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O homem que parecia um domingo

O Velho Fausto parecia um domingo. Costumava vê-lo, manhã cedo, cruzar o passeio,
pisando sem ruído as flores das acácias, muito aprumado no seu fato de linho branco, chapéu de
palha, laço e bengala, e tão sem pressa, meu Deus!, cumprimentando com acenos lentos (largos
sorrisos) a turba ansiosa. Um dia alguém o provocou:
“Afinal, o que faz você nos dias úteis?”
Ele sorriu, ainda mais generoso, e o claro fulgor dos seus dentes perfeitos cegou o atrevido:
“Todos os meus dias são inúteis”, respondeu com solene orgulho: “Eu os passeio.”
Durante muitos anos, devo confessar, quis ser como ele. Hoje sei que pecava por excessiva
ambição. Trabalhando intensamente qualquer pessoa é capaz de alcançar, no fim da vida, relativa
prosperidade e a admiração dos outros. Um ladrão hábil pode ficar rico em dez ou quinze anos. A
conquista do poder também impõe considerável esforço; isto, já para não falar em santidade ou
heroicidade. A inutilidade, porém, exige algo mais difícil: talento. Nem todos podem ser inúteis,
realmente inúteis, da mesma forma que poucos conseguem fazer chorar um violino. Também nem
todos merecem ser inúteis. Fausto sim, era inútil ― e merecia-o. Foi, enquanto viveu, ocioso e
magnífico como uma tela de Gauguin.
Depois veio a revolução. Nenhuma revolução tolera pessoas desnecessárias. Nas revoluções
há os revolucionários e os reacionários; não há lugar para observadores e muito menos para
imprestáveis. Fausto percebeu isso num dia em que, tendo decidido passar pela Cervejaria Biker
para refrescar a alma, encontrou a velha e gloriosa catedral da boémia luandense transformada
numa espécie de centro cultural. Alguém se tinha lembrado de organizar ali uma receção a um
poeta, antigo preso político, há poucos dias regressado do Tarrafal. O poeta era um homenzinho
miúdo, de densa barba negra, rosto pálido, liso como o de uma criança, mãos muito finas, de dedos
longos, que se moviam com veemência, como se fossem independentes do corpo. Leu alguns
poemas e contou histórias da cadeia. Explicou que para conseguir sobreviver à solidão e ao
desespero, fechado sozinho numa minúscula cela escura, se entretivera durante anos e amestrar
insetos. Em particular fizera amizade com uma barata, um bicho amável e inteligente, à qual
ensinara a dançar. O poeta calou-se, a cabeça entre as mãos, enquanto na sala se fazia um silêncio
comovido. Então Fausto levantou-se e pediu a palavra:
“O que aconteceu à barata?”
A pergunta ecoou na sala como um traque. Alguém gritou: “Fascista!” Um tipo alto, de
bigodes, sentado ao lado do escritor, encolheu os ombros:
“Calma! O camarada que falou é um notório vadio.”
O desprezo com que disse aquilo serenou os ânimos. Encontrei Fausto, horas mais tarde, ainda na
mesma mesa. Ardia ao lume brando do crepúsculo. “Gostaria realmente de saber o que aconteceu
à barata”, disse-me com tristeza. Ele queria saber que género de música dançava o inseto: rumba,
valsa, a velha rebita? Recomendei-lhe mais cuidado com a língua. Podia-se ser preso, naquela
época, por coisas assim. Fausto encolheu os ombros, cético, terminou de beber a sua cerveja e foi-
se embora. Morreu, tempos depois, atropelado por um camião do exército.
Voltei a lembrar-me dele quando, há poucos dias, um amigo me disse ter descoberto no Cemitério
do Alto das Cruzes uma lápide partida: “Aqui repousa Fausto Bendito. Foi ele quem renunciou à
vida/ podeis continuar a ocupar o seu lugar/ vós, que nos roubastes/ Não foi, nunca foi,
renunciou-se/ atingiu o zero.” Reconheci os versos de Agostinho Neto, musicados depois pelos
Irmãos Kafala no belo álbum “Salipo”. “E agora vivei, cantai, chorai/ e agora casai-vos, matai-vos/
embriagai-vos/ e agora dai esmolas aos pobres/ nada me pode interessar/ que não sou, não sou/
Atingi o zero/ Nada me pode interessar/ Não sou, não sou/ Atingi o zero.”.

AGUALUSA, José Eduardo, Catálogo de Sombras, 4ª ed., Publicações D. Quixote, Lisboa, 2003.

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