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TRANSFORMAÇÕES IDENTITÁRIAS NAS INSTITUIÇÕES ARMADAS:

deslocamentos, ethos e valores culturais nos espaços de trabalho


Claudia Maria Sousa Antunes1
RESUMO
O trabalho foca na articulação entre o Poder Aeroespacial, a Cultura, o Discurso e os
princípios epistemológicos que regem a relação entre esses temas. Busca-se compreender
como as novas demandas manifestadas no século XXI impactam bases profissionais
específicas, como as instituições militares. Por meio da análise da construção da
identidade militar, empreende-se uma reflexão sobre as aproximações e os
distanciamentos entre características identitárias das forças armadas em sua relação com
essas novas demandas. Essa reflexão efetua-se a partir de enfoques múltiplos, como a
perspectiva de ampliação da presença de militares temporários (sem vínculo permanente
com a força armada em que servem), o uso de novas tecnologias e a integração de
mulheres nos quartéis, já que as Forças Armadas consistem em uma instituição gendrada
e a masculinidade aparece como elemento central na identidade militar. Este trabalho faz
parte de pesquisa sobre as forças armadas desenvolvida no escopo de projeto do grupo de
pesquisa do CNPq “Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Ciências Aeroespaciais” –
NEICA –, vinculado à Universidade da Força Aérea. Com base em uma visão
investigativa crítica pós-colonial, esta pesquisa trabalha com a ideia de que os novos
paradigmas da sociedade pós-moderna influenciam na conformação identitária castrense,
no que tange à influência de fatores tecnológicos, culturais e sociais.
Palavras-chave: Instituições militares; Discurso; Identidade.
ABSTRACT
The work focuses on the articulation between the Aerospace Power, Culture, Discourse,
and the epistemological principles that govern the relationship between these themes. It
seeks to understand how the new demands manifested in the 21st century impact specific
professional bases, such as military institutions. Through the analysis of the construction
of military identity, a reflection is undertaken on the approximations and distances
between identity characteristics of the armed forces in their relationship with these new
demands. This reflection is conducted from multiple approaches, such as the perspective
of expanding the presence of temporary military personnel (without permanent ties to the
armed force in which they serve), the use of new technologies, and the integration of
women in the barracks, since the Armed Forces consist of a gendered institution and
masculinity appears as a central element in military identity. This work is part of research
on the armed forces developed in the scope of the CNPq research group "Center for
Interdisciplinary Studies in Aerospace Sciences" - NEICA -, linked to the University of
the Air Force. Based on a critical post-colonial investigative view, this research works
with the idea that the new paradigms of postmodern society influence the military identity
conformation, regarding the influence of technological, cultural, and social factors.

1 Universidade da Força Aérea (UNIFA)


claudiacmsa@fab.mil.br
Keywords: Military institutions; Discourse; Identity.
1. INTRODUÇÃO

O século XXI trouxe mudanças significativas em diversos setores da sociedade.


Entre elas, transformações percebidas nos papéis sociais de homens e mulheres, assim
como nas fontes tradicionais de referência de identidade e cultura. E essas transformações
não poderiam deixar de incidir sobre as instituições militares. Esta pesquisa planeja
explorar algumas perspectivas de abordagem da cultura militar, destacando aspectos
ligados aos seus valores, ao seu ethos e à composição do seu efetivo.
Entende-se, neste trabalho, o ethos como o conjunto de disposições e motivações
de um grupo, “o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais
e estéticas ...” (GEERTZ; 2008, p. 66 e p. 86), a partir de uma abordagem cultural
(HOFSTEDE, 2011). Desse modo, busca-se explorar as aproximações e os
distanciamentos entre as características do ethos militar dos Estados nacionais e possíveis
alterações que podem ter sido operadas no período da pós-modernidade.
Uma reflexão sobre a construção da identidade militar é possível a partir de
enfoques múltiplos, como pela perspectiva de ampliação da presença de militares
temporários (sem vínculo permanente com a força armada em que servem) e a integração
de mulheres nos quartéis. Neste trabalho, o foco recairá predominantemente sobre o
segundo aspecto, a integração de mulheres nos quartéis, já que as Forças Armadas
consistem em uma instituição gendrada e a masculinidade aparece como elemento central
na identidade militar. Serão feitas algumas considerações, também, sobre a influência que
a adoção de novas tecnologias, como o uso de drones, têm sobre as configurações
identitárias. Nesse sentido, a inclusão de conceitos como o de inovação (PLONSKI, 2017)
pode trazer contribuições para os paradigmas que regem essa episteme.
As instituições, como um todo, são confrontadas com novas demandas
manifestadas neste século XXI. As conquistas tecnológicas e de informação impactam as
bases profissionais, e as instituições militares não estão imunes a esse panorama. Nesse
sentido, o estudo da atuação de instituições baseadas em um ideário tradicional de
hierarquia e disciplina, como as militares, apresenta indicadores de possíveis brechas que
escapam ao determinismo dos tempos e espaços, produzidos por acasos e que possibilitam
o deslocamento das relações de poder (FOUCAULT, 1987).
Novas tecnologias, como armamentos e equipamentos de alto poder destrutivo que
demandam uma resposta imediata de uso, e muitas vezes de uma só pessoa, impactam
instituições que têm como pilares a hierarquia e a disciplina, caso das militares. Como
afirmam as autoras, “As conquistas recentes na tecnologia e na informação trouxeram
reflexos em todas as áreas numa velocidade nunca antes vista, inclusive na base
profissional.” (MATHIAS; PENIDO, 2019, p. 103). Se for levado em conta o aspecto da
profissionalização militar como processo de “combate armado bem-sucedido”
(HUNTINGTON, 1996, p. 29), as novas configurações da sociedade do século XXI
influenciam as práticas profissionais também em espaços institucionais como os das
Forças Armadas. Nesse ponto, pode-se pensar em como essas mudanças impactam as
“relações entre a tecnologia, a Política de Defesa, o Pensamento Estratégico e a autonomia
política nacional”, conforme exposto no programa da REDE PAET&D, rede de pesquisa
em autonomia estratégica, tecnologia e defesa ao qual esta pesquisa também está ligada2.
Por meio da investigação dos processos identitários, a partir da articulação de
conceitos teóricos dos Estudos de Defesa e da Análise do Discurso, este trabalho busca
examinar aproximações e distanciamentos entre as características identitárias das forças
armadas em sua relação com a mudanças operadas pelas novas demandas manifestadas
no século XXI. Assim, é possível analisar a construção da identidade militar, no que tange
à influência de fatores tecnológicos, culturais e sociais, na sua constituição.

2. APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS

Para verificar a existência de um processo de (re)significação das relações


identitárias, como consequência de uma possível mobilidade na identidade militar
(ANTUNES, 2017), pretende-se analisar as representações das identidades militares por
meio das percepções observadas em dados recolhidos para pesquisa3 sobre as Forças
Armadas4 desenvolvida no escopo de projeto do grupo de pesquisa do CNPq “Núcleo de
Estudos Interdisciplinares em Ciências Aeroespaciais” – NEICA –, vinculado à
Universidade da Força Aérea.
Entre os conceitos que ancoram esse trabalho estão aqueles expostos por Moskos
(1988) para a relação instituição/ocupação, por Janowitz (2017 [1960]) e Huntington

2
Programa PROCAD-DEFESA, 2020.
3 Aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa no país – com protocolo de envio
CAAE: 28892719.6.0000.5250.
4 Dados colhidos para pesquisa de Gisele Coelho de Oliveira (2021).
(1996) sobre a profissão militar e aqueles apresentados nos documentos doutrinários das
Forças Armadas sobre os princípios norteadores dessa profissão no Brasil (BRASIL,
1980). Além disso, aborda-se a noção de identidade como explicitada por Hall (2006) e
Woodward (2014). Esses dados serão analisados com base em uma visão investigativa
com aporte teórico que englobe, também, alguma conceptualização de questões sobre a
masculinidade (TICKNER, 1993), já que, como aponta Segal, “O elemento central na
identidade militar é a masculinidade, [e as] Forças Armadas talvez sejam a mais
masculina de todas as instituições sociais” (SEGAL, 1999, p.19).
Em relação à formulação das categorias analíticas, a trabalho ancora-se em
diretrizes apontadas por teóricos da Análise do Discurso como Maingueneau (1998,
2020), Charaudeau (2005, 2009) e Amossy (2011), em articulação com referenciais sobre
deslocamento (ORLANDI, 1999) e inovação (PLONSKI, 2017). Para a direcionamento
da investigação, pretende-se partir de alguns questionamentos, tais como se os novos
paradigmas da sociedade pós-moderna influenciam na conformação identitária dos
militares, quais relacionamentos são possíveis entre os diferentes campos de atuação e de
configuração e, ainda, de que maneira essas questões aparecem no que se refere ao ethos
militar.
Sobre o termo ethos, Geertz expõe que

os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos,


foram resumidos sob o termo "ethos", enquanto os aspectos cognitivos,
existenciais foram designados pelo termo "visão de mundo". O ethos de um povo
é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético, e sua
disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a
vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das
coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza, de si
mesmo, da sociedade. (GEERTZ, 2008, p. 94)

Desse modo, busca-se examinar de que maneira as novas configurações do século


XXI, acerca dos papéis de homens e mulheres nas relações sociais, dos impactos que as
inovações tecnológicas trazem a grupos determinados, como o militar, e das relações de
trabalho reguladas por contratos provisórios (como na contratação de militares
temporários), impactam na construção/manutenção/modificação do ethos militar.
Conforme aponta Fuccille,

...o profissional militar não é um profissional como outro qualquer. A essência


de sua profissão pressupõe, ao menos desde Napoleão Bonaparte, a realidade de
um Estado nação sobre o qual deve se alicerçar o ethos de sua existência. Por
derivação, isto acaba implicando no reconhecimento do Estado nação como a
forma suprema de organização política e sua identidade passa a se confundir com
a deste último. Tal compreensão da profissão militar deixa marcas consideráveis
nos profissionais de armas. (FUCCILLE, 2005, p. 20)

Ao se tratar a questão das identidades militares, é importante levar em conta as


várias segmentações que perpassam esse grupo. A identidade é algo que está sempre
sendo atualizado, ligado a uma lógica situacional (CASTRO, 1997), variável de acordo
com o momento.
[...], quando se fala de “militares” em geral, se está falando por oposição a
“civis” e, nesse nível, é possível falar de características gerais dos militares: os
militares são mais “raladores”, mais disciplinados, uma série de atributos. Já
quando se fala das “Forças Armadas”, vão surgir diferenças significativas entre
os militares, pode-se dizer que o Exército é “ralador”, mas a Aeronáutica não
é. Quando muda a referência e se passa a falar de dentro do “Exército”, surgem
diferenças entre as armas, há uma considerada pelas outras mais “paisana”,
como a intendência, e uma considerada como mais “raladora”, como a
infantaria. Então tudo isso é um jogo de atribuições, não são características
fixas, imutáveis, que definem as identidades. O pesquisador precisa perceber
essa lógica da situação, perceber quando as identidades são atualizadas.
(CASTRO, 1997, p. 15)

As maneiras pelas quais o status quo é aceito ou contestado, assim como as


concepções das estruturas de poder e das relações sociais, possibilitam deslocamentos no
ethos militar. A instituição militar guarda, ainda, características do que é chamado por
Goffman (2002) de “instituição total”. Esse tipo de instituição se caracteriza por acolher
grande número de pessoas que estão em situação similar (como em manicômios, prisões
e quartéis) e separadas do resto da sociedade na maior parte do tempo, e na qual as pessoas
trabalham, residem e têm seus momentos de lazer. Nas sociedades ocidentais,
normalmente, os espaços de trabalho, lazer e moradia são diferentes. Nas instituições
totais, esses espaços são os mesmos. Isso criaria uma visão de mundo que tenderia à
unificação. E essa unificação tenderia a ocasionar uma padronização e perpetuação de um
determinado ethos. Entretanto, o espaço militar só pode ser parcialmente considerado
uma instituição total, já que a entrada nesse espaço institucional é voluntária e não existe
a busca de uma tensão persistente entre os indivíduos nem uma divisão rígida entre
dirigentes e internados. No espaço militar, busca-se a “vitória cultural” (CASTRO, 2004,
p. 41).

Charles Moskos (1988) já apontava para mudanças no funcionamento da estrutura


militar, caracterizada, na era pós-moderna, por mudanças organizacionais, divididas pelo
autor em quatro diferentes tipos: a interpenetrabilidade entre as esferas civil e militar; a
diminuição das diferenças entre as funções de suporte e aquelas ligadas às atividades-fim
das Forças; a atuação em novas frentes, em missões que não seriam consideradas
inicialmente como militares; e o seu emprego sob comando de forças multinacionais além
do Estado-Nação. Todos esses fatores colaboram para a percepção de que as instituições
militares, apesar de seu pretenso caráter tradicional e permanente, têm estado frente a
questões que impactam em sua cultura, seus valores e, por conseguinte, seu ethos.

Os novos paradigmas da sociedade pós-moderna influenciam na conformação


identitária castrense, no que tange à influência de fatores tecnológicos, culturais e sociais.
Como fatores tecnológicos passíveis de influenciar nessa conformação, pode-se apontar
a crescente utilização de drones, também chamados de veículos aéreos não tripulados
(VANT), ou Unmanned Aerial Vehicles (UAVs), na nomenclatura em inglês5. A
utilização desses dispositivos permite que os pilotos que os controlam se mantenham
intactos no que se refere aos perigos dos campos de batalha.

Coragem, sacrifício, heroísmo. Essas são características clássicas do ethos militar.


Em um conflito, o militar deveria estar disposto a dar a vida pela causa pela qual estivesse
lutando. Mas essas características perdem sua força se o teatro de operações se encontra
a milhares de quilômetros e o piloto de drone está seguro em uma sala, acompanhando o
que acontece enquanto observa um monitor (CHAMAYU, 2015). Fica o questionamento
dos impactos na capacidade operacional advindos do uso dessas novas tecnologias.
Para as análises referentes à influência da presença de mulheres nas forças
militares, este estudo utilizou dados de pesquisa realizada no âmbito do NEICA, a partir
de perspectiva discursiva. O corpus é proveniente de entrevistas em grupos focais6
realizadas na Universidade da Força Aérea (UNIFA) com oficiais-alunos do Curso de
Comando e Estado Maior (CCEM) da Escola de Comando e Estado Maior da Aeronáutica
(ECEMAR). A intenção da pesquisa foi o de verificar a visão de oficiais sobre a entrada
de mulheres na condição de aviadoras.

Cabe atentar para o fato de que as observações deste trabalho não devem ser
entendidas como passíveis de se referirem a toda a Força Aérea, muito menos aos
militares de maneira geral. A limitação do trabalho decorre do fato de que o escopo da
pesquisa faz referência a um determinado círculo de militares. Nesse caso específico, a

5
“Os VANTs inserem-se na categoria de armamentos controlados a distância e mediados por interfaces
gráficas e manuais, conhecidos como Stand-off Weapons.” (PERON, 2016, p. 22)
6 Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) – protocolo de envio CAAE: 28892719.6.0000.5250.
pesquisa se concentrou no círculo7 de oficiais superiores. O que se busca é montar, a partir
dos depoimentos dos oficiais, algumas indicações de possibilidades de mudanças no ethos
militar. Sendo esse conceito associado a uma abordagem cultural (HOFSTEDE, 2011),
assume-se que o ethos seja mais mostrado do que dito (MAINGUENEAU, 2020), e
residiria na forma pela qual as práticas são interpretadas pelos grupos (OLIVEIRA, 2021).
Assim, foram selecionados, a partir das categorias analíticas do estudo, excertos dos
depoimentos para a exemplificação das questões levantadas no trabalho.

Partindo-se da ideia de “espírito de corpo” da tropa, essa característica geraria uma


ética profissional própria e atemporal, caso não ocorressem mudanças na natureza da
função militar. Um cenário desse tipo colaboraria para uma leitura de reforço de tradições
históricas e características culturais. As convenções, tradições e assimetrias seriam
características permanentes das Forças Armadas. Por esse ponto de vista, mudanças na
técnica militar não afetariam a natureza do “ser militar”. (HUNTINGTON, 1996, in
MATHIAS, 2019; COSTA, 2020). Entretanto, cabe questionar o ponto de vista que
estabelece essa perspectiva imutável e atemporal (SAINT-PIERRE; CLEMENTE
GONÇALVES, 2018; OLIVEIRA; ANTUNES; SILVA, 2021).
O conceito de identidade relaciona-se diretamente à noção de sujeito. É o sujeito
que apresenta uma identidade. Entretanto, esse sujeito, possuidor de uma identidade antes
estudada como fixa e estável, passa, a partir do final do século XX, a se tornar cada vez
mais descentrado, mutável e inconstante. E esse descentramento resulta em “identidades
abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno” (HALL,
2006, 46).
Neste trabalho, opera-se com o enfoque de um sujeito descentrado. Essa
perspectiva irá intervir no modo como são entendidas as mudanças ocorridas no meio
militar. As identidades com as quais os sujeitos estão em convivência serão construídas
por meio da diferença. Como explica Hall (2006), a depender dos lugares e das relações
que se estabelecem entre os sujeitos é que as identidades são moldadas. Mas são
identidades, fluidas, instáveis, provisórias. Nesse ponto a cultura aparece como variável
que irá interferir na configuração das relações sociais. Conforme elucida Woodward, “A
cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre

7
Segundo o Estatuto dos Militares, “Círculos hierárquicos são âmbitos de convivência entre os militares
da mesma categoria e têm a finalidade de desenvolver o espírito de camaradagem, em ambiente de
estima e confiança, sem prejuízo do respeito mútuo.” (BRASIL, 1980)
as várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade...”
(WOODWARD, 2014, p. 19)
Por um lado, os indivíduos percebem que alterações nos componentes de um grupo
permitem “um outro olhar, uma outra forma de encarar determinados problemas” (GF4).
Por outro lado, preocupam-se em apontar para o fato de que, no caso, a FAB, “continua
cumprindo a mesma missão, ao longo do tempo”. Ou seja, nada se altera, e isso é visto
como positivo.
Excerto 01 (GF2). a Força aérea continua cumprindo a mesma missão, ao longo
do tempo

Excerto 02 (GF1). A Força Aérea como sendo uma formadora da família, que eu
acredito que seja isso, e como incentivadora da nação como um todo, correto.

Uma das observações que apontam para possíveis alterações na atividade militar
se refere ao piloto de VANT. Pilotos de um esquadrão de veículos aéreos não tripulados
não “voa”, na acepção corrente do termo. Mas sua avaliação, pelo menos no que se refere
à saúde, segue, de acordo com o informante, a legislação de um piloto que “voa”. Pode-
se inclusive argumentar sobre a utilização do termo “piloto” para aqueles que comandam
os aparelhos (CHAMAYU, 2015). Só que ser piloto é uma designação de valor na Força
Aérea. Seguindo a linha apontada por Castro (1997), diferenças são perceptíveis entre
civis e militares em um primeiro nível; entre militares do Exército, da Marinha e da Força
Aérea de outro, e existem as distinções possíveis entre as armas de cada força, como
Intendência e Infantaria. No caso da Força Aérea, os aviadores são considerados os
militares “de ponta” por cumprirem a “missão fim” da força, voar. Há que se salientar,
também, que, dentro da mesma arma, diferenciações são perceptíveis entre os pilotos.
Pilotos de caça são prestigiados de maneira diferente de pilotos de aeronaves de transporte
ou, ainda, de helicópteros. Uma questão a ser colocada em debate seria, portanto, qual a
posição, em uma organização estruturada desse modo, em que ficariam os pilotos de
VANT. Há que se questionar, também, como esse piloto que não arrisca a própria vida
estaria ligado ao ethos guerreiro, daquele que faz o “[...]solene juramento de fidelidade à
Pátria até com o sacrifício da própria vida” (BRASIL, 1980, p. 6).

Excerto 03 (GF1). piloto de VANT não voa (...) O piloto de VANT segue a
legislação de saúde de um piloto que voa.

Essa asserção poderia ser compreendida sob diferentes aspectos. Um primeiro


aspecto a ser abordado poderia ser relacionado a características consideradas como
femininas em uma visão hegemônica. E um segundo aspecto relacionado a modificações
oriundas das inovações tecnológicas geradas pelo uso de VANTs. Sobre o primeiro
aspecto, é possível argumentar em torno da alegação de que mulheres poderiam gerenciar
melhor suas particularidades de maternidade caso voassem com VANTs. Como estariam
sempre em solo, haveria uma flexibilidade maior de atendimento a demandas que,
porventura, sobreviessem. Isso além de não exigir o vigor físico masculino, aspecto
apontado também como diferencial feminino. Entretanto, vale apontar que diversos
entrevistados afirmaram ficarem surpresos com a força e destreza de algumas militares.
Elas “se ambientaram”, se “aculturam”, termo recorrente nas entrevistas.

Excerto 04 (GF2). É até interessante, um fator novo na unidade, então a gente


fica assim curioso

Excerto 05 (GF2). ambiente da aviação de caça, que é um ambiente assim, como


vou dizer, meio masculinizado

Excerto 06 (GF2). Sempre foi uma profissão de homem, né. Aí as mulheres


foram entrando, mas pelo que eu percebi, elas de aculturam bem, não se
excluíram, ah não, não sou homem não vou participar. Sempre participaram de
tudo, todas as manobras, todas as operações, todos os eventos normalmente,
como se fosse um piloto operacional.

Note-se que, na fala acima, a construção “como se fosse um piloto operacional”


traz uma estrutura oracional que aponta para a ideia de que seria um elemento estranho
ao ambiente e que tentava “se parecer”, “como se fosse” parte efetiva do grupo. Isso vai
ao encontro do que afirma Segal (1999) sobre a questão medular da masculinidade nas
instituições militares. Tickner (1993) aponta algo nessa mesma perspectiva quando
afirma a existência de um discurso masculinizado na segurança que, apesar de parcial, é
tido como universal.8

O desempenho das mulheres é referido em diversas ocasiões.

Excerto 07 (GF2). Fez as atividades de ground, cumpriu todas as OI´s, tudo


dentro da normalidade, cumprindo qualquer requisito que o esquadrão exigisse.

Excerto 08 (GF2). Agora desempenho, não teve nenhuma coisa a reportar de


diferente, nada que não acontecesse com homens também.

Outro aspecto apontado diz respeito às estratégias utilizadas pelas mulheres para
imposição do respeito pelo grupo.

8
… the realist view of national security is constructed out of a masculinized discourse that, while it is
only a partial view of reality, is taken as universal.” (TICKNER, 1993, p. 43)
Excerto 09 (GF2). a forma delas se imporem não foi uma forma de, vamos dizer
assim, autoritarismo nem nada. Era mais empatia, então ela soube conquistar a
confiança da tripulação, mostrando seu desempenho, mostrando que ela estava
no mesmo patamar de qualquer piloto ali de conhecimento, de psicomotor e
cumprir qualquer coisa que o outro cumprisse.

Excerto 10 (GF3). A mulher traz um outro olhar, uma outra forma de encarar
determinados problemas, eu acho muito positivo

A questão do gendramento na função militar é ainda notada na referência à


linguagem. Nota-se a preocupação dos homens em medir as palavras ao falar, quando há
mulheres presentes, como indicado nos excertos a seguir.

Excerto 11 (GF3). o pessoal tende a segurar um pouco mais o linguajar, o trato,


no começo

Excerto 12 (GF4). é lógico... vai medir um pouco as palavras quando vai falar
ali, brincar com os outros

Excerto 13 (GF4). depois chegar a mulher, então essa mudança comportamental,


teve um pouco né, talvez.

Excerto 14 (GF4). presença feminina realmente ela tira um pouco daqueles


paradigmas que são masculinos, aquelas fraseologias,

Ainda sobre as particularidades vistas como interferentes na função militar,


algumas questões, como a da maternidade, aparecem com alguma frequência. Essa é vista
como a que seria mais difícil de ser “contornada”, como se pode observar no excerto a
seguir.

Excerto 15 (GF3). o que se tem é essa questão da gravidez né, tanto o tempo que
vai ficar fora, porque a partir do momento que engravida, sai do voo.

Em relação à hierarquia, quando se fala em círculos, há a percepção de que, dentro


do mesmo círculo, não haveria tanto problema, pois estão entre pares. A discrepância
ocorreria mais em círculos diversos, como entre oficiais e graduados. Os militares
subalternos são vistos, pelos oficiais, como uma categoria que não conseguiria “alcançar”
os níveis mais “elevados” de pensamento crítico, como se observa no excerto a seguir.

Excerto 16 (GF3). com as graduadas, há uma diferença de mentalidade

Por isso, teriam mais dificuldades em aceitar as inovações, como novos perfis de
combatentes (mulheres, no caso).
Excerto 17 (GF4). você vai encontrar um pensador que vai dizer que os
pioneiros, os desbravadores, é sempre mais difícil pra eles. Os que vem depois
já vai estar num pitch mais adequado.

Excerto 18 (GF3). nos graduados se for essa a sua pergunta, existe sim, existe
uma diferença principalmente quanto ao comportamento, né eu acho que tem
sim.

Excerto 19 (GF2). a gente se preocupava muito mais com a postura de uma


menina à frente do comando de uma missão na aeronave X, que eu acho que
seria a maior preocupação. Como comandante, como ela se sairia? Porque por
exemplo, uma missão nessa aeronave a gente sabe que tem subão da reserva,
não, não, aqueles da antiga que era load master, que chegava e batia de frente

Entretanto, é possível encontrar referências a interações entre círculos diferentes.


Apesar de pertencerem a círculos diversos, as mulheres se uniram na ambientação, como
um suporte.

Excerto 20 (GF4). As aviadoras interagiam com o grupo mesmo, se ambientaram


lá. As sargentos ajudaram, bastante nesse sentido, mas são círculos diferentes.

Ao se observar o ambiente castrense, é possível examinar como o entendimento


das regras, dos interesses e dos confrontos impacta na produção das relações de poder.
Há um duplo enfoque: se, por um lado, percebe-se a vontade de mudança, por conta da
consciência de alterações nas relações de poder na sociedade, por outro, há o
compromisso com a tradição existente no ambiente militar. Esse binômio aparece
interligado em várias passagens das entrevistas. Fala-se que “nada mudou”, mas que " a
cultura foi normalmente se adaptando”.

CONCLUSÃO

Buscou-se problematizar alguns deslocamentos e permanências relativos à


identidade militar utilizando-se, como ferramenta teórico-metodológica, uma perspectiva
discursiva a partir de dados oriundos de pesquisa realizada no âmbito do Núcleo de
Estudos Interdisciplinares em Ciências Aeroespaciais (NEICA). Mudanças na natureza
da função militar, com o acréscimo de novas missões que são engendradas por
organismos outros que não o Estado Nação, a presença crescente de profissionais
temporários das armas, o que quebra o paradigma do militarismo “entrar no sangue”, as
novas configurações no que concerne aos papéis atribuídos a homens e mulheres e a
inclusão de novas tecnologias, como o uso de drones, são fatores que interferem na
configuração do ser militar.
Observou-se que novas tecnologias, como uso de drones, podem repercutir
naquilo que se entende tradicionalmente como ethos militar. Características como
virilidade, masculinidade e força não seriam mais tão importantes para o trabalho de um
militar que se dedica ao emprego de drones. Sua configuração será impactada por outros
fatores, como destreza, criatividade e maleabilidade. Em uma instituição que tem como
lemas a hierarquia e a disciplina, com aspectos de instituição total, gendrada e tradicional,
essas “inovações” são, no mínimo, conflitantes. É necessário, então, que as instituições
estejam atentas a essas modificações, de modo a estar preparada frente às novas demandas
que surgem a cada dia em na sociedade.

Quando se observa a crescente participação de militares temporários nas


instituições militares, percebe-se que, apesar de haver a tentativa de adequação dos novos
integrantes aos valores e costumes da caserna, ou seja, ao ethos militar, determinados
aspectos precisariam ser revisitados e atualizados, como a questão do impacto do
desligamento de temporários nas funções exercidas, após o período determinado.

Notam-se, também, deslocamentos e ressignificações nos papéis desempenhados


pelas mulheres nas instituições militares. Mais que adaptações na estrutura física, são
necessárias modificações na esfera simbólica, de modo a se alcançar a equidade no
ambiente militar.

Como aproximações e distanciamentos entre características identitárias das Forças


Armadas em sua relação com essas novas demandas, podemos observar que existe uma
tendência a um discurso de permanência (nada mudou), ao mesmo tempo que se percebe
a preocupação de se estar atento à mudança (adequação).
Esta é uma investigação que ainda necessita de maiores aprofundamentos. Espera-
se que os apontamentos expostos sirvam de estímulo a novas pesquisas na área, de modo
a fortalecer os estudos que tenham como objetivo melhor entender a cultura castrense.

REFERÊNCIAS

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