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EXERCÍCIO DE DESCONSTRUÇÃO E APRECIAÇÃO DA TESE DE

MÁRCIA VEIGA DA SILVA1

Anna Júlia Carlos da Silva2

SILVA, M. V. Saberes para a profissão, sujeitos possíveis: um olhar sobre a formação


universitária dos jornalistas e as implicações dos regimes de poder-saber nas possibilidades de
encontro com a alteridade. 2015. Tese (Doutorado) – Curso de Comunicação e Informação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em:
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/118550. Acesso em: 4 out. 2022.

1 PRINCIPAIS ITENS DA TESE

A tese de doutorado de Márcia Veiga da Silva (2015), intitulada “Saberes para a


profissão, sujeitos possíveis: um olhar sobre a formação universitária dos jornalistas e as
implicações dos regimes de poder-saber nas possibilidades de encontro com a alteridade”, leva
como tema a formação universitária dos jornalistas, observada no âmbito de duas Universidades
Federais brasileiras no contexto contemporâneo, articuladas por uma visão que compreende o
Jornalismo e a Cultura. O interesse da autora pelo tema justifica-se por vivências pessoais,
profissionais e acadêmicas, que incentivaram e orientaram a busca por entender como se dão
as limitações para o cumprimento de uma atuação mais crítica por parte do jornalismo, em
especial nas suas relações com as convenções sociais e com as questões que envolvem poder,
diferença e alteridade.
Silva (2015) também partiu do desejo de perceber as possibilidades de concretização
dos valores do Jornalismo, que consiste - referenciado Traquina (2005) - em figurar como
ideologia na luta em prol do público e da democracia, de modo a contribuir com a transformação
da desigualdade existente na sociedade brasileira. Sua inquietação foi depreender como essas
(im)possibilidades se tecem no campo a partir dos saberes teóricos e práticos que se
interseccionam aos demais regimes de poder e de saber – referenciando Foucault (2012) - que
reproduzem uma racionalidade dominante e que incidem em formas de viver/morrer. Buscando
contribuir com o Jornalismo, a autora levanta tópicos instigantes para pensar os sentidos sobre
a área que se articulam nos discursos acerca da prática e a teoria observados no ensino de sala

1
Trabalho apresentado à disciplina de Metodologia da Pesquisa em Comunicação, ministrada pela professora
Sandra Depexe e pelo professor Cássio Tomaim, no Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação (POSCOM) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
2
Bacharela em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), campus Frederico Westphalen.
Mestranda em Comunicação na mesma Instituição, campus sede, no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação (POSCOM). Integrante do grupo de pesquisa Resto – Laboratório de Práticas Jornalísticas. E-mail:
annajuliacarlos@outlook.com.
de aula. Desse modo, ela sugere reflexões que possibilitem pensar os tipos de conhecimento do,
sobre e para o Jornalismo - referenciando Meditsch (2014) -, olhando para um universo
microssociológico.
Isto posto, Silva (2015, p. 19) estabelece como problema de pesquisa a seguinte questão:
“de que forma se manifestam e são problematizados nos processos de ensino e aprendizagem
do jornalismo os valores sociais e os sistemas classificatórios de diferença hegemônicos, e como
estes se interseccionam aos paradigmas e conceitos dominantes no campo acadêmico?”. Para
responder à pergunta, aponta como objetivo geral

compreender como os valores sociais hegemônicos e os sistemas classificatórios de


diferença se imiscuem nos processos de ensino e aprendizagem do jornalismo,
perpassando os saberes de profissão, as práticas pedagógicas e as relações
interpessoais, interseccionados aos paradigmas e epistemologias dominantes que
podem funcionar como dispositivos de restrição à compreensão complexa dos
fenômenos sociais contemporâneos (SILVA, 2015, p. 20).

A respeito dos objetivos específicos, a autora elenca quatro:

1) Discutir o jornalismo como um conhecimento social, analisando as perspectivas


teóricas e metodológicas predominantes no campo em analogia às formas de produção
e validação do conhecimento cientificista e masculinista, com o intuito de
compreender as bases epistemológicas pelas quais o conhecimento jornalístico é
concebido e produzido; 2) Compreender como os valores sociais hegemônicos e os
sistemas classificatórios de diferença perpassam a Universidade em suas normas e
hierarquias, nas relações de poder e nos processos de ensino e aprendizagem
evolvendo a formação dos jornalistas; 3) Refletir sobre o papel das práticas
pedagógicas nos processos de formação universitária dos jornalistas a partir das
interações de sala de aula observadas; 4) Identificar os saberes de profissão ensinados
e analisar como e a partir de quais arcabouços conceituais determinados conceitos-
chave, como objetividade, imparcialidade e realidade, por exemplo, são
abordados/problematizados no ensino das teorias e das práticas do jornalismo.
(SILVA, 2015, p. 20)

Para realizar tais compreensões, considerando as abordagens teórico-metodológicas,


Silva (2015) adota as perspectivas de viés epistemológico que concebem o Jornalismo como
uma forma de conhecimento social, associando-o com a epistemologia da alteridade. Além
disso, conta com as “lentes” conceituais de Foucault, da filosofia da ciência, dos estudos pós-
colonialistas, feministas e queer. O método de pesquisa, por sua vez, foi inspirado na etnografia
e nos estudos da Antropologia, com a base da pesquisa de campo, aplicando a técnica da
observação participante, com descrição densa, no acompanhamento de disciplinas teóricas e
práticas de seis turmas de graduação de duas Universidades Federais brasileiras, cujos nomes
foram protegidos. Além disso, cabe reforçar que a autora contou com uma abordagem
qualitativa.
2 RESUMO DA OBRA

A obra de Silva (2015) divide-se em sete capítulos: Introdução (1); As lentes pelas quais
o Jornalismo é observado (2); O percurso metodológico da pesquisa (3); O sistema-mundo e os
marcadores de diferença nas estruturas e nas interações ensino-aprendizagem na universidade
(4); O conhecimento para o Jornalismo e as redes tecidas pelo poder-saber (5); Saberes de
profissão: um olhar sobre a teoria e a prática do Jornalismo nos discursos do ensino (6) e
Considerações finais (7).
A Introdução realiza a exposição dos principais itens da pesquisa e destaca as
inspirações e aspirações pessoais, profissionais e acadêmicas da autora. No subcapítulo, “As
origens da pesquisa: a localização dos saberes” (1.1), Silva (2015) retoma alguns raciocínios e
percursos que já fizera acerca de temas análogos ao da obra.
O segundo capítulo divide-se em três subcapítulos, respectivamente “O poder e o saber
numa perspectiva foucaultiana e pós-colonial” (2.1); “Cientificismo e masculinismo na
produção do conhecimento jornalístico” (2.2); “A produção do saber jornalístico na
universidade: alguns contornos políticos” (2.3). Neste momento, a autora aciona seus
referenciais teóricos para refletir sobre as vertentes epistemológicas, metodológicas, bem como
as visões de mundo relativas ao Jornalismo e as possíveis relações com a reprodução de
sistemas hegemônicos.
No terceiro capítulo, há a apresentação dos fundamentos metodológicos adotados,
descritos ao longo de outros subcapítulos – “Metodologia e técnicas de pesquisa” (3.1) e
“Universo da pesquisa e procedimentos éticos” (3.2), que origina “Os lugares da pesquisa”
(3.2.1); “A mirada sobre Atenas” (3.2.1.1); “A mirada sobre Gavdos” (3.2.1.2); e “As
universidades: interlocutores/as, disciplinas e contexto institucional” (3.2.1.3). Nesse momento,
a autora apresenta a perspectiva da abordagem qualitativa, do método etnográfico; bem como a
descrição do “universo de pesquisa” e dos procedimentos adotados.
O quarto capítulo carrega outros três subcapítulos – “A racionalidade capitalista no
‘corpo’ da universidade pública” (4.1); “Os lugares das cores: classe e raça nas interações de
ensino-aprendizagem” (4.2); e “De que concepção de gênero, sexualidade, classe, etnia e
geração falam os discursos que formam os jornalistas?” (4.3). Aqui, Silva (2015) procura
evidenciar compreensões sobre como a universidade exprime os valores sociais hegemônicos
do sistema-mundo capitalista (masculinista, racista, heterossexista, classista) – referenciando
Grosfoguel (2012) - em suas normas e hierarquias, nas relações de poder e nos processos de
ensino e aprendizagem que envolvem a formação dos profissionais jornalistas.
O quinto capítulo conta com dois subtítulos: “Tá faltando professor. Só tem jornalistas
no curso de jornalismo (?)” (5.1); “Do limite simplificador à potencialidade crítica: a vanguarda
pedagógica como aliada no conhecimento jornalístico” (5.2). Nesses textos, Silva (2015)
destaca, principalmente, o modo como as práticas pedagógicas para o ensino do Jornalismo
estão próximas à racionalidades e métodos hegemônicos, que não incitam o pensamento crítico
dos alunos. Assim, a autora discute o conhecimento ponderando as práticas e ressaltando suas
relações com os sistemas de poder e saber dominantes, que afetam a compreensão da realidade.
O sexto capítulo divide-se em “O ensino dos saberes de reconhecimento, de
procedimento e de narração” (6.1) e “De que Jornalismo se está falando? Os discursos sobre a
teoria e as possibilidades de apreensão da realidade” (6.2). Neste momento, a autora volta-se
aos saberes de profissão ensinados nas disciplinas teóricas e práticas, discutindo as técnicas
procedimentais principais e os quadros conceituais correspondentes. No sétimo capítulo, as
Considerações Finais, Silva (2015) reforça o que foi estabelecido como itens principais na
Introdução e complementa com as principais interpretações resultantes da pesquisa e adiciona
questionamentos para estimular novos debates e estudos.
Durante o percurso de pesquisa, Silva (2015) menciona diversos autores, que aparecem,
sobretudo, nas seções que possuem maior protagonismo teórico, como é o caso do segundo
capítulo. Dentre os principais citados, aparecem mais recorrentemente o filósofo francês
Foucault (2009, 2010, 2012), o educador brasileiro Freire (1985, 2005, 2013), o jornalista
brasileiro Genro Filho (2012), o sociólogo porto-riquenho Grosfoguel (2010, 2012) e os
pesquisadores brasileiros Meditsch (1992, 1997, 2010, 2012, 2014) e Motta (2002, 2014).

3 APRECIAÇÃO DA TESE

Os itens principais que orientaram o desenvolvimento da pesquisa de Silva (2015)


mostraram-se pertinentes para a produção de um material teórico e analítico coerente e
aprofundado. Do mesmo modo, as escolhas metodológicas satisfizeram a contemplação do
objeto, serviram aos objetivos elencados, além de se aproximarem adequadamente das
contextualizações teóricas. Os resultados obtidos responderam ao problema e à hipótese, de
forma a confirmar o que inquietava a autora com relação ao tema. Ao final, conclui-se que “Os
poderes que perpassam o ensino da profissão na universidade delineiam os sujeitos possíveis -
sejam esses os sujeitos-jornalistas ou os sujeitos-Outros, aqueles a quem o jornalismo narra nas
teceduras do conhecimento social sobre a realidade” (SILVA, 2015, p. 266). Desse modo, Silva
(2015) inferiu que os mesmos saberes e poderes hegemônicos que orientam a sociedade,
orientam, também, a universidade.
Particularmente, dois detalhes aparecem como pontos que chamam a atenção e colocam
a pesquisa de Silva (2015) em um lugar de diferenciação: a atenção para uma narrativa que, em
determinados momentos, aproxima-se de descrições literárias próximas de livros-reportagem;
a atenção da autora em dar destaque para referências brasileiras. Tais características são
coerentes com os posicionamentos da autora - que enfatiza a importância da narrativa
jornalística mais subjetiva, detalhada e, quiçá, artística (tanto no trabalho mencionado quanto
em outros que circundam suas produções acadêmicas); e que se atenta a uma busca por uma
linguagem decolonial no jornalismo brasileiro.
A autora supera seus objetivos individuais de pesquisa ao passo em que constrói um
material útil para a reflexão acerca de tópicos que podem abarcar diversas pesquisas na área da
Comunicação, visto que abrange estudos interessados em Jornalismo, Antropologia, narrativa,
discurso, subjetividade, alteridade, ciência, desigualdade, pós-colonialismo, pós-
estruturalismo, saber, poder; entre outros verbetes potentes e produtivos. Ainda que englobe
diversos pontos, o faz de maneira muito adequada e proveitosa. Assim, constitui um material
rico para ser pensado como referência na pesquisa em Comunicação.

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