terapêuticas”. Em seu livro Therapeutic Consultati ons in Child
Psychiatry (W1 1), Winnicott expõe as particularidades destas consultas, con centrando seu
interesse na “aplicação da psicanálise à psiquiatria infantil” (ver ESPÁTUlA, JOGO DA,
RABISCOS, JOGO Dos).
Em 1957, no pós-escrito à primeira coletânea das conferências radiofônicas de Winnicott,
publicada com o título The Child and the Family (W4) e reeditada em 1964 sob um novo
título, The Child, the Family, and the Outside World (W7), Winnicott deixa bastan te claro
que era tomado por um “impulso que o impelia” a falar às mães em particular,
fundamentalmente porque a contribuição oferecida por elas à sociedade estava apenas
sendo reconhecida. Isto não significava que ignorasse o papel desempenhado pelo pai:
“... Já posso compreender o papel fundamental desempenhado em minha obra pela
premência em encontrar e reconhecer a importância da mãe boa comum. Sei que os pais
também têm sua importância. Na verdade, meu interesse pela mãe também inclui o pai e o
papel vital que ele desempenha nos cuidados da criança. Mas, para mim, tem sido para as
mães que desejo falar.
Parece-me que existe algo que foi perdido pela sociedade humana. As cri anças crescem e
tornam-se pais e mães, mas, no conjunto, eles não cresceram a ponto de saber e reconhecer
aquilo que suas mães inicialmente fizeram por eles. A razão para tal é que o papel
desempenhado pela mãe apenas recente mente começou a ser percebido.”
[ Mother‟s Coritribution to Society”, 1957, p. 124]
Winnicott acreditava que se a sociedade fosse capaz de valorizar a natureza parental,
existiria menos medo dela e, conseqüentemente, menos conflitos e destruição causa dos
essencialmente pelo medo não reconhecido da dependência (ver DEPENDÊNCIA: 2, 3).
“Essa contribuição da mãe devotada não deixou de ser reconhecida precisa mente por ser
imensa? Se essa contribuição for aceita, o que se segue é que cada homem e mulher sadio,
cada homem e mulher que possui o sentimento de ser uma pessoa no mundo, e para quem o
mundo significa algo, cada pes soa que é feliz, tem uma dívida infinita para com uma
mulher. Quando era um bebê (menino ou menina), essa pessoa não sabia nada a respeito da
dependên cia, mas era absolutamente dependente.
Uma vez mais, permitam-me enfatizar, o que resulta de um tal reconheci mento, quando ele
chega, não é gratidão, nem mesmo exaltação. O que resul tará será a diminuição em nós
próprios de um medo. Se nossa sociedade
protela o pleno reconhecimento dessa dependência, que é um fato histórico no estágio
inicial do desenvolvimento de cada indivíduo, o que resta é um obs táculo ao progresso e à
regressão, um obstáculo fundado no medo. Se não houver um reconhecimento verdadeiro
do papel da mãe, restará um medo vago da dependência. Em certos momentos esse medo
assumirá a forma do medo da MULHER, ou do medo de uma mulher, e em outros tomará
formas nem tão facil mente reconhecíveis, delas sempre fazendo parte o medo da
dominação.”
{“Mother‟s Contribution to Society”, p. 1 25]
143
Winnicott relaciona o “medo da MULHER” ao período de dependência absoluta (ver
DEPENDÊNCIA: 3, 4).
2 A mãe “natural” e “sadia”
Winnicott deu um destaque especial à mãe “natural” e àquilo que ela faz com “naturali
dade”. Por “natural” entende a mãe que antes de tudo se identifica com o bebê recém-
nascido (preocupação materna primária), deixando que mais tarde cresça e torne-se ele
próprio.
a verdadeira força reside na experiência do indivíduo, no processo de desenvolvimento que
@@@ flui por caminhos naturais... No meu ponto de vista, a saúde mental do indivíduo é
construída desde o início pela mãe que provê aquilo a que denominei como ambiente
facilitador, isto é, um ambiente no qual os processos de crescimento natural do bebê e as
interações com o ambiente possam evoluir de acordo com o padrão herdado pelo indivíduo.
A mãe está (sem o saber) lançando os alicerces da saúde mental desse indivíduo.”
[ as Communication”, 1968, pp. 24-25]
A ênfase posta por Winnicott na palavra “natural” abarca o “normal”. Por exemplo, aquilo
que seria natural para uma mãe má, não seria normal e, com toda certeza, tam bém não
seria saudável. Os “caminhos naturais” aos quais Winnicott refere-se implicam numa
compensação dos processos maturacionais sadios que ocorrem no interior do ambiente
facilitador. Assim, a mãe “natural” é a mãe que é “sadia”. Mas o que Winnicott quer dizer
com “sadia”?
No texto The Concept ofthe Healthy individual (1967), Winnicott esclarece melhor suas
idéias a respeito da saúde; ela abarca virtualmente toda sua teoria do desenvolvi mento
emocional — a relação precoce mãe-bebê, a trama psicossomática, o verdadeiro e o falso
self, a cultura, a importância do “sentir-se real”, e também um novo termo,
“psicomorfologia”, forjado por Winnicott especialmente para esse trabalho. Por psico
morfologia entende-se que o potencial herdado pelo bebê possui uma exterioridade
semelhante à do ambiente em termos de desenvolvimento emocional; é a união desses dois
fatores, herança e ambiente, que irá contribuir para a saúde ou para a patologia do
indivíduo. Resumidamente:
1 N. do T. Hospital de Paddington Green, Londres.
145
11 termos de desenvolvimento.., a saúde implica maturidade, de acordo com a maturidade
própria à idade do indivíduo.”
[ of Healthy Individual”, p. 22]
A desconstrução dos componentes da maternagem suficientemente-boa proposta por
Winnicott inclui todos os aspectos que conduzem à saúde do indivíduo. Como conse
qüência, a mãe sadia e natural apresenta-se como aquela mulher que recebeu uma boa
maternagem.
@@@ 3 A mãe suficientemente-boa
@@@ A utilização do termo “suficientemente-boa” diz respeito à adaptação da mãe às
neces sidades do bebê recém-nascido. Seu emprego remonta ao início da década de 50,
quan do Winnicott pretendeu estabelecer uma distinção entre a terminologia kleiniana e a
sua. Em uma carta endereçada a Roger Money-Kyrle (analista e membro de um grupo
kleiniano) datada de 1952, Winnicott esclarece o que desejava dizer com suficiente mente-
boa.
“Penso freqüentemente em referir-me à mãe, a pessoa real que está com o bebê, como se
ela fosse perfeita ou como se correspondesse à „mãe-boa‟ que faz parte do jargão kleiniano.
Na verdade, sempre me refiro à „mãe suficiente mente-boa‟ ou à „mãe que não é
suficientemente-boa‟ pois, no que diz respei to ao fato que estamos discutindo, ou seja, a
mulher real, temos consciência que o melhor que ela tem a fazer é ser boa o suficiente. A
palavra „suficiente‟ gradualmente (em circunstâncias favoráveis) vai ocupando um espaço
cada vez maior, segundo a capacidade crescente do bebê de lidar com a falha atra vés do
@@@ entendimento, da tolerância à frustração etc. A „mãe boa‟ e a „mãe má‟ do jargão
kleiniano apresentam-se como objetos internos, não tendo nada em comum com as
mulheres reais, O melhor que uma mulher real pode fazer com um bebê é ser
suficientemente boa de uma forma sensível inicialmente, de modo que a ilusão para ele
torne-se algo possível desde o início. Essa mãe sufi cientemente-boa também é um „seio
bom‟.”
[ to Roger Money-Kyrle”, p. 38]
@@@ No contexto da teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, é a adaptação
da mãe às necessidades do bebê que o torna capaz de ter uma experiência de onipotência.
Esta experiência cria a ilusão necessária a um desenvolvimento saudável.
4 Uma ilusão suficientemente-boa
Em Ego Distortion in Terms of True and False Se!f, texto de 1960, Winnicott estabelece
uma relação entre a expressão “suficientemente-boa” e “a ilusão e a onipotência”.
“... em um extremo encontra-se a mãe que é uma mãe suficientemente-boa e no outro a mãe
que não é uma mãe suficientemente-boa, A seguinte questão deve ser colocada: o que
entendemos pela expressão „suficientementeboa‟?
A mãe suficientemente-boa depara-se com a onipotência do bebê e, de algum modo, a
aceita. Isso ela faz repetidas vezes. Um Verdadeiro Se/f passa a adquirir vida através do
vigor proporcionado ao frágil ego do bebê pela instru mentação que a mãe faz de suas
expressões de onipotência.
A mãe que não é suficientemente-boa não é capaz de instrumental izar a onipotência do
bebê e, por isso, sempre fracassa em reconhecer os gestos do bebê; em vez disso, ela
modifica os seus próprios gestos a fim de dar sentido à submissão do bebê. Essa submissão
é o estágio mais precoce do Falso SeIf, e faz parte da incapacidade da mãe de perceber as
necessidades de seu filho. Uma parte essencial de minha teoria admite que o Verdadeiro
SeIf não se torna uma realidade viva, a não ser como o resultado do repetido êxito da mãe
em reconhecer o gesto espontâneo do bebê ou as alucinações sensoriais.”
[ Distortion”, p145]
Assim, a mãe suficientemente-boa compara-se à “mãe devotada comum” que, na saúde,
pôde ingressar em um estado de “preocupação materna primária”.
5 A biologia e o corpo materno
Uma conclusão bastante simples pode ser inferida das idéias de Winnicott a respeito da mãe
sadia, que é aquela que ingressa em um estado de preocupação materna primária a partir da
gravidez e imediatamente após. A mãe biológica é a pessoa que melhor desempenha a
tarefa que é a maternagem. No entanto, Winnicott é bastante flexível a esse respeito:
“Podemos agora afirmar qual a razão de a mãe ser a pessoa mais adequada para cuidar do
bebê; é apenas ela que pode atingir o estado tão especial que é o de preocupação materna
primária sem adoecer. Porém, uma mãe adotiva, ou qualquer mulher que possa adoecer
com a „preocupação materna primá ria‟, pode estar em posição de adaptar-se
suficientemente bem por possuir alguma capacidade de identificação com o bebê.”
[ Maternal Preoccupation”, 1956, p. 304]
A identificação da mãe biológica com seu bebê situa-se no núcleo “doente.., do senti mento
de preocupação materna primária”. Este estado capacita a mãe a adaptar-se às necessidades
do bebê, o que abrange a capacidade de amamentar. Contudo, Winnicott não vê a
amamentação como um componente essencial da preocupação materna pri mária.
Sabia que as mulheres que não são capazes de atingir um “adoecimento normal em função
da preocupação materna primária”, ainda assim, podem vir a ser boas mães, no sentido de
que se esforçam em oferecer algo a seu bebê. Entretanto, a tarefa de proporcionar certos
cuidados à criança poderá ser prejudicada no futuro, uma vez que elas serão forçadas a
engendrar uma perda fundante no bebê:
“Com toda certeza existem muitas mulheres que são boas mães sob todos os aspectos,
capazes de ter uma vida rica e útil, mas que não são capazes de alcançar essa „doença
normal‟ que as possibilita adaptar-se delicada e sensi velmente às necessidades iniciais do
bebê; ou, talvez possam alcançar isso com uma criança e não com outra. Tais mulheres não
conseguem preocu par-se com os seus próprios bebês. Deixam de lado outros interesses
normais e passageiros. Podemos supor que existe uma „fuga para a sanidade‟ em algumas
dessas pessoas...
Na prática o resultado é que essas mulheres, havendo produzido uma cri ança, mas não
tendo conseguido dar conta do estágio inicial, são defrontadas com a tarefa de recuperar
aquilo que foi perdido. Atravessam um longo perío do no qual têm que adaptar-se às
crescentes necessidades do bebê, e mesmo assim não é seguro que obtenham êxito em
corrigir a distorção inicial.”
[ Maternal Preoccupation”, pp. 302-303]
Da mesma forma, existe aquela mulher psicótica que inicialmente é capaz de manejar seu
bebê, mas que, posteriormente, não se habilita a ler os sinais enviados por ele ao tentar
separar-se.
“No outro extremo temos a mãe que se preocupa por qualquer motivo, O bebê transforma-
se em sua preocupação patológica. Esta mãe pode possuir uma capacidade especial para
emprestar o seu próprio self ao bebê, mas o que acontecerá ao final? Faz parte do processo
normal que a mãe recobre o seu interesse próprio, devendo fazê-lo de tal forma que o bebê
lhe permita isso. A mãe preocupada patologicamente não apenas segue identificada ao bebê
por muito tempo, como passa repentinamente da preocupação com o bebê para a sua
preocupação primeira.
A recuperação da mãe normal da preocupação com o bebê provoca um tipo de desmame. O
primeiro tipo de mãe doente não consegue desmamar seu bebê porque ele jamais a teve.
Sendo assim, o desmame não possui qualquer significado; o outro tipo de mãe doente não
pode desmamar ou, então, tenta um desmame repentino que não leva em conta a
necessidade que o bebê tem de um desmame gradual ser desenvolvido.”
[ Relationship of a Mother to Her Baby at the Beginning”, 1960, pp. 1 5-161
No entanto, é importante destacar que Winnicott não crê em um instinto materno. Uma
ênfase demasiada posta sobre certos aspectos biológicos faz diminuir a importân cia dos
estados emocionais existentes entre mãe e filho:
“... quando pensamos em uma pulsão materna nos embrenhamos na teoria, nos perdendo
em um emaranhado de seres humanos e animais. Muitos animais de fato lidam muito bem
com a maternagem. Nos primeiros estágios do processo evolutivo os reflexos e as mais
simples respostas pulsionais demonstravam ser

dades humanas, e isso deve ser respeitado. Eles também possuem reflexos e pul sões brutas,
mas não podemos descrever satisfatoriamente os seres humanos a partir daquilo que eles
compartilham com os animais.”
[ of Mother to Her Baby”, p. 1 6]
Fica bastante claro que qualquer que seja a importância dada por Winnicott à natureza do
papel materno no cuidado dipensado ao bebê, ele não parece ser romântico, nem mesmo
sentimental, no que toca ao preço que ela deverá pagar:
“A questão que se coloca é: uma mãe pode defender-se com êxito e preservar seus segredos
sem ao mesmo tempo privar a criança de um elemento essencial
— o sentimento de que a mãe é disponível? Inicia/mente, a criança estava em seu poder, e
entre estar em seu poder e a independência, com certeza, deve existir um meio termo a essa
disponibilidade.”
[ Irks?”, 1960, p. 74]
Por “estar em seu poder” Winnicott compreende as características físicas e emocionais da
preocupação materna primária.
“O leitor poderá com toda facilidade lembrar-se que é apenas por um período limitado de
tempo que esta mãe tem alguma liberdade em função de seu filho. Ela já teve seus segredos
e os passa a ter novamente. Achará que tem sorte, pois, por um período prolongado, foi
importunada pelas infinitas exigências de seu filho.
Para aquela mãe que está certa disso não existe um passado e nem um futuro. Para ela
existe apenas a experiência presente de haver se aventurado por uma área inexplorada, que
não é o pólo norte nem o pólo sul, mas uma área descoberta por um intrépido explorador.
Por isso rejubila-se; não é o Everest, mas um alpinista atinge o seu topo e o come. As
profundezas de seu oceano são vasculhadas. Ela possui seus mistérios, o lado escuro da lua,
e até mesmo isso pode ser alcançado, fotografado e reduzido ao mistério de um fato
comprovado cientificamente. Nada dela é sagrado.
Quem seria a mãe?”
[ Irks?”, p. 74]
6 A mulher que se torna mãe e o homem que se torna pai
Seria de grande utilidade lançar um olhar sobre as cinco áreas principais que Winnicott
percorre ao referir-se às “origens do indivíduo” dentro do contexto da constituição familiar.
• as lembranças, tanto da mulher quanto do homem, mãe e pai em potencial;
• as lembranças do nascimento real tidas pela mãe, que a capacitam a dar à luz.
149
Winnicott, ao abraçar a teoria freudiana do inconsciente, acreditava existir uma reserva de
lembranças própria a cada indivíduo. Tais lembranças não estão disponíveis em um nível
cognitivo, pois muitas delas são inconscientes. No entanto, para os pais novatos, essas
lembranças vêm à tona através dos sonhos e de sua vida emocional asso ciada aos planos
feitos em relação a seu primogênito.
“A direção que seguem as necessidades do bebê depende de diversos fatores, um dos quais
é a lembrança que o pai e a mãe têm de eles mesmos terem sido bebês; bem como de terem
sido cuidados com confiança, de se protegerem contra o inesperado, e da oportunidade de
dar continuidade ao crescimento pessoal .“
V‟The Building up of Trust”, 1969, p. 1331
As lembranças e os sentimentos inerentes a cada ser humano guardam uma relação com o
passado, o que contribui para a compreensão do presente no que diz respeito à relação
parental e a outros grupos sociais. Tudo isto é parte da atmosfera que tem sua origem no
passado e que contribui para o surgimento de uma nova família. Dirigin do-se a algumas
mães em 1969, Winnicott declara:
“Primariamente o ambiente que você provê é você, sua pessoa, seus aspectos particulares
que o ajudam a saber que você é você. E evidente que disso faz parte tudo que é reunido em
torno de você, seu cheiro, a atmosfera que lhe acompanha. Isso inclui o homem que se
tornará o pai de um bebê, podendo incluir também outras crianças, se as tiver, assim como
avós, tias e tios. Em outras palavras, não fiz outra coisa senão descrever a família da forma
como ela é revelada ao bebê, da qual fazem parte os aspectos do lar que faz do seu lar um
lar como qualquer outro.”
[ up of Trust”, p. 1251
Doze anos antes, em um texto de 1957 que versava sobre a integração e os fatores dila
ceradores da vida familiar, Winnicott dá destaque ao meio familiar:
“A existência de uma família e a manutenção de uma atmosfera familiar é o resultado da
relação dos pais com o setting social no qual estão inseridos. A „contribuição‟ dos pais à
família que estão constituindo depende em grande parte do todo de sua relação com o
extenso círculo formado em torno deles, que é seu setting social mais imediato. Poderíamos
imaginar círculos abertos, sendo cada grupo social dependente daquilo que lhe é interno e
que se rela ciona com outro grupo social externo. Obviamente estes círculos se sobre-
põem. Os membros de uma família encaminham-se para a preocupação, ain da que não
tenham se desligado dela.”
[ and Disruptive Factors in Family Life”, p. 41]
A qualidade da relação parental constitui-se no principal componente na criação de uma
atmosfera apropriada.
7 As fantasias que envolvem o intercurso sexual
Winnicott vem afirmar que o poder da atração sexual entre homem e mulher na consti
tuição de uma família é de suma importância. A “satisfação sexual é o ponto alto de um
crescimento emocional pessoal; quando essa satisfação chega a constituir relações pra
zerosas pessoal e socialmente, então passa a representar o auge em termos de saúde
mental”. Winnicott, porém, logo acrescenta que a satisfação sexual nessa forma de relação
é bastante desejável, mas nem sempre possível:
“... apesar do poder sexual ser de vital importância, a completa satisfação não se constitui
em si mesma num objetivo ao considerarmos a família. E impor tante ressaltar que uma
grande quantidade de famílias existem e são vistas como boas, embora tenham sido
fundadas com base em satisfações físicas não muito poderosas pelos pais.”
[ and Disruptive Factors”, pp. 41-42]
Além disso, coloca-se a questão do impulso agressivo envolvido no ato sexual, e de como o
casal lida com suas fantasias de prejudicar ou de ser prejudicado pelo outro. Tanto a mulher
quanto o homem possuem esses temores que, segundo Winnicott, são inconscientes em sua
maior parte. Entretanto, em especial por volta do período da gra videz e do nascimento,
essas fantasias emergem na forma de uma ansiedade extrema mente poderosa. (Foi a partir
desse tipo de ansiedade que Winnicott passou a construir sua teoria do “uso do objeto” dez
anos após este texto haver sido escrito.) (Ver
AGRESSÃO: 7, 8, 9, 10.)
“A fantasia sexual, consciente e inconsciente, varia quase que infinitamente, sendo de vital
importância. É fundamental compreendermos, dentre outras coisas, que o sentimento de
preocupação ou de culpa tem sua origem nos ele mentos destrutivos (completamente
inconscientes) que acompanham o impul so amoroso quando este é expresso fisicamente.
Podemos reconhecer de pronto que este sentimento de preocupação ou de culpa constitui-se
em uma boa maneira de lidar com as necessidades de cada um dos pais, assim como as do
casal, visando à família. As ansiedades reais do pai no momento do parto a que a mãe se
submete refletem claramente algo que é bem diverso das ansie dades que fazem parte das
fantasias sexuais, e não apenas da realidade física.”
[ and Disruptive Factors”, p. 42]
A ansiedade dos pais, de acordo com Winnicott, pode ser potencialmente abrandada pelo
bebê, pois a felicidade advinda de uma criança nascida viva e em bom estado é
intensificada, uma vez que a própria existência do bebê pode suavizar as ansiedades dos
pais, que podem vir a causar grandes danos:
“A família que nasce, antes de qualquer outra coisa, neutraliza as idéias ater rorizantes que
giram em torno de um mal já feito, de um corpo que foi destruí do, da geração de um
monstro... Com toda certeza uma boa parte da alegria que o bebê traz à vida de seus pais
baseia-se no fato de que ele é completo e humano. Além disso, do bebê faz parte de algo
que contribui para a vida, isto é, um distanciamento que o faz manter-se vivo; dele também
participa uma tendência inata voltada para respirar, movimentar-se e crescer. A criança,
considerada como um fato, por enquanto, com todas as suas fantasias referentes ao que é
bom e mau, e com a vivacidade própria a todas elas, proporciona aos pais um enorme
sentimento de alívio enquanto acreditarem nele; o alívio das idéias surgidas de seu
sentimento de culpa ou de desvalorização.”
[ and Disruptive Factors”, p. 42]
Contudo, Winnicott acredita que a contribuição da criança para a evolução familiar vai
além do alívio das ansiedades associadas ao intercurso sexual:
“Não deve receber um destaque especial o fato que a integração da família deriva da
tendência integradora de cada criança em particular. A integração do indivíduo não é uma
coisa que se possa ter como certa. A integração pessoal é uma questão de desenvolvimento
emocional...
Cada criança individualmente, através do crescimento emocional saudá vel e do
desenvolvimento satisfatório de sua personalidade, incentiva a família e a atmosfera
familiar. Os pais, em seu esforço de constituir uma família, rece bem os benefícios da soma
das tendências integradoras dos filhos. Esta não é meramente uma questão de adoração do
bebê ou da criança; existe algo mais do que isso, já que as crianças nem sempre são tão
agradáveis. O bebê, assim como as crianças pequenas e as maiores, nos encanta por contar
com um cer to grau de confiança e disponibilidade a que devemos responder. Suponho em
parte que isso se deve a nossa capacidade de identificação com elas. Tal capa cidade de
identificação com as crianças depende mais uma vez de havermos tido um crescimento
suficientemente-bom no desenvolvimento de nossa pró pria personalidade ao atravessarmos
a mesma idade. Dessa maneira nossa capacidade é fortalecida, ressaltada e desenvolvida
através daquilo que a cri ança espera de nós. De formas variadas, sutis e evidentes, os bebês
e as crian ças criam uma família em torno de si, talvez por necessitarem de algo, algo que
lhes oferecemos por já conhecermos suas expectativas e como deve ser obtido. Percebemos
o que a criança cria ao brincar de família e, por isso, dese jamos tornar reais os símbolos da
sua criatividade.”
[ and Disruptive Factors”, pp. 46-471
Em resposta a uma carta do Dr. Fisher — à época arcebispo de Canterbury —, publicada
em 1966 no The Times a respeito do debate acerca do início da vida e da legislação refe
@@@ rente ao aborto, Winnicott escreveu um pequeno texto, The Beginning ofthe
individual. Nele, Winnicott estabelece algumas distinções entre a “formulação de uma
idéia” e a “concepção”. A “formulação de uma idéia” está relacionado ao brincar criativo
da crian ça, de tal maneira que expõe o potencial da menina de tornar-se mãe.
Se ela teve um início suficientemente-bom, chegará a “formular a idéia” de um bebe em seu
brincar — “é parte do material onírico e de muitas atividades” (Beginning of the individual,
pp. 51-52). Winnicott não propõe nem responde a questão, segundo a qual toda menina
cresce com a fantasia de ter um bebê.
151
Quando uma mulher chega verdadeiramente a formular essa idéia, é porque está preparando
o terreno para a maternidade. Uma vez que a gravidez prossiga, essa pre paração torna-se
menos uma fantasia e mais uma realidade, embora a fantasia relativa ao bebê idealizado se
constitua sempre em algo de grande importância:
“Observamos na mãe que tem espectativas uma crescente identificação com o bebê. Ele
está ligado à idéia de um „objeto interno‟ da mãe, um objeto imagi nado para ser erigido
internamente e mantido lá apesar de todos os elementos persecutórios também ali
encontrados. O bebê dá outra importância à mãe em suas fantasias inconscientes, mas o
fator preponderante será a espontaneidade, assim como a capacidade materna de verter o
interesse de seu próprio se/f para o filho. Referi-me a esse aspecto da conduta materna
como „preocupação materna primária‟.”
[ of Mother to Her Baby”, p. 15]
Como seu interesse volta-se para o bebê idealizado, que é aquele que vem a transfor mar-se
em um bebê real, a mãe passa cada vez mais a fundir-se emocionalmente com ele, ao passo
que lembranças de seu próprio nascimento são evocadas, O toque de ironia fica por conta
de que mãe e bebê, ao serem separados pelo ato do nascimento, tornam-se um só: a
estrutura ambiente-indivíduo. A mãe que é sadia entrega-se ao ato de dar à luz da mesma
forma que, quando era apenas um bebê, entregou-se ao nascimento. Em conse qüência
disso, suas lembranças inconscientes são reevocadas ao longo de todo o parto.
“Dentre os aspectos típicos das lembranças reais do nascimento encontra-se o sentimento
de estar nas garras de alguma coisa externa, de modo que a pessoa fica desamparada...
Existe uma relação bastante evidente entre aquilo que é experimentado pelo bebê e o que a
mãe experimenta estando confinada, como dizemos. Advém um estado durante o parto no
qual, se saudável, a mãe tem que ser capaz de resignar-se a um processo que pode ser
comparado apro ximadamente à vivência do bebê no mesmo momento.”
1 Memories, Birth Trauma and Anxiety”, p. 184]
Este último parágrafo foi escrito no ano de 1949; em 1957 Winnicott acrescentou a seguinte
nota de rodapé:
“Passo a denominar este estado de sensibilidade tão especial da mãe de „preo cupação
materna primária‟.”
@@@ 8 As inúmeras funções da mãe suficientemente-boa
Winnicott divide as funções maternas naturais em três campos distintos: o holding, o toque
e a apresentação do objeto. Todas esses três campos inserem-se nas primeiras semanas de
vida do bebê, o período de dependência absoluta. O holding e o toque con tribuem para que
o bebê viva em seu próprio corpo, que é o que Winnicott chama de “personalização” e
“trama psicossomática” (ver HOLDING: 3; PREOCUPAÇÃO MATERNA
PRIMÁRIA: 1, 2).
153
@@@ Winnicott faz referência ao período durante o qual mãe e bebê encontram-se fun
didos por uma “afinidade egóica”, nos anos 50, e através da “relação de objeto” na década
de 60. Estas expressões são sinônimas e dizem respeito ao fato que é a depen dência, — ou
seja, que o bebê depende do suporte egóico, da proteção e da segurança proporcionados
pela mãe (ver DEPENDÊNCIA: 2).
A mãe conhece coisas que o bebê ainda não é capaz de conhecer. Por esse motivo ela
saberá que quando o bebê chora, o faz por uma razão específica. Isto é algo de que ele não
tem conhecimento no início de sua vida: ele simplesmente chora. E então que a mãe oferece
seu seio (ou mamadeira). Ele (se chora por ter fome) suga-o e sente-se ali viado, não
necessitando mais de chorar.
“Imaginem um bebê que jamais foi alimentado. A fome se intensifica, e ele está prestes a
dar vida a alguma coisa; a partir da necessidade o bebê já está pronto para criar uma fonte
de satisfação, porém não existe uma experiência anterior que lhe mostre o que pode ser
esperado. Se nesse momento a mãe colocar seu seio em um lugar onde o bebê possa esperar
algo, e se o tempo suficiente lhe for oferecido para que se sinta acolhido, com a boca e com
as mãos, e quem sabe com o sentido do olfato, o bebê „cria‟ aquilo que está ali para ser
descoberto. Finalmente, ele tem a ilusão segundo a qual este seio real é exatamente a coisa
que foi criada a partir da necessidade, da avidez e dos primeiros impulsos do amor
primitivo. A visão, o olfato e o paladar são regis trados em alguma parte. Após alguns
instantes o bebê cria algo, o seio que a mãe lhe oferece. O bebê, inúmeras vezes antes do
desmame, é introduzido à realidade externa por uma mulher, a mãe. Inúmeras vezes existiu
a sensação de que aquilo que foi desejado pôde ser criado e descoberto para ficar lá. A
partir daí desenvolve-se a crença de que o mundo contém aquilo que é deseja do e
necessitado, resultando disso que o bebê adquire a esperança em que exista uma relação
viva entre a realidade interna e a externa, entre a criativida de primária inata e o vasto
mundo que é compartilhado por todos.”
[ Thoughts on Babies as Persons”, 1947, p. 901
É o oferecimento do seio materno no momento apropriado que proporciona ao bebê o
sentimento de que isto é tudo o que ele necessita. Se o bebê recém-nascido pudesse falar,
diria “necessito de algo, mas não sei de quê, porque nasci há pouco”. Como res posta, a
mãe que escuta o choro provocado pela fome diz a si mesma, “reconheço esse choro; ele
faz-me lembrar de um sentimento que tive quando era recém-nascida, fico feliz por poder
aliviar essa necessidade. Vamos tentar”.
Esta comunicação estabelecida entre mãe e bebê faz com que a mãe proveja o bebê com
aquilo que ele necessita, o que o torna capaz de sentir que “criou” aquilo que lhe foi
oferecido. Como conseqüência, o bebê sente-se como o próprio Deus: onipotente. Na
opinião de Winnicott, esse sentimento é fundamental nos primeiros estágios da vida, pois
ajuda o bebê a aprender que é no mundo real que ele pode encontrar aquilo de que
necessita. Porém, um paradoxo apresenta-se. O sentimento de confiança no mundo origina-
se com a ilusão de ser o Deus que criou o mundo:
“A adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente-boa, proporciona ao
bebê a ilusão de que existe uma realidade externa que corres ponde à capacidade do próprio
bebê de criar. Em outras palavras, existe uma sobreposição daquilo que a mãe fornece e
daquilo que a criança deve conce ber. Do ponto de vista do observador, a criança percebe
que a mãe realmente lhe fornece algo, mas esta não é toda a verdade, O bebê percebe o seio
apenas na medida em que este seio possa ser criado em certas circunstâncias. Não exis te
qualquer intercâmbio entre mãe e filho. Psicologicamente o bebê tira do seio aquilo que é
parte dele mesmo, e a mãe amamenta um bebê que faz parte si.”
[ Objects and Transitional Phenomena”, 1953, p. 2391
Winnicott reconhece a importância vital da necessidade da ilusão que o bebê tem quan do
experimenta a onipotência. Sem essa ilusão não pode existir a confiança (ver
CRIATIVIDADE: 2; TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 3, 4).
A forma com que a mãe oferece seu seio — ou o que quer que o bebê solicite —, Winnicott
denomina de “apresentação do objeto” (ver DEPENDÊNCIA: 6).
Em 1949, em um programa de rádio da BBC, Winnicott comparou o bebê que foi
alimentado em um setting institucional com o bebê que foi alimentado pela sua pró pria
mãe:
“Quando vejo a forma delicada com a qual uma mãe que não é ansiosa lida com a situação,
isso me deixa sempre surpreso. A vemos esforçando-se em proporcionar conforto ao bebê,
em fornecer um setting no qual possa se dar a alimentação, se tudo correr bem. O setting
faz parte de uma relação humana. Se a mãe amamentar podemos perceber como fica o
bebê, mesmo um muito pequeno. As mãos ficam livres para que ela possa expor seu seio, a
textura da pele e o calor podem ser sentidos, além disso a distância do seio ao bebê pode ser
medida, pois o bebê tem apenas um pequeno pedaço do mundo onde colocar os objetos, um
pedaço que pode ser alcançado pela boca, mãos e olhos. A mãe permite que o rosto do bebê
toque seu seio. Inicialmente os bebês não têm conhecimento de que os seios são parte da
mãe. No começo, se seu rosto tocar o seio, não saberão se aquela sensação agradável
provém do seio ou do rosto. De fato, os bebês brincam com suas bochechas, arranhan do-as
como se fossem seios. Existem inúmeras razões pelas quais as mães per mitem todo o
contato exigido pelo bebê. Não resta nenhuma dúvida de que essas sensações do bebê são
bastante acentuadas. Sendo assim, estamos certos de que elas são importantes.”
[ of Mother Feeding Baby”, 1949, p. 46]
Eis um bebê que ainda não elaborou a diferenciação entre eu e não-eu. Ele situa-se no que
Winnicott chamaria de “estado de não-integração”. Esse é um exemplo da fusão que se dá
entre as mães e os bebês que se verifica em termos de mutualidade. Também é um quadro
daquilo que Winnicott chamava de ser e o elemento feminino, a mãe e do bebê
simultaneamente separados e unidos (ver CRIATIVIDADE: 2, 3, 8; COMUNICAÇÃO: 2).
“Primeiramente, o bebê necessita de tudo isso, mais precisamente das expe riências de
tranqüilidade que descrevo, e precisa ser segurado com amor, ou
1
155
seja, de uma forma ativa, sem agitação, ansiedade ou tensão. Isto constitui o setting. Mais
cedo ou mais tarde se dará algum tipo de contato entre os mami los da mãe e a boca do
bebê. Não importa o que aconteça exatamente. A mãe faz parte da situação e aprecia,
particularmente, a intimidade da relação. Ela não possui idéias pré-concebidas de como um
bebê deva comportar-se.”
[ of Mother”, p. 46]
É então que surge a excitação, a expulsão e a elaboração da imaginação”:
O contato do mamilo com a boca do bebê faz com que ele tenha idéias! — „talvez haja
alguma coisa do lado de fora da boca que seja melhor e mereça ser buscada‟. A saliva
começa a fluir; de fato, muita saliva deverá ser produzida para que o bebê sinta prazer em
engoli-la, e por um determinado tempo não necessite de leite. Pouco a pouco a mãe
possibilita que o bebê elabore em sua imaginação aquilo que ela tem a oferecer. Ele passa a
levar o mamilo à boca, roçando as gengivas e mordendo-os, e talvez sugando-os.
Faz-se uma pausa. As gengivas separam-se do mamilo, e o bebê abandona a cena da ação.
A idéia de um seio se desvanece.
Vocês podem perceber o quão importante é este último momento? O bebê teve uma idéia, o
seio acompanhado do mamilo surgiu, e o contato estabele ceu-se. O fecho é dado com o
bebê tendo uma idéia e partindo, O mamilo desaparece. Esta é uma das mais importantes
maneiras através das quais a experiência do bebê que descrevemos difere daquela de um
colocado em uma instituição repleta. Mas como a mãe lida com a partida do bebê? Ele não
pos sui algo que é enfiado boca a dentro a fim de que os movimentos de sucção
recomecem. A mãe compreende o que sente o bebê porque ela está viva e tem imaginação.
Ela aguarda. Passados alguns minutos, ou menos, o bebê retorna para onde ela estava todo
o tempo, querendo o mamilo. E então que um novo contato se estabelece no momento
certo. Estas condições repetem-se inúmeras vezes, O bebê mama não de algo que contém
leite, mas de alguma coisa que ele possui que é tomado emprestado momentaneamente de
uma pessoa que sabe como lidar com isso.
O fato da mãe ser capaz de engendrar uma adaptação tão delicada como essa demonstra que
ela é um ser humano. O bebê não tarda em reconhecer isto.”
[ of Mother”, p. 47]
Uma vez que essas experiências são repetidas, o bebê finalmente consegue chegar “ao
extremo da onipotência”. Isto somente pode ser alcançado se a mãe tiver a capacidade de
proporcionar ao bebê a oportunidade de, antes de tudo, sentir-se como Deus, o que, na
saúde, faz com que ele saiba o que é o mundo real, e que ele não é Deus.
“... a partir dessa comunicação silenciosa podemos percorrer os caminhos através dos quais
a mãe torna real aquilo que o bebê está preparado para bus car, de modo que ela lhe dá a
idéia segundo a qual é para isso que está pronto. O bebê diz (obviamente que sem o
emprego de palavras): „Eu me sinto como se...‟ e é então que a mãe passa a acompanhar e
movimentar o bebê, ou lhe
oferece o aparato que o alimentará. Assim, o bebê torna-se capaz de finalizar a sentença:
„houvesse me transformado em um seio, no mamilo, no leite etc. etc.‟. E preciso dizer que o
bebê criou o seio, mas não poderia ter feito isso se a mãe não o acompanhasse com o seio
naquele momento. A comunicação feita ao bebê é: „Venha ao mundo criativamente. Crie o
mundo; é apenas o que você cria que é importante para você‟. Ao que se segue: „o mundo
está sob seu controle‟. A partir dessa experiência primeira de onipotência o bebê torna-se
apto para dar início à experiência de frustração, e até mesmo a um dia atingir o outro
extremo da onipotência, ou seja, adquirir o sentimento de ser uma sim ples gota no oceano,
em um oceano que já existia antes mesmo dele haver sido concebido, concebido por pais
que têm prazer um com o outro. Não é sendo Deus que os seres humanos atingem a
humildade própria à individuali dade humana?”
[ between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and Contrasted”, 1968, pp.
100-1 01]
9 O prazer materno con fiável
A apresentação do objeto operada pela mãe depende de sua estabilidade e confiança. Em
um de seus mais importantes trabalhos, PrimitiveEmotjonaj Development (1945),
Winnicott apresenta um de seus famosos paradoxos: “E apenas através da monotonia que
uma mãe pode ter êxito em aumentar sua riqueza”. E essa repetição da confiança que
engendra o ambiente de holding. Contudo, “monótono” aqui não quer significar estagnação.
O prazer que a mãe tem em seu bebê constitui-se em um aspecto essencial de seu holding.
“... sinta prazer! Sinta prazer se achando importante. Sinta prazer permitindo que outras
pessoas cuidem do mundo enquanto você produz um novo mem bro para ele. Sinta prazer
na transformação e na paixão por si mesma. O bebê é parte de você. Sinta prazer com a
forma com que seu marido se sente respon sável pelo seu bem-estar e o do seu bebê. Sinta
prazer descobrindo novas coi sas a seu respeito. Sinta prazer com o direito que nunca teve
de fazer aquilo que achasse ser bom. Sinta prazer aborrecendo-se com o bebê que chora e
gri ta pedindo seu generoso leite. Sinta prazer todas as formas de sentimentos femininos
que você jamais pôde expor a um homem. Particularmente sei que você terá prazer com
todos os sinais que pouco a pouco surgirão de que o bebê é uma pessoa, bem como
daqueles que irão fazê-la reconhecida como uma pessoa pelo bebê.
Sinta prazer com tudo isso para seu próprio bem. Esse prazer advindo do emaranhado que é
o cuidado do bebê é de vital importância do ponto de vista da criança, O bebê não quer
receber a alimentação correta no momento corre to, mas alimentado por alguém que tem
prazer em alimentar seu filho. O bebê prefere a maciez das roupas, e a água do banho deve
estar na temperatura ade quada. O que não pode ser admitido é o prazer que a mãe tem com
as roupas e em banhar seu bebê. Se você tiver prazer em tudo isso é como se o sol despon
157
tasse para o bebê. O prazer materno tem que estar presente, de outra forma todo o esforço
foi em vão, inútil e mecânico.”
[ Baby as a Going Concern”, 1949, pp. 26-27]
O prazer da mãe também está relacionado a sua capacidade de aproveitar a vida, a partir de
suas interações sociais, longe do bebê. Se a preocupação materna primária vai desva
necendo-se, em certo grau ela prossegue como antes. Isso vem a ser de grande importân cia
para o bebê, já que as separações de sua mãe dão-se por meio do conhecimento incipiente
do bebê de suas necessidades pessoais (ver PREOCUPAÇÃO: 8; DEPENDÊNCIA: 6, 7).
@@@ “A gratificação tida no estágio de dependência relativa é que o bebê passa a ter de
alguma forma consciência da dependência. Quando a mãe afasta-se por alguns instantes
além do limite de tempo que permita a crença em sua sobrevi vência, surge a ansiedade, o
primeiro sinal de que o bebê possui um entendi mento. Anteriormente a isso, se a mãe
estiver distante, o bebê fracassa em beneficiar-se da sua capacidade especial de repelir as
invasões, e o desenvol vimento fundamental da estrutura egóica não consegue ser
estabelecido satis fatoriamente.
O estágio seguinte ao que de certa forma o bebê sente a necessidade da mãe é aquele em
que o bebê passa a entender em sua mente que ela é necessária.
@@@ Pouco a pouco a necessidade de uma mãe real (na saúde) torna-se algo aterrador e
realmente terrível, de modo que as mães não apreciam deixar seus filhos. Sacrificam-se
muitíssimo em vez de provocar aflição, aversão e desilu são no decorrer dessa fase de
necessidades especiais. Esta fase estende-se (aproximadamente) dos seis meses aos dois
anos de idade.”
[ Dependence towards Independence in the Development ofthe Individual”, 1963, p. 88]
@@@ Winnicott sublinha que o melhor ambiente de holding é aquele em que uma
determinada pessoa — preferivelmente a mãe biológica — é responsável pelo bebê até a
idade aproxi mada de dois anos. Com essa idade a criança está preparada para lidar com a
@@@ perda e com os diferentes ambientes que proporcionam cuidados. Entretanto, a
criança esforça-se para elaborar aquilo que é real e o que não é real. A função da mãe é,
então, facilitar esse esforço apresentando o mundo em “pequenas doses”, enquanto
testemunha os intensos sentimentos da criança em crescimento, que são elaborados ao
brincar (ver BRINCAR: 3).
@@@ “Para a criança pequena, e ainda mais para o bebê, a vida constitui-se em uma série
de intensas experiências terríveis. Podemos perceber o que ocorre quan do interrompemos
uma brincadeira; de fato é melhor avisar antes, de forma que a criança seja capaz de levar a
brincadeira a algum final e tolerar a interfe rência. Um brinquedo presenteado por um tio ao
menino é um pedaço do mundo, que se for ofertado da forma apropriada, no momento
apropriado, pela pessoa apropriada, ganha uma importância tão grande para a criança que
somos obrigados a compreender e admitir.”
[ World in SmaIl Doses”, 1949, p. 70]
As diferenças colocadas entre uma realidade externa compartilhada e uma realidade interna
pessoal fazem parte daquilo que a criança elabora. Os adultos, contudo, admi tem apenas o
brincar que diz respeito ao real e ao imaginado.
@@@ “O mundo que compartilhamos com a criança é também o seu mundo imagi nário,
por isso ela é capaz de vivê-lo tão intensamente. A razão para tal é que não insistimos, ao
lidarmos com crianças dessa faixa etária, em uma percep ção precisa do mundo externo, Os
pé da criança não precisam estar firme mente plantados na terra. Se uma menininha quiser
voar não podemos dizer apenas „as crianças não voam‟. Em vez disso a ergueremos sobre
nossas cabe ças e a colocaremos no alto do armário para que sinta que voou como voa um
pássaro em direção a seu ninho.
Logo a criança descobrirá que voar não é algo mágico. Provavelmente em sonho o vôo
mágico através ar possa ser conservado de alguma forma, ou pelo menos haverá um sonho
onde são dados largos passos. Certos contos de fadas, como o da „Bota de Sete Léguas‟, ou
do „Tapete Voador‟, fornecem uma importante contribuição dos adultos a este tema. Aos
dez anos ou mais a crian ça dá grandes saltos na tentativa de saltar mais longe e mais alto
do que as outras. E isso a única coisa que restará, com exceção dos sonhos, das sensa ções
tremendamente penetrantes associadas à idéia de voar, surgida natural mente por volta da
idade de três anos.
@@@ O ponto fundamental é que não exigimos realidade da criança, e espera mos que não
tenhamos que exigi-la nem quando tiver cinco ou seis anos de idade, pois, se tudo correr
bem, nessa idade ela terá um interesse científico pelas coisas que nós, adultos, chamamos
de mundo real. Este mundo real tem muito a oferecer, já que sua aceitação não implica a
perda da realidade do mundo pessoal imaginário ou interno.
@@@ Para a criança pequena é legítimo o mundo interno estar tanto fora como dentro. Por
isso ingressamos no mundo imaginário da criança ao brincarmos com seus jogos e tomando
parte de outras maneiras de suas experiências ima ginárias.”
[ in Smal] Doses”, pp. 70-71]
Embora esteja bastante claro que Winnicott refere-se aqui à capacidade do adulto de
interagir com a criança no brincar, é igualmente importante, no devido tempo, que o adulto
tenha a exata noção do que é e do que não é real:
@@@ “Tomemos um menininho de três anos. Ele é alegre, brinca o dia todo só ou com
outras crianças. E capaz de sentar-se à mesa e comer como comem os adultos. Durante o
dia ele fica satisfeito percebendo a diferença entre aquilo que chamamos as coisas reais e a
imaginação da criança. Mas do que ele gosta na noite? Dorme, e sem dúvida sonha. Por
vezes acorda com um grito pene trante. A mãe pula da cama, entra no quarto, acende as
luzes tomando seu filho nos braços. Ele está bem? Pelo contrário; ele grita: „Vá embora,
sua bruxa! Eu quero a mamãe‟. Seu mundo onírico transformou-se naquilo que chama mos
o mundo real. A mãe aguarda por vinte minutos ou mais incapaz de fazer qualquer coisa,
pois para a criança ela é uma bruxa. Repentinamente ele envolve seu pescoço com os
braços e a abraça como se ela houvesse retornado, e antes que ele pudesse falar-lhe a
respeito do cabo da vassoura adormece, de modo que sua mãe pode colocá-lo de volta na
cama e retornar ao seu leito.”
[ in Small Doses”, p. 71]
A mãe é capaz de aguardar e compreender intuitivamente que a criança está situada entre a
vida de vigília e a onírica.
@@@ “Das mais variadas formas o claro entendimento que vocês têm daquilo que é e
daquilo que não é real auxilia a criança, pois ela pouco a pouco vai compre endendo que o
mundo não é aquilo que ela imagina, e que aquilo que ela imagina não corresponde ao
@@@ mundo. Um precisa do outro. Vocês têm conheci mento de qual é o primeiro objeto
que seus filhos amam: um pedaço do cober tor ou um brinquedo flexível. Para o bebê isso é
quase parte dele próprio. Se ele lhe for retirado ou lavado o resultado será desastroso.
Quando o bebê passa a jogar estas e outras coisas fora (esperando que sejam apanhadas e
retornem, obviamente) saberão que é chegado o tempo em que o bebê permite que vocês se
afastem e retornem.”
10 A função especular da mãe
[ in Small Doses”, p. 73]
Em Mirro r-Role of Mother and Family in Chi!d Development, texto de 1967, Winnicott
desen volve a idéia do que sejam as funções maternas. Sua principal tese apresentada ali é
que, a fim de olhar criativamente e ver o mundo, o indivíduo antes de tudo deve ter
internali zado a experiência de ter sido olhado. Esta experiência dá-se naturalmente nas
primeiras semanas da relação mãe-bebê. O “precursor do espelho é o rosto da mãe”.
Não há nada novo naquilo que Winnicott escreve a respeito do bebê ver a si mesmo ao
olhar para sua mãe. O que é verdadeiramente inovador nesse texto é que o bebê depende
das respostas faciais da mãe quando olha seu rosto para que possa formar seu próprio
sentimento de self.
@@ “O que o bebê vê ao olhar para o rosto da mãe? Sugiro que, normalmente, o que o
bebê vê é a si próprio. Em outras palavras, a mãe olha para o bebê e aquilo que ela parece
relaciona-se com aquilo que ela vê. Tudo isso é facil mente aceito. Mas indago se isso que é
naturalmente tão bem feito pelas mães ao cuidar de seus bebês deve ser aceito. Vou direto
ao ponto com o caso do bebê sobre o qual é refletido o humor da mãe, ou pior, a rigidez de
suas defe sas. Em um tal caso o que é visto pelo bebê? Primeiramente sua capacidade
criativa começa a atrofiar, e de um modo ou de outro procura por outras for mas de retorno
do ambiente... Nesse momento o rosto da mãe não se apresen ta como um espelho. A
percepção toma o lugar da apercepção. A percepção ocupa o lugar daquilo que deve ser o
princípio de uma importante troca com o mundo, um processo de mão-dupla em que o auto-
enriquecimento alterna-se com a descoberta de um significado para o mundo ao ver as
coisas.”
“Apercepção”, o termo empregado por Winnicott para nomear a experiência subjetiva do
bebê de estar fundido à mãe, nesse caso, envolve a relação com os objetos subjeti vos (ver
SER: 3). Como conseqüência, por apercepção entende-se ver a si próprio ao ser visto pela
mãe. A “percepção” tem sua origem a partir da apercepção, e refere-se à capacidade de ver
o conjunto dos objetos, o que é também a capacidade de estabelecer uma diferenciação
entre eu e não-eu. Se a percepção surgir prematuramente por meio da incapacidade da mãe
de oferecer uma resposta ao rosto do bebê, ele encontrará maneiras para que tal aconteça,
mas em detrimento de seu sentimento de self. Esse tipo de falha materna acarreta no bebê
um desenvolvimento egóico prematuro.
“Alguns bebês, atormentados por esta forma de falha materna relativa, examinam o
semblante materno inconstante numa tentativa de adivinhar qual é o humor da mãe, da
mesma forma com que investigamos o tempo. Rapidamente o bebê aprende a fazer um
prognóstico: „Agora posso esquecer do humor da mãe e ser espontâneo, mas a qualquer
momento o seu rosto se enrijecerá ou ela será domi nada pelo seu humor, e minhas
necessidades pessoais serão deixadas de lado, caso contrário meu self central sofrerá algum
prejuízo‟... Se o rosto materno for impassível, o espelho passa a ser algo a ser olhado, mas
não a ser examinado.”
[ of Mother”, p. 11 3]
Winnicott percebe existir uma continuidade na passagem da apercepção à percepção:
“Ao olhar sou visto, então existo.
Agora tenho como olhar e ver.
Agora olho com criatividade, e o que apercebo também percebo.
Mas é bem verdade que procuro não ver aquilo que não está lá para ser visto (a menos que
esteja exausto).”
[ ofMother”, p114]
Aquele bebê que “agora tem como olhar e ver” é um afortunado por ter uma mãe que
também “tem como olhar e ver”, e que desencadeia um processo de conhecimento de seu
bebê. Se os gestos espontâneos do bebê (que são definidos por Winnicott como o
verdadeiro se!f em ação) tiverem uma resposta positiva, irão encorajar o bebê a desen
volver um sentimento de self (ver SELF: 9). Winnicott transpôs essa interação para o
âmbito analítico:
“Esse vislumbre que o bebê e a criança têm do sélf a partir do rosto da mãe, e
posteriormente do espelho, nos oférecem uma forma de encarar a análise e a tarefa
psicoterapeutica. A psicoterapia não éxonstituída por interpretações inte ligentes nem
adequadas; de uma maneira geral é um retorno dado a longo prazo ao paciente daqui lo que
ele nos traz. E ur derivado extremamente complexo do rosto que reflete o que está lá para
ser visto. Gosto de pensar em meu trabalho dessa forma. Se o exerço suficientemente bem,
o paciente chegará a descobrir o seu próprio sei!, podendo existir e sentir-se real. Sentir-se
real é mais do que existir; é encontrar um modo de existir por si mesmo e de relacionar-se
com os objetos por conta própria, e de possuir um seif que se recolhe para relaxar.”
[ of Mother”, p. 11 7]
1
[ of Mother”, pp. 112-1131
161
Winnicott afirma que o ato de refletir é algo um tanto penoso, mas o que realmente coloca-
se como essencial é o “ser visto”.
“Não desejaria dar a impressão de que refletir aquilo que é trazido pelo paci ente constitui-
se em uma tarefa fácil. Não é algo fácil, e é emocionalmente exaustivo. Mas temos nossas
recompensas. Mesmo quando não atingem a cura, nossos pacientes são gratos a nós por vê-
los como são, o que nos propor ciona uma enorme satisfação.”
@@@ 11 A importância do processo de desilusão
Pelo fato de a mãe reaver seu sentimento de self, assim emergindo do estado de preocu
pação materna primária, ela “desadapta-se” e “falha” (ver DEPENDÊNCIA: 5). Isto
participa do processo de desilusão do bebê, e deve ocorrer para que um desenvolvimento
saudá vel seja desencadeado.
Ao longo de toda a obra de Winnicott percebe-se a importância conferida à ilusão inerente
à relação precoce mãe-bebê. Por essa razão, o valor posto sobre o processo de desilusão é,
por vezes, perdido. Entretanto, com bastante frequência, refere-se à neces sidade real do
bebê de ser desiludido, como também de sentir-se desapontado (ver
DEPRESSÃO: 3).
O bebê só é capaz de alcançar o final do processo de desilusão sejá experimentou a ilusão
de ser Deus, o criador do mundo. Ele é desiludido ao despertar de sua ilusão, ao
compreender que verdadeiramente não o é. Se a ilusão tiver um término apressado, ou seja,
antes de o bebê estar preparado para reconhecer este fato, provavelmente, ele sofrerá um
trauma.
Em um curto trabalho intitulado Early Disiliusion, de 1939, Winnicott cita o caso de um
paciente seu que passou por uma desilusão muito precoce quando bebê. A instala ção da
desilusão em um estágio muito precoce é traumática.
@@@ Contudo, “traumatizar” gradualmente faz parte da função de uma mãe sadia:
“Conseqüentemente existe um aspecto normal no trauma. A mãe é sempre „traumatizada‟
no bojo da adaptação. E dessa forma que o bebê faz a passagem da dependência absoluta
para a dependência relativa. Porém, o resultado não é o mesmo de um trauma, pois a
habilidade da mãe de sentir a capacidade do bebê, minuto após minuto, emprega novos
mecanismos mentais, O sentimen to de não-eu que o bebê apresenta depende da atuação da
mãe nesse campo do cuidado materno. Os pais atuam conjuntamente, fazendo com que a
famí lia opere como uma unidade, o que dá continuidade ao processo de desilusão da
criança.”
[ Concept of Trauma in Relation to the Development
of the Individual within the Family”, 1965, p. 146]
@@@ Uma outra maneira de expor isso utilizando-se da linguagem de Winnicott é que a
mãe falha e passa a corrigir essas falhas, o que paradoxalmente ensina ao bebê e à criança o
significado da confiança materna:
“O bebê nada sabe a respeito da comunicação, a não ser dos efeitos da falta de confiança. E
quando se estabelece a diferença entre a perfeição mecânica e o amor humano. Os seres
humanos sempre falham: no decorrer dos cuidados comuns a mãe tenta o tempo todo
corrigir suas falhas. Essas falhas relativas, com a imediata reparação, indubitavelmente
somam-se finalmente à comuni cação a fim de que o bebê venha a conhecer o que é o
sucesso. Uma adapta ção bem sucedida, portanto, origina o sentimento de segurança, o
sentimento de ser amado. Como analistas temos pleno conhecimento desse fato, pois
falhamos sempre, esperamos e nos zangamos. Se sobrevivermos, seremos usa dos. Existem
incontáveis falhas que são seguidas dos cuidados que corrigem aquilo que acaba por
transformar-se na comunicação do amor. Mas de fato existe um ser humano ali para cuidar.
Quando a falha não é corrigida no tem po exigido, em segundos, minutos ou horas,
empregamos o termo privação. A criança privada é aquela que, após experimentar a
correção dessas falhas, vive uma falha que não é corrigida. E então que o empenho da
criança cria as con dições necessárias para que a correção das falhas uma vez mais dite um
mode lo para sua vida.”
[ between Infant and Mother”, p. 98]
Obviamente, a correção das falhas é absolutamente distinta daquilo que Winnicott
denomina de “falhas totais”, que acabam conduzindo às agonias primitivas e às ansie dades
impensáveis.
@@@ 12 A mãe que não é suficientemente-boa
Aquelas mães incapazes de proporcionar o ambiente que o bebê necessita para um
desenvolvimento sadio podem ser divididas (de forma artificial) em três diferentes
categorias:
• a mãe psicótica;
• a mãe que não pode se entregar à preocupação materna primária;
• a mãe atormentadora.
“A mãe psicótica pode muito bem ser capaz de suportar desde o início as demandas do
bebê, porém não é capaz de separar-se dele a fim de que cresça afastado de seu olhar (ver
AMBIENTE: 3).
A mãe que não ingressa naturalmente no estado de preocupação materna primá ria — talvez
por achar-se por demais deprimida ou preocupada com algo — posterior- mente pode
procurar um terapeuta para seu filho, o que muito provavelmente é a busca de uma
compensação para a perda precoce.
A mãe atormentadora tem, segundo Winnicott, o pior dos efeitos sobre a saúde mental do
bebê, já que a natureza errante do ambiente viola o coração do sentimento de se/f (ver
COMUNICAÇÃO: 10; PSIQUE-SOMA: 3).
Algumas técnicas de maternagem suficientemente-boa são continuamente trans postas por
Winnicott para o setting analítico, de maneira que possa ser feito um uso
162
positivo do paradigma m suficientemente-bom. Para o paciente que viveu minimamente
uma experiência suficientemente-boa no passado:
“o analista é a primeira pessoa em sua vida a fornecer certas bases ambientais. No
tratamento de um paciente desse tipo, tudo que faz parte da técnica analíti ca demonstra ser
de vital importância...”
(ver ÓDIO: 4)
]“Hate in the Countertransference”, 1947, p. 198]
Referências
1939 Early Disillusion [
1 947 Hate in the Countertransference [
1949 Birth Memories, Birth Trauma and Anxiety [
1949 The Baby as a Going Concern [
1949 Close-up of Mother Feeding Baby [
1947 Further Thoughts on Babies as Persons ]W7]
1949 The World in Small Doses ]W7]
1952 Letter to Roger Money-Kyrle [ 7]
1953 Transitional Objects and Transitional Phenomena ]W6]
1956 Primary Maternal Preoccupation [
1957 Integrative and Disruptive Factors in Family Life [
1957 The Mother‟s Contribution to Society [
1960 Ego Distortion in Terms of True and False Self [
1960 The Relationship of a Mother to Her Baby at the Beginning [
1960 What lrks? [
1963 From Dependencetowardslndependence inthe Developmentofthe Individual [
1965 The Concept of Trauma in Relation to the Development of the Individual within the
Family ]W19]
1966 The Beginning ofthe Individual ]W1 6]
1967 The Concept of a Healthy Individual [ 4]
1968 Breast-Feeding as Communication [
1968 Comniunication between Infant and Mother, and Mother and Infant, Compared and
Contrasted [ 6]
1969 The Building up of Trust [
1971 Mirror-Role of Mother and Family in Child Development [ 0]
1

FENOMENOS TRANSICIONAIS
1 Uma tripla exposição sobre a natureza humana
2 O verdadeiro objeto não-eu é uma posse
3 Os objetos transicionais e a passagem para o simbolismo
4 A função do objeto transicional
5 A experiência cultural
6 A amizade e os grupos
7 O espaço potencial e a separação
O conceito de fenômeno transicional diz respeito a uma dimensão do viver que não
depende nem da realidade interna, nem da realidade externa; mais pro priamente, é o
espaço em que ambas as realidades encontram-se e separam o interior do exterior.
Winnicott emprega diferentes termos para referir-se a essa dimensão — tercefra área, área
intermediária, espaço potencial, local de repouso e localização da experiência culturaL
Em termos de desenvolvimento, os fenômenos transicionais existem desde o iní cio, mesmo
antes do nascimento, em relação à díade mãe-bebê. É aqui que está locali zada a cultura, o
ser e a criatividade.
Ao dar início à divisão entre eu e não-eu, abandonando o estágio de dependência absoluta
@@@ para ingressar no estágio de dependência relativa, o bebê faz uso do objeto
transicionaL Esta passagem necessária ao desenvolvimento conduz ao uso da ilusão, ao uso
dos símbolos e ao uso de um objeto.
Os fenômenos transiciOnais estão inevitavelmente associados ao brincar e à cria ti vidade.

1 Uma tripla exposição sobre a natureza humana


No período anterior a 1951, quando Winnicott publicou seu estudo seminal Transitional
Objects and Transitional Phenomena, não havia na literatura psicanalítica qualquer relato
referente ao hiato existente entre o interior e o exterior, O conceito freudiano de uma
seqüência do desenvolvimento do princípio do prazer que se transforma em princípio da
realidade ofereceu sua contribuição para uma compreensão da transição que o bebê humano
tem que transpor, sem que jogasse luz sobre o processo transicional em si. O enfoque
apresentado por Melanie Klein do mundo interno e das fantasias do bebê, na opinião de
Winnicott, parece não dar conta do impacto provocado pelo mundo exteri or em sua
percepção. Muito foi pensado no que toca ao desenvolvimento humano quando o bebê
emerge de seu estado subjetivo e torna-se mais objetivo e capaz de pen sar simbolicamente.
Após trabalhar por mais de trinta anos com mães e bebês, e após cerca de vinte anos de
trabalho analítico, Winnicott encontrava-se em uma área inter mediária — uma área que
não é inteiramente subjetiva e nem objetiva.
“É geralmente reconhecido que uma exposição da natureza humana torna-se inadequada
quando apresentada em termos de relações interpessoais, mesmo quando a elaboração
imaginativa da função, o conjunto da fantasia, tanto consciente como inconsciente, inclui o
inconsciente reprimido. Existe uma outra maneira de descrevermos as pessoas, que tem sua
origem nas pesquisas realizadas no decorrer das últimas duas décadas, que sugere que para
cada indivíduo que tenha atingido o estágio de ser uma unidade (com uma membra na
limitadora, um exterior e um interior), existe uma realidade interior a esse indivíduo, um
mundo interno que pode ser rico ou pobre, estar em paz ou em estado de guerra.
Sustento que, se há necessidade para esta dupla exposição, existe também a necessidade de
@@@ uma terceira; existe uma terceira porção na vida do ser humano, uma porção a qual
não podemos ignorar, uma área intermediária de experimentação, para a qual a realidade
interna e a vida externa oferecem sua contribuição. E uma área não explorada por não
despertar nenhum interesse, a não ser que existe como um local de repouso para o indivíduo
engajado na eterna tarefa humana de manter separadas as realidades interna e externa que
ainda estão inter-relacionadas.”
[ Objects”, p. 230]
Winnicott criou esta terceira área a fim de conseguir vislumbrar uma relação entre o uso
que o bebê recém-nascido faz do punho, dos dedos e do polegar, e o uso que os bebês com
mais idade (com algo em torno de 3 a 12 meses) fazem do ursinho, da boneca, ou de algum
brinquedo macio, algumas vezes também sugando o polegar ou o dedo.
“Existe uma ampla variação em uma seqüência de acontecimentos que tem início com o
bebê recém-nascido levando o punho à boca, o que acaba por levá-lo ao ursinho, a uma
boneca ou a um brinquedo macio, ou então a um brinquedo mais resistente.
2
É evidente que algo se faz importante aqui além da excitação oral e da satisfação, embora
estas sejam a base de tudo mais. Muitas outras coisas tam bém importantes podem ser
estudadas, como:
A natureza do objeto.
A capacidade do bebê de reconhecer o objeto como não-eu.
A localização do objeto - exterior, interior, fronteiriço.
A capacidade do bebê de criar, imaginar, inventar, dar origem, produzir um objeto.
O início de um tipo afetuoso de relação de objeto.”
2 O verdade fro objeto não-eu é uma posse
O objeto externo adotado pelo bebê ou pela criança é a sua primeira posse. Em outras
palavras, do ponto de vista do observador, constitui-se no símbolo da passagem que o bebê
faz da experiência de adaptação da mãe as suas necessidades durante o período de
dependência absoluta, para a dependência relativa, onde passa a ver a mãe como não sendo
parte dele mesmo. Imagina que agora precisa erguer-se em seus dois pés, por assim dizer
(ver DEPENDÊNCIA: 1, 6). Embora o objeto externo represente a totalidade dos
componentes da maternagem, retrata também a capacidade que o bebê possui de criar
aquilo que necessita. Esta é a maneira pela qual o objeto transicional transfor ma-se na
primeira posse: verdadeiramente é seu, pois ele o criou (ver CRIATIVIDADE: 2;
DEPENDÊNCIA: 6).
Cada bebê em particular encontra uma maneira única de criar sua primeira posse:
“Considerando o caso de alguns bebês, o polegar é levado à boca, ao mesmo tempo em que
os dedos acariciam o rosto através de movimentos de pronação e supinação do antebraço. A
boca torna-se ativa em relação ao polegar, mas não em relação aos dedos. Os dedos que
acariciam o lábio superior, ou algu ma outra parte, podem ser ou tornar-se mais importantes
do que o polegar que preenche a boca. Além disso, podemos encontrar essa atividade de
acariciar isoladamente, sem que haja uma união polegar-mão tão evidenciada.
Na experiência normal nos deparamos com uma das seguintes possibilidades o que dificulta
uma experiência auto-erótica como a de sugar o polegar:
1. com a outra mão o bebê leva um objeto externo, que pode ser um pedaço do lençol ou do
cobertor, à boca juntamente com os dedos, ou
2. de uma maneira ou de outra ele segura e suga um pedaço de tecido, ou então não o suga
realmente. Os objetos naturalmente usados incluem uma pequena toalha e (mais tarde)
lenços, dependendo do que esteja imediata e seguramente disponível, ou
3. o bebê começa, desde os primeiros meses, a arrancar pedaços de lã, reu ni-los e usá-los
na parte da atividade em que acaricia. Com menor fre qüência, a lã é engolida, mesmo que
cause problemas, ou
4. mordidas acompanhadas por sons de „mum-mum‟, balbucios, ruídos anais, as primeiras
notas musicais, e assim por diante.”
[ Objects”, pp. 231-2321
r
[ Objects”, pp. 229-2301
r
@@@ O objeto transicional não tem a necessidade de encarnar um objeto real; ele pode
ser...
“... uma palavra ou melodia, ou um maneirismo, que adquire uma importância vital para o
uso do bebê no momento em que vai dormir. E uma defesa contra a ansiedade, em especial
a ansiedade do tipo depressivo.”
[ Objects”, p. 2321
Mães e pais intuitivamente apreciam a importância que esses objetos têm para seus filhos.
“Os pais começam a perceber seu valor e os levam junto quando viajam. A mãe deixa que
fique sujo e mesmo malcheiroso, tendo o conhecimento de que se o lavar introduzirá uma
quebra de continuidade na experiência do bebê, uma quebra que pode destruir o significado
e o valor que o objeto possui para ele.”
[ Objects”, p. 2321
Os pais parecem saber que para o bebê o objeto transicional é verdadeiramente uma parte
dele, como o é a boca ou o seio:
“... os pais respeitam este objeto mais do que os ursinhos, bonecas e brinquedos que se
seguem imediatamente a eles. O bebê que perde o objeto transicional perde ao mesmo
tempo a boca e o seio, a mão e a pele da mãe, a criatividade e a percepção objetiva. O
objeto é uma das pontes que tornam possível o contato entre a psique do indivíduo e a
realidade externa.”
[ Influences and the Maladjusted Child”, 1955, p. 149]
Winnicott observa que, independentemente da escolha do objeto, não existe diferença na
forma com que meninos e meninas usam o objeto transicional:
@@@ “Pouco a pouco, na vida do bebê, os ursinhos, bonecas e brinquedos mais
resistentes são adquiridos. Os meninos, até certo ponto, tendem a usar objetos mais
resistentes, enquanto que as meninas apresentam a tendência de avançar no sentido da
aquisição de uma família. E importante notar, entretanto, que não há uma diferença
substancial entre meninos e meninas no uso que fazem da posse do não-eu original, que
chamo de objeto transicional.”
[ Objects”, p. 2321
O objeto transicional é normalmente nomeado pela criança assim que adquire o uso do
som, havendo freqüentemente uma palavra usada pelo adulto parcialmente incorporada
a ele. Por exemplo, é possível que “baa” seja um nome, tendo o “b” se originado do uso
que o adulto faz da palavra “bebê” ou “urso”. Embora a aquisição da linguagem seja rele
vante aqui, é a criação de uma palavra particular pela criança que Winnicott enfatiza.
* N. do T. Bear, em inglês.

Existem diversos outros aspectos referentes ao objeto transicional, todos fazendo parte do
que Winnicott descreve como “qualidades especiais da relação”. Ele elenca sete destas
qualidades:
“1. O bebê adquire direitos sobre o objeto, e concordamos com isso. Entretan to, uma certa
abolição da onipotência no início é um dos fatores.
2. O objeto é afetuosamente afagado, do mesmo modo que é amado e muti lado de uma
forma excitada.”
[ Objects”, p. 233]
Winnicott emprega a palavra “afeição” inúmeras vezes referindo-se ao uso que o bebê faz
do objeto transicional. “Afetuosamente afagado, do mesmo modo que é amado de uma
forma excitada”, diz respeito aos estados de tranqüilidade e de agitação do bebê em relação
a sua mãe. Nesse estado do desenvolvimento ele tem que se debater inter namente com a
experiência da mãe-objeto, a quem ama de uma forma excitada, e com a mãe-ambiente, que
é a mãe dos momentos de tranqüilidade. O objeto transicional pode ser usado pelo bebê,
através de uma atuação, a fim de relacionar-se com estas duas mães e de reuni-las (ver
AGRESSÃO: 6, 9; PREOCUPAÇÃO: 3; DEPENDÊNCIA: 6, 7). Isto aplica-se aos pontos
3 e 4.
“3. Ele jamais deve mudar, a não ser que seja mudado pelo bebê.
4. Ele deve sobreviver ao amar pulsional, ao odiar e, se for um dos fatores, à agressão pura.
5. Entretanto, ele deve parecer ao bebê que lhe oferece calor, que se move, que possui uma
textura, ou que faz algo que indique que tem uma vitalida de ou realidade próprias.
6. De acordo com nosso ponto de vista, ele provém do exterior, mas não do ponto de vista
do bebê. Ele nem mesmo é oriundo do interior; não é uma alucinação.
7. Seu destino é pouco a pouco permitir que seja descatequizado, de forma
que, com o passar dos anos, torne-se nem tão esquecido, mas relegado ao
limbo. Com isso quero afirmar que, na saúde, o objeto transicional não
é „introduzido‟, nem o sentimento referente a ele sofre repressão. Não é
esquecido e não é lamentado. Perde o significado, o que ocorre em função
dos fenômenos transicionais tornarem-se difusos, espalhados por todo
o território intermediário localizado entre a „realidade psíquica interna‟
e o „mundo externo como é percebido por duas pessoas‟, ou seja, por todo
o campo da cultura.”
[ Objects”, p. 2331
Este último item faz do objeto transicional um objeto único não apenas para a criança em
sua jornada através do desenvolvimento, mas também para o desenvolvimento da teoria
psicanalítica. Até aqui, os objetos, para a psicanálise, eram internalizados ou per didos. Pela
primeira vez passa a existir um objeto que não é internalizado e nem perdi do mas, sim,
“relegado ao limbo”. Mas qual a razão para tal?
Uma vez que a transição da relação de objeto para o uso do objeto ocorra, o bebê não
necessita mais do objeto transicional; uma vez que sua tarefa, por assim dizer, encerrou-se.
Por enquanto, a criança pequena consegue estabelecer uma distinção
entre o eu e o não-eu e viver na terceira área, mantendo o interior e o exterior separa dos,
mas ainda inter-relacionados. Esta é a “difusão” e este é o “espalhamento”, de acordo com
a descrição de Winnicott, “por todo o campo da cultura”. Quinze anos mais tarde, por
ocasião das comemorações da conclusão da tradução feita por James Stra chey da obra
completa de Freud, Winnicott introduziu o tema da localização da cultura, que em 1967 deu
origem a um trabalho — The Location of Cultural Experience (ver
CRIATIVIDADE: 3; BRINCAR: 1, 2).
O uso que o bebê faz do objeto transicional e a habilidade dos pais em aceitar esse brincar
estão assentados sobre os alicerces já lançados pela relação precoce mãe-bebê
(ver SER: 1, 3; CRIATIVIDADE: 1; BRINCAR: 2).
@@@ 3 Os objetos transicionais e a passagem para o simbolismo
Do ponto de vista do observador, o objeto transicional é um símbolo de um aspecto da
experiência de ambiente do bebê. No entanto, isso não significa que ao usar um objeto
transicional o bebê atinja a capacidade de usar os simbolos; ao contrário, ele está pres tes a
usar os símbolos. Deste modo, o objeto transicional aponta para a existência de um estágio
de transição do desenvolvimento, que parte da relação de objeto chegando até ouso do
objeto (ver AGRESSÃO: 10).
“É verdadeiro afirmar que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja) simbo liza algum
objeto parcial, tal como o seio. Contudo, a questão que se coloca não é tanto seu valor
simbólico, mas sua realidade. Não ser o seio (ou a mãe) é tão importante quanto o fato de
representar o seio (ou a mãe).
Ao empregar o simbolismo, o bebê já está claramente estabelecendo uma distinção entre a
fantasia e o fato, entre os objetos internos e os objetos externos, entre a criatividade @@@
primária e a percepção. Porém o termo objeto transicional, segundo minha proposta, dá
espaço ao processo de tornar-se capaz de aceitar as diferenças e as similaridades. Acredito
que deva haver uso para um termo que nomeie as raízes do simbolismo eventualmente, um
termo que descreva a pas sagem operada pelo bebê da pura subjetividade para a
objetividade; parece-me que o objeto transicional (a ponta do cobertor etc.) é aquilo que
conseguimos perceber dessa jornada de progresso em direção à experimentação.”
1 Objects”, pp. 233-234]
O simbolismo, para Winnicott, é variável, dependendo do estágio do desenvolvimento em
que se encontra o bebê.
“Parece-me que o simbolismo pode ser apropriadamente estudado apenas no processo de
crescimento do indivíduo, e que possui, na melhor das possibili dades, um significado
variável. Por exemplo, se considerarmos a hóstia da Comunhão Sagrada, que simboliza o
corpo de Cristo, penso estar correto em dizer que para a comunidade católica romana ela é
seu corpo, ao passo que para a comunidade protestante ela é um substituto, um correlato.
De fato, em essência, não é realmente o próprio corpo. Entretanto, em ambos os casos, nos
deparamos com um símbolo.
Uma paciente esquizóide perguntou-me, após o Natal, se eu havia gosta do de comê-la no
festim. Eu a havia realmente comido ou isso pertencia ape nas à fantasia? Sabia que ela não
se satisfaria com nenhuma das alternativas. Sua cisão exigia uma dupla resposta.”
[ Objects”, p. 2341
Esta “dupla resposta”, devemos admitir, aponta para que Winnicott a havia comido tan to
em fantasia quanto em realidade, em um paralelo com a crença da transubstanciação da
Igreja Católica Romana.
@@@ 4 A função do objeto transicional
@@@ Inicialmente o bebê precisa acreditar ser o responsável pela criação do seio. Está
famin to, chora, e então o seio lhe é oferecido no momento apropriado, que é quando obtém
aquilo de que necessita. Tudo isso o faz acreditar que é ele o criador do seio. Esta é a ilusão
necessária (ver MÃE: 4). Uma vez que a ilusão tenha sido estabelecida, a função da mãe,
durante o período de dependência relativa que atravessa o bebê, é desiludi-lo. O bebê
começa a perceber objetivamente em lugar de aperceber subjetivamente (ver
DEPENDÊNCIA 6). Porém, — e isso é fundamental na teoria de Winnicott —, se o bebê
não houver passado por suficientes experiências de ilusão, não será capaz de perceber
objetivamente. Assim, a passagem envolvida na elaboração da diferença existente entre eu
e não-eu estará deturpada.
“Desde o nascimento... o ser humano está envolvido com o problema da rela ção entre
aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido. Na solução
deste problema não existe saúde para o ser humano que não teve um início suficientemente-
bom com a mãe. A área intermediária a que me refiro é a área concedida ao bebê que está
localizada entre a criati vidade primária e a percepção objetiva fundada no teste de
realidade. Os fenômenos transicionais representam os estágios iniciais do uso da ilusão,
sem os quais não existe significado para o ser humano na idéia de uma relação com um
objeto percebido pelos outros como externo a este ser.”
[ Objects”, p. 2391
Winnicott ilustra esta questão com dois gráficos. O primeiro demonstra como a apre
sentação do objeto pela mãe que está no estado de preocupação materna primária con duz à
ilusão de que o bebê criou aquilo de que necessita. O segundo apresenta como a área de
ilusão assume uma forma: o objeto transicional.
“Na figura 20 é dada uma forma à área de ilusão, a fim de ilustrar o que conside ro ser a
principal função do objeto transicional e dos fenômenos transicionais. O objeto transicional
e os fenômenos transicionais apresentam os seres huma nos ao que será sempre importante
para eles, isto é, uma área neutra de expe riência que não será contestada. A respeito do
objeto transicional podemos afirmar que se trata de uma questão de conformidade entre nós
e o bebê, ao
261
qual jamais formularemos a pergunta: „Foi você quem concebeu isso, ou isso lhe foi
apresentado desde o exterior?‟ O que é mais importante é que nenhuma decisão deve ser
esperada a esse respeito. A questão não deve ser formulada.”
[ Objects”, pp. 239-340]
Em um outro trabalho, The Deprived Child and How He Can Be Compensated for Loss of
Farnily Life (1950), escrito um ano antes do estudo sobre os fenômenos transicionais,
Winnicott acrescenta outras razões pelas quais a pergunta não deve ser formulada:
@@@ “... uma das dificuldades enfrentadas por todas as crianças está relacionada à
realidade subjetiva compartilhada com a realidade que pode ser objetivamen te percebida.
Entre o despertar e o adormecer, a criança salta de um mundo que é percebido para um
mundo autocriado. Numa posição intermediária, encontramos a necessidade de uma
infinidade de fenômenos transicionais: o território neutro. Descreveria este objeto tão
precioso dizendo que existe uma compreensão tácfta de que ninguém poderá alegar que
esta coisa real é uma parte do mundo, ou que ela foi criada pelo bebê. Ambas as coisas são
@@@ verdadei ras: o bebê a criou e o mundo a sustenta. Esta é a continuação da tarefa
inicial que a mãe comum possibilita a seu bebê empreender, quando, através de uma
adaptação ativa mais delicada, ela se oferece, talvez com seu seio, incontáveis vezes no
momento em que o bebê está preparado para criar algo como o seio que lhe é oferecido.”
]“Deprived Child”, pp. 143-1 44]
@@@ “Entre o despertar e o adormecer” ilustra claramente a condição desses dois mundos
tão diferentes entre si, o “interior” faz parte do sono e do sonho, do inconsciente e da
“realidade subjetiva”; já o “exterior” faz parte do ambiente e de uma “realidade com
@@@ partilhada” que é percebida conscientemente como não-eu. O objeto transicional
pode
então ser usado pela criança com a finalidade de interligar esses dois estágios, o que
contribui para a necessidade da criança de um objeto transicional, particularmente no
momento em que está indo dormir. Neste momento, a criança pequena já ingressou na área
intermediária, apesar de que, como aponta Winnicott, nenhum de nós concebe claramente a
luta da inter-relação entre o interior e o exterior.
“Supõem-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade jamais se completa, que nenhum ser
humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna com a realidade externa. O
alívio dessa tensão é oferecido por uma área inter mediária da experiência que não é posta
em dúvida (as artes, a religião etc.). Esta área intermediária está em continuidade direta
com a área do brincar da criança pequena que se „perde‟ ao brincar.”
[ Objects”, p. 2411
Os temas relacionados aos fenômenos transicionais desempenham um importante papel nos
escritos de Winnicott. Os capítulos de seu livro, P!aying and Reality, estão todos
associados a diferentes aspectos presentes nos fenômenos transicionais.
5 A experiência cultural
Em um dos capítulos Winnicott examina The Place Where We Live (1971):
“Quero examinar o lugar, e emprego essa palavra no sentido abstrato, onde estamos na
maior parte das vezes em que experimentamos a vida.”
[ Where We Live”, p. 1 04]
Aqui Winnicott estende a relação precoce mãe-bebê para a vida e o viver adulto. Olha para
dois extremos: o comportamento e a vida interior.
“Quando consideramos as vidas dos seres humanos, existem aqueles que escolhem pensar
superficialmente em termos de comportamento, de reflexos condicionados e
condicionamento; isso conduz ao que chamamos de terapia comportamental. Mas muitos de
nós que se cansaram de estar restritos ao comportamento ou à exterioridade observável da
vida das pessoas que, gos tando ou não, são motivadas pelo inconsciente. Em
contraposição, existem aqueles que enfatizam a vida „interior‟, que pensam que os efeitos
da econo mia e até da fome têm uma importância menor, se comparados à experiência
mística...
O que tento é situar-me entre esses dois extremos. Se olharmos para nos sas vidas, é bem
provável que descubramos que desperdiçamos tempo demais não com o comportamento
nem com a contemplação, mas em algum outro lugar. Pergunto: onde? Tentarei oferecer
uma resposta.”
[ Where We Live”, pp. 104-1051
Winnicott afirma que a literatura psicanalítica não fornece uma resposta à pergunta de onde
todos nós passamos nossas vidas do dia-a-dia.
Fig. 19. mother = mãe iflusion = ilusão infant= bebê
Fig. 20.
mother = mãe
transitional ohject = objeto transicional infant = bebê
263
@@@ “Por exemplo, o que fazemos ao ouvir uma sinfonia de Beethoven, ao visitar mos
uma galeria de arte, ao lermos Troilo e Cressida na cama ou ao jogarmos tênis? O que faz
uma criança ao sentar no chão com seus brinquedos sob a proteção de sua mãe? O que faz
um grupo de adolescentes ao participar de uma sessão de música popular?
Não é apenas uma questão do que estamos fazendo, mas sim de onde nós estamos (se é que
estamos em algum lugar). Utilizamos o conceito de interno e externo, mas queremos um
terceiro. Onde estamos quando estamos fazendo o que de fato fazemos a maior parte do
tempo, ou seja, desfrutando de nós mesmos?”
[ Where We Live”, pp. 105-1061
@@@ A resposta dada por Winnicott é que vivemos, na saúde, em uma zona
intermediária, a terceira área, o espaço transicional. Dependendo da cultura em que
nascemos, o prazer que perseguimos será obtido de diferentes maneiras: lendo, jogando
futebol, dançan do. Entretanto, a cultura primária é a relação precoce mãe-bebê (ver
CRIATIVIDADE: 3).
E ao perseguirmos essas atividades culturais que nossa auto-experimentação é realçada e
desenvolvida. Todas estas atividades oferecem sua contribuição para a quali dade de vida.
“... o brincar e a experiência cultural são coisas que valorizamos de uma manei ra toda
especial; elas reúnem o passado, o presente e o futuro; elas resgatam o tempo e o espaço.
Demandam e obtêm nossa atenção deliberada e concentra da, deliberada, porém sem que
exista demasiada deliberação na tentativa.”
[ Where We Live”, p. 1091
Marion Milner empenhou-se em estudar a terceira área da experiência ao longo de toda sua
obra. Suas idéias foram desenvolvidas paralelamente às de Winnicott. On Not Being Ah/e
to Paint (1950) é provavelmente sua maior contribuição ao conceito de fenômeno
transicional.
6 A amizade e os grupos
A afinidade egóica presente na relação mãe-bebê, onde o ser, a criatividade, a não-
integração e as experiências culturais estão localizados, é entendida por Winnicott como “a
matéria-prima com que é forjada a amizade” (The Capacity to BeAlone, 1958, p. 33). E a
partir do prazer obtido com a relação original com a mãe e o ambiente (pai, irmãos etc.) que
@@@ a habilidade de brincar e fazer amigos se torna possível.
“Assim como alguns adultos fazem com facilidade amigos e inimigos no traba lho,
enquanto outros ficam sentados esperando anos a fio, não tendo nada a fazer senão @@@
admirarem-se de ninguém querê-los, as crianças fazem amigos e inimigos ao brincarem,
mas não fazem facilmente amigos fora do brincar. O brincar oferece a organização para o
início das relações emocionais, possibili tando que os contatos sociais aconteçam.”
A habilidade em fazer amigos e manter a amizade está baseada na capacidade de estar só
(ver SÓ: 1,2). Na verdade, uma descrição da amizade, baseada na tese de Winnicott, requer
a capacidade de reter o amigo na mente, ao mesmo tempo que há o reconheci mento da
separação. A busca cultural no contexto das relações de amizade utiliza-se do espaço
transicional existente entre os indivíduos (ver BRINCAR: 7).
Partindo daí, Winnicott especula se a experiência altamente satisfatória dos fenô menos
transicionais poderia ser pensada em termos de um êxtase ou “orgasmo egói co”. Ele
pergunta:
“... se é importante apenas pensarmos no êxtase como um orgasmo egóico. Na pessoa
normal, uma experiência altamente satisfatória, como a que pode ser obtida assistindo a um
concerto, a uma peça teatral ou com uma amizade, pode merecer um termo como orgasmo
egóico, que chama nossa atenção para o clímax e para a importância do clímax.”
[ to Be Alone”, p. 35]
A expréssão “orgasmo egóico” não é apresentada especificamente por Winnicott com
o intuito de descrever o sentimento de júbilo, alegria e todos aqueles fatores envolvi dos no
viver criativo. Em 1960, Lacan faz referência a um aspecto do mesmo fenômeno
como jouissance, que posteriormente, em 1989, é retomado por Bolias em Forces ofDes
tiny:
“Jouissance constitui-se no direito inalienável que o sujeito tem ao êxtase, vir tualmente um
imperativo legal para perseguir o desejo.”
[ 1989a, pp. 19-20]
A perseguição da felicidade tem lugar no espaço transicional, onde a satisfação pode ou não
ser realizada. Se o desejo tem origem no verdadeiro self, existe uma maior chance de sua
realização ocorrer, assim como acontece com o “sentir-se real”.
Winnicott vê as buscas culturais como tendo lugar na terceira área através do brincar:
@@@ “... é o brincar que é universal. Como faz parte da saúde, o brincar facilita o
crescimento e, conseqüentemente, a saúde; o brincar conduz às relações de grupo; o brincar
pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; e, por fim, a psicanálise desenvolveu-
se como uma forma altamente especializada de brincar que está a serviço da comunicação
com os outros.
O brincar é a coisa mais natural. O fenômeno altamente sofisticado é a psicanálise.”
@@@ 7 O espaço potencial e a separação
[ A Theoretical Statement”, 1971, p. 41]
O bebê necessita de um bom começo por estar fundido com a mãe. Esta experiência, se
tudo correr bem, leva o bebê a confiar e crer em sua mãe, internalizando a experiência boa
de estar dentro dela, nascer para ela, e viver com ela. Desenvolvendo-se e emergin
[ Children Play”, 1942, pp. 144-1 45]
265
do do estágio de dependência absoluta, necessita repudiá-la como sendo um não-eu, a fim
de separar-se e compreender a diferença existente entre o interior e o exterior. Quando isso
ocorre, a mãe deve começar a desadaptar-se — isto é, lembrar-se de que possui suas
próprias necessidades — assim, desiludindo o bebê.
@@@ “A partir de um estado fusional com a mãe, o bebê ingressa em um estágio em que
já pode operar a separação entre mãe e se/à‟. A mãe é rebaixada ao nível de ter que adaptar-
se as suas necessidades (em função de sua recuperação de uma intensa identificação com o
bebê e por causa de sua percepção de sua nova necessidade, a necessidade que surge de ser
ela um fenômeno separado).”
1”Place Where We Live”, p. 107]
Winnicott compara este período ao momento na psicoterapia em que o paciente, havendo
experimentado a confiança, necessjta separar-se e obter autonomia.
“Da mesma forma que o bebê com a mãe, o paciente não pode tornar-se autôno mo, a não
ser em conformidade com a presteza do terapeuta em deixá-lo ir...”
[ Where We Live”, p. 1071
Winnicott coloca o paradoxo segundo o qual não existe algo como a separação, mas apenas
a ameaça de separação. Ele é baseado no mesmo paradoxo em que se baseia a capacidade
de estar só, ou seja, a experiência de estar só na presença da mãe. Nesse sentido, na fantasia
inconsciente, ninguém está eternamente verdadeiramente só, a menos que a continuidade
do ser tenha sido extremamente severa.
“Poderíamos dizer que com os seres humanos não ocorre a separação, apenas a ameaça de
separação; essa ameaça é máxima ou minimamente traumática de acordo com a experiência
dos primeiros afastamentos.
Perguntamo-nos como a separação entre sujeito e objeto, bebê e mãe, de fato ocorre, e
como ocorre com benefício para todos os implicados, na grande maioria dos casos? E na
impossibilidade da separação? (O paradoxo deve ser tolerado.)”
[ Where We Live”, p. 108]
Através da empatia da mãe com o bebê e do terapeuta com o paciente, o bebê/paciente é
capaz de internalização e de sentir-se a salvo em sua passagem da dependência à
autonomia. E apenas através dessa confiança que um espaço potencial começa a existir.
@@@ Winnicott propõe o paradoxo, segundo o qual o momento em que o bebê se separa
da mãe é o mesmo momento em que preenche o espaço potencial com o brincar e a expe
riência cultural.
“A confiança que o bebê deposita na segurança oferecida pela mãe e, conse qüentemente,
nas outras pessoas e coisas, torna possível a separação entre não-eu e eu. Ao mesmo tempo,
entretanto, podemos afirmar que a separação é evitada através do preenchimento do espaço
potencial com o brincar criativo, com o uso dos símbolos, e com tudo aquilo que
eventualmente seja acrescen tado à vida cultural.”
O “evitamento” a que Winnicott se refere é uma outra forma de descrever o fenômeno
interno, que é a relação com os objetos subjetivos. A autonomia, portanto, implica a
continuação da união experimentada na fantasia. O uso do objeto transicional pode ser
entendido como a ação de repúdio e internalização do primeiro objeto do bebê.
@@@ Este conceito de Winnicott, que consiste em não existir separação, apenas a amea ça
de separação, não é explorado em riqueza de detalhes, mas é fundamental para o conceito
de fenômeno transicional, uma vez que o espaço transicional separa e reúne.
E um paradoxo que deve ser tolerado, e não solucionado.
@@@ “O objeto transicional e os fenômenos transicionais introduzem os seres huma nos
naquilo que sempre foi importante para eles, ou seja, numa área de expe riência neutra que
não será desafiada, Podemos dizer do objeto transicional que ele é uma questão de
entendimento entre nós e o bebê para que jamais seja formulada a questão: „Foi você que
criou isto ou isto foi apresentado a você do exterior?‟ O que nos chama a atenção aqui é que
nada definitivo é esperado. A pergunta não deve ser formulada.”
[ Objects”, pp. 239-240]
O paradoxo pode ser solucionado através da “fuga do funcionamento intelectual cindi do”,
mas ao custo da perda de sua importância.
“Este paradoxo, uma vez aceito e tolerado, é valioso para todo o indivíduo humano que não
apenas está vivo e vivendo neste mundo, mas é também capaz de ser infinitamente
enriquecedor em função da exploração do vínculo cultural com o passado e com o futuro”
[ and Reality”, 1971, p. xiii
Why Children Play [
The Deprived Ch ild and How He Can Be Compensated for a Loss of Fami ly Life [
Transitional Objects and Transitional Phenomena [
Group Influences and the Maladjusted Child [
The Capacity to Be Alone fW9J
The Place Where We Live [ 0]
Pia ying and Rea/ity [ 0]
Playing: A Theoretical Statement [
Referências
1942
1950
1951
1955
1958
1971
1971
1971
[ Where We Live”, p. 1091

ÓDIO
1 “O ódio na contratransferência”
2 O ódio do analista
3 Os sonhos de cura do analista
4 O ambiente necessário
5 A necessidade do paciente de ser odiado antes mesmo de ser amado
6 A razão da mãe odiar seu bebê
165
1 “O ódio na contratransferência”
Na obra de Winnicott a palavra “ódio” está intimamente associada ao que veio a tornar-se
um de seus mais conhecidos trabalhos, Hate in the Countertransference, que foi apresentado
à Sociedade Psicanalítica Britânica no ano de 1947. Deve ser lembrado que na década de
40, quando este texto foi produzido, o tratamento de pacientes psiquiátricos era
extremamente diverso do que é hoje em dia, particularmente no que toca à disponibilidade
de medicação a ser ministrada aos pacientes mais seriamente perturba dos. Todavia, a tese a
respeito do ódio, e de tudo aquilo que brota dela neste texto, permanece a mesma na
totalidade da obra de Winnicott.
Este estudo acentua a tensão emocional a que está submetido o analista ao lidar com
pacientes psicóticos. Isto implica que o paciente psicótico/ borderline demande uma carga
emocional semelhante à exigida pelo recém-nascido.
Winnicott jamais reconheceu a teoria de Melanie Klein, segundo a qual o ódio do bebê é
entendido como inato e uma manifestação da pulsão de morte. De acordo com seu modo de
ver, a capacidade de odiar — a compreensão de ódio como algo distinto do amor — aponta
para que o bebê alcançou um determinado estágio de desenvolvimento emocional. O
esforço despendido pelo bebê ao atingir uma certa capacidade de distinguir seus próprios
sentimentos “armazena” o ódio para um uso mais apropriado.
Antes do ano de 1949, a “contratransferência”, tomada conceitualmente, não era vista
dentro da psicanálise senão como um problema para o analista. O texto funda mental de
Paula Heimann, intitulado simplesmente On Transference, foi pela primeira vez
apresentado em 1950 e revisado dez anos depois. Embora a totalidade da obra de Winnicott
sobre a técnica psicanalítica esteja relacionada com o que atualmente é entendido como
sendo a contratransferência do analista (a resposta emocional à transferência do paciente),
Winnicott em raros momentos a emprega. Em seu texto refere-se a ela como uma
anormalidade ou um sinal de que o analista necessita ser melhor analisado. A este respeito,
o emprego que Winnicott faz do termo “contratransferência” coincide com o da maior parte
dos analistas no ano de 1947.
Separando os pacientes em duas categorias, psicóticos e neuróticos, Winnicott sublinha que
o trabalho com o psicótico é infinitamente mais “fatigante” do que o trabalho com o
neurótico. Por isso, afirma que o trabalho com o paciente psicótico dentro de uma relação
analítica deveria também ser valorizado pelos psiquiatras.
“A fim de auxiliar os psiquiatras em geral, o psicanalista deve não apenas estudar os
estágios primitivos do desenvolvimento emocional do indivíduo doente, mas também a
natureza da carga emocional que o psiquiatra suporta exercendo sua profissão. Aquilo que,
como analistas, chamamos contratransferência precisa ser compreendido também pelo
psiquiatra. Contudo, por amar seu paciente não consegue evitar odiá-lo ou temê-lo. Por
mais que saiba disso, seu ódio e temor determinarão aquilo que fará com seu paciente.”
[ in the Countertransference”, pp. 194-195]
Esta tese naturalmente poderia ser aplicada à equipe que trabalha no setting psiquiátrico.
Winnicott adverte que os pacientes psicóticos são capazes de despertar certos sentimentos
nas pessoas muito dificeis de resistir, e que, com bastante freqüência, conduzem a um
acting out por parte daqueles que os tratam. refere-se aqui à intensidade das projeções do
paciente psicótico. Apresenta três componentes da contratransferência:
“1. Anormalidade nos sentimentos contratransferenciais, além de um conjunto de relações e
identificações que se encontram sobre repressão no analista. O que pode ser comentado a
esse respeito é que o analista precisa ser analisado...
2. As identificações e tendências referentes às experiências pessoais do analista e o
desenvolvimento particular que fornece o setting positivo para o seu trabalho analítico, e
que o torna diverso em qualidade daquele de outro analista.”
Os dois pontos apresentados acima estão vinculados especificamente à linguagem
empregada pelo analista:
113 Destes dois componentes destaco exatamente a contratransferência objetiva, ou se isso
for demasiado difícil, o amor do analista e o ódio como reação a uma personalidade real e à
conduta do paciente. Isto baseia-se na observação objetiva.”
[ in the Countertransference”, p. 1951
Winnicott sugere ser de vital importância para o analista poder elaborar se seus senti
mentos pessoais internos possuem alguma relação com aqueles que o paciente suscita
(projeta) ou (o que poderia ser entendido da seguinte maneira) com a transferência do
analista com o paciente. Obviamente, tais sentimentos referem-se ao analista.
“Proponho que o analista que deseje analisar pacientes psicóticos ou anti-sociais deva ser
capaz de ter plena consciência da contratransferência que é passível de correção, bem como
estudar suas reações objetivas para com o paciente. Disso faz parte o ódio.”
[ in the Countertransference”, p. 195]
Com o intuito de melhor auxiliar os analistas, Winnicott lembra-os que cada tipo de
paciente é capaz de pensar no analista de acordo com o que ele próprio (o paciente) é. E por
isso que o obsessivo “tenderá a pensar no analista como fazendo seu trabalho de uma manei
ra obsessiva e bastante fútil”; o hipomaníaco, “que não pode sentir culpa de uma maneira
mais profunda ou que não possui um sentimento de preocupação ou responsabilidades é
incapaz de ver o trabalho daquele como uma tentativa de estabelecimento de uma
reparação, a qual diz respeito aos seus próprios (do analista) sentimentos de culpa”; por sua
vez, o neurótico vê o analista como “ambivalente para com seu paciente, esperando que
este demonstre-se dividido entre amor e ódio. Este paciente, se tiver bastante sorte, obtém
amor, porque a outro pertence o ódio do analista”. Já o paciente psicótico não é capaz de
imaginar o analista como diferente dele. Está em um estado de “amor-ódio simultâneos”
(Hate in the Countertransference, p. 195).
Ao referir-se ao “amor-ódio simultâneos”, Winnicott quer dizer que o paciente psicótico
não é capaz de estabelecer uma distinção entre o amor e o ódio e que, portanto, teme que,
“se o analista demonstre amor, ao mesmo tempo estará também matando o paciente” (Hate
in the Countertransference, p. 195).
166 A LINGUAGEM DE WINNICOTT
O “amor-ódio simultâneos” do paciente psicótico “implica que ocorreu uma falha
ambiental à época dos primeiros impulsos instintuais de encontro com o objeto” (Hate in
the Countertransference, p. 196). Winnicott refere-se à psicose como uma “doença pro
vocada pela deficiência do ambiente”. O ambiente não foi facilitador, e o impulso de amor
primitivo do bebê não foi apropriado. As conseqüências desse tipo de falha obrigam o bebê
a utilizar-se das defesas psicóticas (ver AMBIENTE: 3).
2 O ódio do analista
O trabalho do analista com pacientes psicóticos precisa levar em conta toda a força das
projeções dirigidas a ele. Essas projeções devem ser contidas pelo analista e
“armazenadas”. Para tanto, o analista precisa ser analisado e estar apto para poder analisar o
ódio existente em si.
“Se ao analista forem atribuídos certos sentimentos brutos, ele pode precaver-se melhor
pois deve suportar ser colocado nessa posição. Acima de tudo não pode negar o ódio que
verdadeiramente existe em si. O ódio justificado no presente setting precisa ser isolado e
armazenado para estar disponível para uma eventual interpretação.”
[ n the Countertransference”, p. 196]
Winnicott acentua a importância de o analista ser analisado, apontando para o fato de que
muitos analistas elegem o trabalho com pacientes psicóticos (descrito por ele como “casos
de estudo”) como uma forma de atingir “um ponto além daquele a que seu próprio analista
pôde conduzi-lo” (Hate in the Countertransference, p. 196). Em outras palavras, o analista
deve ser receptivo o bastante para que possa ser mobilizado emocionalmente pelo paciente,
da mesma forma que os pais são mobilizados por seus filhos.
No trabalho com pacientes neuróticos o ódio do analista pode mostrar-se de uma forma
mais reprimida e “latente”; Winnicott aponta as razões pelas quais o ódio apresenta-se de
uma maneira mais contida nos pacientes menos regredidos.
“A análise foi o trabalho que elegi, a forma que descobri de melhor lidar com a minha
própria culpa, a forma com que posso expressar-me construtivamente.
Sou recompensado, e continuo tentando galgar um lugar na sociedade através de meu
trabalho psicanalítico.
Descubro coisas.
Tenho uma gratificação imediata através da identificação com o paciente que apresenta
progressos. Posso vislumbrar ainda outras gratificações mais à frente, após o final do
tratamento.
Além do mais, possuo meios de expressar o ódio sendo um analista. O ódio é expresso
através do término da „hora‟.
Penso ser isso verdadeiro mesmo quando não existem quaisquer dificuldades, e quando o
paciente está pronto para ir. Em muitas análises essas coisas são dadas como certas, de
modo que raramente são mencionadas. O trabalho analítico faz-se através da interpretação
verbal da transferência inconsciente cine surue do paciente. O analista assume o papel de
uma das figuras que auxi
3
liaram o paciente em sua infância. Ele tira proveito do triunfo daqueles que fizeram o
trabalho sujo quando o paciente era ainda um bebê.
Tais coisas fazem parte da descrição do trabalho psicanalítico que diz res peito mais de
perto àqueles pacientes cujos sintomas são de caráter neurótico.”
[ in the Countertransference”, pp. 196-197]
Contudo, a pressão que o paciente psicótico exerce sobre o analista é de um tipo
completamente diverso.
3 Os sonhos de cura do analista
Winnicott entende que seus sonhos que foram instigados pelo seu trabalho clínico foram
curadores, em especial aqueles que o conduziram a um novo estágio de desenvolvimento
emocional pessoal. O que pôde apreender do sonho descrito em seu texto de 1947 é que a
paciente...
“... exigia de mim que eu não mantivesse absolutamente qualquer contato com seu corpo,
nem mesmo de forma imaginária; não existia um corpo que fosse reconhecido por ela como
sendo seu. Se ela existia, de forma alguma poderia ser apenas uma mente.., O que ela exigia
de mim era que eu fosse tão- somente uma mente falando à sua.”
[ in the Countertransference”, p. 198]
O sonho de Winnicott torna-se oportuno a fim de ilustrar (a) o uso que a paciente faz de seu
analista, levando-a a experimentar (de uma forma inconsciente) no próprio corpo aquilo
que desejava e era incapaz de integrar a si própria, e (b) os componentes da
contratransferência isto é, a resposta inconsciente do analista passada uma sessão onde
reagiu à invasão causada por ela.
A dissociação existente entre corpo e mente no sonho de Winnicott ajudou-o a
compreender melhor a diferença posta entre a ansiedade de castração (neurótica) e a
ansiedade psicótica vinculada à aniquilação e à eterna queda.
“No auge de minhas dificuldades, na noite anterior ao sonho, irritei-me e disse que o que
ela exigia de mim era pouco mais do que futilidade, isto causou um efeito desastroso que
fez com que a análise levasse algumas semanas para recuperar-se de meu lapso. O que é
essencial, entretanto, é que eu pude compreender minha ansiedade, que era representada no
sonho pela ausência do lado direito de meu corpo... O lado direito de meu corpo era o lado
que estava relacionado a esta paciente em particular e, portanto, foi afetado por sua
necessidade de negar até mesmo uma relação imaginária de nossos corpos. Esta negação
produziu em mim este tipo de ansiedade psicótica, muito menos suportável do que a
ansiedade de castração usual...”
169
Provavelmente não ficou bastante claro que aquilo que Winnicott diz a sua paciente é de
suma importância — ela, verdadeiramente, precisava dele para entrar em minúcias para que
pudesse conceber uma cisão em si própria. Winnicott expõe o quão importante foi ter tido
esse sonho e o que ele lhe possibilitou fazer:
“O que quer que outras interpretações pudessem produzir no que diz respeito
a esse sonho, o que resultou dele e de sua lembrança foi que retomei a análise
e até reparei os danos causados a ela pela minha irritabilidade, que teve origem em uma
ansiedade reativa de um tipo que era apropriado ao contato estabelecido com uma paciente
que não possuía um corpo.”
[ in the Countertransference”, p. 1981
Winnicott revela o sentimento de culpa que nutre em relação a sua paciente. Ele é uma
reminiscência de seu texto de 1963, Dependence in Infant-Care, in Child-Care, and in the
Psychoanalytic Setting, onde explora os enganos cometidos pelo analista, aqui entendi dos
como sendo um componente necessário à análise, e onde também apresenta um erro por ele
próprio cometido em um período por demais precoce da relação terapêutica (ver
DEPENDÊNCIA: 5; REGRESSÃO: 7). No entanto, em 1947, Winnicott ainda estava certo
de que não era conveniente que o paciente tomasse conhecimento do enorme peso que o
analista deveria suportar:
“O analista deve estar preparado para suportar a tensão sem esperar que o paciente perceba
o que está fazendo, talvez por um período de tempo prolongado. Para tanto é preciso que
tenha consciência de seu próprio medo e ódio.”
[ in the Countertransference”, p. 1981
Então, inesperadamente, porém tornando possível vislumbrar o que estava por vir até o
final do trabalho, Winnicott diz do analista nesta condição:
“Ele está na posição da mãe de um bebê ainda não nascido ou recém-nascido.”
4 O ambiente necessário
[ in the Countertransference”, p. 1981
Para aquele paciente que não teve um início de vida suficientemente-bom, o analista “é a
primeira pessoa em toda sua vida a suprir certos aspectos essenciais do ambiente” (Hate in
the Countertransference, p. 198). Ou seja, o setting suposto pela maior parte dos pacientes
deve ser pensado de uma forma mais literal pelo analista, que é aquele que supre algo que
jamais havia sido suprido antes. Winnicott apresenta um exemplo:
“Perguntei a um colega se ele analisava no escuro, ao que me respondeu: „Claro que não!
Certamente nosso trabalho consiste em fornecer um ambiente comum. O escuro seria algo
de extraordinário‟. Ele havia ficado surpreso com a minha pergunta. Sua orientação era
feita de acordo com a análise de neuróticos. O fornecimento e a manutenção de um
ambiente comum podem ser, em si, algo de extrema importância na análise de um
psicótico, de fato podendo apresentar-se, algumas vezes, até mesmo mais importante do
que a interpreta ção verbal, que também deve ser feita.”
[ in the Countertransference”, p. 199]
De fato, Winnicott está de acordo com a importância dispensada ao ambiente. Em Hate in
the Countertransftrence, freqüentemente aponta para o fato de que o analista necessita
esperar que o paciente chegue a sua própria interpretação:
“Para o neurótico o divã, o calor e o conforto podem simbolizar o amor da mãe; para o
psicótico seria mais acertado afirmar que estas coisas são a expressão física do amor do
analista. O divã é o colo ou o útero do analista, sendo que o calor é o calor vivo do corpo do
analista.”
[ in the Countertransference”, p. 199]
Assim, na teoria winnicottiana, o setting analítico fornece um holding literal sem que haja o
emprego do toque (ver COMUNICAÇÃO: 3; REGRESSÃO: 1).
5 A necessidade do paciente de ser odiado antes mesmo de ser amado
A disponibilidade emocional do analista — o ódio, especificamente — constitui-se em uma
grande e importantíssima parcela do ambiente que deve ser apresentada ao paciente:
“Gostaria de acrescentar que, em certas fases de certas análises, o ódio do analista é
realmente buscado pelo paciente. O que se faz necessário aqui é o ódio objetivo. Se o
paciente busca um ódio objetivo ou justificado ele deve ser capaz de obtê-lo, de outra forma
não sentirá que pode alcançar o amor objetivo.”
[ in the Counte p. 1991
A partir de sua experiência pessoal, Winnicott, que trabalhou com crianças evacuadas
durante a guerra, bem como no atendimento a famílias ao longo dos anos, reconhece o quão
importante torna-se para o novo ambiente tolerar o ódio provocado pela criança que sofreu
uma perda, e que verdadeiramente demonstra sua esperança inconsciente (ver ANTI-
SOCIAL, TENDÊNCIA: 5).
“Talvez seja relevante citar aqui o caso da criança que teve o seu lar desfeito, ou da criança
que não possui pais. Tais crianças passam a vida procurando por seus pais. E sabido ser
inadequado levar tais crianças para casa e amá-las. O que se passa é que, após um
determinado período, a criança adotada adquire esperança, e começa a testar o ambiente
que encontrou, buscando a prova de que seus guardiães conseguem odiar objetivamente.
Parece que ela acredita poder apenas ser amada depois de haver conseguido ser odiada.”
[ in the Countertransference”, p. 199]
170
A LINGUAGEM DE WINNICOTT II 6 • ÓDIO
171
Winnicott fornece como exemplo sua experiência pessoal de tomar conta de uma crian ça
que havia sofrido uma grande perda durante a Segunda Grande Guerra.
O ponto teórico que parece ser essencial nessa parte do texto é que é a mãe quem
primeiramente odeia o bebê.
“Considerando toda a complexidade da questão do ódio e de suas raízes, gostaria de
resgatar uma coisa por acreditar ter ela uma grande importância para o analista de pacientes
psicóticos. Sustento que a mãe odeia o bebê antes que o bebê a odeie, e antes mesmo que o
bebê possa saber que sua mãe o odeia.” [ in the Countertransference”, p. 2001
De acordo com a tese de Winnicott, é a mãe quem primeiro odeia o bebê porque ele ainda
não é capaz de odiar. A necessidade que nutre em relação a sua mãe é de uma extrema
crueldade, e é essa crueldade que fará aflorar o ódio dela. A idéia que pode ser inferida daí
dá conta de que o psicótico, da mesma forma, ainda não tem consciência de seu ódio, vindo
a procurar uma análise, trazendo consigo uma necessidade cruel do analista. Em termos de
desenvolvimento, esse fenômeno ocorre durante a fase de holding, que é quando o bebê
encontra-se incapaz de estabelecer uma relação com a totalidade dos objetos e,
conseqüentemente, não possui a consciência do outro como um não-eu.
“Mesmo que a integração possa ser alcançada muito cedo — talvez a integração se dê mais
precocemente no auge da excitação ou da raiva —, existe um estágio no qual o que quer
que o bebê faça de ruim não é feito com ódio. Empreguei a expressão „amor cruel‟ para
descrever este estágio... A medida que o bebê torna-se capaz de sentir-se como uma pessoa
completa, a palavra ódio passa a descrever um certo grupo de seus sentimentos.”
6 A razão da mãe odiar seu bebê
[ in the Countertransference”, p. 2011
Como uma maneira de oferecer maiores evidências relacionadas à necessidade do analista
de inicialmente odiar o paciente psicótico, Winnicott apresenta dezessete motivos pelos
quais a mãe odeia o seu bebê desde o início:
“A mãe odeia seu bebê desde o início. Creio que Freud pensava ser possível que a mãe, em
determinadas circunstâncias, pudesse ter amor apenas por seu filho homem; mas podemos
questionar isto. Sabemos sobre o amor materno e apreciamos sua realidade e seu poder.
Permitam-me fornecer alguns dos motivos pelos quais uma mãe odeia seu bebê, mesmo que
seja homem:
O bebê não é de sua própria concepção (mental).
O bebê não é o único a brincar na infância, ele é o filho do pai, o filho do irmão etc.
O bebê não é produzido magicamente.
O bebê interfere na sua vida privada, um desafio à preocupação.
Em maior ou menor grau a mãe sente que sua própria mãe demanda um bebê, de tal forma
que o bebê é produzido para aplacar sua mãe.
O bebê machuca seus mamilos ao mamar, o que é inicialmente uma atividade mastigatória.
Ele é cruel, tratando-a como se pertencesse à escória, uma serviçal que não recebe
pagamento, uma escrava.
Ela tem que amá-lo de qualquer maneira no princípio, apesar dos excrementos e de todo o
resto, até que ele tenha dúvidas sobre si mesmo.
Ele tenta machucá-la, periodicamente mordendo-a, tudo isso por amor.
Ele demonstra estar desiludido com ela.
Seu amor excitado é interesseiro. Após obter dela aquilo que queria, a joga fora como se
fosse uma casca de laranja.
O bebê inicialmente deve dominar, deve ser protegido das coincidências. A vida deve
desenrolar-se no ritmo dele, e para tudo isso é necessária uma investigação contínua e
detalhada da mãe. Por exemplo, ela não deve ficar ansiosa ao segurá-lo etc.
No princípio ele não tem conhecimento daquilo que ela faz ou do quanto se sacrifica por
ele. Não pode reconhecer o ódio materno.
Ele é desconfiado. Recusa a boa comida que lhe é oferecida e faz com que ela duvide de si
mesma, mas se alimenta bem com uma tia.
Após uma manhã terrível passada juntos ela sai, de sorri para uma pessoa estranha, que diz:
„Ele não é um doce?‟
Se ela falhar com ele no início, saberá que irá se vingar eternamente.
Ele a excita, mas também a frustra: ela não pode comê-lo e nem fazer sexo com ele.”
[ in the Countertransference”, p. 2011
Esta lista poderia também ser aplicada à posição que o paciente psicótico ocupa em relação
ao analista.
“Acredito que na análise de psicóticos e nos estágios finais da análise, mesmo de uma
pessoa normal, o analista deve colocar-se em uma posição comparável à da mãe de um
bebê recém-nascido. Estando profundamente regredido, o paciente não é capaz de
identificar-se com o analista ou avaliar seu ponto de vista, da mesma forma que o feto ou o
bebê recém-nascido não compreende a mãe.”
[ in the Countertransference”, p. 202]
Nove anos após esse trabalho haver sido escrito, em um texto intitulado Primary Maternal
Preoccupation, Winnicott descreve a mãe, no período pouco anterior ao nascimento de seu
filho e nas semanas que se seguem, como tendo já estabelecido um estado fusional com o
bebê recém-nascido. Embora a teoria do ódio não seja vinculada à preocupação materna
primária por Winnicott, as mesmas questões são colocadas em termos daquilo que o
analista deve ser capaz de tolerar do paciente regredido. E a tolerância de um amor cruel,
assim como a própria crueldade, que irão instigar o ódio (ver PREOCUPAÇÃO
MATERNA PRIMÁRIA: 4; REGRESSÃO: 12). Estas questões relacionam-se igualmente
à dependência absoluta, ao medo da mulher e à depressão (ver DEPENDÊNCIA: 1, 3;
DEPRESSÃO).

PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMARIA


1 A devoção comum
2 A continuidade do ser
3 Ao encontro das necessidades
A mulher grávida sadia transforma-se em mentalmente “enferma” pouco antes de dar à luz
e algumas semanas após o parto. Esse estado único é denominado por Winnicott de
“preocupação materna primária “.
A saúde psicológica e física do bebê, de acordo com sua tese, está na dependência de a mãe
ser capaz de ingressar e sair desse estado tão especial de ser.

1 A devoção comum
Uma coletânea de conferências inéditas, publicadas postumamente em 1986, e intitula da
Babies and Their Mothers (W16), vem reunir-se às palestras feitas por Winnicott que
giraram em torno do início da vida do bebê: a saber, o período de dependência absoluta,
quando, na saúde, a mãe está em um estado de preocupação materna primária. Mui tos
desses textos originaram-se das conferências feitas por Winnicott na década de 60 para
diferentes grupos na Grã-Bretanha e outros países. Um desses estudos — “The Ordinary
Devoted Mother” — baseou-se em uma palestra proferida na seção londrina da Nursery
School Association, em 1966. Porém, a expressão “mãe devotada comum” já havia surgido
em 1949, como esclarece Winnicott:
“No verão de 1949, ao me encaminhar juntamente com a senhorita Isa Benzie, produtora da
BBC, para tomarmos um drinque... ela dizia-me que estava interessada em que fizesse uma
série de nove conferências a respeito do assunto que mais me agradasse. Estava ela,
evidentemente, atenta a qualquer palavra que dissesse desavisadamente, mas eu não sabia
disso. Respondi-lhe que não tinha qualquer interesse em dizer às pessoas o que fazer. Para
início de conversa, eu mesmo não sabia. Contudo, apreciaria falar para as mães sobre
aquilo que elas fazem melhor, e o fazem bem, simplesmente porque cada uma delas é
devotada a uma tarefa, ou seja, cuidar de um bebê, ou talvez de gêmeos. Disse-lhe que isso
é algo que acontece comumente, sendo uma exceção quando o bebê não é cuidado desde o
início por uma especialista. Isa Benzie pareceu agarrar essa palavras no ar, e disse:
„Esplêndido! A Mãe Devotada Comum‟. Foi assim que tudo aconteceu.”
Mais adiante, no mesmo texto, Winnicott faz referência ao funcionamento da mãe ao
“nível” da “mãe devotada comum”, esclarecendo a razão das palavras “comum” e
“devotada” serem tão úteis para descrever a preparação psicológica que se dá pouco antes
do parto.
@@@ “Sugiro... que comumente a mulher ingressa em uma fase, da qual ela comumente
se recupera em questão de semanas ou meses após o nascimento do bebê, na qual ela é o
bebê e o bebê é ela. Afinal, uma vez ela já foi um bebê. Possui as lembranças de ter sido
um bebê; lembra-se também de ter sido cuidada. Essas lembranças tanto podem auxiliar
quanto prejudicar suas experiências como mãe.”
[ Devoted Mother”, p. 61
É através dessas lembranças inconscientes que a mãe torna-se preocupada e “devota da”,
em função de sua intensa identificação com o bebê (ver MÃE: 6, 7).
Em 1956, Winnicott escreve seu estudo teórico definitivo sobre esse assunto, Primary
Maternal Preoccupation.
A partir da introdução desse texto podemos notar que Winnicott está prestes a fazer esta
exposição com o intuito de chamar a atenção para sua discordância com Anna Freud e
Margaret Mahler. E evidente que Winnicott tem consciência de que não é dada a atenção
devida ao estado mental em que a mãe comumente se encontra antes e após a gravidez.
“Minha tese é que na fase mais precoce nos deparamos com um estado bastante especial da
mãe, uma condição psicológica que merece um nome, tal como Preocupação Materna
Primária. Entendo que o tributo devido não foi pago satisfatoriamente por nossa literatura,
nem em qualquer outra parte, a uma tão especial condição psiquiátrica da mãe, da qual direi
o seguinte:
Seu desenvolvimento é gradual, transformando-se em um estado de intensa sensibilidade no
decorrer e, em especial, quando se aproxima o término da gestação.
Prolonga-se por algumas semanas após o nascimento do bebê.
Não é facilmente lembrada pela mãe, uma vez que tenha se recuperado.
Irei adiante dizendo que as lembranças desse estado tidas pela mãe tendem a tornar-se
reprimidas.”
[ Maternal Preoccupation”, p. 302]
Este estado é comparável a uma enfermidade que acomete mulheres saudáveis, e que na
verdade deve advir a fim de auxiliar na saúde do bebê.
“Esse estado organizado... poderia ser comparado a um estado de afastamento, a um estado
dissociado, a uma fuga, ou mesmo a uma perturbação a um nível profundo, tal como ocorre
em um episódio esquizóide onde alguns aspectos da personalidade sobressaem-se
temporariamente. Gostaria de encontrar uma boa palavra para nomear esta condição e
apresentá-la como algo a ser considerado em todas as referências às primeiras fases da vida
do bebê. Não creio ser possível uma compreensão do funcionamento da mãe nos
primórdios da vida do bebê sem o entendimento de que ela deve ser capaz de atingir esse
estado de intensa sensibilidade, quase uma doença, e recuperar-se dele. (Refiro-me à
palavra „doença‟ porque a mulher deve ser saudável a fim de que possa desenvolver este
estado e recuperar-se dele quando o bebê permitir-lhe.)”
2 A continuidade do ser
[ Maternal Preoccupation”, p. 302]
O bebê que é sadio estabelece um sentimento de self e de “continuidade do ser”. Isto pode
se dar apenas em um setting apropriado — aquele que a mãe que ingressou no estado de
preocupação materna primária é capaz de fornecer (ver SER: 3, 4, 5; AMBIENTE: 1;
SELF: 5).
@@@ “A mãe que desenvolve o estado a que denominei „preocupação materna primária‟
fornece um setting para que a constituição do bebê possa aparecer, as tendências do
desenvolvimento se revelem e para que o bebê experimente movimentos espontâneos,
dominando as sensações apropriadas a essa fase precoce da vida...
Uma continuidade do ser satisfatória apenas é possível inicialmente se a mãe houver
ingressado nesse estado que (como sugiro) se constitui em algo bastante real quando a mãe
sadia aproxima-se do final de sua gestação, e que se prolonga por um período de algumas
semanas após o nascimento do bebê.”
3 Ao encontro das necessidades
[ Maternal Preoccupation”, p. 3041
Ir ao encontro das necessidades do bebê não se torna possível sem que exista o amor
incondicional da mãe, o que equivale a ter uma completa empatia com a condição da
criança.
“Somente se a mãe for sensibilizada da maneira que descrevo é que ela irá sentir-se como
se ocupasse o lugar do bebê, desta forma poderá ir ao encontro de suas necessidades. Estas
são inicialmente necessidades corporais que transformam-se pouco a pouco em
necessidades do ego, ao passo que uma psicologia surge da elaboração imaginativa da
experiência física.
Começa a existir uma afinidade egóica entre mãe e bebê, da qual a mãe se recupera e a
partir da qual o bebê eventualmente consegue formar a idéia de que a mãe é uma pessoa.
Sob esse ângulo, o reconhecimento da mãe como uma pessoa surge normalmente como
algo positivo, e não a partir da experiência da mãe como símbolo da frustração.”
V‟Primary Maternal Preoccupation”, p. 303]
@@@ A preocupação materna primária constitui-se no primeiro ambiente especializado.
Nesse estado a mãe é saudável, suficientemente-boa e capaz de propiciar um ambiente
facilitador no qual o bebê consegue ser e crescer.
“De acordo com essa tese uma provisão ambiental suficientemente-boa na fase inicial
possibilita ao bebê dar início a uma existência, a experimentar, a constituir um ego pessoal,
a dominar as pulsões e a enfrentar todas as dificuldades inerentes à vida. Todas essas coisas
são sentidas como reais pelo bebê que é capaz de possuir um self, que finalmente pode se
dar ao luxo de sacrificar a espontaneidade, e até de morrer.”
[ Maternal Preoccupation”, p. 304]
O ponto que Winnicott deseja que fique bem esclarecido em sua tese da preocupação
materna primária é que tanto a criança quanto a mãe estão psicologicamente fundidos desde
o princípio da vida do bebê. E um período, portanto, em que ainda não existem relações
objetais, mas apenas o suporte egóico fornecido pela mãe ao bebê, além de uma afinidade
egóica entre ele e a mãe (ver SER: 4; EGO: 4).
As conseqüências das falhas que podem ocorrer neste período são exploradas em diversas
outros momentos da obra de Winnicott (ver AMBIENTE: 3; PSIQUE-SOMA: 3;
REGRESSÃO: 13).
A integração mente-corpo é descrita por Winnicott como uma trama psicossomática; chega
a referir-se à “psique que habita o soma „
A psique-que-habita-o-soma reflete o efeito bem-sucedido do processo de “personalização”
que se dá como resultado do “toque‟ materno no bebê no decorrer da fase de holding. Este é
o período de dependência absoluta, quando a mãe (saudável) encontra-se no estado de
preocupação materna primária.
Na obra de Winnicott a „psique‟ é descrita como a „elaboração imaginativa dos elementos,
sentimentos e funções somáticas‟ o que muitas vezes apresenta-se como sinônimo de
“fantasia „ realidade interna‟ e self.
Se a mãe não foi capaz de proporcionar um toque suficientemente-bom no decurso da fase
de holding, jamais será possível ao bebê sentir-se integrado a seu próprio corpo.
Conseqüentemente, ocorre uma cisão entre mente e corpo.
A doença psicossomática constitui-se em um sintoma de que algo não correu bem no
princípio do desenvolvimento emocional do indivíduo.

PREOCUPAÇÃO 173
1 A posição depressiva
2 Um entendimento pessoal da posição depressiva
3 Dois aspectos da mãe
4 Dois tipos de ansiedade
5 O círculo benigno
6 A ambivalência
7 A função da colaboração
8 A dimensão temporal
9 A moralidade inata
10 A perversidade
Preocupação é o termo utilizado por Winnicott a fim de destacar os aspectos positivos do
sentimento de culpa. O “estágio de preocupação”constitui-se quando o bebê passa a sentir-
se preocupado com a mãe, que é a quem seu amor implacável havia sido até então dirigido.
A capacidade do bebê de sentir preocupação por sua mãe marca o episódio do
desenvolvimento que é a passagem do pré-remorso para o remorso.
Os aspectos que se sobrepõem ao estágio de preocupação proposto por Winnicott são a
ambivalência, o círculo benigno, a colaboração e a moralidade inata.
Em 935, quando Winnicott foi reconhecido como analista, Melanie Klein elaborava um de
seus mais importantes conceitos teóricos, que veio a ser conhecido como a “posição
depressiva”. Este termo passou a fazer parte do vocabulário kleiniano, apresentando uma
magnitude teórica comparável ao complexo de Edipo proposto por Freud. Winnicott, dentre
vários outros, reconhecia ser este conceito de fundamental importância
teórica para o desenvolvimento emocional, no entanto, não aprovou o termo. Além disso,
sugeriu uma maneira particular de descrever este estágio do desenvolvimento. Na maior
parte dos trabalhos que Winnicott produziu na década de 50, o que se destaca é que ele
estava estruturando sua contribuição teórica pessoal a esse estágio do desenvolvimento
emocional do bebê concernente à dependência relativa, notadamente em seu trabalho de
1954, TIie Depressive Position ia Normal Emotional Development, como também no de
1958, Psychoanalysis and the Sense of Gui!t. As idéias que derivaram daí originaram, em
1963, The Development ofthe Capacity for Concern; Winnicott estava, então, preparado
para substituir a posição depressiva de Melanie Klein pelo estágio de preocupação.
2 Um entendimento pessoal da posição depressiva
Em The Depressive Position ia Norma! Deve! opment, Winnicott inicia expondo suas
idéias pessoais quanto à “posição depressiva” de Melanie Klein. Destaca, então, o “normal”
e as questões relativas ao desenvolvimento na posição depressiva.
Em uma parte anterior desse trabalho, Winnicott tece uma crítica a esse termo, chegando a
oferecer uma alternativa, apontando para a saúde em lugar de para a doença.
“A expressão „posição depressiva‟ não é uma boa denominação para designar um processo
normal, mas ninguém foi capaz de encontrar outro melhor. Minha sugestão é que passemos
a chamá-lo de „estágio de preocupação‟. Creio que essa expressão introduza
satisfatoriamente o conceito...
Com bastante freqüência tem sido apontado que um termo que implique doença não
poderia ser empregado na descrição de processos normais. A expressão posição depressiva
parece fazer referência ao fato de que os bebês sadios passam por um estágio depressivo, ou
de humor patológico. De fato, o que essa expressão quer dizer não é isso.”
(“Depressive Position”, pp. 264-2651
Winnicott destaca que a depressão constitui-se em um sintoma de doença, não fazendo
parte do desenvolvimento saudável normal nem da posição depressiva (ver DEPRESSÃO:
6). O uso da palavra “depressiva”, portanto, coloca uma questão que Winnicott pensa
explorar a partir do amor cruel do bebê (agressão primária) por sua mãe, que fazendo parte
de um ambiente facilitador, transformará a crueldade em preocupação (ver
“Inicialmente o bebê (de acordo com nosso ponto de vista) é cruel; ainda não é possível
notar qualquer preocupação quanto aos resultados do amor pulsional. Este amor
originalmente constitui-se em uma forma de impulso, de gesto, de contato, de relação, que
proporciona ao bebê a satisfação da auto-expressão e do alívio da tensão pulsional; além
disso, coloca o objeto para além do self.
Deve ser dito que o bebê não se sente como cruel, mas voltando-se para trás (o que ocorre
na regressão), o indivíduo diria: Como eu era cruel! A este estágio chamei de pré-remorso.”
[ Position”, p. 265]
Winnicott vê a passagem efetuada pelo bebê do pré-remorso para o remorso como o
aspecto mais importante do desenvolvimento emocional. E justamente essa passagem que
caracteriza o estágio de preocupação:
“Em algum período da história do desenvolvimento de qualquer ser humano normal
acontece a transformação do pré-remorso em remorso. Ninguém questiona isto. A questão
que se coloca é a seguinte: quando isto ocorre, como, e sob quais condições? O conceito de
posição depressiva é uma tentativa de resposta a estas três perguntas. Segundo este conceito
a transformação da crueldade em remorso se dá gradualmente, sob certas condições de
maternagem bem definidas, durante o período compreendido entre cinco e doze meses,
sendo que seu estabelecimento levará ainda muito tempo para que esteja ter minado; no
decorrer da análise poderemos mesmo descobrir que ela jamais foi estabelecida.
A posição depressiva, em vista disso, coloca-se como uma questão extremamente
complexa, um elemento inerente a um fenômeno que não se apresenta como polêmico, ou
seja, o fenômeno que é a passagem de todo indivíduo humano do pré-remorso para o
remorso ou preocupação.”
[ Position”, pp. 266-2671
A passagem do pré-remorso para o remorso exige do bebê um grande esforço. Este esforço
tem início uma vez que o bebê seja capaz de ver a mãe como um outro que não ele próprio.
Winnicott descreve este fato como sendo a aquisição de um “status unitário”, que se
estabelece quando o bebê alcança o ponto em que pode distinguir entre “eu” e “não-eu”.
3 Dois aspectos da mãe
O bebê que alcança o “status unitário” torna-se consciente de que as duas mães
pertencentes a sua fantasia são, em verdade, uma só. Em The Depressive Position in
Norma! Emotional Development, Winnicott refere-se a essas duas mães tanto como a mãe
dos períodos de tranqüilidade quanto a mãe dos períodos de agitação. (Em 1963 essas duas
mães passam a ser denominadas de “mãe-ambiente” e de “mãe-objeto”, respectiva- mente.)
A função da mãe durante esse período permanece vital para o bebê, pois ela precisa
adaptar-se às necessidades de seu filho, considerando que ele, que é quem a ataca
cruelmente, não tem a intenção de feri-la. É pulsional, um impulso biológico como a fome,
por exemplo, que faz do bebê um ser cruel (ver AGRESSÃO: 2, 3).
“O bebê, como uma pessoa total, é capaz de identificar-se com a mãe, mas ainda não faz
uma distinção suficientemente clara entre aquilo que pertence ao campo da intenção e o que
realmente ocorre. As funções e suas elabora ções imaginativas ainda não foram claramente
diferenciadas como fato e fan tasia. E surpreendente ver o que o bebê precisa realizar nesse
período.”
[ Position”, pp. 266-267]
Winnicott fornece um exemplo ilustrativo da tarefa a ser executada pelo bebê:
“Pensemos em um dia em que a mãe sustenta a situação, e o bebê, no início desse mesmo
dia, tenha tido uma experiência pulsional. Para ser mais simples penso na alimentação, pois
ela está na base de toda a questão. E desencadeado um ataque canibalístico cruel que em
parte é demonstrado pelo comporta mento físico do bebê, e que de alguma maneira deve-se
à elaboração imagina tiva da função física levada a cabo pelo próprio bebê. Ele soma um
mais um e começa a perceber que a resposta certa é um, e não dois. A mãe da relação de
dependência (anaclítica) também é o objeto do amor pulsional (impulsionado
biologicamente).”
4 Dois tipos de ansiedade
[ Position”, pp. 267-268]
Esta pulsão que é dirigida biologicamente, que move o bebê em direção à crueldade sem
que este possua a intenção, também vem a produzir ansiedade. Em The Depressive Position
in Norma! Emotional Deve!opment Winnicott cita duas fomas de ansiedade depressiva.
(Em 1963 não fará mais uso da palavra “depressiva”, referindo-se simples mente à
“ansiedade”.)
O primeiro tipo de ansiedade diz respeito à percepção que o bebê tem de que a mãe não é a
mesma após alimentá-lo. Não é a mesma de quando fez seu “ataque canibal repleto de
crueldade” a ela. Winnicott explica com mais detalhes a experiência deste primeiro tipo de
ansiedade vivida pelo bebê:
“Se desejarmos, podemos fazer uso de palavras a fim de descrever o que o bebê sente e diz:
existe um buraco onde antes existia um corpo repleto de riquezas.”
[ Position”, p. 268]
“O segundo tipo de ansiedade refere-se à consciência crescente no bebê de como se sente
interiormente, pois é durante este estágio do desenvolvimento que ele elabora a distinção
entre eu e não-eu. Esses dois tipos de ansiedade obrigam o bebê a um esforço voltado para
o desenvolvimento.
este bebê, após ser alimentado, além de ficar apreensivo em função do buraco imaginado no
corpo materno, também está envolvido na luta do self, uma luta entre aquilo que sente ser
bom, ou seja, o suporte do self, e aquilo que sente ser mau, isto é, o que é persecutório para
o self.”
[ Position”, p. 2691
O efeito favorável que possa advir da luta do bebê dependerá (a) de como a mãe estabelece
o holding e (b) da forma com que ela recebe seus “presentes” (ver FIOLDING: 2).
“O tempo todo é a mãe que sustenta a situação. É dessa forma que segue o dia do bebê,
com a digestão física e a elaboração correspondente que ocorre na psi que. Esta elaboração
consome tempo, restando ao bebê apenas esperar pelos resultados, passivamente entregue
ao que se passa em seu interior. Na saúde, este mundo interno pessoal transforma-se no
infinitamente rico núcleo do seff.
No término deste dia da vida de qualquer bebê sadio, como resultado do trabalho interior
realizado, ele tem coisas boas e más a oferecer. A mãe recebe tanto o que é bom quanto o
que é mau, e deve reconhecer o que é lhe ofereci do como bom e o que lhe é oferecido
como mau. Este é o primeiro oferecimen to, sem o qual não há um verdadeiro receber.
Todas essas são questões práticas do dia-a-dia do cuidado infantil e, também, da análise.”
[ Position”, p. 2691
Essas “questões práticas do dia-a-dia”, a entrega e a troca existente entre mãe e filho, são
absolutamente essenciais para o bebê a fim deque possa unir as duas mães (a tran
qüila/ambiente e a agitada/objeto) em sua mente. E isso que se coloca no centro do tra
balho de integração (ver EGO: 3).
Winnicott destaca que compete à mãe apostar na interação nesse estágio. E isso que faz
toda a diferença.
“O bebê abençoado com uma mãe que sobrevive, uma mãe que reconhece um gesto de
oferecimento, está agora na posição de fazer algo com relação àquele buraco, o buraco no
seio ou no corpo, feito imaginativamente no momento pulsional original. E aqui que
aparecem as palavras reparação e res tituição, palavras essas que podem ser significativas
no setting adequado, mas que facilmente transformam-se em clichês se empregadas
negligentemente. O gesto de oferecimento pode alcançar o buraco se a mãe fizer a sua
parte.”
5 O círculo benigno
[ Position”, p. 2701
O esforço do bebê em estabelecer urna distinção entre as duas mães diz respeito a como ele
desenvolverá uma seqüência dinâmica, que é necessariamente repetida à exaustão.
Winnicott denomina este fenômeno de “círculo benigno”, chegando a apresentar uma
relação de seus aspectos mais vantajosos:
“Um círculo benigno estabeleceu-se. Podemos discriminar todas as dificulda des em jogo:
• uma elaboração interna, com a separação do que resulta da experiência;
• uma capacidade de oferecer, em função da separação do bom e do mau que é feita
interiormente;
• reparação.
O resultado do reforço diário do círculo benigno é que o bebê se torna capaz
de tolerar o buraco (o resultado do amor pulsional). Percebemos aqui o come ço do
sentimento de culpa. Esta é a única culpa verdadeira, já que a culpa que
é implantada é reconhecida como falsa pelo seIf. O início da culpa surge com
a junção das duas mães e do amor tranqüilo e excitado, do amor e do ódio.
Este sentimento transforma-se gradualmente em uma fonte sadia e normal de
atividade nas relações...
Na operação do círculo benigno a preocupação faz-se tolerável para o bebê por meio de um
reconhecimento nascente a partir do qual, com o devido tempo, algo pode ser feito com o
buraco e com os diversos efeitos do impulso do id no corpo materno.”
[ Position”, p. 270]
177
Em trabalhos posteriores, em particular em Psycho-Analysis and the Sense of Guilt (1958)
e The Developinent ofthe Capacity for Concern (1963), certos aspectos do círculo benigno
começam a ser elaborados.
E no texto de 1958 que se pode notar o destaque dado sobre as obrigações que o bebê passa
a ter em relação a sua mãe, bem como à identificação da idade em que o bebê alcan ça este
estágio do desenvolvimento:
“... esta importante fase do desenvolvimento é composta de inúmeras repeti ções que se
estendem por um determinado período de tempo. Existe um círcu lo benigno da (1)
experiência pulsional, (2) da aceitação da responsabilidade daquilo que chamamos culpa,
(3) de uma elaboração, e (4) de um gesto restitu tivo verdadeiro...
Estamos falando do primeiro ano de vida do bebê e de todo o período no qual ele mantém
claramente uma relação humana dois a dois com a mãe... Com cerca de seis meses de idade
já podemos perceber que o bebê possui uma psicologia altamente complexa. E possível que
os primórdios da posição depressiva encontre-se nesta idade.”
[ and Sense of Guilt”, p. 24]
Em The Development ofthe Capacity for Concern, Winnicott estava prestes a substituir a
teoria de Melanie Klein pela sua. Nessa obra sua exposição definitiva concernente a cer tos
aspectos do desenvolvimento emocional nesse período tão importante constitui-se em uma
colaboração profundamente original para a teoria psicanalítica. A ênfase aqui é dada sobre
a saúde e os processos maturacionais normais do bebê, o que é feito sem pre tomando por
base o ambiente.
A inter-relação entre mãe e bebê própria a esse estágio é apresentada como “des truição”, e
não como ataque cruel. E a ÇQ “d friir
• um relacionamento entre bebê e mãe prejudicado pela experiência pulsional;
rir-se com freqüência cada vez maior em sua obra a partir dos anos 60. Em “The
Development ofthe Capacity for Concern” suas idéias relativas à agressão primária emer
gem com bastante destaque, chegando a motivar um trabalho de 1968, “The Use ofan
Object and Relating Through ident (ver AGRESSÃO: 10).
“A palavra „preocupação‟ é utilizada para descrever de uma forma positiva um fenômeno
que de uma forma negativa é expresso pela palavra „culpa‟. O senti mento de culpa é a
ansiedade que está ligada ao conceito de ambivalência, o que implica em um certo grau de
integração do ego do indivíduo, permitindo a retenção das imagos dos objetos bons
juntamente com a idéia de sua destrui ção. A preocupação envolve uma maior integração e
um maior crescimento, relacionando-se de uma forma positiva com o sentimento de
responsabilidade do indivíduo, especialmente no que se refere às relações de que fazem
parte os impulsos instintivos.”
6 A ambivalência
[ of Capacity”, p. 731
A ambivalência é um fator do desenvolvimento indicativo do reconhecimento do amor
e do ódio inerentes à mesma pessoa em um mesmo tempo. A ambivalência vem a ser a
tomada de consciência de que a mãe dos tempos tranqüilos é a mesma mãe dos tempos
de turbulência.
Ao início dessa sua nova consciência que se anuncia, que diz respeito às duas mães
presentes em sua mente e que se refere a sua própria ambivalência, o bebê é particular-
mente vulnerável. A mãe precisa deixar seu filho e permitir que ele se separe dela. Aqui
Winnicott recorda-se do Humpty Dumpty:
“Este estado, inicialmente precário, poderia ser apelidado de „estágio do Humpty Dumpty‟,
como sendo o muro no qual Humpty Dumpty precariamen te se empoleira a mãe que não
oferece mais seu colo.”
[ of Capacity”, p. 73]
A partir do perfil traçado em 1954 dos dois aspectos absolutamente distintos relaciona dos a
uma mesma mãe (ver PREOCUPAÇÃO: 3), Winnicott passa a fazer uso de certos ter mos
que podiam descrevê-los melhor, ao mesmo tempo em que tenta evitar parecer por demais
dogmático:
“Seria de grande proveito postular a existência, para a criança imatura, de duas mães —
deveria chamá-las de mãe-objeto e mãe-ambiente? Não desejo inventar nomes que causem
polêmica e, eventualmente, promovam uma rigidez e uma qualidade obstrutiva, mas parece
possível empregar „mãe-objeto‟ e „mãe-ambiente‟ neste contexto para descrever a enorme
diferença existente para o bebê entre os dois aspectos do cuidado que lhe é dispensado, a
mãe como objeto, ou detentora do objeto parcial que pode satisfazer as necessidades
urgentes do bebê, e a mãe como a pessoa que se precavê contra os imprevistos e que provê
ativamente o cuidado, que é o lidar e o manejo geral...
Nesta linguagem, a mãe-ambiente é tudo o que pode ser chamado de afeição e coexistência
sensual; é a mãe-objeto que se torna o alvo da experiência de excitação que é baseada na
tensão pulsional crua. Segundo minha tese, a preocupação aparece na vida do bebê como
uma experiência altamente sofisticada, quando se junta, em sua mente, à mãe-objeto e à
mãe-ambiente. A pro visão ambiental continua a ser de vital importância aqui, embora o
bebê esteja recém-começado a ser capaz de apresentar uma estabilidade interna que faz
parte do desenvolvimento da independência.”
[ of Capacity”, p. 761
O intento de Winnicott era isolar os componentes desse estágio do desenvolvimento onde
se faz o desmame e a separação. Porém, concentrou-se mais detidamente na des truição
operada pelo bebê (quando passou a denominá-la “agressão primária”), que é o que conduz
ao sentimento de culpa, à responsabilidade e à preocupação. Para o bebê essa destruição
(dada através da fantasia) pode abranger tanto a necessidade de domi nar quanto de
proteger.
“Das fantasias que acompanham os intensos impulsos do id fazem parte o ata que e a
destruição. Isso não significa apenas que o bebê imagina devorar o objeto, mas também que
ele deseja tomar posse daquilo que o objeto contém. Se o objeto não é destruído é em
função de sua própria capacidade de sobrevi vência, e não por causa da proteção que o bebê
dá ao objeto. Este é um dos lados da moeda.
O outro lado tem a ver com a relação que o bebê estabelece com a mãe-ambiente. Daí pode
surgir uma proteção tão grande por parte da mãe que a criança se torna inibida ou se afasta.
Este é um elemento positivo da expe riência de desmame do bebê, o que também é uma das
razões de alguns bebês desmamarem a eles próprios.”
[ of Capacity”, p. 761
A idéia de proteção é de vital importância, sendo essencialmente libertadora, uma vez que
desenha as fronteiras entre a responsabilidade do sujeito e a responsabilidade do objeto.
Num exemplo, não é responsabilidade do bebê o fato de a mãe sentir-se perse guida pelo
seu chorar. Entretanto, se a mãefor constantemente perseguida pelas necessi dades do bebê
em função de suas próprias deficiências, certamente poderemos dizer que o bebê crescerá
convencido de que é o responsável pelos sentimentos de sua mãe.
7 A função da colaboração
Ao dedicar-se ao ambiente suficientemente-bom, Winnicott descreve como se apresen ta a
técnica utilizada pelo bebê para que consiga lidar com a ambivalência:
“Em circunstâncias favoráveis cria-se uma técnica a fim de solucionar esta for ma tão
complexa de ambivalência. O bebê experimenta a ansiedade, já que se ele consumir a mãe
irá perdê-la, mas esta ansiedade sofre uma transformação pelo fato de que o bebê tem uma
contribuição a fazer à mãe-ambiente. Há uma confiança crescente em que surgirá uma
oportunidade para contribuir, para oferecer à mãe-ambiente a confiança que tornará o bebê
capaz de supor tar a ansiedade. A ansiedade tolerada desta forma sofre uma modificação
em sua qualidade, transformando-se em sentimento de culpa...
Quando a confiança, neste círculo benigno e na expectativa da oportuni dade, é
estabelecida, o sentimento de culpa que está relacionado aos impulsos do id sofre uma nova
transformação. Por isso precisamos de um termo mais positivo, como „preocupação‟. O
bebê agora já é capaz de estar preocupado, de assumir as responsabilidades por seus
próprios impulsos instintuais e pelas funções inerentes a eles. Isto lhe fornece um dos
elementos construtivos funda mentais do brincar e do trabalho. Mas, no processo de
desenvolvimento, foi a oportunidade de contribuir que possibilitou à preocupação colocar-
se entre as capacidades da criança.”
[ of Capacity”, p. 77]
Mais uma vez Winnicott deixa bastante claro que a mãe não apenas precisa sobreviver à
necessidade cruel que o bebê tem dela, mas também precisa estar presente a fim de acolher
o que é um “gesto de doação”: um “gesto espontâneo”. De fato, sua capacidade de acolhê-
lo torna-se fundamental para sua sobrevivência. Receber sua doação transfor ma sua
ansiedade em preocupação. (Isto vem a constituir-se no fator capital para a tese proposta
por Winnicott, “o uso do objeto”.) (Ver AGRESSÃO: 10.)
Se a mãe apresentar dificuldades em acolher o gesto endereçado a ela pelo bebê, ele pouco
provavelmente desenvolverá uma capacidade integrada para a preocupação:
“Resumidamente, o fracasso da mãe-objeto em sobreviver, ou da mãe-ambiente em
fornecer oportunidades palpáveis para a reparação conduz a uma perda da capacidade de
preocupação, bem como a sua substituição por ansiedades e defesas cruas, tais como a
clivagem e a desintegração. Discutimos inúmeras vezes a ansiedade de separação, mas o
que estou tentando descrever aqui é o que se passa entre as mães e seus bebês e entre os
pais e seus filhos quando não ocorre uma separação, e quando a continuidade externa do
cuidado da crian ça não sofre interrupção. Estou tentando levar em conta as coisas que
ocorrem quando a separação é evitada.”
[ of Capacity”, p. 777
Aqui a tese de Winnicott, como muitas de suas teorias, cai no paradoxo. Segundo ele, a
ansiedade de separação não apresenta uma correlação direta com o medo da separa ção,
mas sim com as dificuldades surgidas por não ser capaz de separar-se.
8 A dimensão temporal
Parte da responsabilidade materna de exercer a função de holding diz respeito ao tempo:
“Um aspecto que merece destaque, em particular no que diz respeito ao conceito da
ansiedade que fica „retida‟, é que a integração temporal foi acrescentada à integração mais
estática dos estágios mais precoces. O tempo é mantido em andamento pela mãe, sendo este
um dos aspectos do funcionamento de seu ego auxiliar; mas o bebê possui um sentido de
tempo pessoal que inicialmente dura um curto período.”
[ of Capacity”, p. 77]
Essa dimensão temporal vem a contribuir com a continuidade do ser — experiência que
é essencial para o crescimento do bebê. O fator temporal que implica a relação mãe-be bê é
estabelecido em The Location of Cultural Experience, texto de Winnicott datado de
967 (ver CRIATIVIDADE: 3).
9 A moralidade inata
Em uma série de palestras proferidas no ano de 1962, intitulada The YoungChildatHome
and at School, Winnicott expôs ao público presente ao University of London lnstitute of
Education suas idéias relativas ao ensino da moralidade. Essas conferências foram
publicadas posteriormente em Moral Education in a Changing Society (Niblett, 1963), e em
1965 em The Maturationai Processes and The FacilitatingEnvironment(W9), sob o título
Morais and Education.
Tanto a moralidade como a imoralidade, de acordo com Winnicott, sofrem a influência de
um viver pautado pelo verdadeiro e falso seif. (Seu texto Ego Distortion in Terms of True
and False Seif havia sido escrito apenas dois anos antes, em 1960.)
“A moralidade mais ardente é a do início da infância. Ela persiste como um tra ço da
natureza humana que atravessa toda a vida do indivíduo. Imortalidade, para o bebê,
significa submeter-se, o que é feito à custa de seu modo de vida pessoal. Por exemplo, uma
criança de qualquer idade pode pensar que comer é algo errado, chegando até mesmo a
morrer por essa idéia. A obediência traz recompensas imediatas. Os adultos facilmente
confundem obediência com crescimento. Os processos de maturação podem ser descartados
através de uma série de identificações, de tal forma que o que surge clinicamente é um falso
seIf, um self de fachada, quem sabe a cópia de alguém; o que poderíamos chamar de um
verdadeiro ou essencial self conserva-se oculto e privado da experiência de viver.”
[ and Education”, p. 102]
A tese proposta por Wjnnjcott nesse trabalho, bem como ao longo de toda a sua obra,
aponta para que o ensino da moralidade não surte qualquer efeito, se a criança primei
ramente não houver desenvolvido um sentimento interno de preocupação. Em outras
palavras, a capacidade do bebê de estar preocupado é a base do sentimento moral e éti co
do adulto, que também faz parte da maturidade emocional e da saúde:
“... a educação moral segue seu curso normal com o advento da moralidade para a criança
através dos processos de desenvolvimento naturais que um bom cuidado facilitam.”
[ and Education”, p. 100]
10 A perversidade
Se ao bebê não foi apresentada a oportunidade de colaborar, e se não for capaz, por causa
disso, de desenvolver o sentimento de preocupação, ele será “mau”, o que, no pre sente
contexto, está vinculado à tendência anti-social (ver ANTI-SOCIAL, TENDÊNCIA: 2).
“A perversidade compulsiva é a última coisa a ser curada, ou abolida, pela educação moral.
A criança sabe intimamente que existe esperança em seu comportamento perverso, e que o
desespero está associado à obediência e à falsa socialização. Para a pessoa anti-social ou
perversa, o educador moral está do lado errado.”
[ and Education”, p. 104]
As palavras de Winnicott referentes à moralidade são características de sua atitude geral
quanto ao crédito depositado nas tendências de desenvolvimento do bebê quan do
sustentadas por pais comuns e atenciosos.
A teoria winnicottiana do estágio de preocupação vem a colaborar para uma melhor
formatação da posição depressiva colocada por Melanie Klein ao destacar o papel
desempenhado pelo ambiente. O que é fundante na teoria de Winnicott é o reco
nhecimento, por parte da mãe, do gesto de doação e sua capacidade de acolher essa doação.
No setting analítico esse paradigma estende-se à capacidade do analista de acolher a
“doação” do analisando. Christopher BolIas desenvolveu exatamente esse tema em sua obra
Tlie Psychoanalist‟s Celebration oftheAnalysand (1989b).
Referências
1954-55 The Depressive Position in Normal Emotional Development [
1958 Psycho-Analysis and the Sense of Guilt [
1963 The Development of the Capacity for Concern [
1963 Morais and Education [
PSIQUE-SOMA
1 A mente e o psique-soma
2 A negligência viva
3 A mãe aterrorizante
4 Catalogando reações
5 A doença psicossomática
6 Uma força positiva

A integração mente-corpo é descrita por Winnicott como uma trama psicossomática; chega
a referir-se à “psique que habita o soma „
A psique-que-habita-o-soma reflete o efeito bem-sucedido do processo de “personalização”
que se dá como resultado do “toque” materno no bebê no decorrer fase de holding. Este é o
período de dependência absoluta, quando a mãe saudável encontra-se no estado de
preocupação materna primária.
Na obra de Winnicott a “psique” é descrita como a “elaboração imaginativa d elementos,
sentimentos e funções somáticas”, o que muitas vezes apresenta-se co sinônimo de
“fantasia „ realidade interna” e self.
Se a mãe não foi capaz de proporcionar um toque suficientemente-bom decurso da fase de
holding, jamais será possível ao bebê sentir-se integrado a seu próprio corpo.
Conseqüentemente, ocorre uma cisão entre mente e corpo.
A doença psicossomática constitui-se em um sintoma de que algo não correu bem no
princípio do desenvolvimento emocional do indivíduo.
1 A mente e o psique-soma
A contribuição feita por Winnicott à psicossomática inicia-se em um trabalho de 1949,
Mmd and Its Relation to the Psyche-Soma, que foi em parte inspirado por um comentário
de Ernest Jones feito em um texto de 1946, no qual ele escreve, “não penso que a mente
exista como uma entidade”. Winnicott concorda, mas acrescenta que em sua prática clínica,
observa existirem pacientes que sentem sua mente em algum outro lugar, como se fosse
uma entidade separada.
“Esta citação.., estimulou-me a tentar buscar minhas próprias idéias em torno desse assunto
tão vasto e difícil. O esquema corporal, com seus aspectos temporal e espacial, fornece um
valioso exemplo do diagrama que o indivíduo possui de si mesmo. A partir daí acredito que
não existe uma localização clara para a mente. Na prática clínica nos deparamos com a
mente como uma entidade situada em algum lugar pelo paciente...”
(Mind and Its Relation”, p. 243)
Winnicott emprega o termo “mente” a fim de descrever o funcionamento intelectual similar
a uma dissociação do indivíduo que sente sua mente como uma entidade que não participa
de seu sentimento de self. Em um momento posterior de sua obra, Winnicott refere-se a
este fenômeno como “clivagem do intelecto” (ver SELF: 7). E a essa clivagem da
personalidade que Winnicott recorre ao escrever sobre as doenças psicossomáticas.
Em seu estudo Winnicott tece uma crítica aos médicos que insistem em enxergar apenas o
componente fisico do paciente, não vendo que as desordens psicossomáticas situam-se
“entre o mental e o físico”.
“Tais médicos estão completamente desorientados com sua teoria; curiosamente, muitos
deles omitem a importância que o corpo físico possui, do qual o cérebro faz parte.”
[ and Its Relation”, p. 2441
Para Winnicott, no desenvolvimento sadio, a psique e o soma não são distinguíveis, pois é
o bebê e a criança em desenvolvimento que estão implicados. O indivíduo que é sadio
supõe que seu sentimento de self é parte de seu corpo.
“Eis um corpo. A psique e o soma não podem ser distinguidos, a não ser pela forma como
os vemos. Podemos nos voltar para o corpo ou para a psique que se desenvolve. Considero
que aqui a palavra psique signifique a elaboração imaginativa dos elementos, sentimentos e
funções somáticas, ou seja, a atividade física. Sabemos que essa elaboração imaginativa
depende da existência e do funcionamento saudável do cérebro, em especial de
determinadas partes. A psique, entretanto, não é percebida pelo indivíduo como localizada
no cérebro, ou mesmo em algum outro lugar.
Pouco a pouco os aspectos da psique e do soma relacionados à pessoa em crescimento
envolvem-se em um processo de inter-relação. Essa inter-relação existente entre psique e
soma constitui-se em uma fase inicial do desenvolvi mento do indivíduo.”
[ and Its Relation”, p. 244]
Essa “inter-relação entre psique e soma” constitui o ponto central a partir do qual o
sentimento de self se desenvolve.
“Em um estágio posterior, o corpo vivo, que possui imites, um interior e um exterior, é
sentido pelo indivíduo para que possa formar o núcleo do self imaginativo.”
[ and Its Relation”, p. 244]
Como consequência, o núcleo do self que origina-se da relação precoce mãe-bebê encerra a
noção de uma integração entre mente e corpo (ver SER: 2, 3; SELF: 3, 5).
“Admitamos que a saúde no princípio do desenvolvimento do indivíduo esteja vinculada à
continuidade do ser. O início do psique-soma se dá juntamente com determinada linha de
desenvolvimento que faz com que a continuidade do ser não seja interrompida; em outras
palavras, para que haja um desenvolvimento saudável do psique-soma precoce existe a
necessidade de um ambiente perfeito. Inicialmente essa necessidade é absoluta.”
[ and Its Relation”, p. 245]
Winnicott está se referindo à total identificação da mãe ao bebê, que é precisamente aquilo
que origina um ambiente perfeito. Isto quer dizer que ela é capaz de segurar, manejar e
cuidar de seu bebê com interesse, protegendo-o, e com todos os elementos do amor. Se tudo
correr bem nos primeiros estágios, isso proporcionará ao bebê o sentimento de ser e um self
alojado em seu corpo (ver HOLDING: 3; PREOCUPAÇÃO MATERNA PRIMÁRIA: 2).
2 A negligência viva
Quando a mãe deixa o estado de preocupação materna primária, passa a desadaptar-se e a
faltar a seu bebê, o que é obtido através do processo de recuperação e de pensar em si
própria. Este processo tão necessário marca o início da desilusão do bebê. E nesse momento
do desenvolvimento emocional, situado entre a ilusão e a desilusão, entre a dependência
absoluta e a relativa, que a compreensão intelectual do bebê se desenvolve.
“A necessidade de um ambiente bom, inicialmente absoluto, rapidamente torna-se relativa.
A mãe boa comum é suficientemente-boa. Se ela for suficientemente-boa, o bebê torna-se
capaz de permitir-lhe faltas de sua atividade mental. Isso aplica-se não apenas aos impulsos
da pulsão, mas também às for mas mais primitivas de necessidade do ego, até mesmo à
necessidade de um cuidado negativo ou de uma negligência viva. A atividade mental do
bebê transforma um ambiente suficientemente-bom em um ambiente perfeito, ou seja,
transforma a falha relativa da adaptação em uma adaptação bem sucedi da. O que desobriga
a mãe de ser quase perfeita é a compreensão do bebê...
A mente, então, tem como uma de suas raízes um funcionamento variável do psique-soma,
o que se relaciona com a ameaça à continuidade do ser que resulta de qualquer falha da
adaptação ambiental (ativa). O que se segue é que o
190
desenvolvimento da mente é predominantemente influenciado por fatores que não são
especificamente pessoais para o indivíduo, o que inclui acontecimentos fortuitos.”
[ and Its Relation”, p. 246]
A capacidade que o bebê possui de fazer uso de seu aparelho intelectual depende de seu
funcionamento efetivo no ambiente inicial, bem como da ilusão. Como a mãe falha (sendo
um ser humano ela sempre falhará), o bebê compensa sua inconsistência fazendo uso de sua
capacidade mental a fim de preencher a lacuna através da elaboração das coisas. Dessa
forma a desilusão contribui positivamente para o desenvolvimento do intelecto do bebê (ver
DEPENDÊNCIA: 5; DEPRESSÃO: 3; MÃE: 11). Entretanto, existem perigos inerentes a
esse estágio do desenvolvimento do bebê.
3 A mãe aterrorizante
O pior dos ambientes, de acordo com Winnicott, é o inconstante — aquele em que o bebê é
forçado a compensar intelectualmente a inconsistência de uma mãe que por vezes é boa,
outras, má. Isso origina a defesa da intelectualização.
11 tipos de falha materna, em especial uma conduta inconstante, produzem uma
hiperatividade do funcionamento mental. Nesse aumento excessivo da função mental
reativa a uma maternagem inconstante, percebemos que pode ocorrer uma oposição entre
mente e psique-soma, desde que em reação a este estado ambiental anormal o pensamento
do indivíduo passe a assumir e organizar o psique-soma, ao passo que na saúde esta é uma
função do ambiente. Na saúde a mente não tenta usurpar a função do ambiente, mas torna
possível a compreensão e eventualmente o uso de sua falha relativa.”
[ and Its Relation”, p. 2461
Com a “usurpação” das funções do ambiente pela “mente”, o bebê/criança emprega seu
intelecto para transformar-se na “mãe”. Posteriormente, em Ego Distortion in Terms of
True and False Self, de 1960, Winnicott vê a intelectualização como um falso self
intelectual (ver SELF: 7, 8).
“... nos perguntamos o que ocorreria se a pressão exercida sobre o funciona mento mental,
organizado como uma defesa contra um ambiente precoce, fosse cada vez maior.
Poderíamos esperar encontrar estados confusionais, além de (em casos extremos)
deficiência mental não decorrente de imperfeições do teci do cerebral. Como efeito mais
comum de um pequeno grau de cuidado materno aterrorizante nos estágios iniciais,
encontramos o funcionamento mental que transforma-se em algo em si, praticamente
substituindo a mãe boa, tornando-a desnecessária. Clinicamente, isto coincide com a
dependência da mãe real e com um falso crescimento pessoal baseado na submissão. Este
constitui-se no mais desconfortável dos estados, particularmente porque a psique, na mente
do indivíduo, é „seduzida‟ por essa mente, afastando-se da relação originalmente tida com o
soma. O que resulta daí em uma mente-psique patológica.”
[ and Its Relation”, pp. 246-247]
Winnicott faz aqui uma descrição do indivíduo que precisa localizar o sentimento do self
em sua mente, o que posteriormente assume a função de mãe-ambiente. O perigo dessa
defesa é que a identidade do indivíduo não pode ser encontrada no corpo, o que provoca na
pessoa o sentimento de um crescente vazio, além de uma futilidade interior (ver SELF: 6,
7).
4 Catalogando reações
A mente-psique é o equivalente da clivagem do intelecto que está associada às defesa
esquizóides; como Winnicott pôde concluir a partir de sua prática clínica, ela possui uma
localização física, freqüentemente a cabeça:
“É evidente que não pode haver uma parceria entre a mente-psique e o corpo. Mas o
indivíduo fornece uma localização à mente-psique, no interior ou no exterior da cabeça,
com algum tipo especial de relação com ela. Esta é uma importante fonte das dores de
cabeça como um sintoma.”
[ and Its Relation”, p. 247]
Winnicott acredita que algumas dessas dificuldades relacionadas à clivagem mente-corpo
possam ser a conseqüência de um nascimento traumático, O nascimento nã é
necessariamente algo traumático, embora alguns o sejam.
“Tipicamente, o nascimento acarreta uma perturbação excessiva da continuidade em função
das reações às invasões. A atividade mental que descrevo nesse momento diz respeito à
memorização precisa ocorrida no decorrer do processo de nascimento. Em meu trabalho
psicanalítico, por vezes me deparo com regressões inteiramente controladas e que, ainda
assim, retrocedem até a vida pré-natal. Pacientes regredidos de uma forma ordenada passam
pelo pro cesso de nascimento inúmeras vezes. Causou-me surpresa a prova convincente que
tive de que, no decorrer do processo de nascimento, o bebê não apenas memoriza cada
reação que perturbe a continuidade do ser, mas também pare ce memorizá-las em sua
ordem correta... O funcionamento mental do tipo que descrevo, que poderíamos chamar de
memorização ou catalogação, pode ser extremamente ativo e preciso no momento do
nascimento do bebê... é preciso deixar bastante claro que esse tipo de funcionamento
mental é um empecilho para o psique-soma, ou para a continuidade do ser que constitui o
self do ser humano.., esse tipo de catalogação do funcionamento mental age como um
corpo estranho se estiver associado a uma falha adaptativa do ambiente que esteja além da
compreensão ou daquilo que é esperado.”
[ and Its Relation”, p. 248]
Por “catalogação” Winnicott entende a lembrança inconsciente da reação a um trauma. Este
conceito baseia-se em sua convicção de que recordamos tudo que nos acontece, tanto
corporal como emocionalmente, Por exemplo, se a experiência do nascimento for súbita,
será traumática. Ela será armazenada pelo inconsciente, porém não poderá
192
ser processada. É isso que Winnicott quer dizer com catalogação. A memória está loca
lizada em alguma parte do corpo, mas não é integrada como experiência. Por meio da
análise o paciente revisita os momentos iniciais do trauma através da regressão ocorri da na
sessão analítica. Desta forma, surge a oportunidade de dar início a uma experiência
integradora pela primeira vez. Regredindo a fim de processar o trauma, o paciente torna-se
capaz de prosseguir e começar a viver, havendo passado por traumas e os situando no
passado (ver REGRESSÃO: 5, 6).
5 A doença psicossomática
Winnicott considera como sendo o objetivo inconsciente da doença psicossomática
“conduzir a psique para longe da mente, de volta à associação íntima original com o soma”
(Mmd and Its Relation, p. 254). O tema da doença psicossomática e do seu significado em
termos da motivação inconsciente do paciente é explorado por Winnicott em um trabalho
datado de 1964, Psycho-Somatic !Ilness in its Positive and Nega tive Aspects, exposto à
Sociedade de Pesquisa Psicossomática.
Este trabalho analisa o dilema interno enfrentado pelo médico que trata de pacientes
psicossomáticos, e como a dissociação mente-corpo em seu bojo é representada e
externalizada, frequentemente para as mais diversas especializações da profissão médica.
“Muitos pacientes não conseguem dividir o cuidado médico em apenas duas partes; essa
divisão é feita em vários fragmentos. Como médicos nos vemos atuando no papel de um
desses fragmentos. Empreguei a expressão „dispersão dos agentes responsáveis‟ para
descrever essa tendência.”
(Isto foi pela primeira vez citado em 1958 na resenha escrita por Winnicott para o trabalho
de Michael Balint, The Doctor, His Patient and the illness.)
“Tais pacientes nos fornecem os exemplos através dos laudos de casos do ser viço social
em que vinte, trinta ou mais instrumentos foram utilizados com o intuito de mitigar a
aflição das famílias. Pacientes possuidores de múltiplas dissociações também exploram as
divisões da profissão médica...”
t”Psycho-Somatic Illness and Its Positive and Negative Aspects”, 1964, p. 1041
A fim de descrever o papel desempenhado pelo médico que trata de pacientes
psicossomáticos, Winnicott ilustra com uma metáfora a impossibilidade que é a doença
psicossomática.
“4. O médico que trata de pacientes psicossomáticos orgulha-se de sua habilidade em
cavalgar dois cavalos simultaneamente, com um pé em cada sela e com ambas as rédeas em
suas mãos ágeis.”
[ Illness”, p. 1031
Os sintomas surgidos no corpo não se constituem, para o médico que trata de pacientes
psicossomáticos, em uma doença, mas apontam para uma dissociação intrapsíquica.
“7. A doença nas desordens psicossomáticas não é um estado clínico expresso em termos
de uma patologia somática ou de um funcionamento patológico (colite, asma, eczema
crônico). E a persistência da clivagem da organização egóica do paciente, ou de múltiplas
dissociações, que constitui a verdadeira doença.”
[ Illness”, p. 103]
Essa clivagem da personalidade tende a enraizar-se profundamente, consequentemente
tornando o tratamento extremamente difícil.
“Quero deixar claro que as forças que atuam no paciente são tremendamente poderosas.”
]“Psycho-Somatic Illness”, p. 104]
A força da clivagem interna reflete-se frequentemente na provisão ambiental, como foi
descrito acima, quando o paciente consegue mobilizar a maior quantidade possível de
clínicos. Isso acaba funcionando como uma representação externa das dissociações
existentes no interior. O problema é que como os diversos ramos da profissão médica
continuam a tratar o paciente como se seu problema fosse tão-somente físico, a disso‟
ciação intrapsíquica responde à trama externa entrincheirando-se ainda mais.
Por outro lado, Winnicott deixa claro não ser proveitoso confrontar o paciente com aquilo
que ele faz. Isso serviria apenas para ampliar sua defesa intelectualizada, fazendo com que
permaneça no mesmo lugar.
“Imaginemos que dentre meus leitores exista um paciente meu, um paciente portador de
uma variedade de distúrbio que poderíamos rotular como psicossomático. Provavelmente
esse paciente não se importará por haver sido citado, o que não é o problema aqui. O
problema é que, para mim, não seria possível fazer uma avaliação aceitável de algo que
ainda não se tornou aceitável pela economia interna do paciente. Somente a continuidade
do tratamento seria útil em um caso real. Com o passar do tempo, o paciente cuja existência
imagino pode vir a libertar-me do dilema que sua enfermidade me coloca, o dilema que é o
tema de meu estudo. Porém, uma coisa não seria de meu agrado, ou seja, seduzi-lo com a
finalidade de que declare concordar comigo, o que implica um abandono do psique-soma
para cair em uma trama intelectual.”
(”Psycho-Somatic I) Iness”, p. 106]
Em outras palavras, o paciente portador de uma doença psicossomática está preparado para
compreender algo a respeito de si próprio apenas no plano intelectual. Foi isso que fez
durante toda sua vida. A alternativa é dar tempo ao paciente para que se recupere da
dissociação.
“Estarei eu transmitindo minha idéia de que na prática existe uma real e insu perável
dificuldade, a dissociação do paciente, que, como uma defesa organizada, mantém em
isolamento a disfunção somática e o conflito da psique? Dar tempo e condições favoráveis
ao paciente fará com que ele se recupere da dis
194
sociação. As forças integradoras do paciente farão com que ele abandone as defesas.
Tentarei fazer uma exposição que evite o dilema.
Está bastante claro que estou fazendo uma distinção entre o verdadeiro caso psicossomático
e o quase universal problema clínico do envolvimento funcional nos processos emocionais
e nos conflitos mentais. Necessariamente não descrevo meu paciente, cuja dismenorréia
está relacionada aos componentes anais da organização genital, como um caso
psicossomático, muito menos o homem que precisa urinar urgentemente em determinadas
circunstâncias. Esta é a vida, e o viver. Mas aquele paciente que afirma que sua hérnia de
disco se deve a uma corrente de ar será rotulado de psicossomático e, assim, denominado
nesse estudo.”
6 Uma força positiva
[ Illness”, p. 106]
Winnicott acredita existir uma força integrante da personalidade que, dadas as
circunstâncias apropriadas — um ambiente suficientemente-bom —, consegue bater a
defesa que, embora tenha se estruturado para defender o seif, agora o pressiona.
O ELEMENTO POSITIVO DA DEFESA PSICOSSOMÁTICA
A doença psicossomática é o negativo de um positivo; o positivo é a tendência voltada para
os vários aspectos da integração, e inclui o que chamei de personalização. O positivo é a
tendência herdada por cada indivíduo para conseguir alcançar uma unidade para o psique e
o soma, uma identidade experimental do espírito, ou psique, e a totalidade
dofuncionamentofísico. Essa tendência conduz o bebê e a criança a um funcionamento
corporal no qual e fora do qual desenvolve-se o funcionamento da personalidade,
completado pelas defesas contra a ansiedade dos mais diversos graus e tipos...
Este estágio do processo de integração poderia ser chamado de estágio do „EU SOU‟.
Gosto desse nome porque faz-me lembrar da evolução da idéia de monoteísmo e da
designação de Deus como o „Grande SOU‟. Em termos do brincar infantil esse estágio é
coroado (embora em uma idade mais avançada que tenho em mente agora) pelo jogo do
„EU Sou o Rei do Castelo: você é um patife imundo‟. E a significação do „eu‟ e do „eu sou‟
que é modificada pela dissociação psicossomática.”
[ Illness”, p. 112]
Na doença psicossomática o estágio do desenvolvimento do “eu” e do “não-eu” fica
suspenso. O ambiente que não é suficientemente-bom cria a tendência de uma desordem
psicossomática, o que se relaciona a:
“um ego fragilizado (dependente em grande parte de uma maternagem que não foi
suficientemente-boa) e a um débil desenvolvimento pessoal;
e/ou um afastamento do EU SOU e do mundo tornado hostil pelo repúdio do indivíduo do
não-eu, para uma forma especial de clivagem própria da mente, mas que segue linhas
psicossomáticas.
Dessa forma, a doença psicossomática acarreta uma clivagem da personalidade do
indivíduo, que apresenta uma frágil ligação entre a psique e o soma, ou uma clivagem
organizada na mente como defesa contra a perseguição generalizada empreendida pelo
mundo que havia sido repudiado. Entretanto, persiste na pessoa que é doente uma
tendência, que não é generalizada, de romper a ligação psicossomática.
Eis o lado positivo da questão somática.”
[ Illness”, p. 1131
O tratamento do paciente com dissociações tão profundas tem que ser levado a tem com
uma paciência extrema. Winnicott compara a defesa psicossomática à defesa anti-social,
porque por baixo da defesa encontra-se a esperança. A própria existência clivagem
demonstra uma falha do desenvolvimento, da mesma forma como a tendência anti-social
demonstra a privação. Existe a esperança de que a comunicação seja recebida e de que surja
uma chance de que as forças integradoras tenham êxito.
“Temos uma tarefa bastante difícil, que é a de termos uma visão unificada do paciente e da
doença sem nos adiantarmos a sua capacidade de alcançar a integração de uma unidade.
Com bastante freqüência nos contentamos com isso, com sua manipulação da
sintomatologia, com uma relação enganosa com o paciente que não é voltada para a cura da
doença real, sendo ela a clivagem de sua personalidade organizada por um ego fragilizado,
e mantida como uma defesa contra a ameaça de aniquilação no momento da integração.
A doença psicossomática, assim como a tendência anti-social, apresenta esse aspecto
esperançoso, ou seja, que o paciente entre em contato com a possibilidade de uma unidade
psicossomática (ou personalização) e com a dependência, mesmo que suas condições
clínicas demonstrem objetivamente o contrário através da clivagem, das diversas
dissociações, das tentativas persistentes de clivagem da provisão médica, e de um cuidado
do se/f onipotente.”
[ Illness”, p. 114]
Um ano antes de sua morte, ocorrida em 1971, Winnicott colocou em destaque a ime sa
importância do início da vida e do amor da mãe como os pré-requisitos para o segmento de
ser alguém em um corpo:
“Ser amado no início da vida significa ser aceito. Do ponto de vista da criança, se a figura
da mãe tiver uma atitude do tipo: „eu o amarei se você for bom, limpo, sorrir, tomar tudo
etc., isso apresenta-se como uma distorção. Essas sanções podem vir mais tarde, mas no
princípio a criança possui um projeto de normalidade que, em grande parte, é uma questão
de forma e funcionamento de seu corpo... E verdadeiramente no princípio que a criança
necessita ser aceita como tal para que possa se beneficiar dessa aceitação.”
[ the Basis for Self in Body”, p. 264]
196
Essa aceitação corporal e psicológica é exatamente aquilo que o paciente (inconsciente
mente) espera encontrar dentro do contexto da relação analítica. Também é o que o analista
espera oferecer através do trabalho feito dentro do setting e da posição analítica.

REGRESSÃO
1 Uma teoria da regressão
2 Classificação
3 Dois tipos de regressão
4 O sentir-se real ou o sentimento de futilidade
5 “Obtemos êxito ao falharmos”
6 Adaptação, e não arte
7 A confiança renovada
8 Um setting que inspira confiança
9 A distinção entre desejo e necessidade
10 Regressão e isolamento
A regressão à dependência pode se dar no setting analítico como uma forma de reviver o
ainda não experimentado trauma sucedido no momento da falha ambiental precoce. O
setting analítico fornece a potencialidade para que o paciente experiencie um ambiente de
holding, provavelmente pela primeira vez. Este holding propicia ao paciente a esperança
inconsciente de que, em alguma oportunidade, o trauma original brotará para ser vivido e,
portanto, vir à luz. Essa experiência, por sua vez, possibilitará ao paciente, enquanto
regredido à dependência, buscar e descobrir o verdadeiro self. Essa busca, dentro do
contexto da relação analítica, participa do processo de cura.
O isolamento, ou o estado de isolamento, é um tipo de regressão que não pode se dar sem
que o analista reconheça e vá ao encontro da necessidade de holding do paciente.
A regressão à dependência, algo extremamente importante para todos os tipos de paciente,
deve ser distinguida do paciente “regredido‟ A primeira está relaciona da ao paciente que,
estando em análise, regride à dependência em função da relação transferencial; o segundo
está relacionado àquele paciente que ainda não pôde alcançar a maturidade do
desenvolvimento emocional, provavelmente por causa de uma falha ambiental precoce.
A teoria da regressão construída por Winnicott surgiu entre o final da década de 40 e o
início da década de 50. Em 1954 apresentou seu texto, Metapsychological and Clinica!
Aspects of Regression within the Psycho-Analytical Set-Up, à Sociedade Psicanalítica
Britâni ca. É um longo e denso estudo que abarca muitos dos aspectos do trabalho com
pacientes que regridem ou são regredidos. Inclui recomendações sobre a técnica de trabalho
com um referencial psicanalítico com pacientes para os quais a interpretação analítica não
pode ser empregada e que necessitam, em lugar dela, da aplicação de um holding literal no
direcionamento das sessões.
Resumidamente, a regressão significa o retorno a um estágio inicial do desenvolvi mento.
No trabalho analítico, a regressão do paciente à dependência está freqüente mente associada
a uma revisitação das experiências não-verbais precoces, o que pode, muitas vezes, estar
vinculado a mecanismos psicóticos. Essa revisitação ocorre dentro do contexto da relação
de transferência, uma vez que o ambiente de holding presente no setting analítico tenha
sido estabelecido e o paciente seja capaz de depositar confiança no analista. No interior de
cada paciente, acredita Winnicott, existe uma força inata que o empurra na direção da saúde
e do desenvolvimento.
“Para mim, a palavra regressão significa simplesmente o reverso do progresso. Este mesmo
progresso constitui-se na evolução do indivíduo, da psique-soma, da personalidade e da
mente (eventualmente) com a formação do caráter e a socialização. O progresso tem seu
início em uma data certamente anterior ao nascimento. Existe uma pulsão biológica por trás
do progresso...
Um dos dogmas da psicanálise afirma que a saúde implica uma continuidade que diz
respeito a esse progresso evolutivo da psique, e que a saúde é a maturidade do
desenvolvimento emocional apropriada à idade do indivíduo. Essa maturidade refere-se ao
processo evolutivo.”
1”MetapsychologicaJ and Clinical Aspects of Regression within the Psycho-Analytical Set-
Up”, 1954, pp. 280-2811
Isto levou Winnicott à conclusão de que na regressão...
não pode existir simplesmente um reverso do progresso. Para que este progresso seja
revertido é preciso haver no indivíduo uma organização que possibilite a ocorrência da
regressão.”
[ and Clinical Aspects”, p. 281]
Em outras palavras, é preciso que o paciente tenha uma capacidade interna (organização
interna) que possibilite a ele fazer uso do fato de estar regredido.
Winnicott aponta para dois aspectos dessa “organização” psicológica:
“Uma falha de adaptação por parte do ambiente que resulta no desenvolvi mento de um
falso seu.
A crença na possibilidade de uma correção da falha original representada por uma
capacidade latente de regressão que envolve uma complexa organização egóica.”
[ and Clinical Aspects”, p. 2811
206
O falso self desenvolve-se para que possa defender o núcleo do self, o que ocorre como um
efeito das reações às intrusões.
A elaboração da teoria de Winnicott do verdadeiro e falso self viria seis anos mais tarde,
em 1960. No entanto, em 1954, quando Metapsychological and Clinical Aspects of
Regression within the Psycho-Analytical Set-Up foi publicado, Winnicott estava em pleno
processo de elaboração de sua teoria do verdadeiro e falso se!f (ver SELF: 7, 10).
A segunda frase da citação contém um importante elemento da teoria do desenvolvimento
emocional de Winnicott. Ele possuía a “crença” na capacidade do indivíduo, em um nível
inconsciente, de saber sobre a possibilidade de encontrar uma oportunidade de
compensação da ruptura inicial. Essa pulsão inconsciente indica a existência de uma
“complexa organização egóica”:
“Ao nos referirmos à regressão em psicanálise, estamos falando da existência de uma
organização egóica e do perigo do caos. Existe muito a pesquisar nesse campo no que diz
respeito a como o indivíduo armazena suas lembranças, idéias e potencialidades. E como se
existisse a expectativa de que surjam condições favoráveis que justifiquem a regressão e
ofereçam uma nova chance de avanço no desenvolvimento, tornado impossível ou
inicialmente dificultado pela falha do ambiente.”
[ and Clinical Aspects”, p. 281]
Em um texto datado de 1949, Mmd and its Relation to the Psyche-Soma, Winnicott faz
referência ao armazenamento de lembranças empregando a palavra “catalogação”:
memórias primitivas de detalhes de sensações corporais tidas antes, durante e após o
nascimento (ver PSIQUE-SOMA: 4).
As lembranças podem ser divididas em duas categorias.
A primeira delas consiste nas lembranças que podem ser pensadas, por mais que o bebê não
seja traumatizado (mas excessivamente invadido) pela experiência. Para Winnicott, a
invasão denota o impacto de algo externo que sucede ao bebê — nesse sentido, o
nascimento pode ser entendido como a primeira invasão. Em si a invasão não causa
nenhum prejuízo ao desenvolvimento do bebê; ela é, de fato, um componente necessário ao
desenvolvimento saudável. A invasão traumática ocorre se o bebê não for capaz, por
alguma razão — devido ao ambiente ou a uma condição particular—, de pro cessar o
ocorrido. Se o bebê não estiver preparado para qualquer que seja a experiência, ele é
obrigado a reagir. Portanto, são as reações à invasão que provocam as distorções do
desenvolvimento emocional (ver AMBIENTE: 5).
O segundo grupo reúne as memórias que são impensáveis; são elas intrusões flagrantes
ocorridas ao bebê em um período em que não estava preparado para processá-las. E
exatamente este agrupamento de lembranças que é catalogado (ver AMBIENTE:
7; PSIQUE-SOMA: 4). Ambos os tipos de lembranças são, é claro, um misto de
inconsciente, pré-consciente e lembranças cognitivas.
Em sua teoria da regressão, Winnicott coloca a questão de que as memórias impensáveis
estão “congeladas”; mas, o que é de extrema importância, acredita que, junta mente com
este congelamento, encontramos a esperança de que haverá uma oportunidade, em função
de uma nova provisão ambiental, de executar o necessário descongelamento. É isso o que
quer dizer quando refere-se à experiência que é vivida pela primeira vez.
O congelamento aponta para uma “organização egóica”, uma vez que demonstra, ser o bebê
capaz de estruturar uma dependência contra o ataque do ambiente, o que sentido como
sendo desferido contra o self. A defesa, assim, pode ser entendida com uma reação normal
a um ambiente que não é suficientemente-bom.
“Podemos incluir em uma teoria do desenvolvimento do ser humano a idéia de que é
normal e saudável para o indivíduo poder defender o se/f contra uma falha específica do
ambiente através de um congelamento da situação. Junto a isso temos a suposição (que
pode se transformar em uma esperança consciente) de que haverá uma oportunidade
vindoura de uma outra experiência, na qual a situação de falha será descongelada e
revivida, estando o indivíduo em um estado regredido, e em um ambiente que propicie a
adequada adaptação. Essa teoria, então, formula a hipótese de que a regressão é uma
parcela do pro cesso de cura. Na verdade, é um fenômeno normal que pode ser pesquisado
em pessoas sadias.”
( Metapsychological and Clinical Aspects”, p. 281)
Winnicott enxerga uma relação entre o “congelamento da situação de falha” e o “ponto de
fixação” proposto por Freud. A diferença, insinuada em vez de explicitada, é que c ponto de
fixação está situado em um estágio mais avançado do desenvolvimento emocional do que o
“congelamento da situação de falha”, que se dá entre os estágios d dependência absoluta e
relativa.
A elaboração e o desenvolvimento da idéia da existência de uma força inconsciente no
íntimo de cada indivíduo que busca por um ambiente facilitador, é desenvolvida pela
psicanálise contemporânea, em especial em termos de “pulsão de destino” na obra de
Christopher Bollas (1989a).
As idéias de Winnicott referentes à regressão vieram à tona particularmente durante o
trabalho feito com uma paciente que, no decurso da análise, precisou retornar a trauma que
foi sua experiência de nascimento. Foi por meio de sua experiência com essa paciente, que
permitiu uma regressão plena, que pôde se dar sua original contribuição para a
compreensão da regressão na prática psicanalítica e a necessária adaptação da técnica.
A paciente, uma mulher que contava cerca de quarenta anos de idade, já havia passado por
uma longa análise, porém chegou a Winnicott com “o núcleo de sua doença ainda
intocado”:
“Logo ficou bastante claro para mim que essa paciente deveria passar por uma regressão
muito severa, ou desistir de lutar. Optei, portanto, pela regressão, deixando que ela levasse
a paciente aonde quer que fosse; finalmente, essa regressão atingiu o limite da necessidade
da paciente. Desde então tem havido uma progressão natural, onde o verdadeiro self é que
está em ação, em vez do falso self...
Na análise pela qual essa paciente havia passado anteriormente, ocorre ram certos
incidentes onde ela se jogava para fora do divã de uma forma histó-
209
rica. Esses episódios foram interpretados da maneira como são geralmente interpretados os
fenômenos histéricos desse tipo. Na profunda regressão acontecida em sua nova análise,
ficou bem claro qual era o significado dessas que das. No curso de dois anos de análise
comigo, essa paciente pôde regredir incontáveis vezes a um estágio inicial que, com toda
certeza, é pré-natal. O processo de nascimento teve que ser revivido. Finalmente, reconheci
como a necessidade inconsciente da paciente de reviver o nascimento permeava aquilo que
anteriormente foi a queda histérica do divã.”
[ Mind and Its Relation”, p. 249]
Winnicott não deixa de enfatizar que o trabalho com pacientes regredidos exige um
gigantesco esforço por parte do analista.
“O tratamento e a direção dada a esse caso exigiu de mim tudo que possuía como ser
humano, analista e pediatra. Precisei crescer como pessoa no decorrer do tratamento, o que
foi bastante penoso. Com satisfação desejaria evitar isso. Particularmente, precisei aprender
a revisar minha técnica sempre que dificuldades eram colocadas. Isso sempre ocorreu em
uma dúzia ou mais de fases onde surgia resistência. Sua causa residia no fenômeno da
contratransferência, que demandava uma auto-análise por parte do analista.”
[ Metaphysichal and Clinical Aspects”, p. 280]
Um dos pré-requisitos fundamentais para o trabalho com pacientes regredidos no setting
analítico é que o analista conheça a natureza do trabalho a que se propôs.
“O que conseguimos fazer nos possibilita cooperar para que o paciente dê continuidade ao
processo, ou seja, aquilo que em cada paciente possui um nt método seu e que segue seu
próprio caminho; os fatores mais importantes desse processo derivam do paciente e não de
nós, como analistas.”
[ Methaphysichal and Clinical Aspects”, p. 278]
Embora Winnicott admita tocar em seus pacientes regredidos, devemos acrescentar que, em
sua obra, o conceito de holding é predominantemente metafórico. O analista pode
proporcionar literalmente um holding sem que haja o toque (ver COMUNICAÇÃO: 3;
ÓDIO: 4; HOLDING: 3).
2 Classificação
O analista acompanha o processo de seu paciente, adaptando-se as suas necessidades
paralelas e, é claro, à habilidade da mãe suficientemente-boa de adaptar-se às necessidades
do bebê. O analista deve, entretanto, estar atento às suas próprias limitações, além de muito
cuidadoso com o diagnóstico e a classificação.
“Precisamos ter em mente que, através do método legítimo que é a escolha cuidadosa do
caso, podemos, mas freqüentemente evitamos, nos deparar com certos aspectos da natureza
humana que nos levam para além de nosso arcabouço técnico.
A escolha do caso implica uma classificação. De acordo com minha presente proposta,
agrupo os casos segundo o arcabouço técnico que eles exigem do analista.”
V- Metapsychological and Clinical Aspects”, p. 2781
Winnicott identifica três grupos de pacientes dentro do contexto dos estágios de
dependência.
O primeiro grupo conseguiu atingir a maturidade e, portanto, é capaz de estabelecer uma
distinção entre eu e não-eu. A técnica utilizada com esse tipo de paciente “é a mesma da
psicanálise criada por Freud no início do século” (Metapsychological and Clinical Aspects,
p. 279). Esses pacientes conseguiram atingir o estágio de “rumo à independência”, sendo
comumente classificados como psiconeuróticos.
O segundo grupo pôde alcançar o estágio de dependência relativa. A técnica aplicada em
tais casos é aproximadamente a mesma empregada no primeiro grupo, porém com destaque
na sobrevivência do analista. Em 1968, o tema da sobrevivência conduziu a teoria de
Winnicott ao “uso do objeto” (ver AGRESSÃO: 10).
O terceiro grupo consiste daqueles indivíduos que sofreram as conseqüências de uma falha
da adaptação do ambiente nos primeiros estágios da vida, quando eram absolutamente
dependentes. Esses pacientes são geralmente classificados como regredidos e rotulados
como borderlines, esquizóides, esquizofrênicos, e assim por diante:
“No terceiro grupo coloquei todos os pacientes cuja análise deve lidar com os estágios
precoces do desenvolvimento emocional, antes e até o estabeleci mento da personalidade
como uma entidade, e antes mesmo da aquisição de um status unitário espaço-tempo. A
estrutura pessoal ainda não está alicerçada de uma forma que seja segura. Com relação a
este terceiro grupo, a ênfase é dada com certeza sobre o manejo. Porém, o trabalho analítico
comum feito com esses pacientes deve ser suspenso por um longo período em alguns casos,
mantendo-se apenas o manejo.”
[ Metapsychological and Clinical Aspects”, p. 2791
Por “manejo” Winnicott entende todos os componentes do holding que se supõem existir
em um ambiente suficientemente-bom.
As dificuldades encontradas para levar a cabo uma classificação e uma avaliação eram tão
complexas no passado quanto o são ainda hoje. Winnicott aponta para o fato de que a
paciente do exemplo clínico recém-exposto parece, inicialmente, fazer parte da primeira
categoria, porém seu diagnóstico analítico “leva em consideração o desenvolvimento
primitivo de um falso self‟. Sua conclusão, conseqüentemente, é de que, “para que o
tratamento surta efeito, é necessário ocorrer uma regressão que busque o verdadeiro self‟
(Metapsychological and Clinical Aspects, p. 280).
210
3 Dois tipos de regressão
Winnicott propõe dois tipos de regressão:
“Os analistas pensaram ser necessário postular que normalmente existem situações pré-
genitais que são boas, às quais o indivíduo pode retornar ao deparar-se com dificuldades em
estágios mais avançados. Este é um fenômeno saudável. Por isso veio-me a idéia de dois
tipos de regressão vinculadas ao desenvolvimento pulsional. O primeiro é o retorno a uma
situação de falha precoce, o segundo, a volta uma situação inicial bem-sucedida.
No caso da situação de falha do ambiente, o que percebemos é a evidência de defesas
pessoais organizadas pelo indivíduo, o que exige uma análise. Em se tratando da situação
precoce bem-sucedida e normal, nos deparamos mais claramente com a lembrança da
dependência e, portanto, o que encontra mos é uma situação ambiental em lugar de uma
organização defensiva pessoal. Essa organização pessoal não se apresenta como algo óbvio,
pois permaneceu fluida e não tão defensiva.”
1”Metapsychological and Clinical Aspects”, pp. 282-283]
O último tipo de regressão se dá naqueles pacientes que receberam um holding ambiental
suficientemente-bom, ao passo que o primeiro estrutura-se em torno da segurança oferecida
pelo setting. Como conseqüência o paciente revisita a falha ambiental precoce. Ambas as
formas de regressão conduzem o paciente de volta à invasão inicial do ambiente.
“Devo dizer que me baseio em uma suposição, da qual muito me utilizei em outros
momentos e que nem sempre foi aceita, a saber, de que quanto mais perto se está do início
proposto pela teoria, menor é a falha pessoal. Eventualmente encontramos apenas uma
falha de adaptação do ambiente.
O que nos interessa, portanto, não é simplesmente a regressão a um momento bom ou mau
das experiências pulsionais do indivíduo, mas também a regressão a momentos bons e
maus da adaptação ambiental às necessidades do ego e do id na história do indivíduo.”
[ and Clinical Aspects”, p. 283]
Para ter certeza de que sua posição pôde ser compreendida, Winnicott acentua inúmeras
vezes a forma como a provisão ambiental influencia a experiência de self do bebê. Isso está
vinculado ao debate travado por ele com Melanie Klein, quem, pensava Winnicott, não
havia dispensado suficiente atenção à função desempenhada pelo ambiente no
desenvolvimento infantil.
Winnicott entende ser a defesa que é o falso self um componente de um ego alta mente
organizado, defensivo e rígido.
“Pode ser visto que considero a idéia de regressão dentro de um mecanismo de defesa
egóica altamente organizada que envolve a existência de um falso self. No caso do paciente
referido acima, esse falso self pouco a pouco transformou-se em um „self cuidador‟. Foi só
após alguns anos que esse self cuidador transferiu-se para o analista, tendo o se/f rendido-se
ao ego.”
O caso do paciente em questão foi pela primeira vez descrito por Winnicott em seu estudo
de 1949, Birth Memories, Birth Trauma and Anxiety, em 1954, em Metapsychological and
Clinic Aspects of Regression within the Psychoanalytical Set-Up, e uma vez mais,
brevemente, no ar de 1960, em Ego Distortion in Terms of True and False Self. Utilizando-
se das próprias palavras do paciente, Winnicott passou a entender a defesa do falso se!f
como uma clivagem da personalidade que se estruturou como uma reação a uma falha do
ambiente.
Se o ambiente decepciona o bebê, ele então é forçado a tomar conta de si mesmo isto
provoca um prematuro desenvolvimento egóico que acarreta o estabelecimento de um falso
self, ou de um self cuidador (ver SELF: 7).
4 O sentir-se real ou o sentimento de futilidade
A teoria do verdadeiro e falso self de Winnicott floresceu durante a década de 50. O
trabalho desenvolvido com seus pacientes e o conceito de regressão à dependência dar
mente conduziu-o à formulação, em 1960, de Ego Distortion in Terms of True and FaL
Self.
Para Winnicott, em especial durante a última década de sua vida e obra, é o sentir-se real
que faz a vida digna de ser vivida. O “sistema altamente organizado que é falso se!f tem
êxito em proteger o núcleo do self, mas em detrimento do sentir-se real.
(ver EGO: 3)
“O desenvolvimento de um falso se/f constitui-se em uma das mais bem sucedidas
organizações defensivas destinadas à proteção do núcleo do verdadeiro self, o que resulta
em um sentimento de futilidade. Gostaria de me repetir e dizer que enquanto o centro
operacional do indivíduo é encontrado no falso se/f, existe um sentimento de futilidade. Na
prática nos deparamos com a mudança para um sentimento de que a vida vale a pena no
momento em que o centro operacional transfere-se do falso para o verdadeiro self, mesmo
antes que ocorra a completa rendição do núcleo do self ao ego total.
A partir daí, podemos formular um princípio fundamental da existência:
aquilo que advém do verdadeiro se/fé sentido como real (e mais tarde como bom), qualquer
que seja sua natureza, de qualquer modo sempre agressiva; aquilo que ocorre no indivíduo
como reação à invasão operada pelo ambiente é senti do como irreal, fútil (e mais tarde
mau), entretanto sensualmente satisfatório.”
[ and Clinical Aspects”, p. 292]
O axioma do trabalho levado a cabo por Winnicott com aqueles pacientes que
desenvolveram um sistema de falso self consiste em que a regressão à dependência dentro
do se ting analítico pode auxiliá-los a reviver uma falha do ambiente precoce e a encontrar
sentido daquilo que é verdadeiro. A busca pelo verdadeiro self conduz ao sentir-se real.
No centro do sentir-se real encontra-se a adaptação suficientemente-boa do ambiente às
necessidades do paciente. Deste modo, o paciente é compensado e curado através desse
reviver, descobrindo no setting analítico aquilo que seria suprido inicia mente, mas que não
estava disponível, ou seja, o ambiente facilitador, aquele que fornece o holding e o contém.
[ and Clinical Aspects”, p. 2811
212
O “mecanismo de cura” inerente à regressão apresenta-se como um potencial que apenas
pode ser concebido a partir de uma “nova e confiável adaptação do ambiente que pode ser
utilizada pelo paciente a fim de corrigir a falha adaptativa original”. Esse ambiente localiza-
se no mesmo nível do cuidado infantil suficientemente-bom que pode ser obtido “através da
amizade, do prazer com a poesia, e com a cultura de uma maneira geral”
(Metapsychological and Clinical Aspects, pp. 293-294).
A “recuperação da regressão” apresenta o paciente à “análise destinada ao manejo da
posição depressiva e do complexo de Edipo nas relações interpessoais” (Metapsychological
and Clinical Aspects, p. 294).
5 “Obtemos êxito ao falharmos”
A falha do analista é um componente essencial deste novo ambiente. Ela ocorre dentro da
transferência, trazendo uma reordenação das situações de falha precoce. A falha do analista,
então, constitui-se em um ordenamento que precisa ser articulado no momento apropriado.
Entretanto, pelo fato de desencadear um efeito curativo no paciente, deve se dar apenas
quando a estrutura analítica houver sido estabelecida.
“Mas em que se constitui isso que é suficiente para que alguns pacientes sejam
beneficiados? Afinal, eles fazem uso das falhas do analista, com freqüência bastante
triviais, talvez maquinadas pelos próprios pacientes... e temos que suportar o fato de
fazermos parte de um contexto mal compreendido. O fator operativo aqui é que agora o
paciente odeia o analista em função da falha que originalmente se apresentou como um
fator ambiental, exterior à área de controle onipotente do bebê, mas que presentemente é
percebido na transferência.
Então, no final, obtemos êxito ao falharmos — falhando ao estilo do paciente. Isto afasta-se
em muito da mera teoria da cura através de uma experiência de correção. Sendo assim, a
regressão pode estar a serviço do ego se for reconheci da pelo analista, transformando-se
em uma dependência renovada onde o paci ente introduz o fator externo que é mau na área
de seu controle onipotente, bem como na área dominada pelos mecanismos de projeção e
introjeção.”
[ in Infant-Care, in Child Care and in the
Psycho-Analytic Setting”, 1963, p. 258]
O principal ponto colocado aqui é se o analista é ou não capaz de reconhecer a necessidade
do paciente de regredir, e se está preparado para adaptar-se e ir ao encontro dessa
necessidade, da mesma forma com que a mãe suficientemente-boa durante O estado de
preocupação materna primária é capaz de adaptar-se às necessidades de seu bebê. A
necessidade do analista de obter êxito através da falha na transferência pode ser comparada
àquela mãe que precisa desadaptar-se gradualmente (ver DE
PENDÊNCIA: 5).
6 Adaptação, e não arte
No período em que Winnicott trabalhou as questões relativas à regressão, existia desacordo
generalizado no meio psicanalítico no que dizia respeito à validade da psicanálise para tais
pacientes, que freqüentemente eram rotulados como impossível serem analisados. Embora a
questão colocada pela possibilidade de analisar ou esses pacientes ainda fosse discutida
entre os analistas, um trabalho inovador pôde desenvolvido com pacientes regredidos desde
a época de Winnicott.
Winnicott recebeu algumas críticas que gostaria de citar.
“Uma certa idéia costuma ser recorrente: é claro que todos querem regredir; a regressão é
um piquenique; devemos evitar a regressão de nossos pacientes; Winnicott gosta e faz um
convite para que seus pacientes regridam.”
[ and Clinícal Aspects”, p. 2901
Mas também quis deixar claro o quão dolorosa é a regressão à dependência para o p ente. O
trabalho com alguém que passa por uma regressão não constitui-se de maneira alguma em
um piquenique.
“Não existem razões pelas quais um analista deva querer que seu paciente regrida,
excetuando-se aí razões extremamente patológicas. Se for do agrado de um determinado
analista que seu paciente regrida, isto eventualmente interferirá no manejo da situação de
regressão. Além disso, a análise de que faz parte a regressão clínica é muito mais difícil de
ser conduzida do que aquela em que nenhuma provisão ambiental adaptativa especial é
necessária. Em outras palavras, seria agradável, se fôssemos capazes de trazer para serem
analisados apenas aqueles pacientes cujas mães, tanto no início quanto nos primeiros
meses, conseguiram produzir condições suficientemente-boas. Contudo, essa era da
psicanálise está caminhando para o fim.”
[ and Clinical Aspects”, pp. 290-2911
Winnicott questiona os analistas quanto a sua clínica, ao mesmo tempo em que a para (a) o
reconhecimento da responsabilidade que o ambiente possui sobre a saúde mental do
paciente, e para (b) a adaptação do ambiente analítico às necessidades paciente que regride
à dependência.
“Mas uma questão surge: o que fazem os analistas quando a regressão (mesmo que exígua)
se dá?
Alguns dizem rudemente: Sente-se! Puxe as meias! Volte! Fale!
Mas isso não pode ser chamado de psicanálise.
Alguns dividem seu trabalho em duas partes, embora, infelizmente, nem sempre
reconheçam isso:
a. são estritamente analíticos (empregam a técnica da associação livre e a interpretação feita
através de palavras, mas não inspiram confiança); e também
b. agem intuitivamente.
Aqui temos a idéia da psicanálise entendida como uma arte. Alguns diriam: não pode ser
analisado, e desistem. Que um hospital psiquiátrico tome conta do caso.
214
A idéia da psicanálise como uma arte deve gradualmente ceder lugar ao estudo da
adaptação do ambiente inerente às regressões do paciente. Entretanto, enquanto o estudo
científico da adaptação ambiental não se desenvolve, acre dito que os analistas devam
continuar a ser artistas em seu ofício. Um analista pode ser um bom artista, mas (me
questiono): que paciente deseja encarnar o poema ou o quadro de um outro?”
7 A confiança renovada
[ and Clinícal Aspects”, p. 291]
A confiança renovada em psicanálise recebeu e ainda recebe alguns votos de censura; ela
não é vista como uma técnica analítica, uma vez que o analista deveria interpretar a
comunicação inconsciente do paciente. Novas críticas foram dirigidas a Winnicott por
explorar a importância da confiança renovada:
“Finalmente, examinemos o conceito de regressão, estabelecendo um contra ponto com o
conceito de confiança renovada. Isso se torna necessário, uma vez que a técnica adaptativa
que deve ser empregada para ir ao encontro da regressão do paciente é muitas vezes
classificada (erroneamente, estou certo) como confiança renovada...
Ao examinarmos a questão com um pouco mais de cuidado, entenderemos que esta é uma
linguagem extremamente simplificada. Esta não é apenas uma questão de confiar ou não
confiar.
De fato, toda a questão carece de um exame mais detalhado. Em que se constitui a
confiança renovada? O que poderia inspirar mais confiança a alguém do que saber que está
sendo bem analisado, que está em um setting confiável e dirigido por uma pessoa madura
capaz de fazer interpretações penetrantes e precisas, além de ter seu processo pessoal
respeitado? Seria loucura negar que a confiança renovada está presente na situação analítica
clássica.
Toda a estruturação da psicanálise é uma grande confiança renovada, em especial a
objetividade confiável e a conduta do analista, assim como as interpretações construtivas
feitas a partir da transferência, empregadas em lugar de explorar devastadoramente um
momento de paixão.”
[ and Clinical Aspects”, p. 292]
Este trabalho expressa mais uma vez o arrebatamento pessoal de Winnicott quanto à
importância de reconhecer as necessidades do paciente e de distingui-las do desejo e da
idéia de gratificação. Além disso, defende veementemente uma mudança de atitude de seus
colegas analistas:
“O que poderíamos dizer da incapacidade do analista de renovar a confiança? E se o
analista fosse um suicida? Para que seja feito algum trabalho é preciso que haja uma crença
na natureza humana e nos processos do desenvolvimento por parte do analista, o que é
imediatamente sentido pelo paciente.
Não há utilidade em descrever a regressão à dependência, juntamente com sua
concomitante adaptação ambiental, em termos de confiança renovada, uma vez que se tem
razão em considerar esta como algo prejudicial em ter mos de contratransferência.”
[ and Clinical Aspects”, pp. 292-293]
Nesse contexto, Winnicott entende por “contratransferência” a reação patológica analista ao
esforço do paciente regredido de simular (ver ÓDIO: 2).
8 Um setting que inspira confiança
Winnicott reconhece que Freud supõe o ambiente precoce suficientemente-bom, p este
pode ser vislumbrado no setting freudiano. Este mesmo setting, que se originou partir do
trabalho com pacientes psiconeuróticos, pode também servir a pacientes psicóticos ou
regredidos de forma satisfatória por reproduzir o ambiente de holding:
“A psicose está vinculada a uma falha ambiental ocorrida no estágio inicial do
desenvolvimento emocional do indivíduo, O sentimento de futilidade e irrealidade faz parte
de um falso self que se desenvolve como uma proteção ao verdadeiro self.
O setting analítico reproduz as técnicas de maternagem mais precoces. Ele induz a
regressão em função da confiança que inspira.
A regressão do paciente constitui-se em um retorno organizado à dependência inicial ou a
uma dupla dependência. Paciente e setting fundem-se em uma situação de satisfação
original referente ao narcisismo primário.
Um avanço do narcisismo primário é novamente desencadeado, possibilitando que o
verdadeiro self depare-se com situações de falha ambiental sem que se organizem defesas
que envolvam a proteção desse verdadeiro self por um falso self.
A partir daí, a doença psicótica pode apenas ser amenizada através de uma provisão
ambiental especializada entrosada com a regressão do paciente.
O progresso obtido com essa nova posição, tendo o verdadeiro seIf se rendido ao ego total,
pode agora ser estudada em termos dos complexos processos do crescimento do indivíduo.”
[ and Clinical Aspects”, pp. 286-287]
Winnicott emprega a expressão “narcisismo primário” a fim de descrever a fusão exi tente
entre mãe e bebê durante o período de dependência absoluta — ou “dupla dependência,
como referia-se a ela na década de 50. A fusão refere-se à falta de con1 ciência por parte do
bebê do cuidado recebido (ver DEPENDÊNCIA: 4; MÃE: 10).
Uma vez que o paciente tenha iniciado a terapia, uma “seqüência de acontecimentos” é
desencadeada:
“1. O fornecimento de um setting que inspire confiança.
2. A regressão do paciente à dependência, com o devido sentido do risco que está envolvido
aí.
3. O paciente apresenta um novo sentimento de self, sendo que este self, até aqui oculto, se
rende ao ego total. Ocorre uma nova progressão dos processos individuais que haviam
sofrido uma interrupção.
4. Dá-se um descongelamento de uma situação de falha ambiental.
5. A partir da nova posição de potência egóica, surge a raiva vinculada à falha ambiental
precoce, que é sentida no presente e é expressa.
216
6. Ocorre o retorno da regressão à dependência em um progresso ordenado que visa à
independência.
7. As necessidades e desejo pulsionais tornam-se realizáveis, apresentando uma vitalidade e
vigor únicos.
Tudo isso se repete incontáveis vezes.”
[ and Clinical Aspects”, p. 287]
Em essência, Winnicott entende a doença psicótica como “uma organização defensiva
destinada à proteção do verdadeiro self, produzida por uma falha ambiental precoce (uma
mãe incapaz de adaptar-se às necessidades do bebê) (ver AMBIENTE: 3).
Nove anos depois, em 1963, Winnicott volta-se para a questão da etiologia da psi cose:
“... será que vinculo a psicose principalmente às graves experiências traumáticas, em parte
às privações ocorridas no início da infância? Compreendo que esta é a impressão que dou.
Modifiquei a forma com que apresento minhas idéias no decurso da década passada. No
entanto, se fazem necessárias algumas correções. Afirmei definitivamente que na etiologia
da psicose, em particular na esquizofrenia..., podemos perceber uma falha em todo o
processo de cuidado do bebê. Em um texto cheguei a afirmar: „A psicose apresenta-se
como uma doença causada pela deficiência do ambiente‟. Zetzel emprega a expressão
„graves experiências traumáticas‟. Estas palavras indicam que coisas ruins estão
acontecendo, coisas que parecem ruins do ponto de vista do observador. As deficiências a
que me refiro constituem-se em falhas da provisão básica...
A principal questão é que essas falhas não podem ser previstas; elas não podem ser
explicadas pelos bebê em termos de projeção, pois ainda não alcançou o estágio de
estruturação egóica que torna isso possível, o que resulta na aniquilação do indivíduo cuja
continuidade do ser sofreu uma interrupção.”
9 A distinção entre desejo e necessidade
[ Dependence in Infant-Care”, p. 256]
Esta parte da teoria da regressão de Winnicott está associada à capacidade de simbolização
do paciente. Um paciente que funciona em um nível psicótico encontra uma maior
dificuldade em apreciar uma “realidade compartilhada”:
“0 divã e a almofada encontram-se ali para o uso do paciente. Aparecerão em idéias e
sonhos, representando o corpo do analista, os seios, os braços, as mãos etc., de uma infinita
variedade de formas. A medida que o paciente regride (por um instante, uma hora, ou por
um prolongado período de tempo), o divã é o analista, as almofadas são os seios, o analista
é a mãe de uma época pertencente ao passado. No máximo, não se constitui em uma
verdade que o divã represente o analista.
E mais apropriado falarmos do desejo do paciente, o desejo (por exemplo) de permanecer
quieto. A palavra desejo é inapropriada para ser aplicada aos pacientes regredidos; em lugar
dela empregamos a palavra necessidade. Se um paciente regredido necessita permanecer
quieto, isso se transforma em algo fundamental. Se não se for ao encontro da necessidade, o
que resulta não é a raiva, mas apenas a reprodução daquela situação de falha ambiental que
interrompeu os processos de desenvolvimento do self. A capacidade que o indivíduo possui
de „desejar‟ sofre uma interferência. Passamos, então, a testemunhar o ressurgimento da
causa original do sentimento de futilidade.
O paciente regredido está prestes a reviver as situações oníricas e de recordação; a atuação
de um sonho pode ser a forma pela qual o paciente descubra aquilo que é mais premente.
Falar sobre aquilo que foi atuado é posterior à ação, mas não a precede.”
Winnicott está se referindo ao paciente que ainda não tem o poder de simbolização dentro
do setting analítico, e que apenas se comunica através de uma atuação.
O “ego-observador” é o termo escolhido por Winnicott a fim de descrever a capacidade do
paciente de ingressar, e posteriormente sair, de um estado regressivo durante a sessão
analítica. Com o paciente cujo ego-observador não é suficientemente desenvolvido, a
necessidade de atuação constitui-se na única maneira de reviver aquilo que necessita ser
revivido.
“Um importante elemento dessa teoria é o postulado do ego-observador. Dois pacientes,
muito parecidos no que diz respeito ao seu aspecto clínico imediato, podem ser muito
diferentes em relação ao grau de organização do ego-observador. Em um extremo, o ego-
observador quase consegue identificar-se com o analista. Pode ocorrer uma recuperação da
regressão ao término da sessão analítica. No outro extremo, pode ser percebida uma
presença muito débil do ego-observador, sendo que o paciente torna-se incapaz de
recuperar-se da regressão ocorrida na sessão analítica, o que demanda cuidados.
A atuação precisa ser tolerada nesse tipo de trabalho. Na atuação ocorrida na sessão
analítica, o analista descobrirá ser necessário desempenhar um papel, mesmo que isso seja
feito geralmente de uma forma sutil. Não existe nada que surpreenda mais, tanto ao analista
como ao paciente, do que as revelações surgidas nesses momentos de atuação. Entretanto, a
atuação real ocorri da na analise e apenas o começo A ela deve se seguir uma verbalização
desse momento de compreensão.”
Embora o paciente regredido esforce-se em simbolizar e em estabelecer uma distinção entre
eu e não-eu, a atuação ocorrida no setting analítico é simbólica; é a única maneira
encontrada pelo paciente de comunicar ao analista algo pertencente ao trauma do passado.
Winnicott sublinha que qualquer que seja a atuação ocorrida na sessão, ela será analisada
em um estágio posterior da análise. Ele percebe uma seqüência de desenvolvimento que
favorece esta distinção:
[ Metapsychological and Clinical Aspects”, p. 289]
1. Uma exposição daquilo que ocorreu na atuação.
2. Uma exposição daquilo que foi exigido do analista. A partir disso é possível deduzir:
219
3. O que não correu bem na situação de falha ambiental original. Isso causa algum alívio,
mas segue-se:
4. A raiva que faz parte da situação de falha ambiental original. Esta raiva tal vez esteja
sendo sentida pela primeira vez. O analista agora pode participar, sendo usado mais em
função de suas falhas do que de seus êxitos. Isto causa um desconcerto até que seja
compreendido. O progresso pôde ser alcançado através da cuidadosa tentativa do analista
de adaptar-se e, ainda assim, é a falha que nesse momento distingue-se como mais
importante por ser uma reprodução da falha ou do trauma original. Nos casos mais
favoráveis, finalmente, se segue:
5. Um novo sentimento de self para o paciente, além de um sentimento de que o progresso
foi um crescimento verdadeiro. E este último que deve ser a recompensa do analista, que é
alcançada através da identificação com o paciente. Nem sempre será atingido um estágio
posterior no qual o paciente é capaz de compreender o esforço empreendido pelo analista.
Dizer obrigado de uma forma realmente significativa também não é algo que ocorra com
freqüência.”
10 Regressão e retraimento
F” Metapsychological and Clinical Aspects”, pp. 289-2901
No capítulo VIII de Human Nature (Wi 8), Winnicott descreve o retraimento:
“Seria de bastante utilidade pensarmos no retraimento como uma condição na qual a pessoa
(criança ou adulto) retém uma parcela do self e cuida dela à cus ta das relações externas.”
[ Nature”, p. 1411
É como se o paciente carregasse uma parte do self do bebê dentro de si.
“Em um momento de retraimento surgido na terapia, onde existe a oportunidade para uma
observação atenta e para o manejo, o terapeuta segura o bebê. Então, a pessoa repassa a
responsabilidade dos cuidados ao terapeuta, trans formando-se em um bebê.”
[ Nature”, p. 141]
Se o paciente permitir que o analista “faça o holding do bebê”, a regressão à dependência
pode ser estabelecida. Se o ambiente (o setting analítico) inspirar confiança suficiente, o
paciente poderá fazer uso da regressão à dependência por algum tempo.
“A regressão possui uma característica curativa, desde que a experiência inicial possa ser
corrigida através dela. Existe algo verdadeiramente tranqüilizador nessa experiência e no
reconhecimento da dependência. Um retorno da regressão depende de uma recuperação da
independência. Se ela for bem manejada pelo terapeuta, o resultado será que a pessoa atinge
um estado melhor do que aquele em que se encontrava antes do episódio.”
Entretanto, o retraimento não possui essa característica curativa e não beneficia o paciente.
Isso tão-somente demonstra que o paciente precisa manter o self no passado, o que se
constitui em um pedido de ajuda na sessão.
Em um estudo datado de 1954, Withdrawal and Regression, Winnicott ilustra com dados
clínicos que o analista deve reconhecer o estado de retraimento, e posteriormente encontrar
uma maneira de dar holding ao bebê que está no paciente. Se o analista conseguir isso, o
paciente será capaz, então, de regredir à dependência, desta maneira sendo corrigida a
situação de falha precoce.
“... se conhecermos o bastante sobre a regressão ocorrida na sessão analítica, poderemos
localizá-la imediatamente, assim conseguindo que certos pacientes que não estejam
demasiadamente doentes empreendam a regressão necessária em pequenas etapas, talvez
até mesmo momentaneamente. Diria que no estado de retraimento o paciente retém o self.
Se o estado de retraimento surgir imediatamente, o analista poderá dar holding ao paciente;
sendo que, aquilo que, de outra forma, seria constituído em um estado de retraimento,
transforma-se em regressão. A vantagem oferecida pela regressão é que ela traz consigo a
oportunidade de corrigir uma inadequada adaptação à necessidade ocorrida na história
passada do paciente, isto é, no manejo da infância do paciente. De outra forma, o estado de
retraimento não tem qualquer utilidade, pois quando o paciente se recupera desse estado sua
condição não sofreu nenhuma alteração.”
[ and Regression”, p. 261]
Winnicott deixa bem claro que não existe qualquer perigo inerente à regressão à
dependência do paciente, a não ser a inadequação ao analista.
“Pensamos comumente que existe algum perigo na regressão do paciente no decorrer da
análise. Este perigo não reside na regressão, mas sim no despreparo do analista em ir ao
encontro da regressão e à dependência que faz parte dela. Quando o analista vivenciou uma
experiência que pôde torná-lo confiante no manejo da regressão, provavelmente será
verdadeiro afirmarmos que quanto mais rápido ele aceitar a regressão e for inteiramente ao
seu encontro, existirá uma possibilidade menor de que o paciente necessite adoecer de uma
enfermidade com características regressivas.”
Referências
1949 Mmd and Its Relation to the Psyche-Soma [“Withdrawal and Regression”, p. 261]
1954 Metapsychological and Clinical Aspects of Regression within the Psychoanalytical
Set-Up [
1954 Withdrawal and Regression
1963 Dependence infant-Care, in Child Care and in the Psychoanalytic Setting [
1988 Human Nature ( Nature”, p. 141)

SELF
221
1 A subjetividade e o self
1 A subjetividade e o self
2 O self como bolha e núcleo
3 A não-integração primária
4 Três selves
5 As características do cuidado que fortalece o sentimento de self
6 O falso self
7 A clivagem do intelecto
8 A realização simbólica
9 O verdadeiro self
10 A submissão e o compromisso
11 A psicoterapia e a busca pelo self
[ mbora Winnicott freqüentemente afirme que existe uma diferença entre o self e
o “ego‟Ç esta distinção nem sempre fica suficientemente clara ao longo de sua
obra, pois o termo self geralmente é empregado alternadamente com os termos “ego” e
“psique „
Para Winnicott, o termo self apresenta-se essencialmente como uma descrição psicológica
de como o indivíduo se sente subjetivamente, sendo o “sentir-se real” o que coloca no
centro do sentimento de se/f.
Em termos de desenvolvimento, o self tem sua origem como um potencial do recém-
nascido; a partir de um ambiente suficientemente-bom, desdobra-se em um self total, isto é,
em uma pessoa capaz de estabelecer a distinção entre eu e não-eu.
Em sua última década de vida, Winnicott diferenciou o verdadeiro do falso se/f, dando
destaque a um self não-comunicado, a um se!f central isolado que, em favor da saúde
mental, precisa permanecer protegido a qualquer custo.
Para o leitor, o significado preciso dado por Winnicott à palavra self é com freqüência algo
bastante confuso. Ao longo de toda sua obra, embora haja uma distinção entre o ego e o
se!f (ver EGO: 1), é de extrema utilidade ter em mente que, apesar disso nunca ter sido
suficientemente esclarecido pelo próprio Winnicott, o ego constitui-se em um aspecto do
self que possui uma função bastante particular: organizar e integrar a expe riência.
Deste modo, o self é composto por todos os diferentes aspectos da personalidade que, na
terminologia de Winnicott, constituem o eu, uma forma distinta do não-eu, de cada pes soa.
A palavra self por conseguinte, representa um sentimento de ser subjetivo.
É preciso discernir que, na obra de Winnicott, os termos self, ego e psique implicam
diferentes abordagens sobre a realidade e a função interna, além de que, como todos os
termos que emprega, não podem — e nem deveriam — ser estanques.
De uma maneira geral, Winnicott localiza o self (central ou verdadeiro) nos primór dios da
vida, mas quando se trata do se!f total, sua origem está situada no estágio de preocupação
(ver PREOCUPAÇÃO: 5; EGO: 2).
2 O self como bolha e núcleo
Em Birth Memories, Birth Trauma andAnxiety, de 1949, Winnicott cita um de seus pacien
tes a fim de descrever o setfi
“Sou extremamente agradecido a uma paciente pela forma com que colocou isso a partir de
uma apreciação profunda da posição do bebê em um estágio precoce... Disse esta paciente:
“No princípio o indivíduo é como uma bolha. Se a pressão vinda do exterior adaptar-se
ativamente à pressão interna, então a bolha é o que importa, ou seja, o self do bebê. No
entanto, se a pressão do ambiente for maior ou menor do que a pressão existente no interior
da bolha, então não é mais a bolha que é importante, mas sim o ambiente. A bolha adap ta-
se à pressão externa‟.”
[ Memories”, pp. 1 82-1 83]
Winnicott cita esse exemplo com a finalidade de descrever a tarefa do bebê, durante o
nascimento, de lidar com a invasão do corpo-self pelo ambiente: como uma bolha que se
adapta à pressão externa:
“Antes do nascimento, especialmente se houver um atraso, é possível que o bebê viva
repetidas experiências nas quais, temporariamente, a importância é conferida ao ambiente, e
não ao self. E provável que o bebê ainda não nascido se torne cada vez mais envolvido por
esse tipo de intercurso com o ambiente, à medida que o momento do nascimento vai se
aproximando. Dessa maneira, no processo natural, a experiência do nascimento constitui-se
em uma amos tra ampliada de alguma coisa já conhecida pelo bebê. Por enquanto, durante
o nascimento, o bebê apenas pode esboçar uma reação, mas o mais importante é o
ambiente; após o nascimento há um retorno a um estado no qual o que tem importância é o
bebê, o que quer que isso signifique. O bebê que é saudá vel está preparado antes do
nascimento para a invasão do ambiente. Ele já experimentou um retorno natural a um
estado onde não é preciso reagir, o úni co estado no qual o self pode começar a existir.”
[ Memories”, p. 183]
Neste texto o self é situado antes mesmo do nascimento. Fica claro que ele não pode
começar a “existir” se estiver na posição de ter que reagir às intrusões do ambiente (ver
AMBIENTE: 5; PSIQUE-SOMA: 4; REGRESSÃO: 2, 3).
Posteriormente, em 1952, em um trabalho que recebeu o título deAnxietyAssocia ted with
!nsecurity, Winnicott descreve a díade mãe-bebê antes do início das relações objetais como
uma estrutura ambiente-indivíduo (ver SER: 1) — uma concha (a mãe) e um núcleo (o
bebê) — que, metaforicamente, retrata que o self, assim como todas os seus componentes,
tem início no interior da unidade mãe-bebê:
“O centro de gravidade do ser não se origina no indivíduo, mas sim no todo da estrutura.
Através do cuidado infantil suficientemente-bom, da técnica, do hol dinge do manejo de
uma maneira geral; a concha, pouco a pouco, assume o controle, e o núcleo (que todo o
tempo pareceu como um bebê para nós) tor na-se um indivíduo.
O ser humano agora desenvolve uma entidade a partir do centro de gra vidade que pode vir
a localizar-se no corpo do bebê, passando, então, a criar um mundo externo, ao mesmo
tempo em que adquire uma membrana limita dora e um interior.”
[ Associated wíth Insecurity”, p. 99]
Embora o self e o ego não sejam mencionados aqui, devemos supor que existe uma erência
ao self potencial e ao self em desenvolvimento e/ou ao ego (ver EGO: 1, 2). Ego e self são
empregados alternadamente no parágrafo final de Primary Maternal Preoccupati on (1956):
11 ego constitui-se em um somatório de experiências. O self individual tem origem como
um somatório de experiências de repouso, de motilidade espon tânea, e de sensação, que
passa da atividade ao repouso...”
[ Maternal Preoccupation”, p. 305]
O que é significativo nesse estudo é que, em sua origem, o self é um “somatório de
experiências”, o que em 1962 é descrito como sendo o início do ego:
“A primeira questão que é formulada a respeito daquilo que é rotulado como ego é a
seguinte: existe um ego desde o início? A resposta a essa pergunta é que o início está onde
tem início o ego.”
[ Integration in Child Development”, p. 561
Todavia, no mesmo texto, Winnicott escreve categoricamente:
“Será notado que o ego prestou-se a um exame muito antes da palavra self ter alguma
relevância. A palavra se/fsurge depois que a criança começa a utili zar-se do intelecto para
olhar para aquilo que as outras pessoas vêem, sentem ou ouvem, e para aquilo que elas
pensam ao se depararem com o corpo do bebê.”
[ Maternal Preoccupation”, p. 56]
Parece aqui que, para Winnicott, o self não passa a existir até que o bebê estabeleça a
separação entre eu e não-eu, o que é feito durante o estágio de preocupação, como foi
mencionado anteriormente.
3 A não-integração primária
A realidade interna e a realidade psíquica são abordadas por Winnicott em um texto de
1935, The Manic Defence. Em 1945, em Primitive Emotional Development, é elaborado o
tema da realidade interna, onde Winnicott propõe um estado de não-integração primária —
algumas vezes citado como narcisismo primário — que se refere especificamente ao esta do
do self potencial do bebê. Assim, para Winnicott, o self não existe até que haja uma tomada
de consciência, o que acentua o “sentimento” na existência do se!f (este assunto é mais bem
abordado nos trabalhos de Winnicott sobre os fenômenos transicionais, o brin car, e a busca
do self (ver BRINCAR: 5, 6; SELF: 11; TRANSICIONAIS, FENÔMENOS: 6).
Para que a consciência de self possa ser estabelecida existem três processos que precisam
surgir a partir do estado de não-integração primária, que são:
“... integração, personalização e, seguindo-se a este, a avaliação do tempo e do espaço, bem
como de outras propriedades da realidade — para ser sucinto.”
[ Emotional Development”, p. 149]
Winnicott faz uma breve referência a um problema associado à personalização:@@@
“Existe um problema relacionado à personalização, que é o dos companheiros imaginários
próprios da infância. Eles não são meramente construções da fan tasia. O estudo do futuro
desses companheiros imaginários (na análise) de monstra que eles algumas vezes são outros
selves de um tipo extremamente primitivo.”
[ Emotional Development”, p. 151]
Nesse texto Winnicott não explora o fenômeno dos companheiros imaginários, mas admite
que esta forma de utilização da imaginação constitui-se em uma...
“... criação bastante primitiva e mágica [ é]... facilmente empregada como uma defesa que
magicamente desvia todas as ansiedades associadas à incor poração, à digestão, à retenção
e à expulsão.”
223
Uma nota de rodapé foi acrescentada:
“É bom lembrar que o início é um somatório de inícios.
[ Integration”, p. 561
[ Emotional Development”, p. 151]
225
A partir daí é introduzida a questão da natureza da defesa que, dentro desse contexto,
sugere que o se/fé forçado a defender-se se estiver sob ataque. Uma das defesas mais úteis é
a dissociação.
“0 problema da não-integração é acompanhado por um outro, o da dissocia ção. A
dissociação pode ser examinada proveitosamente em sua forma inicial ou natural. Segundo
meu ponto de vista, origina-se na não-integração uma série daquilo que chamamos
dissociações, que surgem devido à integração haver sido incompleta ou parcial.”
[ Emotional Development”, p. 1511
Partindo dessa exposição, Winnicott prossegue afirmando que o bebê, inicialmente, ainda
não é capaz de reconhecer que permanece sendo aquele mesmo bebê, se está “calmo” ou
“agitado”:
“Por exemplo, existem estados de calma e de agitação. Creio não ser possível afirmarmos
que um bebê está inicialmente consciente de que sente isto, e que em seu berço, ou tendo
prazer com as estimulações feitas na pele durante o banho, ele é aquele mesmo bebê que
chora exigindo uma satisfação imediata, possuído por um anseio de destruição até ser
satisfeito pelo leite. Isso significa que inicialmente ele não sabe que a mãe que está
construindo através de suas tranqüilas experiências é a mesma que detém o poder oculto
por trás dos seios que ele tem em sua mente, os quais quer destruir.”
[ Emotional Development”, p. 151]
Existem dois bebês em um, assim como duas mães em uma só. No início, do ponto de vista
do sujeito, as emoções que estão envolvidas nos humores “calmo” e “agitado” encontram-
se separadas e “dissociadas”. O encargo da integração é reconciliá-los (ver
AGRESSÃO: 6; PREOCUPAÇÃO: 3, 4, 5; ÓDIO: 6).
4 Três selves
Winnicott refere-se à existência de três selves em uma mesma personalidade em apenas um
de seus trabalhos, Aggression in Re/ation to Emotiona/ Deve!opment, de 1950:
“A personalidade compreende três partes: um verdadeiro se/f, com o eu e o não-eu
claramente definidos, e com algum grau de fusão dos elementos agres sivo e erótico; um
self que é facilmente seduzido pela experiência erótica, no que resulta a perda do
sentimento de realidade; e, finalmente, um se/fque está inteira e cruelmente entregue à
agressão.”
[ in Relation to Emotional Development”, p. 21 71
De acordo com este modelo, o verdadeiro se!fjá pôde estabelecer suas fronteiras — dife
rentemente do self que é facilmente persuadido e do se!f que está “entregue à agres são”.
Mais adiante, nesse mesmo trabalho, Winnicott associa este se/f cruel ao gesto impulsivo
que, na saúde, busca a exterioridade (ver AGRESSÃO: 7):
“A principal conclusão que podemos tirar a partir dessas considerações é que a confusão
existente é em função do emprego que fazemos algumas vezes da palavra agressão quando
queremos falar de espontaneidade. O gesto espontâ neo torna-se agressivo quando surge
uma oposição. Encontramos realidade nessa experiência. Ela com muita facilidade funde-se
com as experiências eró ticas que aguardam pelo bebê recém-nascido. Minha sugestão é a
seguinte: é essa impulsividade, juntamente com a agressão que se desenvolve a partir dela,
que faz com que o bebê apresente a necessidade de um objeto externo, e não simplesmente
de um objeto de satisfação.”
[ in Relation to Emotional Development”, p. 217]
O conteúdo desses dois parágrafos ilustra o próprio desenvolvimento das idéias de
Winnicott nesse período (esta parte do trabalho foi apresentada a um grupo seleto no ano de
1954), que se chocam com a teoria pulsional de Freud (agora o impulso busca por um
objeto, em vez de satisfação), da mesma forma com que o postulado, segundo o qual a
criatividade origina-se a partir do “impulso amoroso primitivo”, se choca com a
necessidade de reparação, como foi exposta na teoria da “posição depressiva” de Meia- fie
Klein.
Em outras palavras, enquanto Freud acredita que a pulsão no bebê humano está empenhada
na satisfação, Winnicott observa que a satisfação pode ser uma “ilusão” se o bebê não fizer
sua parte na obtenção dessa mesma satisfação.
No mesmo ano de 1954, em The Depressive Position in Norma/ Deve/opment, Winnicott
explora o que quer dizer essa ilusão.
“0 bebê é iludido através da alimentação; a tensão pulsional desaparece, tor nando-o
satisfeito e iludido. E fácil supor que a alimentação é seguida da satis fação e do sono. Com
freqüência uma ansiedade se segue a esta ilusão, especial mente se a satisfação física rouba
rapidamente do bebê um certo deleite. Ao bebê resta apenas: a agressão que não pôde ser
descarregada — já que o processo de alimentação não fez o uso adequado do erotismo
muscular e dos impulsos primitivos (ou motilidade); ou um sentimento de haver
“fracassado” — pois uma fonte de obtenção de prazer na vida desapareceu subitamente,
sendo que o bebê não sabe se ela irá retornar. Tudo isso surge claramente na experiência clí
nica analítica, o que não é contraditado pela observação direta de bebês.”
[ Position”, p. 268]
Quatro anos mais tarde, em uma conferência proferida em comemoração ao centenário de
nascimento de Freud, Winnicott parece fazer a apologia da crueldade do artista cria tivo ao
afirmar que:
“... pessoas comuns que são conduzidas pela culpa encontram aí algo que as desorienta;
elas cultivam um respeito secreto pela crueldade que de fato... consegue mais do que o
trabalho conduzido pela culpa.”
[ and the Sense of Guilt”, 1958, p. 27]

Winnicott não esclarece o bastante essa idéia, talvez porque a tenha exposto em uma
conferência em honra de Freud (Melanie Klein e seus seguidores dominavam a Socieda de
Psicanalítica Britânica naquela época), porém afirma que esta crueldade é uma parte
importante do impulso criativo que é colocado no início da vida no amor, em lugar de na
reparação da posição depressiva (ver AGRESSÃO: 7, 8; CRIATIVIDADE: 5).
Entretanto, para que o self possa se desenvolver, a crueldade agressiva do bebê, que é
constituinte do “impulso de amor primitivo”, tem que ser encontrada pelo ambi ente
externo, a mãe, a fim de fortalecer este self. Winnicott finalmente reúne os concei tos de
verdadeiro self e de se!f cruel, propostos em 1954, no verdadeiro self de 1960, sempre
enfatizando o ambiente.
5 As características do cuidado
que fortalece o sentimento de self
Desta maneira, o self tomado como uma defesa e a dissociação culminam, em 1960, em um
texto, Ego Distortion in Terms of True and False Self. Nele Winnicott estabelece uma
distinção entre o verdadeiro e o falso self partindo de um espectro. De um lado encon
tramos o falso se!f que protege o verdadeiro self, no outro temos o falso se!f que não
conhece o verdadeiro se!f por estar oculto.
Com a evolução de seu pensamento a respeito da natureza da agressão em relação às
pulsões e ao ambiente, Winnicott elabora uma tese que diz respeito à diferença exis tente
entre aquilo que chamou de “necessidades do ego” e “necessidades do id”. Isso faz lembrar
do bebê que não pode reconhecer que é, em essência, o mesmo bebê, estando calmo ou
agitado (ver AGRESSÃO: 6; PREOCUPAÇÃO: 3).
“Devo chamar a atenção para o fato de que estou me referindo a ir ao encontro das
necessidades do bebê, e não à satisfação das pulsões. No terreno que estu do, as pulsões
ainda não estão claramente definidas como pertencendo ao interior do bebê. As pulsões
podem ser tão externas quanto um trovão ou uma pancada. O ego do bebê está se
fortalecendo e, em conseqüência disso, se dirige a um estado no qual as demandas do id
serão percebidas como fazendo parte do self, e não do ambiente. A partir desse
desenvolvimento, a satisfação do id transforma-se em um importante fortalecedor do ego,
ou do verdadeiro self porém, as excitações do id podem ser traumáticas quando o ego não é
ainda capaz de absorvê-las, nem de conter os riscos envolvidos e as frustra ções
experimentadas no momento em que a satisfação do id torna-se um fato.”
[ Dístortion”, p. 1411
As demandas do id — que são, biologicamente, pulsões direcionadas — apenas passarão a
fazer parte do self, integradas à experiência, se a mãe for capaz de ir ao encontro das
necessidades do bebê. Ir ao encontro das necessidades consiste tanto em receber como dar
— em resposta ao gesto impulsivo do bebê (ver PREOCUPAÇÃO: 7).
Sempre atento ao paralelo existente entre o cuidado do bebê e o cuidado do paci ente,
Winnicott transpõe a noção de ego e de necessidade do id:

“Um paciente disse-me: „Um bom manejo‟ (cuidado do ego), „igual ao que experimentei
nessa sessão, é uma refeição‟ (satisfação do id). Ele não poderia haver dito isso de outra
forma, pois, se o tivesse alimentado, ele consentiria, o que favoreceria a defesa de seu falso
sei!, ou então poderia reagir rejeitando meus avanços, mantendo sua integridade ao preferir
a frustração.”
[ Distortion”, pp. 141 -142]
O bom manejo refere-se à natureza do holding presente na estrutura analítica. Isto remete a
um parágrafo de Primitive Emotional Development, texto de 1945, onde Winni cott ilustra
a necessidade do paciente de usar o analista a fim de recompor-se (inte grar-se):
“A integração tem início logo no princípio da vida, mas em nosso trabalho jamais podemos
pressupô-la. Temos que observar suas flutuações.
Um exemplo do fenômeno de não-integração é oferecido pela experiên cia muito comum
do paciente, que conta cada detalhe daquilo que lhe ocor reu durante o final de semana,
ficando satisfeito se tudo foi dito, embora o analista sinta que não foi feito nenhum trabalho
analítico. Por vezes, torna-se necessário interpretar isso, já que o paciente necessita ser
conhecido em todas as suas facetas por uma pessoa, que é o analista. Ser conhecido
significa sen tir-se integrado ao menos na pessoa do analista. Esta é a matéria-prima da vida
do bebê. Um bebê que não tem alguém que reúna seus pedaços inicia com uma
desvantagem a tarefa que é a auto-integração, e talvez não obtenha êxito, ou pelo menos
não consiga manter a integração com confiança.”
[ Emotional Development”, p. 1501
Winnicott continuou a trabalhar nesse tema nos dez últimos anos de sua vida. Destacou o
ambiente de ho!ding que deve estar presente no consultório, facilitando ao paciente chegar
a sua própria interpretação. Assim como o bebê que necessita sentir que uma ali mentação
satisfatória deve-se a seus próprios esforços, também o paciente necessita sentir que o
trabalho analítico faz parte de seus esforços (ver COMUNICAÇÃO: 6).
6 Ofalsoself
Foi a partir de sua prática clínica que Winnicott pôde estabelecer a diferença entre um
verdadeiro e um falso self. O falso self— batizado por uma paciente de “se!fcuidador” —
apresenta-se como o se/f que Winnicott idealiza como sendo aquele com o qual desenvol
ve-se o trabalho analítico com o paciente nos primeiros dois ou três anos. Essa hipótese
levou-o a dividir a organização do falso se!fem um espectro que se estende da patologia à
saúde. Entretanto, em cada uma das classificações, o falso se!f mostra-se como uma estru
tura que existe para que possa defender o verdadeiro se!f, mesmo — e especialmente — no
que se refere à saúde. O ambiente precoce configura as qualidades da defesa exigida (ver
AMBIENTE: 1). Este assunto é melhor elaborado por Winnicott em Communicating and
Not Communicating Leading to a Study ofCertain Opposites, texto de 1963.
229
7 A clivagem do intelecto
A personalidade de falso seif conseguiria ludibriar o mundo, afirma Winnicott ao refe rir-se
ao intelecto particularmente agradável que poderia localizar-se no falso self.
“Quando ocorre essa dupla anomalia, (i) o falso self que se organiza com o intuito de
ocultar o verdadeiro self, e (ii) uma tentativa levada a cabo por parte do indivíduo de
resolver um problema pessoal através do emprego de um inte lecto agradável, o quadro
clínico que advém daí é bastante peculiar, por ser enganoso. O mundo presencia um
sucesso teórico de alto nível, e pode ter difi culdades em acreditar na aflição real do
indivíduo que se sente como se fosse um „impostor‟ pela prosperidade obtida. Estes
indivíduos, ao destruírem-se de uma forma ou de outra, em lugar de cumprirem a promessa,
invariavelmente causam estupor naqueles que depositaram grandes esperanças nele.”
[ Distortion”, p. 1441
Em um trabalho apresentado a um público formado por educadores no Devon Centre for
Further Education, Winnicott situa a etiologia da clivagem do intelecto:
“Se examinarmos agora o caso do bebê cuja falha materna em adaptar-se é muito fugaz,
chegaremos à conclusão que a sobrevivência do bebê é devida à mente. A mãe explora a
capacidade do bebê de pensar, confrontar e compre ender. Se o bebê possuir um bom
aparelho mental, o pensamento transfor ma-se em um substituto do cuidado materno e da
adaptação. O bebê „materna a si mesmo‟ através da compreensão, de muita compreensão...
Isso resulta em uma inteligência desajustada daqueles cujo pensamento foi explorado. A
inteligência esconde atrás de si algum grau de privação. Em outras palavras, para aqueles
que tiveram seu pensamento explorado, sempre existe a ameaça de um colapso da
inteligência e da compreensão do caos mental, ou ainda de desintegração da
personalidade.”
8 A realização simbólica
[ Light on Children‟s Thinking”, p. 1561
A etiologia do falso se!f situa-se na relação precoce mãe-bebê, sendo o papel da mãe de
fundamental importância. Winnicott define o que quer dizer com suficiente mente-boa:
“A mãe suficientemente-boa é aquela que se depara com a onipotência do bebê e de algum
modo dá sentido a ela. Isso é feito incontáveis vezes. Um verdadeiro se/f passa a existir
através do fortalecimento do ego frágil do bebê por meio da implementação operada pela
mãe de suas expressões onipotentes.”
[ Distortion”, p. 1451
Essa adaptação materna possibilitará que o bebê venha a simbolizar. Winnicott ressalta que
isso depende de que o gesto do bebê se faça real pela resposta da mãe a ele, o que
conduz à capacidade de simbolização. (Este assunto foi abordado no decorrer da últi ma
década de Winnicott em todos os textos que fazem parte de P!aying and Reality, em
especial no estudo intitulado The Use ofan Object and Relating through Identifications.)
(Ver AGRESSÃO: 10; CRIATIVIDADE: 3; BRINCAR: 7.)
Symbolic Realisation, livro publicado em 1951 pela analista francesa M. A. Sechehaye, é o
relato do trabalho desenvolvido pela analista com uma paciente esquizofrênica durante um
certo período, que detalha a maneira com que ela, a analista, conduziu a adaptação de sua
técnica psicanalítica a fim de fornecer à paciente aquilo que ela jamais recebeu de seu
ambiente inicial. O relato apresenta a trajetória de como Sechehaye foi ao encontro das
necessidades da paciente e de como esta “adaptação às necessidades” con tribuiu para que a
paciente começasse a fazer uso dos símbolos. Symbolic realisation é uma referência ao uso
de objetos reais que a paciente fazia nas sessões, o que veio a represen tar e compensar a
falha ambiental precoce. Isto, por sua vez, ajudou a paciente a estabe lecer a distinção entre
eu e não-eu.
Winnicott ocasionalmente faz referência ao trabalho de Sechehaye. Sua teoria da adaptação
à necessidade é particularmente pertinente no caso de um paciente privado e perturbado. Ao
empregar o paradigma da mãe em estado de preocupação materna primária que consegue
adaptar-se às necessidades do bebê, Winnicott reconhece a regressão à dependência no
contexto da sessão analítica e como o analista deve ir ao encontro da regressão (ver
REGRESSÃO: 2, 9, 10).
9 O verdadeiro self
Ao propor o conceito de falso self, Winnicott sugere a existência de um verdadeiro seà
“Durante os estágios iniciais, o verdadeiro self apresenta-se como uma posi ção teórica a
partir da qual surge o gesto espontâneo e as idéias pessoais. O gesto espontâneo é o
verdadeiro se/f em ação. Apenas o verdadeiro se/f pode ser criativo, e apenas ele pode
sentir-se real. Considerando-se que o verdade i ro se/f sente-se real, a existência de um
falso se/f resulta em um sentimento de irrealidade ou de inutilidade.”
F”Ego Distortion”, p. 148]
Winnicott faz uma referência a sua paciente que apresentava um “selfcuidador” e que, ao
final de sua análise, “a dar início a sua vida”, uma vida que até então “não continha
qualquer experiência verdadeira... Ela iniciou sua análise aos quinze anos de uma vida
desperdiçada, mas ao final já sentia-se real, e é por esse motivo que agora deseja viver”
(Ego Distortion, p. 148).
É então que Winnicott elabora uma descrição do verdadeiro se!f, que parece bas tante
similar, se não for a mesma, a sua descrição, feita dois anos mais tarde, do ego em Ego
Distortion in Child Development, de 1962.
“É fundamental destacarmos que de acordo com a teoria formulada aqui, o conceito de uma
realidade interna dos objetos para o indivíduo aplica-se a um estágio mais tardio do que
aquele do conceito que foi denominado de verdadeiro self. O verdadeiro seifsurge assim
que haja uma organização mental por parte do indivíduo, o que implica pouco mais do que
o somatório da consciên cia sensório-motora.”
[ Distortion”, p. 149]
Passados quatro anos, em 1964, Winnicott dirige-se a um grupo da Oxford University em
uma conferência intitulada The Concept ofthe Faise Self. Nela, credita o interesse pela
verdade aos poetas e àqueles que sentem intensamente.
“Poetas, filósofos e profetas sempre estiveram envolvidos com a idéia de um verdadeiro
se/à‟. A traição ao se/à‟ tem sido um exemplo típico daquilo que é inaceitável. Shakespear,
talvez numa tentativa de não parecer afetado, reúne uma enormidade de verdades e as
oferece a nós através da boca de um pedan te como Polônio. Assim:
„Que esteja acima de tudo: para que tu próprio sejas verdadeiro, Deve-se seguir, como a
noite ao dia, Que tu não possas falsear a nenhum homem‟.
Supõem-se que a grande maioria dos poetas é o exemplo de que este cons titui-se no tema
favorito das pessoas de sentimentos intensos, O drama dos dias de hoje reside em buscar
um núcleo de verdade naquilo que é substancial, sen timental, bem sucedido e engenhoso.”
10 A submissão e o compromisso
[ of False Self”, pp. 65-661
Segundo Winnicott, a submissão está sempre associada a um viver constituído a partir do
falso se!f. Ela vincula-se ao desespero, em lugar da esperança (ver ANTI-SOCIAL,
TENDÊNCIA: 2). Em Morais and Education, de 1963, Winnicott vem afirmar:
“A imoralidade para o bebê está em fazer concessões em detrimento de seu modo de vida
pessoal. Por exemplo, uma criança, seja qual for sua idade, pode sentir que comer é algo
errado, mesmo que isso signifique morrer por esse princípio. A submissão proporciona
recompensas imediatas. Os adultos con fundem com bastante facilidade submissão com
crescimento.”
[ and Education”, p. 102]
Todavia, o compromisso é uma indicação de que existe saúde no reconhecimento da
realidade compartilhada; é um componente positivo e sadio do “equivalente normal do
falso seif‟:
“Existe um aspecto submisso pertencente ao verdadeiro self no viver saudável, a
capacidade do bebê de submeter-se e não ser exposto. A capacidade de
compromissar-se constitui-se em uma realização. O equivalente do falso se/à‟ no
desenvolvimento normal pode desenvolver-se na criança a partir das con dutas sociais, a
partir de algo que é adaptável. Na saúde, essas condutas sociais representam um
compromisso. Mas ao mesmo tempo, na saúde, o compromisso cessa de existir para
transformar-se em uma concessão quando as questões envolvidas adquirem uma outra
importância. Quando isso ocorre, o verdadeiro se/à‟ torna-se capaz de suprimir o se/à‟
submisso. Clinicamente, isso constitui-se em um problema recorrente da adolescência.”
[ Distortion”, pp. 149-1 501
Winnicott está se referindo na verdade àquilo que pode ser entendido como uma cliva gem
saudável da personalidade e, como ele mesmo descreve, um self que “não chora as
mágoas”:
“De certa maneira o que afirmo é que cada pessoa possui um se/fcivilizado ou socializado,
assim como um se/à‟ privado que não pode ser observado, a não ser na intimidade. Isso é
com o que geralmente nos deparamos, o que podería mos reivindicar como normal.
Se olharmos em volta, veremos que na saúde essa clivagem do se/à‟ constitui-se em uma
aquisição do crescimento pessoal; já na doença, a clivagem diz respeito a um cisma
ocorrido na mente que pode ter as mais variadas intensidades; a mais intensa delas é a e
[ of Ealse SelÍ”, p. 66]
Este é um resquício da persona (o termo latino para “máscara”) descrita na teoria de Jung,
que é definida como sendo a forma civilizada e socializada com que o seifapresen ta-se à
sociedade. E algo similar ao falso self sadio exposto por Winnicott, um meio- termo entre o
seif privado e o mundo externo. No entanto, uma identificação muito intensa com a persona
de alguém é entendida porJung como uma organização patoló gica — como o falso se!f
patológico presente no espectro proposto por Winnicott.
11 A psicoterapia e a busca pelo self
O que mais chama a atenção na tese do verdadeiro e falso se/fsugerida por Winnicott são
suas implicações técnicas para a relação analítica. Winnicott deparou-se com inú meros
pacientes que passaram por uma prolongada análise que, como veio a descobrir,
equivaleram a uma pseudo-análise.
“Torna-se necessário enunciarmos um princípio: no campo do falso se/à‟, presen te em
nossa prática analítica, pensamos fazer mais progressos através do reco nhecimento da não-
existência do paciente do que por meio do trabalho continuado efetuado com ele, que é
baseado nos mecanismos de defesa egóica. O falso se/f do paciente pode colaborar
ilimitadamente com o analista na análise das defesas, estando, por assim dizer, ao lado do
analista nesse jogo. Esse tra balho, que não recebe qualquer recompensa, é interrompido
apenas quando o analista consegue apontar e especificar a ausência de algum fator
fundamental:
„Você não tem uma boca‟, „você ainda não existe‟, „fisicamente você é um homem, mas
não possui nenhuma experiência de masculinidade‟, e assim por diante. O reconhecimento
desses fatos tão fundamentais, nos momentos apro priados, abre as portas para a
comunicação com o verdadeiro seIf”.
[ Distortion”, p. 1521
Esta é uma das característica da contribuição revolucionária oferecida por Winnicott à
psicanálise, que é seguida por um exemplo clínico do uso imaginativo do paradoxo que
propôs.
“Um paciente cuja análise era de uma futilidade extrema e baseada em um fal so self, e que
cooperava vigorosamente com um analista que imaginava ser este seu se/f total, disse-me
certa vez: „O único momento em que senti espe rança foi quando você me disse não poder
encontrar nenhuma esperança, e mesmo assim você deu continuidade à análise‟.”
[ Distortion”, p. 152]
Playing and Reality (Wi O) é uma coletânea dos estudos de Winnicott dedicados à explo
ração dos “fenômenos transicionais” (ver TRANSICIONAIS, FENÔMENOS). No capítulo
IV, intitulado P!aying and the Search for Se!f, Winnicott apresenta a psicoterapia como
sendo uma busca pelo self, o que é a busca pelo sentir-se real interiormente. O campo
terapêu tico precisa ser necessariamente como o ambiente suficientemente-bom, um espaço
facilitador que constitui a terceira área, que não é interna nem externa, mas interme diária
(ver CRIATIVIDADE: 6; BRINCAR: 8):
“... a psicoterapia se produz através da sobreposição de duas áreas lúdicas, a do paciente e a
do terapeuta. Se o terapeuta não é capaz de brincar, então não está ajustado ao trabalho. Se
o paciente não consegue brincar, algo precisa ser feito para possibilitar-lhe o brincar, após o
que a psicoterapia pode ter início. O motivo pelo qual o brincar é essencial é que é através
dele, e tão-somente através dele, que o paciente pode ser criativo.
estou envolvido com a busca pelo self e com a retomada de certas con dições importantes
no caso dessa busca obter sucesso. Essas condições estão associadas àquilo que geralmente
denominamos criatividade. E ao brincar, e apenas ao brincar, que a criança ou o adulto
torna-se capaz de ser criativo e a fazer uso de sua personalidade integral. E somente ao ser
criativo que o indiví duo vem a descobrir o self.”
[ Creative Activity and the Search for the SeIf”, 1971, p. 541
A produção de uma grande obra de arte ou seu equivalente não indica que o artista pôde
descobrir o se(f
“O self não pode realmente ser encontrado nem nas produções do corpo, nem da mente.
Entretanto, esses constructos podem ser de um extraordinário valor em termos de beleza,
virtuosismo e impacto... A obra acabada jamais corrige a perda subjacente do sentimento de
self.”
[ Creative Activity”, pp. 54-551
A “não-integração primária” proposta por Winnicott em Primitive Emotional Development,
texto datado de 1945, transforma-se no “estado de repouso” e/ou “disformidade”.
O paciente que não pôde experimentar o relaxamento da não-integração nos pri mórdios da
vida com a mãe precisa ir ao encontro dessa experiência com o terapeuta. Isso dependerá de
um sentimento de crédito e de confiança no ambiente que se apre senta:
“Essa experiência constitui-se em um estado não-intencional, uma espécie de tiquetaquear
da personalidade não-integrada. Chamei a isso disformidade...
E preciso darmos uma atenção especial à confiança e à desconfiança que
é inspirada pelo setting no qual o indivíduo opera. Somos levados de encontro
a uma necessidade de diferenciação entre uma atividade intencional e a sua
alternativa, que é ser não-intencional...
Refiro-me aos elementos essenciais que tornam o relaxamento algo possí vel. Em termos de
associação livre, isso significa que, ao paciente deitado no divã, ou à criança que está
sentada no chão entre seus brinquedos, deve ser permitido que comuniquem uma sucessão
de idéias, pensamentos, impulsos e sensações que não estão aparentemente relacionadas
entre si...”
[ Creative Activity”, p. 551
Embora Winnicott reafirme a técnica freudiana da associação livre, ao mesmo tempo diz
que a conexão dos “vários componentes do material surgido a partir da associação livre”
corre o perigo de transformar-se em uma defesa contra a ansiedade de não poder
compreender. Em outras palavras, o analista que permanentemente tenta revelar as relações
e “compreender”, com a finalidade de interpretar o inconsciente, inviabilizará a capacidade
de “estar” com o paciente, e até mesmo — e especialmente — a aceitação do nonsense:
“...pensemos naquele paciente que é capaz de descansar após o trabalho, mas que é incapaz
de atingir um estado de repouso a partir do qual emergirá uma abrangência criativa. De
acordo com essa teoria, a associação livre, que é reveladora de uma coerência, já está
afetada pela ansiedade, sendo a coesão das idéias uma organização defensiva. Talvez
devamos convir que existem pacientes que, em alguns momentos, exigem que o terapeuta
aponte para o nonsense, ou seja, o paciente não necessita organizar o nonsense. O nonsense
organizado é em si uma defesa, assim como o caos que se organiza é a nega ção do próprio
caos. O terapeuta que não consegue receber essa comunicação empreende uma tentativa
inútil de encontrar alguma organização no nonsen se, o que resulta no abandono da área de
nonsense por parte do paciente em função da desesperança em não conseguir comunicá-lo.
Uma oportunidade de repouso foi desperdiçada por causa da necessidade do terapeuta de
encon trar sentido onde existe apenas nonsense.”
[ Creative Activity”, pp. 55-56]
235
O paciente é desiludido por um ambiente que não facilita o estado de repouso. Winni cott
crê que a “abrangência criativa” não pode se dar sem a “disformidade”. Ilustra o que quer
dizer com disformidade no relato que faz da sessão com uma paciente que se prolongou por
cerca de três horas. Esse relato é prefaciado por um pedido feito por Winnicott aos
terapeutas:
“A descrição que faço equivale a um pedido para todo aquele terapeuta que leva em
consideração a capacidade de brincar do paciente, isto é, que ele seja criativo no trabalho
analítico. A criatividade do paciente pode ser facilmente frustrada por um terapeuta que
saiba demais.”
[ Creative Activity”, p. 571
Winnicott está sugerindo especificamente uma atitude mental; a questão que se coloca não
é se recomenda ou deixa de recomendar que uma sessão seja prolongado por três horas. O
que deseja deixar claro com isso é o que sua paciente exigia naquele momen to. Se
houvesse estipulado um tempo determinado, isso poderia ser considerado como uma
imposição a seu processo. Sua adaptação às necessidades da paciente vem com o
oferecimento de um prolongamento da estrutura temporal.
O relato dessa sessão, que se estendeu por três horas, é ilustrativo de como a dis formidade
e o brincar participam da jornada em busca da autodescoberta. Essa busca é mais
importante (ou pelo menos tão importante) quanto a própria descoberta.
Winnicott emprega as palavras da paciente com o intuito de resumir aquilo que deseja
transmitir:
“Ela havia formulado uma pergunta, ao que lhe disse que a resposta nos levaria a uma
longa e interessante discussão, porém era na própria pergunta que resi dia meu interesse.
Disse-lhe: „Você teve a idéia de fazer-me essa pergunta.‟
Após isso ela pronunciou as palavras de que eu precisava para poder expressar o que queria
dizer. Ela, então, disse, pausadamente e com um senti mento profundo: „Sim, entendo.
Poderíamos supor a existência de um Eu ine rente à pergunta, assim como à busca.‟
Ela havia feito a mais essencial de todas as interpretações, onde a pergunta surge daquilo
que apenas poderíamos chamar de criatividade, a criatividade que desponta após o
relaxamento, que é o oposto da integração.”
[ Creative Activity”, pp. 63-64]
A conclusão cartesiana de Winnicott — questiono, logo, sou —, embora não esteja
especificada, envolve uma tomada de consciência que só pode ocorrer a partir da bus ca e
da descoberta da questão. Tanto a busca quanto a descoberta, contudo, têm que se dar
dentro do contexto de uma relação. A relação suficientemente-boa é aquela que será
refletida:
“A busca origina-se de um funcionamento disforme e desconexo, ou talvez de um brincar
rudimentar, como se houvesse uma zona neutra. E somente neste estado da personalidade
que aquilo que descrevemos como sendo criativo
pode vir a aparecer. Se isso for refletido, mas apenas se for refletido, é que irá tornar-se
parte de uma personalidade individual organizada, o que eventual- mente faz com que o
indivíduo passe a existir e a ser descoberto; finalmente, lhe possibilita postular a existência
de um self.”
“Playing: Creative Activity”, p. 64]
Um ano antes de sua morte, Winnicott demonstrou sua apreensão pessoal no que diz
respeito à definição de se!! i
“... a principal questão que se coloca refere-se à palavra „self‟. Perguntei-me se conseguiria
escrever algo a respeito dessa palavra, mas fica evidente que tão logo o consegui, descobri
existir muita incerteza, mesmo em minha mente, sobre aquilo que queria expressar. Escrevi
o que se segue:
Para mim, o se/f, que não deve ser confundido com o ego, é a pessoa que sou, que é eu
apenas, que possui uma totalidade fundada na operação do pro cesso maturacioflal. Ao
mesmo tempo, o se/fé constituído por algumas partes. Essas partes aglutinam-se do interior
para o exterior no transcorrer da operação do processo maturacional, auxiliadas, como deve
ser (intensamente, a princí pio), pelo ambiente humano que proporciona o ho/ding e o
manejo, além de, além de oferecer uma facilitação ativa, O se/f encontra-se naturalmente
situa do no corpo, porém, em determinadas circunstâncias, torna-se dissociado des te corpo
nos olhos e na expressão facial da mãe, assim como no espelho que pode vir a representar o
rosto materno. Eventualmente, o se/f consegue estabe lecer uma relação significante entre a
criança e o somatório das identificações, as quais (após alguma incorporação e introjeção
da representação mental) se organizam na forma de uma realidade psíquica interna ativa. A
relação da cri ança com sua própria organização psíquica interna sofre uma transformação
de acordo com as expectativas manifestadas por seu pai e por sua mãe, da mesma fora que
por todos aqueles que são importantes para a a vida externa do indivíduo. E o se!f e a vida
do self que, sozinhos, dão sentido à ação e à vida, do ponto de vista do indivíduo que até
agora cresceu e que continua a crescer, partindo da dependência e da imaturidade em
direção à independên cia; bem como à capacidade de identificar-se com os objetos de amor
madu ros sem que haja uma perda da identidade individual.”
[ the Basis for Self in Body”, 1970, p. 271]
A descrição inclui uma grande parte dos aspectos contemplados na teoria do desen
volvimento de Winnicott. Entretanto, é freqüentemente apontado que, embora Win nicott
inicialmente afirme claramente que o se!f não é o ego, jamais estabeleceu uma diferença.
O processo de “aglutinar” as parte do se!f requer uma organização da experiência, o que
implica a existência de uma parte do self que possui uma função organizadora — quem
sabe o próprio ego? Portanto, o ego apresenta-se como uma parte do self.
237
Além disso, o se!f, que possui uma localização no corpo, é aquele mesmo referido por
Winnicott como a psique que habita o soma, o qual também descreve como sendo o ego
corporal que está relacionado ao processo de personalização.
No livro de Bruno Bettelheim, Freud and Man‟s SouI(1983 —um exame minucioso da
tradução inglesa da obra de Freud), nos deparamos com uma crítica da tradução do das ich
para o ego latino que, em vez disso, poderia ser traduzido para o inglês Me ou 1. Bettelheim
acredita que a decisão de empregar o termo latino em lugar do inglês deveu-se ao desejo de
medicalização da psicanálise. No entanto, para Bettelheim, isso significa um preço muito
alto a ser pago, não apenas pela obra freudiana, mas pela intenções fundamentais que se
encontram por trás da escolha original, que foi o das Ich feita por Freud.
“Nenhuma palavra possui uma conotação tão intensa quanto o pronome 1. Ela é uma das
palavras mais utilizadas da linguagem falada — e, o que é mais importante, é a palavra
mais pessoal. Uma tradução erradamente feita do lch para “ego” faz dele um jargão que não
mais traz consigo o compromisso que existe ao dizermos 1 ou me — para não
mencionarmos nossas lembranças sub conscientes de profundas experiências emocionais
ocorridas durante a infân cia, quando aprendemos a dizer 1. Não tenho conhecimento se
Freud estava familiarizado com a exposição de Ortega y Gasset, segundo a qual criar um
conceito é abandonar a realidade, mas com toda certeza sabia que isso era a mais pura
verdade e, por isso, tentava evitar esse perigo tanto quanto possível. Ao criar o conceito de
Ich, Freud atrela-o à realidade ao empregar um termo que torna praticamente impossível
deixá-la de lado. Escrever ou falar sobre o 1 faz com que nos voltemos para nós mesmos
introspectivamente. Em contra partida, um „ego‟ que emprega mecanismos bem definidos,
tais como o deslo camento e a projeção, a fim de alcançar seus propósitos em uma luta
travada contra o „id‟, é algo que deve ser examinado a partir do exterior, ao observar mos
outras pessoas. Com essa inapropriada — esta é a minha resposta emo cional — e
equivocada tradução, uma psicologia introspectiva pode ser confun dida com uma
psicologia comportamentalista que vê as coisas a partir do exte ri or.”
[ 1983, pp. 53-54]
Um exame mais acurado do emprego que Winnicott faz da palavra “ego” demonstra que ele
é uma função específica do self. O Me é um termo que Winnicott elege precisa mente pela
mesma razão pela qual Freud escolheu o das lch, ou seja, colocar em desta que as
experiências subjetivas e internas. De fato, o conjunto da obra de Winnicott é dedicado à
evocação da subjetividade. Portanto, é bastante irônico que na descrição que faz do se!f no
final de sua vida, Winnicott insista ainda em que o ego não é o self. Uma das possíveis
explicações para este enigma é que tenha sido uma resposta à ten são política reinante na
Sociedade Psicanalítica Britânica, onde a fidelidade a Freud era evidente, bem como ao fato
de que o primeiro analista de Winnicott tenha sido James Strachey, tradutor da obra
freudiana.

Primitive Emotional Development [


Birth Memories, Birth Trauma, and Anxiety [
Aggression in Relation to Emotional Development [
Anxiety Associated with Insecurity [
The Depressive Position in Normal Development [
Primary Maternal Preoccupation 1W61
Psychoanalysis and the Sense of Guilt 1W91
Ego Distortion in Terms of True and False Self [
Ego Integration in Child Development 1W9]
MoraIs and Education 1W91
The Concept of the False Self [ 4}
New Light on Children‟s Thinking [ 91
On the Basis for Self in Body [ 91
Playing: Creative Activity and the Search for the Selí [ 01
Referências
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1949
1950
1952
1954
1956
1958
1960
1962
1963
1964
1965
1970
1971

TENDÊNCIA ANTI- SOCIAL


1 A experiência da evacuação
2 Delinqüência e comportamento anti-social normal
3 A necessidade de roubar
4 Duas vertentes: a destrutividade e a busca do objeto
5 Um momento de esperança
6 A tendência anti-social e a psicanálise

Tendência anti-social é uma expressão intrinsicamente vinculada à deprivação. O ato anti-


social (roubo, enurese noturna etc.) constitui-se em um imperativo relativo a uma falha
ambiental estabelecida no período da dependência relativa.
De acordo com Winnicott, a tendência anti-social indica que o bebê pôde experimentar um
ambiente suficientemente-bom à época da dependência absoluta, mas que foi perdido
posteriormente. Assim, o ato anti-social é um sinal de esperança de que o indivíduo venha a
redescobrir aquela experiência boa anterior à perda.
A tendência anti-social não deve ser vista como um diagnóstico, e pode ser aplica da tanto à
crianças como a adultos.
Winnicott estabelece uma distinção entre a tendência anti-social e a delinqüência, mesmo
que ambas brotem do mesmo tronco - a deprivação.
1 A experiência da evacuação
A descoberta feita por Winnicott de que a tendência anti-social é uma demonstração de
esperança surgiu a partir do trabalho que desenvolveu durante a Segunda Grande Guerra,
quando desempenhou a função de Consultor Psiquiátrico para o Plano de Evacuação do
Governo em uma área de acolhimento localizada nos arredores de Londres. O impacto
causado por essa experiência em Winnicott deu origem a diversas conferências e entrevistas
radiofônicas, realizadas tanto no período da guerra como no pós- guerra, onde os temas
vinculados à separação e à perda das coisas da vida cotidiana foram examinados. Algumas
dessas conferências foram publicadas postumamente, juntamente com outros trabalhos
escritos pouco depois do término da guerra, na coletânea intitulada Deprivation and
Delinquency (W 13).
Na introdução desta coletânea de textos, Clare Winnicott, que conheceu e trabalhou com
Winnicott nesse período, descreve algumas particularidades do processo de pesquisa de
Winnicott em seu trabalho com crianças deprivadas e com adolescentes.
“Embora as circunstâncias nas quais Winnicott encontrava-se fossem extraordinárias em
decorrência da guerra, o conhecimento adquirido a partir destas experiências teve suas
aplicações ampliadas, pois as crianças que sofreram alguma perda e que se tornaram
delinqüentes apresentavam basicamente problemas que eram manifestados de uma forma
bastante previsível, quaisquer que fossem as circunstâncias. Além do mais, as crianças
pelas quais Winnicott era responsável eram aquelas que demandavam condições especiais,
uma vez que não podiam ser instaladas em lares comuns. Em outras palavras, elas já eram
problemáticas em seus próprios lares...
A experiência de evacuação deixou marcas muito profundas em Winnicott, pois deparou-se
com a enorme confusão provocada pelo esfacelamento indiscriminado da vida familiar,
tendo que viver os efeitos da separação e da perda, da destruição e da morte. As respostas
pessoais dadas em termos de um comportamento bizarro e delinqüente surgidos daí
precisaram ser administradas, circunscritas e gradualmente compreendidas por Winnicott,
que trabalhava em conjunto com uma equipe local. As crianças com as quais Winnicott
trabalhou haviam chegado ao final da linha; não havia lugar a que pudessem ir. Como
mantê-las tornou-se a principal preocupação de todos aqueles que estavam envolvidos em
ajudá-las...
Não restavam dúvidas de que o trabalho com crianças deprivadas deu uma nova dimensão
ao pensamento de Winnicott, bem como a sua prática, o que afetou seus conceitos básicos,
no que tange o crescimento emocional e o desenvolvimento. No início de sua teorização
das pulsões, podíamos perceber o germe da tendência anti-social, que começava a tomar
forma e a ser definida.”
[ 1984, pp. 1-31
Clare descreve como sua colaboração foi lembrada e posteriormente utilizada como
informação vital, contribuindo para a elaboração do Children Act, em 1948.
As palavras de Clare Winnicott ao final da introdução são oportunamente colocadas. A
tendência anti-social, tomada como conceito, é de extrema relevância não apenas para
aqueles que foram evacuados durante a guerra, mas para a sociedade e todos os indivíduos
que não puderam experimentar um ambiente de holding vigoroso em um estágio crucial de
seu desenvolvimento emocional.
“Embora estes textos sejam de interesse histórico, não fazem parte da história, mas sim do
sempre presente encontro dos elementos anti-sociais da sociedade e das forças da saúde e
da sanidade que emergem para recuperar e recobrar aquilo que foi perdido. A complexidade
de tal encontro não deve ser superestimada. O ponto de contato entre os cuidados
dispensados e os demandados constitui-se sempre no foco da terapia nesse terreno ou
função, o que requer uma atenção constante e o suporte dos profissionais envolvidos, além
do esclarecimento dos administradores responsáveis. Hoje em dia, como sempre, a questão
prática coloca-se em como manter um ambiente que é demasiado humano, e também
intenso, a fim de abarcar aqueles que fornecem os cuida dos e aqueles que foram privados,
além dos delinqüentes que necessitam desesperadamente de cuidados e contenção, mas que
farão de tudo que estiver ao seu alcance para destruí-lo quando se depararem com ele.”
[ Winnicott, 1984, p. 5]
2 Delinqüência e comportamento anti-social normal
Em 1946, um ano após o término da guerra, Winnicott ministrou uma conferência para um
público de magistrados. Esse texto, intitulado Some Psychological Aspects of Juvenile
Delinquency, atribui a causa do ato delinqüente à perda emocional precoce. Ao introduzir o
inconsciente freudiano, Winnicott esperava convencer seu público de que o comportamento
anti-social é produto de uma comunicação inconsciente.
Antes mesmo de explorar cada uma das faces da perda no delinquente, Winnicott propõe
uma certa normalidade do ato anti-social no desenvolvimento emocional, até dentro dos
bons lares.
“O que é uma criança normal? Ela simplesmente come, cresce e sorri candidamente? Não,
ela não é assim. Uma criança que é normal, se possui confiança em seu pai e em sua mãe,
age com liberdade. Com o passar do tempo põe à prova seu poder de desintegrar, de
destruir, de atemorizar, de desgastar, de debilitar, de enganar e de apropriar-se das coisas.
Tudo aquilo que conduz as pessoas aos tribunais (ou aos manicômios) possui um
equivalente normal na infância e na meninice, e também na relação da criança com seu
próprio lar. Se este lar for capaz de suportar tudo que a criança faz para desintegrá-lo, ela
pode pôr-se a brincar; mas um teste deve ser feito, especialmente se paira alguma dúvida
quanto à estabilidade da relação parental e do lar (entendendo-se por lar muito mais do que
a casa). A princípio, a criança necessita ter consciência de um marco onde apoiar-se para
que possa se sentir livre, para poder brincar, fazer seus próprios desenhos, para ser uma
criança sem responsabilidades.”
[ Psychological Aspects”, p. 115]
43
Winnicott coloca o porquê de a criança ser como é referindo-se à qualidade essencial de um
ambiente vigoroso e amoroso. A resposta dada pelos pais à agressão primária do bebê é
parte integrante desta teoria (ver AGRESSÃO: 3, 4, 6).
“Por que se faz necessário tudo isso? O fato é que os primeiros estágios do
desenvolvimento emocional estão repletos de conflitos e desintegrações parciais. A relação
com a realidade externa ainda não está firmemente enraizada; a personalidade não está
ainda de todo integrada; o amor primitivo possui uma finalidade destrutiva, sendo que a
criança pequena ainda não aprendeu a tolerar e a lidar com as pulsões. Ela pode chegar a
lidar com todas essas coisas, e com muito mais, se o que a rodeia é estável e pessoal.
Inicialmente, necessita indispensavelmente viver em um círculo de amor e vigor (com a
conseqüente tolerância) para que não experimente demasiado temor quanto a seus próprios
sentimentos e fantasias, e possa dar continuidade a seu desenvolvimento emocional.”
[ Psychological Aspects”, p. 1151
Este é um retrato da criança que pôde ter um ponto de partida suficientemente-bom, isto é,
um ambiente facilitador. A tolerância dos pais no que diz respeito à agressão do bebê é a
chave para que ele possa crescer. E o que conduzirá o indivíduo ao sentimento de
autonomia. A criança que não receber qualquer limite não poderá sentir-se livre; pelo
contrário, só poderá sentir-se ansiosa.
“Mas agora, o que ocorre se o lar não proporciona tudo isto à criança antes que ela tenha
formado a idéia de um marco que participe de sua própria natureza? A opinião mais aceita
diz que, ao encontrar-se „livre‟, passa a usufruir dessa situação. Isto está muito distante da
verdade. Ao ver destruído o marco da sua vida, já não pode sentir-se livre. Torna-se
ansiosa, e se tem esperança, passa a buscar um marco fora do lar. A criança cujo lar falha
em oferecer-lhe o senti mento de segurança, procura fora dele as quatro paredes; contudo,
ela ainda tem esperança, e começa a apelar a seus avós, tios e tias, amigos da família, para a
escola. Procura por uma estabilidade externa, sem a qual pode perder a razão...
A criança anti-social simplesmente busca um pouco além, apela à sociedade em lugar de
recorrer à própria família ou à escola, para que lhe seja proporcionada a estabilidade de que
necessita, a fim de superar as primeiras e essenciais etapas de seu crescimento emocional.”
[ Psycho Aspects”, pp. 11 5-1 161
Se a comunicação inconsciente do ato anti-social não for compreendida pelo ambiente, o
comportamento anti-social da criança corre o perigo de desenvolver-se em direção à
delinqüência. Winnicott estabelece uma diferença entre delinqüência e tendência anti-
social, que é a impossibilidade do delinqüente receber tratamento.
“No período em que o menino ou menina recrudescem em função de uma falha na
comunicação, em que o ato anti-social não é reconhecido como o portador de um S.O.S.,
quando os ganhos secundários tornam-se de grande
valor, e uma grande habilidade visando à atividade anti-social pôde ser construída, torna-se,
então, mais problemático perceber (o que, apesar de tudo, ainda está lá) o S.O.S., o sinal de
esperança enviado pelo menino ou menina anti-social.”
[ as a Sign of Hope”, 1967, p. 901
O indivíduo que pode vir a tornar-se um criminoso perdeu o contato com o sentimento de
perda original, sendo que o modo de vida anti-social relega o sofrimento psíquico. No
entanto, como Winnicott aponta, se as raízes do ato criminoso são bem conhecidas, o
tratamento e a reabilitação apropriados devem ser desenvolvidos como opostos à punição,
que serve tão-somente ao recrudescimento da defesa.
O fato é que a punição e a força levam apenas à submissão e a um viver que se baseia no
falso-self. Em um trabalho de 1963— Morais and Education — Winnicott desenvolve o
que deseja dizer:
“O Prof. Niblett, na conferência de abertura desta série, fez referência ao Reitor Keate, que
disse a uma criança certa vez: „Você irá acreditar no Espírito Santo até as cinco horas da
tarde de hoje, ou será espancada até que o faça‟. Assim, o Prof. Niblett nos faz pensar na
idéia de que é absolutamente inútil tentar o ensino de valores ou da religião por meio da
força. Procuro tornar acessível este importante tema e examinar as alternativas. Defendo a
idéia de que existe uma boa alternativa que não pode ser encontrada no ensino, cada vez
mais, sutil da religião. A boa alternativa refere-se a propiciar ao bebê e à criança as
condições que a tornem capaz de ver as coisas como confiáveis e „críveis‟, e à idéia de
certo e errado, que se desenvolve a partir da elaboração dos processos internos da criança.”
[ and Education”, pp. 93-94
No mesmo texto — originalmente apresentado no University of London Institute of
Education
—, Winnicott faz uma breve referência à perversidade como sendo uma manifestação da
tendência anti-social.
“A perversidade faz parte do quadro clínico produzido pela tendência anti-social...
Resumidamente, a tendência anti-social representa a esperança de uma criança que sofreu
uma perda que, a não ser por isso, é desesperada, desafortunada e inofensiva; a
manifestação da tendência anti-social em uma criança significa que se desenvolveu nela a
esperança de encontrar uma maneira de preencher uma lacuna. Esta lacuna é uma quebra da
continuidade da provisão ambiental, experimentada em um estágio de dependência relativa.
Em cada caso houve uma quebra da continuidade da provisão ambiental, que acabou por
resultar na suspensão dos processos maturacionais e em um estado clínico confusional na
criança... A perversidade desaparece quando a lacuna é preenchida. Esta é uma implificação
exagerada, mas que pode ser bastante adequada. A perversidade compulsiva é a última
coisa a ser curada, ou barrada, pela educação moral. A criança sabe, em seu íntimo, que
existe esperança em seu comportamento perverso, e que o que se vincula ao deses
44
pero é a obediência e a falsa socialização. Para a pessoa que é anti-social ou perversa, o
educador moral encontra-se no lado oposto ao seu.”
V‟Morals and Education”, pp. 103-1041
A função paterna tomada em relação ao ambiente de holding constitui-se em um importante
fator ao lidarmos com o elemento anti-social inerente aos bebês e às crianças. Em Some
Psychological Aspects of Juvenile Delinquency, escrito em 1946, podemos perceber que as
questões relativas ao ambiente indestrutível e à autoridade paterna fazem parte do que, na
década de 1960— e particularmente em 1968 (em “The Use of an Object and Relating
Through Identifications”) —, transforma-se em sobrevivência do objeto e necessidade
subjetiva da sobrevivência do objeto, a fim de que possa avançar em direção à saúde (ver
AGRESSÃO: 10).
“Ao roubar açúcar, o que uma criança busca é uma mãe boa, a sua própria, de quem possa
obter toda a doçura a que tem direito. De fato, toda essa doçura lhe pertence, pois ela
inventou sua mãe e sua doçura a partir de sua própria capacidade de amar, a partir de sua
própria criatividade primária... Busca também seu pai, que protegerá a mãe de seus ataques
contra ela, ataques esses efetuados no exercício do amor primitivo. Quando uma criança
rouba fora de seu lar, está também procurando por sua mãe, mas agora com um maior senti
mento de frustração, e com uma necessidade cada vez maior de encontrar, ao mesmo
tempo, a autoridade paterna que imponha um limite ao efeito concreto de sua conduta
impulsiva e ao acting out das idéias surgidas em sua mente, quando está excitada. A
delinqüência manifesta é extremamente problemática para nós, como observadores, porque
o que encontramos é a intensa necessidade que a criança tem de um pai completo, que
proteja a mãe quando esta for encontrada. O pai completo que a criança evoca também
pode ser amoroso, mas inicialmente deverá mostrar-se completo e forte. Somente quando a
figura paterna completa e forte coloca-se em evidência, a criança pode recuperar seus
impulsos amorosos primitivos, seu sentimento de culpa e seu desejo de reparação. A menos
que se encontre em meio a dificuldades, o delinqüente pode cada vez mais tornar-se inibido
para o amor, e em conseqüência mais e mais deprimido e despersonalizado, e mesmo
incapaz de sentir a realidade das coisas, exceto a realidade da violência.”
[ Psychological Aspects”, pp. 116-11 71
A esse propósito, o criminoso contumaz necessita desse modo violento de viver como a
única maneira de sentir-se real. O ato anti-social é, em essência, um sinal de esperança para
o indivíduo que o realiza. Ele espera que os limites que foram perdidos (a autoridade do
pai) sejam redescobertos. O indivíduo está em busca do ambiente que está preparado para
dizer não, não como punição, mas como um incentivador do sentimento de segurança. Na
tese que Winnicott desenvolveu sobre o uso do objeto, o objeto sobrevive ao bebê para que
possa desenvolver um verdadeiro sentimento de self.
“A delinqüência aponta na direção de que ainda resta alguma esperança. Poderão ver que
não se trata necessariamente de um distúrbio quando a criança se comporta de uma forma
anti-social; algumas vezes a conduta anti-social não é outra coisa senão um S.O.S. enviado
em busca do controle exercido por quem detém a força, o amor e a segurança. A maioria
dos delinqüentes são, em alguma medida, doentes. A palavra doença é bastante adequada
pelo fato de que, em muitos casos, o sentimento de segurança não se estabeleceu
suficientemente nos primeiros anos da vida da criança de forma a ser incorporado as suas
crenças. Uma criança anti-social pode apresentar melhoras sob um manejo firme, mas se
lhe é conferida liberdade não demorará em sentir a ameaça da loucura. Volta, então, a
atacar a sociedade (sem saber o que faz) a fim de restabelecer o controle exterior.”
[ Psychologica Aspects”, pp. 11 6-1 1 71
A hipótese de que o ambiente tenha sido falho para o delinqüente indica que importância
deve ser conferida ao tratamento. Winnicott acredita que cada bebê possui o direito a um
ambiente suficientemente-bom. Conseqüentemente, as crianças e adolescentes que jamais
desfrutaram desse direito buscam ser compensados dessa perda por meio da terapia e, no
caso de ser necessário, de um direcionamento.
“A não ser por omissão (quando chegam aos tribunais de menores como delinqüentes), é
possível manejá-los de duas maneiras distintas. Uma psicoterapia individual lhes pode ser
oferecida ou, então, proporcionar-lhes um ambiente bem constituído e estável com
cuidados e amor pessoais, além de aumentar gradualmente a liberdade. Na verdade, sem
esta última opção, a psicoterapia individual não terá êxito. Com a provisão de um lar
substituto adequado, a psicoterapia pode ser desnecessária, o que é bem-vindo porque
praticamente nunca podemos contar com ela...
A psicoterapia individual visa capacitar a criança a completar seu desenvolvimento
emocional. Isso pode significar diferentes coisas, incluindo o estabeleci mento de uma boa
capacidade de sentir a realidade das coisas reais, tanto externas quanto internas, e de
alcançar a integração da personalidade individual.”
[ Psychological Aspects”, p. 1181
Do início ao fim da obra de Winnicott a natureza do ambiente jamais perdeu sua relevância
emocional ou física. A criança que se desenvolve, em especial no seu princípio, é o
ambiente que contribui na estruturação de um padrão de expectativa interna. A criança ou o
adolescente que manifesta a tendência anti-social perdeu os limites restringentes do
ambiente, sendo inconscientemente levado a encontrá-los.
[ Antisocia Tendency”, 1956, p. 309]
“A tendência anti-social caracteriza-se por um elemento que lhe é inerente e que compele o
ambiente a ser importante. O paciente, através de pulsões inconscientes, compele as
pessoas a lhe prestar assistência. E tarefa do terapeuta envolver-se com a pulsão
inconsciente do paciente. Seu trabalho é saber manejar, tolerar e compreender”
Tomando-se os primeiros textos de Winnicott, torna-se evidente que este sempre procurou
destacar a importância da continuidade e da estabilidade ambientais como aqui
47
lo que prepara o terreno para que a saúde psíquica possa estabelecer-se (ver AMBIENTE:
1). Nos trabalhos do pós-guerra uma continuidade no direcionamento é recomendada para
aquelas crianças que necessitam de cuidados institucionais, pelo fato de não possuírem uma
família ou pela família que possuem haver sido falha:
“Existem duas grandes categorias de crianças em tempos de paz: as crianças cujos lares não
existem, ou cujos pais não puderam estabelecer um cenário estável onde a criança pudesse
desenvolver-se, e aquelas que possuem um lar que, no entanto, inclui um dos pais
mentalmente comprometido. Estas crianças aparecem em nossas clínicas em tempos de paz,
nos dando a chance de comprovar que necessitam exatamente do mesmo daquelas que foi
muito difícil localizar as necessidades. Seu ambiente familiar lhes falhou. Digamos que tais
crianças necessitam de uma estabilidade ambiental, manejo pessoal e continuidade desse
manejo. Supomos aqui um padrão mais comum de cuida dos físicos.”
]“Children‟s Hostels in War and Peace”, 1948, p. 741
Winnicott, posteriormente, coloca em destaque que a continuidade no manejo e a
estabilidade ambiental dependem da capacidade que a equipe possui de suportar a carga
emocional que uma criança angustiada pode causar.
“A fim de assegurar o manejo pessoal, a equipe encarregada do alojamento deve ser bem
preparada e os administradores devem ter condições de suportar o esforço emocional
próprio ao cuidado dispensado a qualquer criança, mas sobretudo às crianças cujos lares
falharam em suportar tal tensão. Por esse motivo, os administradores necessitam do apoio
constante do psiquiatra e de assistentes sociais psiquiátricos. As crianças (não de forma
consciente) buscam o alojamento e, isso fracassando, apelam à sociedade em um sentido
bastante amplo, para que ela lhe forneça um marco para suas vidas que seus próprios lares
não puderam fornecer. Quando não é possível contar com o pessoal adequado, além de
tornar-se impossível o manejo pessoal, a equipe também fica exposta à doença e ao
colapso, o que interfere na continuidade da relação pessoal, essencial ao trabalho.”
]“Children‟s Hostels in War and Peace”, p. 74]
A ênfase posta sobre a contribuição psicológica do ambiente à saúde física e psíquica do
indivíduo é o que caracteriza a obra de Winnicott. Portanto, o sentimento de “ser” no
indivíduo fica relacionado ao holding e ao ambiente facilitador, assim como a capacidade
de holding advém na memória inconsciente daquele que oferece seus cuidados de já haver
experimentado o holding (ver HOLDING; AMBIENTE; PREOCUPAÇÃO MATERNA
PRIMÁRIA).
3 A necessidade de roubar
Em 20 de junho de 1956 Winnicott apresenta The Antisocial Tendency à Sociedade Psican
Rrit P trihilhn vpiú tornar-se a expressão definitiva do tema: perda no período de
dependência relativa, além de incluir algumas recomendações no tocante ao tratamento.
Desde seu início, Winnicott expõe como a tendência anti-social diferencia-se do acting-out
por excelência, como é o caso do indivíduo que, de acordo com todos os rela tos, parece vir
de uma família bem estruturada, mas que precisa viver o roubo por causa de uma
experiência de perda. Em seu primeiro exemplo, um paciente adolescente de Winnicott foi
enviado a uma escola interna porque a psicoterapia não apresentou qual quer resultado
satisfatório; no segundo caso, Winnicott auxilia uma amiga ao sugerir, durante um almoço,
uma interpretação bastante simples que ela mesma poderia dirigir a seu filho, que
atravessava uma fase em que se sucediam alguns roubos. Isso não apenas surtiu efeito para
a criança em questão, como também para a mãe, que era amiga de Winnicott.
“Ao refletir sobre este caso, devo dizer que conheci muito bem a mãe durante sua
adolescência e, de certo modo, testemunhei sua passagem por uma fase anti-social. Ela era
a filha mais velha de uma extensa família. Tinha um lar mui to bom, mas o pai impunha
uma disciplina bastante rígida, em especial no período em que ela era pequena. Por isso, o
que fiz surtiu o efeito de uma dupla terapia, já que essa jovem mulher tornou-se capaz de
ter um insight sobre suas próprias dificuldades através da ajuda que pôde oferecer a seu
filho. Quando somos capazes de ajudar os pais a ajudarem seus filhos, o que faze mos na
verdade é ajudá-los a eles mesmos.”
[ Tendency”, p. 308]
Winnicott coloca em destaque que existe uma certa relatividade na franqueza a ser utilizada
no auxilio à criança e seus pais nos primeiros estágios da tendência anti-social, no caso da
intervenção terapêutica produzir algum efeito sobre a comunicação inconsciente levada a
cabo pela esperança de encontrar o que for sentido como perdido.
A criança que foi deprivada e que apresenta um comportamento anti-social é, na verdade,
mais esperançosa do que aquela que não pode ter um comportamento considerado mau.
Para este, a esperança se esvai, e em seu lugar surge a frustração.
“A tendência anti-social implica esperança. A ausência de esperança é a característica
básica da criança que passou por uma privação e que, é óbvio, não é anti-social em tempo
integral. No período de esperança a criança manifesta uma tendência anti-social. Isto pode
ser desagradável para a sociedade e para você, se foi a sua bicicleta que foi roubada, mas
aqueles que não estão pessoalmente envolvidos podem vislumbrar a esperança que está
implícita na compulsão de roubar. Quem sabe um dos motivos pelos quais tendemos a
deixar que outros cuidem da terapia do delinqüente não seja o fato de nos causar um certo
repúdio sermos roubados?”
]“Antisocial Tendency”, p. 309]
Porque os atos anti-sociais provocam a aversão e a cólera da maioria das pessoas,
Winnicott acentua a importância de haver a como expressão de
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uma necessidade profunda, sendo preciso que os adultos sejam capazes de captar seu
sentido.
“O entendimento de que o ato anti-social é uma expressão da esperança é vital para o
tratamento daquelas crianças que apresentam uma tendência anti-social. E extremamente
comum vermos o momento de esperança ser desperdiçado, ou simplesmente desaparecer,
em função de um manejo desastrado ou da intolerância. Esta é outra maneira de dizer que o
tratamento da tendência anti-social não é psicanálise, mas sim um manejo, uma forma de ir
ao encontro do momento de esperança e de corresponder a ele.”
[ Tendency”, p. 3091
Winnicott bem sabia o quanto o ódio humano podia ser mobilizado pelos atos anti-sociais.
Nesse sentido, as questões colocadas pelo trabalho com pacientes psicóticos é análogo ao
trabalho desenvolvido com crianças e adolescentes que apresentam comportamentos
provocadores (ver ÓDIO: 2).
Winnicott estabelece uma distinção entre privação e deprivação. A privação diz respeito à
criança jamais haver experimentado algo que é bom; a deprivação, por sua vez, refere-se ao
indivíduo que, em algum momento, percebeu o que é bom, ou seja, a memória inconsciente
de haver sido amado.
“Quando existe a tendência anti-social, é porque houve uma verdadeira deprivação (e não
uma simples privação); ou seja, houve a perda de algo bom e positivo para a experiência
vivida pela criança até uma certa data, e que lhe foi tirado; esta subtração estendeu-se por
um período de tempo superior àquele que a criança pode reter na memória a lembrança da
experiência. Uma descrição da privação que pretenda ser mais abrangente deve incluir o
antes e o depois, que é precisamente o ponto em que se deu o trauma, e a continuidade da
condição traumática, bem como o que está próximo de ser considerado normal e aquilo que
é claramente anormal.”
[ Tendency”, p. 3091
O que se sucedeu ao bebê/criança em termos de falha do ambiente surtirá efeitos sobre o
sentimento de deprivação. E em consequência disso que podemos dizer que a tendência
anti-social possui uma grande abrangência, tanto em termos de sua etiologia quanto de sua
expressão.
4 Duas vertentes: a destrutividade e a busca do objeto
Apesar dessa grande abrangência existem duas tendências, cada uma delas possuindo um
objetivo próprio.
“Existem sempre duas vertentes para a tendência anti-social, mesmo que algumas vezes
uma delas tenha um maior destaque do que a outra. Uma dessas vertentes é tipicamente
representada pelo roubo e a outra, pela destrutividade. Se a criança seguir a primeira
vertente, buscará alguma coisa em algum lugar e, não a encontrando, irá buscá-la em um
outro lugar, isso quando tem esperança. Seguindo a outra, a criança procura aquela porção
de estabilidade do ambiente que possa suportar a tensão resultante de um comportamento
impulsivo. Esta é a busca de um suprimento ambiental que foi perdido, uma atitude humana
que, por ser confiável, dá liberdade ao indivíduo para movimentar-se, agir e ter estímulos.
Ao examinar a criança que está próxima da normalidade e (em termos de desenvolvimento
individual) as raízes da tendência anti-social, tenho sempre em mente essas duas vertentes:
a busca do objeto e a destruição.”
[ Tendency”, p. 310]
É a vertente destrutiva que se refere à busca inconsciente pelo corpo materno e seus braços
— o primeiro ambiente na vida do bebê.
“É particularmente em função da segunda dessas tendências que a criança provoca reações
ambientais totais, como se buscasse algo que ampliasse cada vez mais os horizontes, um
círculo forjado a partir dos braços e do corpo maternos. Podemos discernir uma série: o
corpo materno, os braços maternos, a relação parental, o lar, a família (incluindo aí os
primos e parentes mais próximos), a escola, a localidade em que vive, com suas delegacias
de polícia, o país com suas leis.”
V‟Antisocial Tendency”, p. 310]
Esta é uma reminiscência da mãe-ambiente que Winnicott postulou para os primórdios da
vida do bebê — a mãe de um período tranqüilo para o bebê, que é o período de não-
integração (ver SER: 7), ao passo que a mãe de um período que for mais atribulado — a
mãe-objeto — é, a princípio, experimentada pelo bebê como separada e distinta da mãe-
ambiente. A convivência dessas duas mães na mente do bebê contribui para o estágio do
desenvolvimento denominado capacidade de preocupação (ver IMPLICAÇÃO:
3). A criança que passou pela deprivação, que não apenas teve uma real deprivação
ambiental, mas que perdeu a oportunidade de reunir ambas as mães, por isso ainda não é
capaz de alcançar o estágio tão fundamental que é o de “preocupação” (ver DEPRESSÃO:
4, 6). O roubo de algo é, conseqüentemente, encarado como o ato de buscar ambos os
objetos — e a mãe-ambiente.
“O roubo situa-se no centro da tendência anti-social, e está associado à mentira.
A criança que rouba um objeto não está à procura do objeto roubado, mas sim da mãe,
sobre quem tem direitos. Esses direitos derivam do fato de que (no modo de entender da
criança) a mãe foi criada pela criança. A mãe vai ao encontro da criatividade primária da
criança, desta forma transformando-se no objeto que a criança estava pronta a encontrar.”
[ Tendency”, p. 3111
Essa última frase refere-se à função exercida pela mãe de apresentação do objeto. A mãe
suficientemente-boa fornece o ambiente facilitador do sentimento de onipotência do bebê
— ou seja, ele é Deus, o criador do mundo (ver CRIATMDADE: 2; DEPENDÊNCIA: 9;
MÃE: 12).
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A criança/adolescente que manifesta a tendência anti-social perdeu o sentimento de
onipotência, bem como o ambiente necessário à fusão das “raízes da motilidade agressiva”
(pulsões) com as raízes libidinais (busca do objeto) (ver AGRESSÃO: 6).
“Quando há, na época da deprivação original, a fusão de raízes agressivas (ou motilidade)
com raízes libidinais, a criança passa a pedir pela mãe através de um misto de roubo,
agressividade e confusão, segundo as características específicas do estágio do
desenvolvimento emocional em que se encontra essa criança. Quando existe uma fusão
menos acentuada, a busca do objeto e a agressão encontram-se mais separadas uma da
outra, havendo um maior grau de dissociação na criança, Isto nos faz pensar na proposição
de que o valor conferido ao incômodo causado pela criança anti-social é uma característica
essencial, que também é, por outro lado, uma característica favorável indicativa de que
ainda existe uma recuperação potencial da fusão perdida das raízes libidinais e da
motilidade.”
[ Tendency”, p. 3111
A tendência anti-social é uma face normal do desenvolvimento emocional do início da vida,
que com bastante freqüência passa despercebida. Um certo incômodo implica que a
comunicação se dá por parte do bebê que necessita ser reconhecido e inscrito pela mãe.
“Nos cuidados cotidianos dispensados à criança, a mãe está constantemente lidando com o
valor conferido ao incômodo causado por seu bebê. Por exemplo, é bastante comum o bebê
urinar no colo materno enquanto é amamenta do. Em uma ocasião posterior, isso aparece
como uma regressão momentânea que ocorre durante o sono ou o despertar, resultando em
enurese. Qualquer exagero quanto ao valor do incômodo causado pelo bebê pode indicar a
existência de um certo grau de deprivação e de tendência anti-social.
Algumas manifestações da tendência anti-social podem ser o roubo, a mentira, a
incontinência ou uma desordem generalizada. Mesmo que cada sintoma possua significado
e valor específicos, o fator comum para meu propósito de procurar uma descrição da
tendência anti-social é o valor conferido ao incômodo causado pelos sintomas. Este valor
conferido ao incômodo é explorado pela criança, e não é algo casual. Uma grande parte da
motivação é inconsciente, mas não necessariamente toda.”
[ Tendency”, p. 311]
As raízes da tendência anti-social têm sua origem nos primórdios da vida a partir da relação
mãe-bebê, sendo que “os primeiros sinais da perda são tão triviais que parecem normais”. A
ganância é um dos primeiros sinais de um certo “grau de perda e de uma compulsão em
relação à busca de uma terapia causada por essa perda por meio do ambiente” (Antisocial
Tendency, pp. 311-3 12). Isto implica que o ambiente é o responsável pelo sentimento de
perda do bebê, que passa a buscar alguma compensação do ambiente.
Existe um momento do desenvolvimento emocional em que o bebê necessita conciliar as
raízes pulsionais da motilidade com as da libido. Nesse ponto a mãe torna-se
51
fundamental para o bebê em função de seu suporte egóico, porque nesse estágio o ego do
bebê ainda é bastante frágil para que possa conduzir a tarefa de integração. Se a mãe não
for capaz de fornecer o suporte egóico necessário a esse momento tão crucial, o bebê,
então, sucumbe e experimenta a perda. Este é o chamado “período da perda original”.
“Existe um ponto em particular que desejo destacar. Na base da tendência anti-social
encontra-se uma boa experiência precoce que foi perdida. Sem sombra de dúvida, é uma
característica essencial que o bebê tenha podido atingir a capacidade de perceber que a
causa do desastre encontra-se em uma falha ambiental. Ter o conhecimento correto de que
a causa da depressão ou da desintegração é externa, e não interna, é responsável pela
distorção da personalidade e pelo anseio de buscar uma cura através de uma nova provisão
ambiental. O estado de maturidade egóica que possibilita uma percepção desse tipo
determina o desenvolvimento da tendência anti-social em lugar de um distúrbio psicótico.
Um grande número de compulsões anti-sociais surge e é tratado nos estágios iniciais com
algum sucesso pelos pais.”
[ Tendency”, p. 313]
A etiologia das psicoses, de acordo com Winnicott, remete-se a uma falha precoce do
ambiente que se dá no período de dependência absoluta. Uma falha ocorrida aí significa
que a mãe não foi capaz de identificar-se com seu bebê e que, conseqüentemente, não
ingressou no estado de preocupação materna primária exigido para o desenvolvi mento
vigoroso do bebê. No entanto, as raízes da tendência anti-social dizem respeito a um tempo
posterior à dependência absoluta, quando a falha acontece no período de dependência
relativa. E no decorrer desse período de dependência que o bebê passa a reconhecer sua
dependência, sendo que, se sucumbir, experimentará a perda. Se e quando as coisas
tomarem outra face, ele perceber uma oportunidade de recuperar o holding perdido, então
ainda existem esperanças. Não é outra coisa senão a esperança o que motiva o ato anti-
social (ver DEPENDÊNCIA: 11, 12; AGRESSÃO: 7).
5 Um momento de esperança
Winnicott esquematizou uma lista daquilo que se passa no bebê e na criança no momento
de esperança:
“No momento de esperança a criança:
• percebe um novo setting que possui alguns elementos de confiabilidade;
• conhece um impulso que pode ser denominado de busca do objeto;
• reconhece que a crueldade está prestes a tornar-se uma característica sua, além de
• mobilizar o ambiente ao seu redor com um esforço no sentido de alertá-lo para os perigos,
assim como torná-lo capaz de tolerar os inconvenientes.
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Se a situação é mantida, o ambiente deve ser testado e retestado em sua capacidade de
suportar a agressão, de prevenir-se ou reparar a destruição, de tolerar o incômodo, de
reconhecer os elementos positivos da tendência anti-social, de fornecer e preservar o objeto
procurado e encontrado.
Em um caso favorável.., as condições favoráveis podem, com o passar do tempo, fazer com
que a criança encontre e ame uma pessoa, em lugar de continuar a busca através de
reivindicações que são dirigidas a objetos substitutos que perderam todo o seu valor
simbólico.
No estágio que se segue, a criança precisa ser capaz de experimentar o desespero em uma
relação, em lugar de apenas esperança. Para, além disso reside a possibilidade real de uma
vida para a criança. Quando os administra dores e o pessoal que trabalham no alojamento
conduzem a criança através de todos esses processos, podemos dizer que fizeram um
trabalho terapêutico que é, com toda certeza, comparável ao analítico.”
[ Tendency”, p. 314]
Foi em 1957, onze anos após Winnicott haver escrito The Antisocial Tendency, que
apresentou um trabalho intitulado Delinquency as a Sign of Hope durante a Borstal
Assistant Governor‟s Conference. O que se destaca nesse texto, demonstrando a evolução
do pensamento de Winnicott, não é tanto a busca por um objeto que foi perdido, mas sim a
capacidade de buscá-lo, e de alcançá-lo. Essa capacidade traz consigo a convicção, em um
nível bastante profundo, de que existe algo a ser encontrado. Em termos de
desenvolvimento essa capacidade está vinculada à procura de um senti mento de se!f (ver
SELF: 13).
“... é necessário compreender que estamos nos referindo a dois aspectos de uma mesma
coisa, ou seja, a tendência anti-social. Gostaria de relacionar um desses aspectos à relação
constituída entre a criança pequena e a mãe e o outro ao desenvolvimento posterior que é a
relação que a criança estabelece com o pai. O primeiro refere-se ao fato de que a mãe na
sua adaptação às necessidades da pequena criança a habilita criativamente a encontrar os
objetos. Ela o inicia no uso criativo do mundo. Quando isso fracassa, a criança perde o
contato com os objetos e a capacidade criativa de encontrar qualquer coisa que seja. No
momento de esperança a criança depara-se e apodera-se de determinado objeto. Este é um
ato compulsivo que a criança não compreende. Com bastante freqüência ela sente estar
enlouquecendo por ter a compulsão de fazer algo sem saber a razão por que o fez.
Naturalmente que a caneta-tinteiro roubada de Woolworths não é satisfatória: não é o
objeto que é buscado. O que a criança procura é a capacidade de encontrar, e não um
objeto.”
[ as a Sign”, pp. 92-93]
Winnicott adverte que a investigação policial e a conseqüente punição, considerados como
maneiras de lidar com os jovens, apenas levarão à exacerbação do problema, uma vez que a
verdadeira comunicação não foi escutada. Sustenta que é necessário que haja uma dupla
resposta oferecida por parte da sociedade, que deve ser dada através do manejo e da terapia.
O jovem transgressor necessita de um setting apropriadamente
53
seguro e estruturado (manejo), assim como de um tratamento feito pessoa a pessoa
(psicoterapia). A terapia constitui-se em um fator de suma importância para o processo de
reabilitação, já que o ato anti-social é um pedido inconsciente, da parte do adolescente ou
da criança, de retornar a um estado anterior ao momento do estabelecimento da perda. O
ato anti-social aponta para o potencial restabelecimento de algo bom.
“A questão que se coloca é o que é esta esperança? O que a criança espera poder fazer? E
extremamente difícil formular uma resposta a estas perguntas. A criança, sem o saber,
espera poder encontrar alguém que seja capaz de ouvi-la no momento de deprivação ou na
fase em que a deprivação consolidou-se em uma realidade inexorável. A esperança reside
no fato de que a criança poderá experimentar mais uma vez, a partir da relação com a
pessoa do psicoterapeuta, o intenso sofrimento que se seguiu imediatamente após a reação à
deprivação. O momento no qual a criança faz uso do suporte oferecido pelo terapeuta com
o fim de repetir o intenso sofrimento daquele período predestinado é seguido da lembrança
de um tempo que é anterior à deprivação. Dessa maneira a criança pode reaver a capacidade
perdida de encontrar os objetos ou a segurança perdida daquilo que a sustentou. A criança
retoma uma relação criativa com a realidade externa e com o período em que a
espontaneidade era segura, mesmo que isso envolva os impulsos agressivos. Essa retomada
é feita sem o roubo ou a agressão, já que isso é algo que surge automaticamente como
resultado daquilo que anteriormente foi intolerável para a criança:
o sofrimento reativo à deprivação. Por sofrimento entendo uma confusão extrema,
desintegração da personalidade, uma queda eterna, perda de contato com o próprio corpo,
uma completa desorientação e outros estados desta natureza. Uma criança que consegue
ingressar nesse terreno pode lembrar-se disso e do que veio antes, por isso não é tão difícil
compreender a razão pela qual as crianças anti-sociais passam suas vidas buscando auxílio
desse tipo. Elas não conseguem dar continuidade as suas vidas a menos que alguém possa
olhar para trás junto com elas, ajudando-as a recordar através da suavização do resultado
imediato da deprivação.”
[ as a Sign”, pp. 98-991
Em outras palavras, o momento da perda deve dar-se na relação de transferência. A
habilidade do terapeuta em localizar e compatibilizar o momento de esperança significa que
ela (terapeuta) é capaz de fornecer o ambiente de holding que eventualmente sustentará a
habilidade para a integração do paciente.
6 A tendência anti-social e a psicanálise
O conceito de tendência anti-social descortina um novo campo dentro da teoria
psicanalítica do desenvolvimento emocional. Até então, Freud atribuía o crime a um senti
mento inconsciente de culpa vinculado ao complexo de Edipo: o criminoso cometia o crime
numa tentativa de livrar-se do insuportável sentimento de culpa inconsciente seu
sentimento de culpa estava, então, relacionado a um crime cometido externamente. Esse
crime (ato anti-social) constituía-se, conseqüentemente, em um desvio ou impera-
54
tivo do crime interno que foi fantasiado — o parricídio e/ou o incesto. Algum alívio, então,
advém a partir do imperativo e da posterior punição (Freud, 1916d).
Como explicitado acima, Winnicott destaca que o ambiente externo desempenha um papel
fundamental para aquele que comete um crime, sendo que sua etiologia está enraizada na
relação precoce mãe-bebê. A perda, segundo Winnicott, dá-se como resultado da destruição
do suporte egóico tão necessário ao bebê durante o período de dependência relativa. O ato
anti-social...
“... compete o ambiente a ser importante. O paciente, através de pulsões inconscientes,
compete as pessoas a lhe prestarem assistência.”
[ Tendency”, p. 309]
Masud Khari, em sua introdução à Through Poediatrics to Psychoanalysis (W6), aponta
que, de acordo com Freud, “todo sintoma conduz à realização de desejo”, ao passo que
“Winnicott amplia esse conceito com o fim de demonstrar como todo comportamento anti-
social leva ao estabelecimento de uma inadequação da necessidade em sua origem”.
Segundo Masud Khan, a relevância da contribuição conferida por Winnicott ao conceito de
tendência anti-social está relacionada diretamente aos pacientes. Khan compreendeu que
aquilo que inicialmente parecia ser resistência ou reação terapêutica negativa de seus
pacientes poderia ser entendido, a partir de um outro ponto de vista, como uma
comunicação que dizia respeito a sua perda.
Se o analista for capaz de reconhecer a perda de seu paciente, além de “localizar e
compatibilizar o momento de esperança”, conseqüentemente passa a existir a chance de que
o paciente redescubra a experiência boa a qual perdeu.
O paciente que manifesta uma tendência anti-social exacerbada na relação analítica
apresenta sérias dificuldades em simbolizar, sendo forçado a manifestar sua angústia. Se o
analista entender o ato anti-social como um sinal de esperança, a comunicação do paciente
terá sido recebida. Por isso passa a existir a chance de que os imperativos desemboquem na
capacidade do paciente em simbolizar e, portanto, de fazer uso do espaço transicional (ver
TRANSICIONAIS, FENÔMENOS).

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