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ESTUDOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E AMBIENTAIS | MATEUS DE MEDEIROS

ESPAÇO PÚBLICO MORTO | RICHARD SENNETT In: SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público. Rio de Janeiro: Record, 2014.

A visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio máximo em visibilidade. Mas essas paredes devem ser também
público é abandonado, por estar esvaziado. No mais físico dos barreiras herméticas. A Lever House foi precursora de um conceito
níveis, o ambiente incita a pensar no domínio público como de design no qual a parede, embora permeável, também isola as
desprovido de sentido. É o que acontece com a organização do atividades desenroladas no interior do edifício da vida da rua. Nesse
espaço urbano. Arquitetos que projetam arranha-céus e outros conceito de projeto, a estética da visibilidade e o isolamento social
edifícios de grande porte e alta densidade se veem forçados a se fundem.
trabalhar com as ideias a respeito da vida pública, no seu estado
O paradoxo do isolamento em meio à visibilidade não é privativo de
atual, e de fato se incluem entre os poucos profissionais que por
Nova York, tampouco os problemas específicos da criminalidade em
necessidade expressam e tornam esses códigos manifestos para
Nova York constituem uma explicação suficiente da inercia do
outrem.
espaço público num projeto como esse. No Brunswick Centre,
Um dos primeiros arranha-céus de puro estilo da Escola construído no bairro de Bloomsbury, em Londres, e no complexo de
Internacional, construídos após a Segunda Guerra Mundial, foi a escritórios de Défense, em construção na extremidade oeste de
Lever House de Gordon Bunshaft, na Park Avenue, em Nova York. O Paris, o mesmo paradoxo se verifica e resulta na mesma área
andar térreo da Lever House é uma praça ao ar livre, um pátio com pública morta.
uma torre que se ergue na face norte e, a um andar acima do térreo,
No Brunswick Centre, dois enormes complexos de apartamentos se
uma estrutura baixa em torno dos três lados restantes. Mas deve-
erguem para fora de um grande espaço aberto de concreto; os
se passar por debaixo dessa ferradura baixa para se penetrar da rua
edifícios de apartamentos vão diminuindo a cada andar, de tal
no pátio; o nível da rua é espaço morto. Não há diversidade de
modo que cada um deles parece uma cidade com jardins suspensos
atividades no andar térreo: é apenas uma passagem para o interior.
localizados numa colina. Na sua maioria, as sacadas dos
A forma desse arranha-céu Internacional está em desacordo com a
apartamentos do Brunswick Centre são envidraçadas; desse modo,
sua função, pois uma praça pública em miniatura é formalmente
o morador do apartamento dispõe de uma parede de estufa, que
declarada, mas a função destrói a natureza de uma praça pública,
deixa passar muita luz e rompe a barreira entre exterior e interior.
que é a de mesclar pessoas e diversificar atividades.
Essa permeação entre a cidade e o espaço interno é curiosamente
Essa contradição faz parte de um conflito maior. A Escola abstrata. Tem-se a agradável percepção do céu, mas os edifícios
Internacional dedicava-se a uma nova ideia de visibilidade na estão dispostos de maneira a não ter nenhuma relação com os
construção de grandes edifícios. Paredes quase inteiramente de edifícios de Bloomsbury ao seu redor, nem vista para eles. Na
vidro, emolduradas por estreitos suportes de ação, fazem com que verdade, os fundos de um dos blocos de apartamentos, revestidos
o interior e o exterior de um edifício se dissolvam, até o menor de concreto sólido, dão para, ou melhor, nem tomam conhecimento
ponto de diferenciação; essa tecnologia permite a realização de uma das mais belas praças de Londres. O edifício está localizado
daquilo que S. Giedion chama o ideal da parede permeável, o como se pudesse estar em qualquer parte, o que vale dizer que seus

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projetistas não tinham a sensação de estarem em nenhum local tráfego para o conjunto vertical". Traduzido, isso significa que o
específico, muito menos em um meio urbano extraordinário. espaço público se tornou uma derivação do movimento.
A verdadeira lição do Brunswick Centre está contida no seu pátio A ideia do espaço público como derivação do movimento
central aberto. Existem ali algumas lojas e vastas áreas de espaço corresponde exatamente às relações entre espaço e movimento
vazio. É uma área de passagem, não de uso; sentar em um dos raros produzidos pelo automóvel particular. Não se usa o carro para ver a
bancos de concreto do pátio, durante qualquer espaço de tempo, cidade; o automóvel não é um veículo para se fazer turismo - ou
deixa-nos profundamente sem jeito, como se estivéssemos em melhor, não é usado como tal, a não ser por motoristas
exibição em um vasto hall de entrada vazio. O pátio “público” do adolescentes que saem para dar uma volta de carro sem permissão
Centre está em verdade protegido contra as principais ruas do dono. Em vez disso, o carro dá liberdade de movimentos; pode-
contíguas a Bloomsbury por duas imensas rampas ladeadas por se viajar sem ser interrompido por paradas obrigatórias, como as do
cercas; o próprio pátio se ergue a alguns metros acima do nível da metrô, sem mudar a sua forma de movimento, de ônibus, metrô,
rua. Tudo foi feito, mais uma vez, para isolar a área pública do via elevada ou a pé, ao ir do lugar A para o lugar B. As ruas da cidade
Brunswick Centre de incursões acidentais vindas da rua, ou adquirem então uma função peculiar: permitir a movimentação; se
simplesmente das pessoas que passeiam, assim como a localização elas constrangem demais a movimentação, por meio de semáforos,
dos dois blocos de apartamentos isola com eficácia seus moradores contramãos, etc., os motoristas se zangam ou ficam nervosos.
da rua, do pátio e da praça. A afirmação visual feita pelo
Atualmente, experimentamos uma facilidade de movimentação
detalhamento da parede da estufa diz que o interior e exterior da
desconhecida de qualquer civilização urbana anterior a nossa, e, no
moradia não tem diferenciação; a declaração social feita pelo pátio,
entanto, a movimentação se tornou a atividade diária mais
pela localização do complexo e pelas rampas diz que uma imensa
carregada de ansiedade. A ansiedade provém do fato de que
barreira separa o “interior” do Brunswick Centre do “exterior”.
consideramos a movimentação sem restrições do indivíduo como
A supressão do espaço público vivo contém uma ideia ainda mais um direito absoluto. O automóvel particular é o instrumento lógico
perversa: a de fazer o espaço contingente à custa do movimento. para o exercício desse direito, e o efeito que isso provoca no espaço
No centro da Défense, tal como ocorre na Lever House e no público, especialmente no espaço da rua urbana, é que o espaço se
Brunswick Centre, o espaço público destina-se à paisagem, não à torna sem sentido, até mesmo endoidecedor, a não ser que possa
permanência. Na Défense, as áreas em redor da massa dos altos ser subordinado ao movimento livre. A tecnologia da
edifícios de escritórios que compõem o complexo contêm algumas movimentação moderna substitui o fato de estar na rua por um
lojas, mas a sua verdadeira finalidade é a de servirem como desejo de eliminar as coerções da geografia.
passagem, do automóvel ou do ônibus, para os edifícios de
Assim, a concepção de design para uma Défense ou para uma Lever
escritórios. Há poucos sinais de que os encarregados do projeto da
House se aglutina com a tecnologia dos transportes. Em ambas,
Défense atribuíssem aquele espaço qualquer valor intrínseco ou
uma vez que se tornou função da movimentação, o espaço público
achassem que as pessoas vindas dos vários edifícios pudessem
perde todo sentido próprio independente para experimentação.
querer permanecer nele. O solo, segundo as palavras de um dos
encarregados do planejamento, é "o nexo de apoio ao fluxo de Até agora, empregamos o termo "isolamento" em dois sentidos: em
primeiro lugar, significa que os habitantes ou os trabalhadores de

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uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos ao sentirem O espaço público morto é uma das razões, e a mais concreta delas,
qualquer relacionamento com o meio no qual está colocada essa pelas quais as pessoas procurarão um terreno íntimo que em
estrutura. Em segundo lugar, significa que, assim como alguém território alheio lhes é negado. O isolamento em meio a visibilidade
pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de pública e a exagerada ênfase nas transações psicológicas se
movimento, também deixa de acreditar que o que o circunda tenha complementam. Na medida em que alguém, por exemplo, sente
qualquer significado além de ser um meio para chegar à finalidade que deve se proteger da vigilância dos outros no âmbito público,
da própria locomoção. Existe ainda um terceiro sentido, um sentido por meio de um isolamento silencioso, compensa isso expondo-se
um tanto mais brutal de isolamento social em locais públicos, um para aqueles com quem quer fazer contato. A relação
isolamento produzido diretamente pela nossa visibilidade para os complementar existe então, pois são duas expressões de uma única
outros. e geral transformação das relações sociais. Às vezes, penso nessa
situação complementar em termos das máscaras criadas para o eu
A ideia de uma parede permeável é aplicada por muitos arquitetos,
pelas boas maneiras e pelos rituais de polidez. Essas máscaras
tanto, dentro de seus prédios quanto do lado de fora. As barreiras
deixaram de ter importância em situações impessoais, ou parecem
visuais são destruídas pela supressão das paredes divisórias de
ser propriedade exclusiva dos esnobes; em relacionamentos mais
escritórios, de modo que andares inteiros se tornem um vasto
íntimos, parecem impedir que se conheça outra pessoa. E me
espaço aberto ou, ainda, que haja um conjunto de escritórios
pergunto se esse desprezo pelas máscaras rituais da sociabilidade
privativos localizados no perímetro, com uma ampla área interna
não nos tornou, na realidade, culturalmente mais primitivos do que
aberta. Essa destruição de paredes, adiantam os planejadores de
a mais simples tribo de caçadores e catadores.
escritórios, melhora o desempenho dos escritórios, pois, quando as
pessoas se encontram durante todo o dia expostas visualmente Um elo ligando a maneira pela qual as pessoas encaram as suas
umas às outras, é menos provável que haja lugar para conversinhas relações sexuais e aquilo que experimentam na rua pode parecer
e mexericos e mais provável que tenham uma atitude reservada. artificioso. E, mesmo que se concorde quanto a existência de tais
Quando todos estão se vigiando mutuamente, diminui a conexões entre as modalidades da vida pública e da vida pessoal,
sociabilidade, e o silêncio é a única forma de proteção. O projeto do poder-se-ia objetar, com razão, que elas têm raízes pouco
escritório em andar aberto leva ao extremo o paradoxo da profundas do ponto de vista histórico. Foi a geração nascida após a
visibilidade e do isolamento, um paradoxo que pode também ser Segunda Guerra Mundial que se voltou para dentro de si ao libertar
enunciado inversamente. As pessoas são tanto mais sociáveis das repressões sexuais. É nessa mesma geração que se operou a
quanto mais tiverem entre elas barreiras tangíveis, assim como maior parte da destruição física do domínio público. A tese deste
necessitam de locais específicos, em público, cujo propósito único livro é a de que esses sinais gritantes de uma vida pessoal
seja reuni-las. Em outros termos, diríamos: os seres humanos desmedida e de uma vida pública esvaziada ficaram por muito
precisam manter uma certa distância da observação íntima por tempo incubados. São resultantes de uma mudança que começou
parte do outro para poderem sentir-se sociáveis. Aumentem o com a queda do Antigo Regime e com a formação de uma nova
contato íntimo e diminuirão a sociabilidade. Essa é a lógica de um cultura urbana, secular e capitalista.
tipo de eficiência burocrática.
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