Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Literatura Viva, de Jose-Regio
Literatura Viva, de Jose-Regio
Em arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem,
mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição duma
obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. Ora como o que personaliza um
artista é, ao menos superficialmente, o que o diferencia dos mais, (artistas ou não) certa
sinonímia nasceu entre o adjectivo original e muitos outros, ao menos superficialmente
aparentados; por exemplo: o adjectivo excêntrico, estranho, extravagante, bizarro... Eis
como é falsa toda a originalidade calculada e astuciosa. Eis como também pertence à
literatura morta aquela em que um autor pretende ser original sem personalidade própria. A
excentricidade, a extravagância e a bizarria podem ser poderosas ― mas só quando
naturais a um dado temperamento artístico. Sobre estas qualidades, o produto desses
temperamentos terá o encanto do raro e do imprevisto. Afectadas, semelhantes qualidades
não passarão dum truque literário.
Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura
contemporânea, roubando-lhe esse carácter de invenção, criação e descoberta que faz
grande a arte moderna. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade. A falta de
originalidade da nossa literatura contemporânea está documentada pelos nomes que mais
aceitação pública gozam. É triste ― mas é verdade. Em Portugal, raro uma obra é um
documento humano, superiormente pessoal ao ponto de ser colectivo. O exagerado gosto
da retórica (e diga-se: da mais sediça) morde os próprios temperamentos vivos; e se a obra
dum moço traz probabilidades de prolongamento evolutivo, raro esses germens de
literatura viva se desenvolvem.
Eis como tudo se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua
própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria.
Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela
imaginação, a literatura viva que ele produza será superior; inacessível, portanto, às
condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são
espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mortas; que
todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Botto; que os
sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira maçadores; que um
pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de
Figueiredo; que há mais força íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de
Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma frase de literato.