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Estratégias comunicativas especiosas e formação de agenda de estudo da

desinformação como propaganda


A vertiginosa incidência de mensagens aparentemente informativas voltadas ao
engano do público receptor tem atraído os olhares dos analistas de diferentes campos
da comunicação. Na perspectiva de jornalistas, sob o termo ‘Fake News’ emerge um
conjunto de práticas de tratamento editorial da informação falsa, a ponto de se dar a
impressão de que é notícia verdadeira. Para tal, emprega-se um conjunto de técnicas
de construção do texto jornalístico. Do ponto de vista de publicitários e relações
públicas, o ato de mistificação da realidade por meio de notícias tem sido
caracterizado com termo que evidencia “falseamento de notícias” com o conceito de
“real advertising”, ou simplesmente real ad (propaganda real).
Daí a proposição de que “Fake News são propagandas reais”, hipótese que
pauta as iniciativas de reflexão do grupo ReC – Retóricas do Consumo. Fake News e
Real Ad seriam duas faces da mesma moeda, dentro da noção de práticas especiosas
de comunicação. Um argumento especioso é aquele que aparenta dizer a verdade,
emprega argumentos que soam justos e verdadeiros apenas na forma, mas o conteúdo
é falso e enganador em suas intenções mais recônditas.
De acordo com Pastore (2019, p.13), “Fake News define-se como todo
conteúdo com algum grau de falsidade intencional e que almeja adquirir status
noticioso e passar-se por notícia”.
Primeiro, fake news não é um conteúdo midiático qualquer – a sua intenção é
influenciar pessoas para cumprir um objetivo persuasivo particular e para
beneficiar um patrocinador (possivelmente) identificável. Enquanto fake news
não se identifica com a definição tradicional, ou mesmo com a versão
atualizada da definição de publicidade (DAHLEN; ROSENGREN, 2016), é
inegável que ela é mensagem patrocinada, se espalha através de mídias de
alcance massivo e tem intuito persuasivo. Em outras palavras, é advertising-
like. Sendo assim, fake news está claramente no campo de estudo e da prática
publicitários. (NYILASY, 2019 apud PASTORE, 2019, p.56)

Em muitos casos, nota-se que uma Fake News adota técnicas de propaganda
largamente conhecidas, com o fito claramente manipulatório, amalgamadas ao
formato jornalístico para transmitir verossimilhança e credibilidade. Tal construção se
aproveita do contexto favorável de propagação propiciado pelas multiplataformas
midiáticas assumidas como instrumentos por atuantes convictos do valor de tais
informações.
Consideramos mais prática a definição de “desinformação” de Wardle e
Derakshan (2017): “quando falsa informação (como tal) reconhecida é
compartilhada com o objetivo de causar dano”. Eles contrastam com
misinformation (“quando falsa informação é compartilhada, mas nenhum
dano é intencional”) e malinformation (quando informação genuína é
compartilhada para causar dano, frequentemente ao repassar informação de
caráter privado para circular na esfera pública). ( ONG; CABAÑES, 2019)

Dadas as circunstâncias já reconhecidas pelos usos e práticas das Fake News


como estratégia de propaganda, com variados vieses – elogiosos ou difamatórios –,
cuja autoria em geral tende a ser não identificada (cf. Patrícia Campos Mello, 2020),
importa uma reflexão estruturada, nos moldes das teorias publicitárias, sobre esse
conjunto de práticas que apresenta variados contornos. Essa constatação, se
verificada, permitiria uma análise conjunta com as pesquisas do jornalismo, dessa vez
lançando questões da publicidade para o conteúdo anteriormente caracterizado como
pura falsidade. Na perspectiva do grupo de pesquisadores, uma importante
contribuição social poderia ser oferecida com a análise detida das mensagens
construídas, dali extraindo conclusões sobre quais elementos persuasivos surgem
escamoteados nas peças retóricas travestidas de jornalismo acreditado.
Se essa correlação com a propaganda de fato se verifica na construção das Fake
News, então é possível lançar questões sobre emissores (contratantes e agências),
mensagens (as peças comunicativas), canais (meios tradicionais e digitais), receptores
(públicos direcionados e afetados), bem como a ambiência (contexto) em que tudo
isso se realiza. Dessa forma, é possível delinear as estratégias e as práticas encetadas a
partir da prática da produção de Fake News, para além da deliberada intenção de
intoxicar a esfera pública com conteúdos perniciosos, mas também como atividade
que pode ser desenvolvida com interesses comerciais envolvendo amplas instâncias de
atuação.
Para fundamentar teoricamente as análises, o artigo remonta o conceito de
“propaganda”, caracteriza Fake News, define o ato da mentira na publicidade e
propaganda e propõe como mensagens de reforço cognitivo encontram eco no seio de
uma recepção aberta a sofrer influências de tais mensagens por compartilharem da
mentalidade que tais conteúdos carregam... (complementa com os estudos de NERY)

Engodo como (má) prática de propaganda


Importante reconhecer que a diferença entre “publicidade” e “propaganda”
volta a se impor como um debate importante, considerada a natureza das Fake News.
Registra-se que a “publicidade” se orienta pela abordagem comercial para fins de
distribuição de produtos ou serviços. Para tal, a publicidade mobiliza um conjunto de
técnicas argumentativas calcadas na oferta persuasiva de informações que objetivam
colocar o receptor da mensagem em movimento favorável em direção à mensagem de
um patrocinador identificado. “Num sentido amplo, a publicidade é definida como
atividade mediante a qual bens de consumo e serviços que estão à venda se dão a
conhecer, tentando convencer o público da vantagem de adquiri-los.” (GOMES, 2001,
p.115).
A propaganda, por sua vez, se orienta em proporcionar visibilidade a temas ou
ideias cujas informações também são construídas de maneira persuasiva,
sobressaindo-se o caráter ideológico de tais mensagens. De igual maneira, pretende-se
que o público receptor da mensagem aja de acordo com os interesses ideológicos do
patrocinador da mensagem devidamente identificado.
A propaganda, no terreno da comunicação social, consiste num processo de
disseminação de ideias através de múltiplos canais, com a finalidade de
promover no grupo ao qual se dirige os objetivos do emissor, não
necessariamente favoráveis ao receptor; o que implica, pois, um processo de
informação e um processo de persuasão. Podemos dizer que propaganda é o
controle do fluxo de informação, direção da opinião pública e manipulação –
não necessariamente negativa – de condutas e, sobretudo, de modelos de
conduta. (GOMES, 2001, p. 117)

Em ambos os casos, há produção de informação persuasiva, emitida por um


patrocinador identificado e voltada a colocar o receptor em ação. Da distinção entre
“publicidade” (trocas comerciais) e “propaganda” (ideias), contudo, emerge a principal
preocupação com o protagonismo angariado pelas Fake News: a ausência do
“patrocinador identificado” da mensagem. Postula-se que, como ponto de partida, as
Fake News são construídas propositalmente com a ausência ou o falseamento da
identidade de seu patrocinador. Trata-se de um emissor pautado na mentira sobre sua
própria identidade, o que por si só já se coloca como algo revelador sobre o ethos de
tal emissor. Há de se perguntar, então, por que se mente sobre a autoria dos
conteúdos Fake? A que objetivos se busca cumprir com tal atitude? E por que tal
mentira poderia ser admitida no escopo da propaganda? E, obviamente, desvelar a
ruptura ética que tal adoção acarreta...

A mentira como metier retórico


Claramente, as práticas de Fake News buscam interferir de maneira
proeminente no debate público sobre um tema determinado, reorientando o fluxo
comunicativo e a direção da opinião pública. Partindo-se da não identificação de seu
emissor – o patrocinador efetivo da mensagem – pode-se especular que há objetivos
obscuros de uma operação com tal caráter. Por essa razão, alguém que recalca a sua
própria identidade como autor, certamente não se isentaria de repetir tal ato na
tematização, na angulação e no enquadramento do conteúdo factual que busca
disseminar. Uma categorização mais ampla das práticas de mentira pode contemplar
variáveis de análise como: os motivos; os destinatários; os próprios objetos do
falseamento, bem como os procedimentos adotados para construções retóricas que
cumprem objetivos tangíveis para aqueles que as elaboram.
Durandin (1997) expõe variado cardápio de mentiras mobilizadas na
publicidade e na propaganda tradicionais que oferecem categorias pertinentes para
analisar as Fake News como fenômeno da propaganda. Interessante notar que o rol do
pesquisador francês antecede a adoção ampla das tecnologias digitais. Para Durandin,
a publicidade possui fito comercial e essa atividade é devidamente regulada pelos
órgãos de controle do Estado e do próprio mercado, o que torna mais difícil o engodo
do público, posto que pode haver responsabilização legal.
A propaganda, por sua vez, estando no campo da livre expressão de ideias, goza
de amplas prerrogativas de circulação sem qualquer tipo de regulação pública, o que
lhe garante ampla flexibilidade para empregar a mentira nas suas argumentações.
Segundo o pesquisador francês, a mentira na propaganda pode ser categorizada ao se
observar: a) a relação entre o emissor e o destinatário; e b) o grau de informação do
receptor.
Na relação entre emissor-receptor, Durandin indica que a propaganda se dirige
aos “inimigos”; aos “amigos”; aos “neutros”; à “população interna de determinado
país”. No caso da política interna de um país, esses grupos podem ser caracterizados,
ainda, como “adversários”; “indecisos”; “simpatizantes”; “membros do partido”. No
que tange ao grau de informação, o pesquisador evidencia que quanto menor o grau
de informação do público, mais facilmente ele poderá ser engrupido por mensagens
propagandísticas mal-intencionadas. Essa noção também remete à variedade de canais
informativos à disposição do público, o que no contexto digital se amplificou de
maneira que não necessariamente tem servido para aprofundar o grau de informação
dos públicos. Em uma sociedade com o grau de informação limitado, a informação
dificilmente se distingue da propaganda.
Durandin (1997) aponta que a mentira pode se referir aos feitos de pessoas; à
efetiva realização desses atos e fatos; e à dimensão temporal com que acontecem.
Quando as pessoas são o objeto da mentira, o autor reforça que se pode mentir sobre
si próprio, sobre um adversário, sobre um terceiro e, ainda, sobre o ambiente.
Outra variável do objeto da mentira é o grau de realização, que remete ao
recalque das reais intenções que a mentira pode encobrir, o exagero ou a atenuação
dos atos e fatos. Um terceiro objeto de mentira remete à temporalidade,
especialmente do presente e do passado – por vezes do futuro –, com deslocamentos
contextuais que comprometem a veracidade das pessoas e suas ações. Daí que é
possível se projetar nas Fake News contemporâneas que essas variáveis continuam
sendo contempladas. A propaganda maliciosa se direciona a pessoas publicamente
visíveis, refletindo sobre fatos e atos que a elas se relacionam e, em muitos casos, são
expostas a ações desinformativas sobre suas condutas recentes ou pregressas.
Pode-se mentir a respeito de si mesmo, ou do adversário, ou então de
terceiros ou do ambiente. Esta classificação nem sempre é aplicável à
publicidade, porque a regulamentação desta varia conforme o país, ao passo
que não há quase controle sobre a propaganda. Um dos adversários pode
mentir a respeito do outro; a única sanção que sofreria é a vingança deste.
Não há nenhuma autoridade internacional que possa aplicar sanções relativas
à propaganda mentirosa. (DURANDIN, 1997, p.53)

Ainda segundo Durandin (1997), a mentira na comunicação pode ser


caracterizada também por seus procedimentos, que são ligados aos signos
empregados e às operações realizadas. O signo da mentira é aquilo que se revela ao
interlocutor alvo do engodo: “palavras faladas ou escritas; imagens; personagens,
objetos ou fenômenos falsos; ações falsas; documentos falsos”. (p.59). As operações
realizadas podem ser “fazer crer na inexistência de algo que efetivamente existe”, a
técnica da supressão; “fazer crer na existência de algo que inexiste”, a técnica da
adição; “deformar ou deturpar algo que existe”, a técnica da deformação. O repertório
da mentira concilia múltiplos empregos de signos e operações concomitantes ou
distribuídas temporalmente.
Por signos da mentira entendemos o que se apresenta ao interlocutor, o que
se faz para ele ouvir ou ver. O signo mais frequentemente utilizado é a palavra
(oral ou escrita) (...) E pode-se empregar diversos tipos de signo: imagens
(fixas ou em movimento), seres falsos (personagens, objetos, indícios
materiais, fenômenos), falsas ações e documentos falsos. (DURANDIN, 1997,
p.60)

Outros procedimentos de produção da mentira ressaltados por Durandin, que


fogem à supressão, à adição e à deformação visam a afetar de alguma forma a
capacidade de julgamento do receptor das mensagens falsas. Essas práticas se
desdobram: a) na “perturbação do exercício do conhecimento”; b) na “desqualificação
do que se dá a conhecer tanto quanto dos seus métodos de apreensão”; c) na
“manipulação dos afetos dos receptores do conhecimento”.
No rol desses procedimentos, perturbar o exercício do conhecimento se dá por
meio de 1) desviar a atenção, com técnicas listadas como: a) chamar atenção sobre
outro objeto para tirar o foco do tema inicial; b) diluir o impacto de um objeto
apresentando-o junto a tantos outros, relativizando a sua importância; 2) pretender
que a questão seja mal conhecida, desmerecendo um tema por ter sido colocado de
maneira rasa por falta de subsídios suficientes para ser considerado na pauta; 3) aludir
a pretensos conhecimentos, que consiste em insinuar que existem outras
circunstâncias sobre o fato ocorrido, que não podem ou não convêm ser conhecidas,
sem apresentar outros fatos que a aprofundem; tanto como cifrar em mensagens
construídas informações por todos sabidas, que deixam de ser esclarecidas ao delegar
à recepção conclusões por conta própria sobre fatos supostos e não narrados na
argumentação; 4) disseminar notícias contraditórias, com o objetivo de deixar a
população confusa entre falsas esperanças e decepções, sem saber diante dessa
alternância como agir, o que normalmente a leva por optar pela passividade.
Ao desqualificar o objeto do conhecimento e seus métodos de apreensão,
Durandin admite que isso se dá pelo emprego de duas práticas: a da acusação de
incompetência quanto ao uso da linguagem pela outra parte; ou acusando os
oponentes de mau uso do raciocínio lógico e da construção do argumento. Enquanto
se desconstrói o oponente, o autor da mentira emprega subterfúgios de argumentação
como desrespeito ao princípio da não-contradição; simplificação excessiva pelo viés da
contradição polarizadora; assimilação do discurso do oponente fazendo crer que não
há diferença entre o que o outro campo oferece e a sua própria proposta; adoção de
princípios fortes, mas não comprovados; extrapolação aleatória, em geral projetando o
futuro.
Quanto à manipulação dos afetos, os produtores da mentira se utilizam dos
próprios valores morais do consumidor da mensagem, assim como do repertório
inconsciente desse público. Nesse procedimento, o emissor busca demonstrar ao
receptor que os valores de ambos são recíprocos e que compartilham de forma
atitudinal das mesmas visões de mundo e valores, investindo no ganho da confiança
do receptor. Em outra frente, dirige-se pesadamente ao repertório inconsciente do
receptor – principalmente no papel de consumidor – motivando-o à ação pelos
sentimentos não racionalizados como medo, desejo, impulsos sexuais, violência, entre
outros, de forma a orientar a ação para as escolhas que interessam ao manipulador
das mensagens.

Fake News tornada em fato


Ao menos desde 2017 o protagonismo crescente da Fake News ganha o debate
público, em geral evocada pelo meio acadêmico e veículos jornalísticos, preocupados
com os contornos do fenômeno. O objetivo aqui é verificar o quanto as Fake News
dialogam com o rol de mentiras listado por Durandin. Pastore (2019), em exaustivo
levantamento sobre o tema, identifica que as Fake News emergem em um contexto
em que guerras híbridas se desenvolvem em todos os continentes, com a operação de
países em territórios estrangeiros, bem como de atores políticos nos ambientes
internos de cada país, voltados à própria manutenção e conquista de poder por parte
de grupos políticos.
A escolha de fake news como a palavra do ano 2017 pelo dicionário
Collins (HUNT, 2017); a emergência de uma enorme quantidade de
robôs de internet e perfis falsos (READ, 2018); a frequente ocorrência
de episódios de assédio virtual (DUGGAN, 2017; GUYNN, 2019); os
vazamentos de dados com consequência política, como o episódio
MacronLeaks (MOHAN, 2017); o vazamento dos e-mails de membros
da campanha de Hillary Clinton à presidência em 2016 (ABRAMS,
2019); o escândalo da Cambridge Analytica (POZZI, 2019); e o fato de
70 países já experimentarem campanhas de desinformação
organizadas, principalmente em ambiente virtual (BRADSHAW;
HOWARD, 2019), mostram sinais de uma web cada vez mais hostil.
Alguns autores (...) já afirmam que a internet brasileira foi
transformada em local de guerra, não de uma guerra convencional,
mas da guerra híbrida. (PASTORE, 2019, p.21)

Na mesma linha de Durandin, as operações de guerra híbrida consistem em


“inserir, remover e amplificar (des)informações; degradar o ambiente de informação;
limitar a participação de vozes opositoras ou adversárias; influenciar mudanças de
comportamento e percepções simpáticas aos objetivos do praticante da guerra
híbrida”. (KRASODOMSKI-JONES ET AL apud PASTORE, 2019, p.29-30)
Daí, uma constatação interessante ao apontar para tal direção é a ideia de que
as Fake News são adotadas em um conjunto de ações coordenadas com objetivos que
excedem o próprio conteúdo de uma mensagem única, permitindo como agenda de
pesquisa que venha a ser analisado um conjunto de mensagens que, inclusive, evita
apresentar coerência de formato entre si. A coerência, de acordo com a teoria da
publicidade, seria a própria tradução do conceito de campanha, cuja operação é dar
unidade ao material argumentativo produzido com o emprego de temas reconhecíveis
que reiteram a mensagem central do patrocinador (cf. BERTOMEU, 2006).
O que se verifica nas Fake News, em direção oposta, é o cuidado de deslocar a
unidade coerente de campanha, enquanto a tematização emerge de uma forma
aparentemente desalinhada quando vista isoladamente. Quanto mais desalinhada,
provavelmente mais aparência de espontaneidade a mensagem apresenta, o que
fortalece a causa que ela busca encampar com a impressão de mobilização por
diferentes vozes, cada qual se expressando à sua própria maneira.
Assim, Pastore se coloca a enumerar as condições e as características que as
Fake News costumam apresentar no contexto da publicidade e propaganda. Uma
primeira distinção interessante na pesquisa do autor é verificar que os termos
“desinformação” e “Fake News” guardam distinções relevantes. Ao apontar os estudos
de Benkler, Faris e Roberts (2018 apud PASTORE, p.43-44), verifica-se que
desinformação é a adoção explícita e intencional de informações falsas com fins
políticos. A desinformação se contrapõe, por exemplo, com a noção de
misinformation, que é o viés que pode acontecer no processo de produção de uma
notícia, como os enganos e os erros dos jornalistas em uma apuração, redação ou
edição de matéria, algo não intencional.
A desinformação, por sua vez, dada a sua intencionalidade, adquire variados
contornos em uma classificação proposta por Tandoc, Lim e Ling (2018 apud PASTORE,
2019): sátira; paródia; fabricação de notícias; manipulação de imagens; propaganda
política; e anúncios e relações públicas disfarçados de notícias. Pastore indica que as
sátiras e as paródias são altamente empregadas, mas ainda cumprem o objetivo da
risada compartilhada, então cumprem uma função crítica que manifesta abertamente
a que se presta, algo que fica claro para emissores e receptores. Mais desafiante,
contudo, seria discernir na recepção as operações das demais práticas.
Para produção de notícias, manipulação de imagens, propaganda
política, anúncios e relações públicas disfarçados de notícias verifica-se
que há alteração no quadro, pois nessas situações há uma clara
dissimulação, ou seja, a intenção de esconder sua natureza. Não há
entendimento entre produtores e consumidores de que seu conteúdo
é falso ou enganador. Também não há riso compartilhado (...).
(PASTORE, 2019, p.49)

Outra constatação relevante na pesquisa de Pastore está em demonstrar que a


produção de Fake News cumpre objetivos econômicos e está relacionado ao escopo de
trabalho de agências, bureaus de comunicação ou mesmo indivíduos que empreendem
por conta própria:
O labor de um produtor de fake news se assemelha ao de um
comunicador comercial. O objetivo é ou fabricar conteúdo
“interessante” que atraia cliques, transformando o site/blog mais em
um espaço publicitário do que qualquer outra coisa, e/ou persuadir o
leitor a respeito de tal ideia e levá-lo às ruas, à urna eleitoral, ou a
ambas. Em suma, vender nem sempre de maneira ética ou responsável
um conteúdo ou uma ideia. (PASTORE, 2019, p.55-56)

A esse fazer profissional, pesquisa de Ong e Cabañes (2019) apresenta o


cenário do sistema de produção remunerada nas Filipinas, evidenciando um
sofisticado esquema de contratação que envolve etapas remuneradas e não-
remuneradas na produção de desinformação. Na instância remunerada, distribuem-se
tarefas entre estrategistas de relações públicas e diretores de agências de publicidade,
responsáveis; influenciadores digitais conhecidos e anônimos; amplificadores
subcontratados para dar a impressão de adesão orgânica às mensagens, em geral
comunicadores em atuação free-lancer. Todo o time anteriormente orquestrado de
forma remunerada tem por objetivo fazer com que intermediários de base
(moderadores de páginas de partidos políticos, líderes de opinião interessados em
dado assunto ou voluntários de assuntos políticos) venham a aderir às proposições da
mensagem, nesse nível sim, sem a remuneração. Aí sim, o fluxo informativo ganha
disseminação em espaços cada vez mais amplos de circulação.
Embora circunscrito ao universo do sistema político filipino, o modus operandi
em muito se assemelha ao que já se conhece das práticas em outros países, servindo
como parâmetro metódico interessante para pesquisas em países como o Brasil, por
exemplo, de forma a descortinar os papeis e interações nesse complexo sistema
produtivo, que por vezes faz a pessoas agirem por ideologia, mas por outras movidas
por interesse financeiro, havendo casos em que ambos os interesses se verificam.
Ainda apoiado sobre Tandoc, Lim e Ling (2018), Pastore explica que no rol de
ações desinformativas usando as Fake News cabem tranquilamente os boatos e as
teorias da conspiração. Especialmente aqueles casos que são passíveis de tratamentos
de textos, falas e imagens que alimentem a espiral desinformativa. Nesses casos,
reforçando certas convicções consideradas factíveis por aqueles que as recebem. Vale
lembrar que essa potência também combina com Durandin, quando detalha as
operações de mentira com as supressões, as adições e as deformações de um fato para
proveito próprio do emissor. Tais noções coadunam com as práticas do astroturfing1,
firehosing2, doxxing3 e linchamentos virtuais.
Importante a contribuição de Pastore, à medida que se evidencia que agentes
da publicidade e propaganda têm papel efetivo na produção e circulação de Fake
News, atividade que além de mobilizar os postulantes ao poder também se revela
como atividade profissional remunerada, o que pôde ser visto nas eleições
presidenciais brasileiras de 2018, quando um universo de pequenas agências,
apoiadores, empresários atuantes e financiadores demonstraram sua adesão às
campanhas, consoante os mais variados interesses.

1 Astroturfing...
2 Firehosing...
3 Doxxing...
Recepção e títeres: quem manipula quem?
Via de regra, um viés recorrente nas análises da temática das Fake News é o
apagamento do papel da recepção na consolidação dos fluxos comunicativos baseados
em materiais de desinformação. Há uma ênfase na capacidade das estratégias dos
emissores dos conteúdos falsos, em detrimento das formas de apropriação que o
público receptor é capaz de fazer de tais informações. Ao dar tal ênfase, admite-se que
todos os receptores agirão da mesma maneira ao receber conteúdo, o que ignora todo
o sistema que contempla a perfeita recepção, mas também a concordância com o
conteúdo, a disposição prévia em interpretá-lo, o papel dos mediadores de informação
na sociedade e o quadro de referência com que os públicos formam os seus juízos
sobre o mundo da vida.
A esse respeito, vale resgatar as teorias do reforço e da dissonância cognitivos
(FESTINGER, ANO). Partindo dessa concepção, é válido afirmar que as pessoas são
capazes de estabelecer instâncias complexas de adesão ou rejeição às ideias que lhes
chegam, por uma via de exposição, confirmação ou rejeição, assimilação crítica
gradual, verificação com lideranças de opinião próximas, consolidação de perspectivas
em médio e longo prazos.
Nessas instâncias, tanto os conteúdos dos meios de comunicação quanto
aqueles que provêm de outros canais do meio social – a fofoca e o Whatsapp, entre
outros, cabem nesta noção, por exemplo – afirma-se que o público emprega as
mensagens que lhes chegam de forma interessada, aderindo ou refutando aquilo que
cabe nos seus próprios sistemas-mundo.
O sistema-mundo pode ser explicado a partir de quadros de referência que
servem como clichês para interpretar os fatos cotidianos, especialmente os que
exigem alta especialização, em busca de simplificar a sua intepretação. Essas molduras
são os quadros de referência adotados para processar um conteúdo novo a partir de
outros conteúdos anteriormente vividos ou dados a interpretar, simplificando o
processo. A esse respeito, o fato presente é assimilado com os aprendizados passados,
o que vai ser explicado, por exemplo, nos termos das neurociências (GOFFMAN apud
CASTELLS, 2015, p.196):
O enquadramento (framing) resulta do conjunto de correspondências
entre papeis organizados em narrativas, narrativas estruturadas em
molduras, molduras simples combinadas em narrativas complexas,
campos semânticos (palavras relacionadas) na linguagem conectados a
molduras conceituais, e o mapeamento de molduras no cérebro pela
ação de redes neurais construídas com base na experiência
(evolucionária e pessoal, passada e presente). (...) A maior parte da
comunicação é construída em torno de metáforas porque essa é a
forma de acessar o cérebro: ao ativar as redes cerebrais apropriadas
que serão estimuladas no processo de comunicação.

Ante tal perspectiva, é possível afirmar que uma informação mentirosa é


assimilada de maneira útil ou combina com o quadro de interpretação de segmentos
de consumidores de informação que, por alguma razão, estão abertos a concordar
com tais vieses interpretativos e isso pode ser revelador do momento que tais
conteúdos são colocados em fluxo. Eles servem como viés de confirmação e reforço
cognitivo daquilo que se acredita saber de antemão. Essa propensão inicial jamais
deveria ser abandonada para explicar os gatilhos que ativam amplas redes de
circulação de informações mentirosas.
Nessa direção, é possível propor que informações mentirosas encontram
públicos desprovidos de condições para julgar a veracidade. Mas também tocam
pessoas que, mesmo sabendo se tratar de conteúdo inverídico, estariam dispostas por
alguma razão a fazer circular os dados falsos assim mesmo, mediante algum cálculo
pessoal. Mensagens construídas pela via da desinformação encontram públicos que
ignoram a falta de realidade – em alguns casos até ad absurdum – e decidem colocar o
conteúdo em fluxo de qualquer forma. Essa dimensão merece ser estudada
academicamente.
Por exemplo, as eleições presidenciais brasileiras de 2018 emergem como
campo onde várias dessas experiências de trocas desinformativas foram usadas
abertamente. Piaia e Alves (apud NICOLAU, 2020) acompanharam 24 grupos de
Whatsapp exclusivamente organizados para distribuir informações sobre a campanha
do candidato Jair Bolsonaro, entre os meses de setembro e novembro de 2018. Ao
coletar 195 mil mensagens, os pesquisadores observaram que, naquelas redes, havia
um comportamento incidente de poucos elaboradores e disseminadores de conteúdo,
enquanto a maior parte se mantinha em uma atuação passiva na recepção das
informações. Em outro levantamento que se tornou conhecido sobre o certame
eleitoral, o portal UOL apurou que de 123 notícias falsas distribuídas durante as
eleições presidenciais, 104 (85%) eram favoráveis a Bolsonaro (PSL), enquanto 19
(15%) se voltavam para Fernando Haddad (PT). Além disso, Nicolau (2020) também
evidencia a análise que a agência de checagem de fatos Lupa realizou no Facebook no
período eleitoral e encontrou a movimentação de 865 mil compartilhamentos
somente entre as 10 notícias falsas de maior popularidade. Quando se adentra em
plataformas como Whatsapp ou Telegram, essas métricas de engajamento tornam-se
impossíveis de verificar.
Mas, além da difusão, o caminho é longo até que possamos estimar se
elas realmente influenciaram o voto: é preciso saber 1) quantas
pessoas receberam a informação; 2) se quem recebeu acreditou; 3) se
quem acreditou depois não soube que era uma notícia falsa; 4) se
quem acreditou votou em um determinado candidato por isso. Uma
análise apressada, enfatizando em demasia o volume de notícias falsas
que circularam em 2018, faz uma ligação direta entre os passos 1 e 4,
algo como: recebeu a notícia, acreditou, votou. (NICOLAU, 2020, p.85)

O efeito das Fake News nas eleições de 2018 se tornaram o caso mais
conhecido em solo nacional quanto ao poder da desinformação e muitas análises
foram – e ainda são – construídas para explicar a sua emergência e consolidação como
prática informativa maliciosa. Por outro lado, pouca atenção se dedica a outras frentes
do uso de conteúdo desinformativo nos demais espaços dos assuntos cívicos, da
publicidade comercial e até mesmo das trocas sociais cotidianas.

A ver:
- O princípio da propagabilidade como uma variável influenciadora da credibilidade; a
distribuição por meio de pessoas ‘confiáveis’

Comentários do grupo:

- Incorporar outras abordagens contemplando as questões de esthesis, em especial sob a


perspectiva da afetação do outro.
Referências:

CASTELLS, Manuel. O Poder da Comunicação. Rio de Janeiro | São Paulo: Paz e Terra, 2015.
DURANDIN, Guy. As mentiras na propaganda e na publicidade. São Paulo: JSN Editora, 1997.
FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
GOMES, Neusa D. Publicidade ou propaganda? É isso aí! Revista FAMECOS: Porto Alegre, nº
16, dezembro 2001.
MELLO, Patrícia Campos. A máquina de ódio: notas de uma repórter sobre Fake News e
violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
NICOLAU, Jairo. O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018.
Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
ONG, Jonathan; CABAÑES, Jason Vincent. Architects of networked disinformation: behind the
scenes of troll accounts and fake news production in the Phillipines. Public Report. University of
Massachusetts; University of Leeds, 2019.
PASTORE, Giovanni G. de S. A web como ambiente de publicidade e de guerra: publicidade
contraintuitiva, desinformação e debate político. Trabalho de Conclusão de Curso. Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2019. Disponível em
UOL – Congresso em foco. Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/das-
123-fake-news-encontradaspor-agencias-de-checagem-104-beneciaram-bolsonaro/>

Para ler ASAP


Bjola, Corneliu; Papadakis, Krysianna. 2019. “Digital propaganda, counterpublics and the
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Boler, Megan; Davis, Elizabeth. 2018. “The affective politics of the “post-truth” era: feeling
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Kuehn, Kathleen M.; Salter, Leon A. 2020. “Assessing Digital Threats to Democracy, and
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Communication 14(2020), 2589–2610

Laterza, Vito. 2021. “Could Cambridge Analytica have delivered Donald Trump’s 2016
presidential victory? an Anthropologist’s look at Big Data and political campaigning”. Public
Anthropologist 3 (2021) 119-147
McNeil-Willson, Richard; Gerrand; Vivian; Scrinzi, Francesca; Triandafyllidou, Anna. 2019.
“Polarisation, violent extremism and resilience in Europe today: an analytical framework”.
Concept Paper Brave Project. 2019.

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