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Copyright © 2020 R.

CHRISTINY

Capa: Alice Prince


Revisão: R. Christiny
Diagramação: AK Diagramação

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer


parte desta obra através de qualquer meio — tangível ou intangível
— sem o consentimento escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº


9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Todos os direitos reservados.

Edição Digital | Criado no Brasil.


Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Capítulo 92
Capítulo 93
Capítulo 94
Capítulo 95
Capítulo 96
Capítulo 97
Capítulo 98
Capítulo 99
Capítulo 100
Capítulo 101
Capítulo 102
Capítulo 103
Capítulo 104
Capítulo 105
Capítulo 106
Capítulo Final
Próximo Livro
Agradeço aos meus leitores por terem me acompanhado até aqui.
Obrigada à minha mãe, meu noivo Rick, e ao clã da psiconata. Cada
ameaça por mais capítulos valeu à pena. VOCÊS SÃO INCRIVÉIS.
E a Ana e seu marido Andrés por terem criado o nosso chevalo.
Duas coisas se passaram por minha cabeça enquanto eu
andava em Dindow à procura da confeitaria que Kate me dissera
para encomendar o bolo de casamento de Tess. A primeira, era que
eu cumpriria a única tarefa que me deram, nem se eu passasse a
tarde inteira andando. A segunda me ocorreu quando vi o padeiro
jogar os pães doces na cesta. Eu precisava de um pãozinho; não
somente por estar faminta, mas também porque eles me pareciam
absurdamente saborosos e macios.
— Quero 5 — pedi ao padeiro ao me aproximar.
— Está bem.
Ele jogou os pãezinhos dentro do saco e me entregou. Coloquei
o primeiro imediatamente na boca. Ah, dos deuses. Depois o
segundo. O terceiro. E o padeiro sem desviar os olhos de mim.
— O dinheiro. Claro. Claro. — Me atentei timidamente e tirei as
notas do bolso da calça.
— Não. Dinheiro não. Apenas cartão. — Apontou para uma
placa grudada na vitrine. — Parei de aceitar dinheiro por receber
muitas notas falsas.
Levei o quarto pãozinho à boca antes de respondê-lo.
— Cartão? Eu tenho apenas dinheiro, senhor — disse, de boca
cheia.
O velho fez cara feia.
— Se não tem como pagar então pare de comer! — falou com
grosseria e tentou arrancar o saco da minha mão.
— Eu tenho como pagar, o senhor é que recusa receber! —
rebati e puxei o saco de volta. Enquanto encaminhava o último doce
para minha boca e dava uma bela mordida, um homem fardado
vindo em nossa direção me paralisou.
Nem mesmo mastigar eu consegui.
— Seu policial. Seu policial. — O padeiro chacoalhou o braço
para o sujeito de farda.
Policial?
Quando o policial já estava perto o bastante para atender ao
chamado do padeiro, ele parou de andar, me olhou...E sorriu. Eu não
saberia dizer porque sorriu, e tampouco o que o fez parar de andar.
Eu apenas mastiguei e limpei os cantos da boca com a língua.
Depois, fugi. Corri sem temer as consequências e com o padeiro
gritando que se eu não aparecesse para pagar os pães até o dia
seguinte, as coisas ficariam feias para mim.

Não acreditei nos meus olhos quando vi o policial aparecer na


festa de casamento dos meus amigos. Ele foi até o noivo e lhe
mostrou um papel.
Corri até eles. Eu não permitiria que aquele insensível
atrapalhasse a festa.
— Eu não acredito que você terá a indecência de estragar um
casamento. Eu já disse que pagarei pelos pães, não disse!? —
reclamei, o que era uma mentira. Eu não dissera nada sobre pagar
os pães, sequer trocara palavras com o sujeito.
— Piuthar, você furtou pães? — Charlie perguntou rindo. — Por
Odin, por que furtou pães?
— Eu disse ao padeiro que só tinha dinheiro, mas ele só
aceitava pagamento através daquele negócio de cartão. Não tive
culpa. Eu já havia comido o pão.
— Foram cinco pães, minha senhora. E o padeiro alega que lhe
deu um dia para realizar o pagamento, e já se passaram três. — O
policial atentou.
Sua voz era grave. Rouca e nada amigável.
Estendi os pulsos com impaciência e revirei os olhos para
Charlie.
— Está tudo bem. Eu acompanharei o insuportável de farda e
farei o pagamento. Kate me emprestou o cartão — menti. Eu não
tinha compartilhado com ninguém o incidente na padaria, mas não
iria deixar o noivo preocupado comigo justamente no dia mais
importante da sua vida.
O policial ouviu meu insulto e preparou-se para retrucar, mas
Charlie o interrompeu:
— Eu irei com você.
Neguei apressadamente.
— Ela poderá retornar assim que fizer um acordo com o padeiro
— garantiu o policial.
— Não se preocupe, Charlie. Eu e esse sujeito desagradável já
nos esbarramos algumas vezes — menti, pela segunda vez. Encarei
os olhos azuis do policial. Lindos olhos, não podia negar, era uma
pena que estivesse me colocando algemas enquanto eu o admirava.
— Apesar de não me agradar sua companhia, sei que é um homem
de palavra.
— Tem certeza de que ficará bem? — Charlie quis garantir. Ele
sempre fora um homem superprotetor com todos.
Eu sorri, para fingir que não estava levando aquilo tão a sério.
— É claro. Só garanta que Gael não coma todo o bolo. Ah, eu
matarei aquele grosseiro se ele não me deixar um pedaço —
resmunguei, enquanto o policial me puxava para o barco de forma
nenhum pouco gentil.
— O que fará comigo? — questionei, ao me ver incomodada
com aqueles quase quarenta minutos de completo silêncio.
O grosseiro de farda nem mesmo se virou para me responder:
— O que faço com todas as ladras — uma pausa para
respiração —, a prenderei.
Ele me puxou pelo braço para que eu andasse mais depressa.
— Isso é um absurdo. Foram apenas pães. Não pode me
prender por pães! — resmunguei e parei de andar.
Nossos olhos se cruzaram pelo que me pareceu uma
eternidade. Eram azuis, mas eu acreditava que pretos lhe cairiam
melhor naquela expressão de carranca que ele vestiu durante toda a
viagem.
— Me fiz a mesma pergunta enquanto ia buscá-la, minha
senhora. Como se sujeitou a roubar pães?
Engoli em seco e o fitei de baixo para cima.
— Eu estava com fome e o padeiro se recusou a aceitar meu
dinheiro. Disse que em seu estabelecimento só aceitava cartão. Por
Odin, eu nem mesmo sei usar essa coisa de cartão!
Ele não precisou franzir a testa, uma vez que ele não a
desfranziu minuto algum.
— Não sabe usar cartão? Minha senhora...
— O senhor faz ideia de que está chamando uma mulher de 23
anos de “minha senhora”? — O cortei estupidamente.
O policial cruzou os braços como se para não me estrangular.
Eu estava mesmo deixando o grosseirão maluquinho.
— Perdoe-me se não sei sua idade, eu não sei nem mesmo seu
nome.
— E isso é culpa exclusivamente sua. Passamos uma
desgastante viagem de barco em absoluto silêncio. — O recordei
para estressá-lo um pouco mais.
— Me dirá como se chama ou passaremos mais alguns minutos
nos limitando há apelidos nada gentis? — irritou-se. O nível da
paciência do homem era bem curtinho, pude constatar.
Eu o teria respondido. Teria mesmo. Mas quando o vento forte
mandou uma enxurrada de cabelo na minha boca, eu tive de me
calar.
— Muito bem, como preferir — ele falou, ao pensar que eu não o
respondera por pirraça. — Vamos, dona ladra, há alguns quarteirões
pela frente.
E me empurrou pelas costas. Eu devia estar acostumada com a
grosseria masculina, uma vez que fora criada ao lado de homens.
Charlie, o grande Balder, a pessoa em quem nos inspirávamos lá na
pequena vila da ilha era um tremendo de um ogro e me ensinou
coisas às quais nem mesmo meus pais me ensinaram. Como atirar,
por exemplo. E também havia Gael, pelos deuses, não existia sujeito
mais chucro que ele. Era o próprio cavalo com coice. Quando se
tratava de ignorância, ele tirava de letra. E Jailson, se pudesse,
pediria cuecas emprestadas a mim. Eu estava longe de ser vista
como uma mulher para eles. Lá na vila eu seria sempre a piuthar
(irmã), a ruivinha, a louca por unicórnios, aquela que eles chamariam
para cortar troncos de árvore, mas nunca para entregar flores.
Era por essa razão que eu nunca dera um beijo. 23 anos e o
mais perto que qualquer coisa chegara da minha boca, eu mastigara.
— O que foi? Por que parou? — O policial questionou,
enviesado.
Empinei o nariz para respondê-lo.
— Não acho que eu deva ir presa.
— A não? — perguntou com sarcasmo.
— Não. Foram apenas pães. De onde venho ninguém é punido
por comer se tem fome.
Ele ergueu uma sobrancelha em curiosidade.
— E de onde você vem?
Fiquei quieta por alguns minutos enquanto eu analisava o que
responder.
— Bem, eu nasci na ilha de Kerrera. Já ouviu falar?
— A ilha que foi incendiada? Já sim.
Os olhos azuis, belos como... Como eu poderia encontrar um
adjetivo bom o bastante para o que eu via? Era mais belo que o céu
da manhã. Meus insignificantes anos vividos não foram o bastante
para encontrar algo tão indescritivelmente lindo para assemelha-los.
Se não era para fazer jus ao que eu via, era injustificável tentar.
Mas sua beleza acabava ali. Não que o turrão fosse um homem
feio — ele era bonito de estremecer as pernas. Só que quando ele
abria a boca e exprimia seus pensamentos, ele se tornava o ser
humano mais horroroso da face da Terra.
— A ilha...? — ele me incentivou a falar, visto que eu me
encontrava paralisada em busca de metáforas para aqueles azuis.
Fingi uma tosse para tentar soar menos tola da próxima vez que
falasse.
— Como eu dizia, Kerrera era de uma população ínfima. Lá não
seria considerado crime se estivéssemos com fome e pegássemos
algo da casa ao lado para comer.
Ele levou uma mão ao queixo e apoiou o cotovelo no braço
cruzado.
— Me deixe ver se eu entendi direito. Vocês entravam na casa
do vizinho e assaltavam a geladeira dele? — Não fez o menor
esforço para disfarçar a zombaria. — Me parece que essa ínfima
população, como a senhora mesmo descreveu, são pessoas
incríveis.
Suspirei, sendo indelicada.
— Você não compreenderia. Está claro que o senhor é como
toda essa gente que corre o tempo todo e não vive absolutamente
nada!
— Como toda essa gente?
A revirada de olhos foi involuntária.
— Essa gente de cidade grande que não se atreve colocar as
mãos em Terras, ou a caçar a própria comida...
Dessa vez ele riu. Fora algo quase inaudível, mas eu estava
certa de ser uma risada.
— Caçar a própria comida? Bem, isso explica a senhora estar
com um deslumbrante vestido de festa e pares de botas
completamente detestáveis nos pés.
O comentário me levou a olhar para minhas botas. O que havia
de errado com elas?
— Ainda bem que não é você quem está as usando, não? —
rebati, entrando em defesa das minhas botas de couro.
A carranca do policial voltou a fechar. Assim como o tempo.
Raios, ia chover.
Fechei os olhos e inspirei o ar úmido da tarde.
— Faça uma gentileza para nós dois e volte a andar antes que o
céu despenque! — ele falou, impaciente, ao constatar o mesmo que
eu.
— Tem medo de chuva, seu policial? — provoquei.
— Não. Mas digamos que eu prefira estar nu ao tomar um
banho! — devolveu em um timbre ácido e tornou a me empurrar. Eu
fiquei feito um morango: vermelha e coberta de pintinhas. Viver entre
homens indelicados devia ter me preparado para frases como
aquela, mas nenhum dissera algo daquele tipo enquanto tocava
minhas costas.
O turrão tinha senso de humor, a questão era que ele não sabia
propriamente usá-lo. Como seu último comentário, por exemplo, que
sujeito falaria algo tão impróprio sem demonstrar o mínimo de
divertimento?
Gael teria feito alguma gracinha ao pronunciar, uma erguida com
sua sobrancelha ruiva. Um sorrisinho devasso. Uma piscadela.
— Minha senhora, você desaprendeu a andar?
— O quê? — A pergunta saiu antes que eu pudesse perceber
que parara de andar novamente. A ventania que antecedia a chuva,
ficara mais intensa. Em breve as primeiras gostas cairiam do céu.
— Eu que lhe pergunto. Terei de buscar uma viatura para
apenas dois quarteirões?
Olhei para os dois lados. Estávamos em Dindow, eu me
lembrava daquele edifício escuro feito carvão. Não que houvesse
muitos prédios coloridos na Escócia, mas aquele em especial já me
levou a questionar o gosto de quem escolhera a cor. Devia ser uma
igreja, de acordo com a Cruz, mas a obscuridade era a de um
cemitério.
Em Kerrera não era preciso pintura, uma vez que a natureza
tinha sua beleza própria. Era uma pena que fora reduzida a ruínas.
— Dois quarteirões? Apenas dois quarteirões, tem certeza?
— Está me questionando se eu conheço o percurso o qual
atravesso todos os dias?
Eu estava? Não. Não era uma idiota. Eu só não queria ser
levada para a delegacia e ter de ficar trancada dentro de uma cela
até que o padeiro resolvesse fazer um acordo e retirasse as queixas
contra mim.
— Como devo chamá-lo, seu policial? — Resolvi perguntar.
— Por que lhe interessa?
Olhei para o céu por uns minutos.
— Ao que me parece, a Escócia terá uma chuva forte essa
tarde. O padeiro não conseguirá chegar à delegacia e isso me leva a
crer que passaremos muito tempo juntos. Já que ficarei trancada por
sabe-se lá quantas horas, seria do meu agrado saber o nome do
turrão que me fará companhia.
— Tur... — Ele brecou e respirou fundo. — Nicholas. Me chamo
Nicholas.
— Muito bem, Nick...
— Nicholas. — Me corrigiu.
Fingi não ouvir e movi os pés. Ele me seguiu.
— O que a leva pensar que teremos uma chuva tão intensa que
impedirá o padeiro de chegar à delegacia? — perguntou com
interesse.
— Olhe para o céu, Nick. Ele não parece zangado para você?
— Eu sou um policial e você uma ladra. Não deve me chamar
por apelidos. E não. O céu não me parece zangado.
Ele sequer olhou para cima.
— Bem, ele me parece muito zangado. E eu até diria que você é
o culpado. — Me coloquei na pontinha dos pés para cochichar em
seu ouvido. — Os deuses não gostam de injustiça.
Limitou-se a me olhar de esguelha.
— Está certa sobre sua idade? Eu me atreveria a dizer que você
ainda é uma criança.
Eu não gostei do que ele disse, só que eu o chamara de turrão
em voz alta. Estava apenas se vingando.
— Diga-me, minha senhora — me incentivou a atravessar com
um empurrão delicado nas costas —, nunca lhe ocorreu fazer um
cartão?
— Não estou habituada com cartões — o olhei diretamente —,
Nick. De onde venho não precisamos dessas coisas.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça em um ato nervoso.
— De onde vem... — repetiu para debochar. — Costuma vir à
cidade apenas para furtar pães?
— Temos de admitir, aqueles pães doces são realmente
saborosos, não? — Entrei na graça. Eu já estava completamente
ferrada. Já havia sido pega. Tudo o que me restava era zombar
daquilo para depois poder compartilhar com meus amigos ao
retornar para casa. Minha amiga Tess, que estava se casando
naquela tarde, ficaria totalmente desapontada se soubesse que eu
não infernizei o policial até fazê-lo me libertar por livre e espontânea
pressão.
— Eu estaria mentindo se dissesse que concordo, uma vez que
nunca coloquei tais pães em minha boca. Mas, a forma como a
senhora os engoliu apressadamente, me faz ter um breve
conhecimento do sabor. Se é que isso faz algum sentido.
— O que foi? — perguntei ao vê-lo erguer o rosto em direção ao
céu.
— Começou a chover — disse, sucinto. Como se isso explicasse
o fato dele ter ficado com uma expressão de medo nos olhos.
— Eu lhe disse que aconteceria.
Ele voltou a me encarar e apressou os passos, exigindo em um
puxar de braço que eu fizesse o mesmo.
Que bicho mordeu o homem? Que Nicholas estava longe de ser
gentil, ficara claro em nossa primeira troca de palavras. Mas me
arrastar como se estivesse puxando um cavalo pelas rédeas, aí era
demais.
— Eu até perguntaria se o senhor é de açúcar, caso não tivesse
me dito coisas tão amargas. Que inferno, vá devagar. As gotas mal
começaram a cair.
Eu não o conhecia. Não mesmo. Mas eu conhecia expressões e
aquela em seu rosto, com toda certeza do Mundo, era de um homem
com medo.
Mas, medo de que?
— Entre! — ordenou e simplesmente abriu a porta. Havíamos
chegado na bendita delegacia assim que a chuva começou a
despencar, e não foram gotas demoradas. Foram gotas após gotas,
do tipo que você se encharcaria dos pés à cabeça se pisasse na rua
por breves dois minutos.
— Coleman? — A voz masculina e solene chamou. — O que é
isso?
Como Nicholas prontamente respondeu, não houve suspeitas de
que esse fosse seu sobrenome.
— Isso é uma prisioneira.
— E por que ela está algemada? — O senhor tornou a
questionar.
— Da última vez que consultei, era isso que fazíamos ao
prender alguém. As regras mudaram, delegado? — O abusado
rebateu.
O delegado, como o próprio Nick dissera, franziu as
sobrancelhas grossas e grisalhas para ele.
— Você a trouxe andando e algemada?
— Foram poucos quarteirões, não fazia sentido vir de viatura e
tampouco eu confiaria em trazê-la sem algemas. Essa daqui já me
escapara uma vez! — Acusou.
— Em minha defesa, a primeira vez que corri, Nick sequer
tentou me prender. — Me intrometi na conversa.
Os olhos de Nicholas ficaram fervorosos. Eu não o chamara pelo
apelido para insultá-lo, apenas me acostumara a fazê-lo e sequer
reparei. Até vê-lo tão irritado.
— Nick é? — O delegado zombou e piorou minha situação três
vezes mais. — Leve sua amiga para a cela. Essa é que furtou pães
doces, né?
— Noto que fiquei conhecida. — Brinquei, na tentativa de fazer o
turrão ao meu lado sorrir e desistir de me xingar assim que
ficássemos a sós. Por que me ofenderia. Era uma das poucas coisas
que me aguardavam para aquela tarde.
— Peça para que alguém entre em contato com o padeiro e diga
que estamos com ela — pediu Nicholas sem se preocupar em rir do
meu comentário bobo.
O delegado apenas assentiu e abriu caminho para o policial me
levar até a cela.
— Peça para o padeiro trazer mais pãezinhos, por favor. Dessa
vez eu prometo que irei pagá-los.
Sem que eu esperasse, ele riu. Não. Ele gargalhou
estridentemente. Eu não planejava arrancar-lhe uma risada com
aquele comentário. Mas que raios. Eu tampouco planejara gostar
tanto dela.
Nicholas me empurrou para dentro da cela e me trancou. O
ambiente era escuro e desagradável, mas eu não contava com nada
diferente.
— Gostaria de comer algo — eu falei, agarrada às grades, antes
de perdê-lo de vista.
Ele se virou com uma expressão de intolerância.
— O que quer comer? E, por favor, lembre-se que você está em
uma delegacia, não em um resort.
— O que é um resort?
Ele ergueu uma das sobrancelhas.
— Está falando sério?
— Tha (sim).
— Você fala gaélico escocês. — Era uma constatação.
— O surpreendi?
Se aproximou.
— Um pouco.
— Esperava por uma mulher burra.
— Burra, não. Desinformada. Você não sabe o que é um resort,
mas sabe falar uma das línguas mais difíceis. É realmente
surpreendente.
Eu gostei de vê-lo admirado, mas não permitiria que soubesse
disso.
— Conseguiram falar com o padeiro? — Mudei de assunto.
— Sim. Ele está a caminho. Ansiosa para ir embora?
No lugar de responder sua simples pergunta, eu me vi dizendo
algo que não esperava. O comentário passou por minha cabeça
algumas vezes, mas nunca em sã consciência eu pensei em dizê-lo
em voz alta.
Então eu apenas disse. Assim, com uma naturalidade
desconhecida.
— Você tem olhos lindos, Nick.
Eu não diria que ele ficou envergonhado. Em contrapartida, com
toda certeza, Nicholas ficou sem reação.
— Me elogiar não fará com que vá embora mais depressa,
minha senhora. Pedirei para que lhe tragam algo para comer. Agora,
fique quieta.
— Não se atreva a me deixar nesse lugar sozinha! — Gritei.
— Pare de gritar — bradou. — Eu não estou aqui para fazer
companhia. Eu sou um policial e você uma prisioneira. Não sou seu
amigo, sugiro que não confunda as coisas.
E ao dizer isso, ele foi embora em passos firmes e sem olhar
para trás.

Algumas horas haviam se passado, umas duas ou três. Depois


de me levarem um sanduíche para comer, ninguém mais retornara à
minha cela. Me sentei no banco frio e senti os primeiros pingos
caírem na minha cabeça. Era goteira.
— Você estava certa. Ele não virá — contou. E eu demorei
alguns minutos para compreender que Nick se referia ao padeiro.
— Chuva intensa?
Ele assentiu e se escorou na parede de frente para mim.
— Pensei que já tivesse ido embora. — Puxei assunto para
obrigá-lo a ficar. Acostumada a estar sempre rodeada de amigos,
descobri que eu desaprendera a ficar sozinha.
— Lamento decepcioná-la. — Gozou e fechou a cara em
seguida. — Já pedi para consertarem essa droga de teto. Saia daí,
anda!
— Está tudo bem. Eu não ligo — disse, mas ele pareceu não me
ouvir.
Enfiou a bendita chave na fechadura e me pegou pelo braço ao
invadir a cela.
— Para aonde está me levando?
— Para outra cela.
— Por que não me deixam ir embora? Já que o padeiro não virá,
eu posso prometer voltar amanhã. — Tentei persuadir.
— Ah, claro. E podemos facilmente confiar em você, não é
mesmo? — Zombou.
— Sim. Me deixar ir embora agora seria benéfico para nós dois.
Ele me virou abruptamente e me segurou pelos dois braços com
força.
— Ficou claro para mim há algumas horas que você vive em um
Universo bem diferente do meu, mas aqui, nessa cidade, nós não
confiamos em pessoas como você.
— Pessoas como eu?
— Que roubam — disse, áspero como areia. — Meu Deus, você
é mesmo tão tola?
Os olhos não foram a única coisa que me despertaram
interesse, naquele instante, com seu rosto minimamente próximo do
meu, seus lábios também me provocaram curiosidade. Não era a
primeira vez que eu ansiara por um beijo, já me imaginei sendo
beijada por um homem, já supusera como seria tal sensação. Eu
sabia que era molhado, tão molhado quanto morder um melão com
bastante caldo e doce como frutas vermelhas quando estão na
época. Mas e aquela barba...aquilo devia arranhar, não? E a língua,
que infernos eu devia fazer com ela?
— Temo que sim — respondi, por fim.
Tudo que ele fez, foi olhar para o outro lado.
— O teto aqui parece não estar com goteiras. Pode entrar.
Eu não conseguiria dizer o quanto eu queria continuar olhando
para aquele rosto que me deixava impotente, mas para poupar meu
orgulho, eu sai andando para minha nova cela.
— Já vai embora? — perguntei, enquanto ele me trancava.
— Assim que a chuva cessar. — Foi breve.
— Você não gosta muito de chuva — afirmei, como se eu o
conhecesse o suficiente para fazer qualquer afirmação. Mas, raios,
eu me lembrava claramente de como seus olhos ficaram enevoados
assim que a primeira gota caiu do céu.
— E há quem goste? — retrucou ao finalizar o significativo
trabalho em rodar uma chave na fechadura.
— Eu gosto.
Ele segurou com as duas mãos as grades e aproximou o rosto
apenas um pouco.
— Você é um caso atípico, minha senhora. Não podemos usá-la
como referência para muitas coisas.
Eu também segurei com os dez dedos nas grades. O espaço
entre nossas mãos era insignificante. Estavam tão próximas, que não
seria tolice dizer que eu quase podia sentir o calor emanando das
suas.
— Maisie. Eu me chamo Maisie.
— Eu sei — alertou. — Acha que eu saberia onde você mora e
não saberia seu nome?
Cerrei o cenho com força.
— Então porque continua limitando-se em me chamar de “minha
senhora” ou de “ladra”?
— Tem a ver com a forma como seu rosto se transforma quando
ouve algo que não lhe agrada.
Relaxei os membros e aproximei meus dedos ainda mais. O que
eu estava pensando? Por que o desejo incontrolável em o tocar?
— Como pode saber que meu rosto se transforma se quase não
se atreve a me olhar?
A resposta ficou clara quando ele sorriu como se quisesse
acabar comigo. Nicholas Coleman era adorável e o meu coração
feito de papel rasgava-se em pedaços a cada vez que ele me fitava.
— Eu a olhei mais vezes que qualquer outro policial se atreveria
olhar. A olhei tanto que, em determinado momento, pude contar suas
sardas e apreciar o frescor e o aspecto ensolarado dos seus olhos
verde-limão. — Ele simplesmente soou como se estivesse recitando
um poema e não como se fosse o primeiro homem na minha vida a
descrever a cor dos meus olhos.
Tudo o que eu queria era beijá-lo. Tudo o que queria era ser
beijada. E tudo que fiz foi ficar ali, parada, permitindo que Nicholas
me visse ser despedaçada.
Então, trovejou. O som foi como se o céu estivesse caindo e
Nick agiu como se ele fosse o único que estivesse embaixo. Ele era
um homem grande demais para temer a chuva, mas quando ele se
retraía ao som, não deixava espaço para outra explicação.
— Nick? — O chamei, ao perceber que ele vagava em outra
dimensão.
— Já pedi para não me chamar assim — resmungou,
carrancudo.
— Por que tem medo da chuva? — Resolvi ignorar sua bronca e
partir para o assunto principal.
Ele se afastou das grades como se tivesse levado um choque.
— Nunca lhe disse que tenho medo de chuva.
— Bem, não é preciso...
— Não gostar, não é temer. — Me cortou com grosseria e
mudou de assunto rapidamente. — Por que não tenta descansar,
hã?
— Não estou cansada.
— Receio que não haja muitas opções aqui — atentou-me, com
um certo gracejo na voz.
Ergui uma sobrancelha, pois o que eu disse a seguir, exigiu-me
muita coragem.
— O senhor poderia me fazer companhia. Estou certa de que
não há muitas opções para você essa noite também, seu policial.
Limitou-se a trincar o maxilar e me olhar firme.
— Conte-me sobre você, Nicholas Coleman — acrescentei, na
tentativa de motivá-lo a falar e esquecer o que o perturbava tanto.
— Não há nada que seja do seu interesse — objetou. Ele não
permitiria que eu me aprofundasse no assunto, ficou claro. Talvez
fosse porque eu estava atrás das grades e ele era o responsável por
isso. Ou talvez Nicholas fosse apenas um homem que não gostava
de falar sobre si. Um homem cuja vida não era aberta para visitantes.
Mas, e se eu não quisesse ser apenas uma visita? Se eu quisesse
ouvi-lo falar um pouco mais sobre meus olhos verde-limão, como eu
conseguiria isso? De que forma eu poderia provar para Nicholas
Coleman que a ladra que ele prendera desejava ardentemente
prolongar sua estadia ali? Não na cela, por Odin, a estadia em sua
vida.
— Tenha uma boa noite, minha senhora.
E se foi.
Era como se estivesse ali, bem na minha frente. A cada
trovejada, a cena se desenrolava de novo e de novo. O cheiro úmido
da chuva, o sonido das gotas chocando-se contra a janela de vidro.
A cada temporal eu revivia aquela sensação quase claustrofóbica,
mas naquela noite em especial, eu me senti com dez anos outra vez.
Eu não estava mais na delegacia, sentado na cadeira giratória. Eu
estava em casa, a terra molhada sob meus pés, o intenso odor de
grama pisoteada e as folhas das árvores roçando em minha testa
conforte eu me inclinava para espioná-lo. Eu o vi montar na garota
como se monta em um cavalo. Eu o vi agarrar seu pescoço fino para
conter os gritos, enquanto seus movimentos de vai e vem se
tornavam mais acelerados. Aquela não era minha mãe, mas aquele
sem dúvida alguma, era o meu padrasto. E aquela garota, Deus,
aquela garota era muito mais nova que ele.
Eu me esforcei para não ser pego, porque aquele era o tipo de
coisa que uma criança não deveria ver, mamãe sempre dizia.
Contudo, quando o trovão eclodiu no céu pela quarta vez após
muitos minutos fomentando apenas gotas, eu saltei assustado por
cima dos gravetos e fui ouvido. Entre gritos que claramente não eram
de felicidade, eu fui ouvido. O cessar de movimentos por parte do
meu padrasto foi acompanhado por um: “— Vista-se, anda”, para a
garota que só chorava. Fugir era minha única alternativa, mas,
quando se é criado em meio à bichos e em uma terra tão pequena,
eu sabia que correr não adiantaria contra um homem que conhecia
sua propriedade como se conhece os riscos da palma das mãos.
Ele saltou sobre minhas costas e enterrou minha cara na lama
com tanta força, que eu tive de comê-la. O gosto era ruim, não o
gosto da terra molhada em minha boca, era quase impossível uma
criança de dez anos que nunca sentira tal sabor; o gosto azedo da
morte era o que eu me referia. Porque eu ia morrer, ao menos era o
que ele se prontificava em repetir mais alto que os trovões em meus
ouvidos.
Foram poucas vezes em que falei. Aos dez anos e tudo o que
fazia, era observar. Não que eu não gostasse de conversar, mas
quando descobri que os animais da fazenda com os quais eu
convivia não eram inteligentes o bastante para me responder, eu
passei a me calar.
— O que você viu, garoto? — Ele questionou, comprimindo os
cinco dedos em meu pescoço. — O que você pensa que viu?
Eu gani, mal podendo respirar e com barro até os olhos.
— Ouça o que te direi, mudinho, se resolver abrir o bico e contar
para alguém o que você pensa ter visto aqui, eu cortarei sua língua e
então você nunca falará, nem que queira. Está me ouvindo?
Assenti rapidamente, porque por mais que eu não tenha
engolido a terra, a sensação que eu tinha na minha garganta não era
nada diferente. A voz não sairia, nem mesmo se ele me obrigasse.
Ele esperou por quatro dias, olhando-me de esguelha durante
cada refeição. Eu nunca pensei em falar sobre o que vi e, na
verdade, eu nem mesmo sabia o que fora aquilo vi até criar uma
certa idade. Mas, quando a garota foi encontrada no quinto dia
boiando sem vida no rio próximo à minha casa e os policiais
apareceram para nos fazer perguntas, meu padrasto achou que eu
contaria sobre ele ter montado nela enquanto ela gritava de dor
(aqueles gritos só podiam ser de dor); foi por isso que ele fez o que
fez comigo. Ele precisou garantir que o mudinho, como ele mesmo
chamava, não resolveria falar, mesmo após um ano inteiro sem
produzir o mais baixo ruído.

O céu sem nuvens cinzas na manhã seguinte não me


enganariam. Eu sabia que a chuva viria. Os poucos anos morando
na Escócia novamente me foram o suficiente para saber que um céu
limpo, não era sinônimo de tempo bom. Às vezes, uma manhã
ensolarada se transformava em uma tarde chuvosa sem mais e nem
menos e eu tinha de encontrar uma cobertura até tudo se acalmar.
Eu não queria admitir que o clima instável foi o que me levou até o
país. Mas eu já não conseguia me enganar. Eu abandonara o calor
intensivo da Austrália porque não podia continuar fugindo da chuva
como fizera durante anos. Eu retornara ao meu país de origem para
enfrentar o meu passado e os meus medos. Eu enfrentaria aquilo.
Aos 34 anos era inaceitável continuar agindo feito um pote de açúcar
a cada vez que as nuvens se fechavam.
— Coleman? — Minha colega de trabalho bateu à porta. — A
filha do padeiro acabou de telefonar e informou que seu pai não
poderá vir. Me parece que ele está com gripe.
— Que porcaria. Não posso continuar mantendo uma ladra de
pãezinhos aqui. A filha do padeiro não pode vir e resolver isso em
nome dele?
— Ela é uma criança, Coleman. Deve ter o que, quinze anos? —
Stephanie riu.
Bufei impaciente.
— Aquele diabo de homem me atormentou por dias e agora se
recusa vir retirar a queixa por conta de uma gripe!?
Stephie deu de ombros.
— Quer que eu resolva?
— Não. Eu já sei o que farei. Não se preocupe — garanti. — Se
ele não quer vir aqui, pois bem, então irei até lá.
— Com a presa? — perguntou, espantada.
— Sim. Com a presa. Pelo amor de Deus, ela só pegou pães e
tanto você quanto eu concordamos que é simplesmente ridículo um
estabelecimento não aceitar dinheiro.
— Sim, mas...
— Ela está ocupando a mesma cela que já foi ocupada por
assassinos — a interrompi.
Stephie cruzou os braços e fechou as sobrancelhas.
— Vá logo resolver isso. Eu dou cobertura. — Acenou com a
cabeça em direção à porta.
Passei por ela depois de lhe dar um beijo amigável na testa.
Eu soube que a ladra estava acordada assim que botei os pés
no corredor. Ela cantarolava baixinho e, por Deus, era péssima nisso.
Sua voz não era melódica, era sequiosa, grave, não tinha as
qualidades de uma voz musical e mesmo assim, eu me peguei rindo
da sua diligência fracassada.
Ela se calou assim que me ouviu chegar.
— Nick — murmurou, como que para si mesma.
Nicholas, pensei em repreendê-la, mas eu já fizera umas dez
vezes, em vão. A insuportável parecia gostar de me desafiar.
— Estou livre? — ela perguntou, ao me ver destrancar sua cela.
— Não — disse, apenas. O olhar interrogativo verde-limão me
obrigou a acrescentar: — O padeiro está de cama e não poderá
comparecer aqui, então nós iremos até lá.
— Nós?
Meu suspiro saiu feito uma risada.
— Por que a surpresa? — indaguei, me obrigando a soar sério.
Era quase impossível não sorrir perto daquele projeto de ser
humano. Ela tinha um jeito inocente que me deixava curioso. Não era
forçado. Não era como se ela tentasse ser tola o tempo todo, ela,
apenas, era, na angustiante tentativa de não ser.
— Não estou surpresa. Estou decepcionada. Pensei que eu já
iria embora.
Peguei as algemas.
— Vamos torcer para que isso aconteça logo. Eu preciso
desocupar a cela — compartilhei. — Estique os braços.
Ela transferiu o olhar para as algemas que eu segurava.
— Por que considera que eu possa feri-lo?
Fechei o cenho, analisando a pergunta.
— Por que você pode.
— Não imagino como — rebateu.
— Você ficaria surpresa se soubesse o que algumas presas já
me fizeram passar.
— Como o que?
— Acha que eu seria estúpido em suscitar ideias na sua mente?
Ela ponderou sobre o assunto. E quando compreendeu, ficou
visível em seus olhos ainda mais transparentes naquela manhã.
— Não preciso de algemas. Não cogito machucá-lo.
Passei uma mão pela barba. Fui convencido por sua
ingenuidade por menos de um minuto. Maisie não tinha os aspectos
de uma mulher perigosa, mas, era tão bela que por vezes eu sentia
que na verdade o preso era eu.
— Estique os braços — ordenei, novamente.
— Confie em mim uma única vez. Por favor. — O timbre da sua
voz se transformou. O que antes era possível ser comparado à
grunhidos de uma onça, agora tinha a mansidão das ondas de um
mar calmo.
Os cabelos de verão-quente que noite passada estavam libertos
ao vento, agora prendiam-se em uma trança longa e bem feita. Eu
me esforcei para não descer os olhos até aqueles lábios, mas, sem
toda a cabeleira desabrochando feito um véu em seu rosto, foi difícil
ignorá-los.
Molhados.
Pequenos.
Convidativos.
Eu não disse mais nada com medo de gaguejar ou pior ainda,
com medo de confessar que estive a sonhar com suas sardas, com o
contorno genuíno que elas faziam em seu nariz.
— Nick? Podemos ir agora? — Sua voz de onda mansa rompeu
o silêncio.
— Podemos, Maisie. Podemos!
Eu não sabia o que acontecera para o meu coração bater tão
forte e minhas mãos suarem tanto. A culpa era de Nick. A culpa só
podia ser de Nick. Lembrava-me do exato momento em que comecei
a me sentir assim, foi quando o flagrei olhando para a minha boca
como se quisesse beijá-la. Não apenas isso, seus olhos me
analisaram com um azul límpido e com a força de cinco sóis.
Ninguém nunca me olhara com tamanha intensidade e ardência. Foi
como se me desejasse. Como se realmente me desejasse.
No entanto, tudo voltara ao normal. O encanto se acabara e
agora Nick parecia sequer notar o meu abrir e fechar de mãos ao seu
lado.
— Obrigada por confiar em mim — falei.
— Eu não confio em você. — O turrão nem se virou para dar a
resposta.
— O senhor não me trouxe algemada, acredito que confia em
mim — devolvi e virei o pescoço para fitá-lo.
— Se trata de ética, não de confiança.
— Você não pareceu se preocupar muito com a ética ontem
quando me trouxe algemada pelas ruas — rebati, na tentativa de
arrancar outra resposta dele, pois eu não engolira a primeira.
Ele cerrou o cenho e brecou os passos para me encarar.
— Não imagino aonde queira chegar com esse assunto — disse,
sem desviar o olhar de mim.
— Bem, talvez você concorde que meu crime não fora algo tão
grave a ponto de o senhor ter de me tratar como qualquer outro
preso.
— Mostre-me a relevância dessa conversa. — O tom foi
exigente.
— Uma vez que o senhor admite que não sou perigosa, não há
razão para continuar sendo tão grosseiro comigo.
— Grosseiro? Quer que eu a convide para um chá?
Senti minhas bochechas queimarem e relação alguma tinha com
o sol.
O “quero” estava na pontinha da minha língua, quando percebi
que Nick, na verdade, estava zombando de mim. Talvez eu
interpretara errado seus sinais pela manhã. Afinal, que conhecimento
eu tinha quando se tratava de romance? Minhas experiências
baseavam-se em livros e convenhamos que os homens da literatura
eram muito mais amáveis que aquele.
Tornamos a caminhar. Eu ficara envergonhada demais para dar
uma nova iniciativa à conversa. Se houvesse um buraco grande o
bastante para enfiar minha cabeça ruiva, eu enfiaria. Em que raios
eu estava pensando ao dizer o que disse? O pior nem fora o que
saiu por minha boca, fora o que eu havia pensado. Por muito pouco
eu não aceitara o falso convite para o chá e Nicholas Coleman sabia
disso.
Nicholas Coleman parecia ser o tipo de homem que sempre
sabia de tudo.
— Chegamos. Tente controlar o impulso de furtar pães dessa
vez — gracejou e empurrou a porta de vidro da padaria.
Ele esperou até que eu passasse e entrou.
— Aguarde por mim aqui — pediu e apontou para o banco
estofado que ficava de frente para a vitrine. A maravilhosa vitrine de
doces. E sumiu de vista.
Nick retornou poucos minutos depois com a típica expressão
azeda no rosto. O sujeito parecia sempre pronto para tudo, exceto,
sorrir.
— O que houve? — perguntei, ao descobrir que ele não diria
nada por livre e espontânea vontade.
— Você tem um advogado? — respondeu minha pergunta com
outra.
— O quê?
— Um advogado. Você tem um? — repetiu, mas eu entendera o
que disse na primeira vez, só não entendera o porquê disse.
Balancei a cabeça em negativa.
— Bem, você terá de arrumar um, caso não queira pagar 40
libras por cinco pãezinhos.
— 40? Isso é muito dinheiro.
— A senhora teria pagado menos da metade desse valor, caso
não tivesse roubado — resmungou e eu fiquei chocada ao descobrir
como ele ficava ainda mais bonito quando bravo. Como era possível
uma única pessoa ter sido agraciada com tamanha beleza?
— E vai me dizer que esse padeiro não está me roubando
também? — rebati, me colocando de pé. — Não pagarei por isso.
Nick colocou as mãos nos quadris e projetou o rosto para frente.
— Se não pagar e não solicitar um advogado, eu terei de
prendê-la — alertou-me.
— Que prenda. Não será a primeira vez — disse, atrevida.
Ele soltou um longo suspiro.
— Cogita ir presa por cinco pães, Maisie? — questionou,
indignado, transformando meu nome em algo poderoso.
— Não. Cogito não ser roubada!
O modo como ele levou as duas mãos no rosto e esfregou os
olhos me fiz rir por dentro.
— Então contrate um advogado, pelo amor de Deus — disse,
em um tom de desgaste.
— Por cinco pães?
— Você não está se ajudando, percebe? — replicou e procurou
se acalmar. — O padeiro estava muito debilitado, quase não pôde
pronunciar as palavras. Esperarei até que ele se recupere para que
eu possa tentar um novo acordo.
O sorriso se estampou em meu rosto.
— Viu? Para que preciso de um advogado se eu tenho você,
Nick.
— Como pode achar graça disso tudo?
E eu não tinha uma resposta adequada para aquela pergunta.
Eu só não tinha medo do que estava me acontecendo porque, de
alguma forma, eu confiava no homem que eu acabara de conhecer.
Sempre me disseram que eu era ingênua demais e eu não
costumava achar algo preocupante até aquele momento...em que
minha liberdade corria risco.
— Porque eu confio em você — falei, por fim, e descobri um tom
mais escuro em seus olhos. Comentários daquele tipo costumavam
arrancar reações reversas àquela; em Nicholas, eu acabara por
concluir, elogios ou coisas do tipo nunca surtiriam um efeito positivo.
— Como pode confiar em alguém que a arrastou até uma
delegacia algemada? — Havia uma grande camada de espanto em
suas expressões facilmente alteradas.
Engoli em seco.
— É como o senhor disse — recordei ao engolir em seco pela
segunda vez —, tenho indícios de ser uma grande tola.
A conversa se deu por encerrada com Nicholas permitindo que
eu fosse a última a dar a palavra. Assim que ele chegou à conclusão
de que era inútil permanecermos na padaria, decidiu que era hora de
voltarmos.
O céu naquela manhã estava tão belo, que eu poderia
transformá-lo em um quadro. Volteei o rosto em direção ao sol e
permiti que a brisa me tocasse da forma que desejasse. Uma brisa
cálida, assim como eu supunha ser o toque de Nicholas Coleman.
Um homem com tamanho vigor só podia ser quente.
Baixei a cabeça e foi quando percebi que estávamos
caminhando com uma tranquilidade desproporcional para o rumo que
aquele trajeto nos levaria. Eu podia ser uma baita idiota, mas custava
acreditar que Nick agia do mesmo modo com todas as ladras.
O olhei disfarçadamente. Ele demonstrava estar tão em paz ao
meu lado, por mais que estivesse dentro daquela farda preta.
Por Odin, por que estou pensando tais coisas?
Sem coragem de mergulhar em minhas profundezas para
encontrar uma resposta para aquela pergunta, transferi o olhar e os
pensamentos para o horizonte marítimo. Foi um grande erro achar
que o oceano me faria esquecê-lo, quando o azul daquelas águas
era tão intenso quanto seus olhos. Era como olhar para eles. Como...
O quê...Que raios é aquilo?
Pressionei os olhos e os protegi do sol com a mão para
conseguir enxergar com mais afinco. Aquilo era o que eu estava
pensando?
O jeito despreocupado com que ela andava, um passo após o
outro, me fez agir de modo nada idôneo. No lugar de segurá-la pelo
braço e exigir que fosse mais depressa, eu permiti que aquilo se
transformasse em um passeio.
A ruiva virou o rosto para o sol e deixou que ele beijasse suas
sardas. Eu nunca vi ninguém combinar tanto com o amanhecer
quanto aquela garota. Ela parecia um fragmento do sol. Um pedaço
de outro Planeta. Um arco-íris pintado apenas de vermelho ou até
laranja. As oito horas da manhã era complicado distinguir aquela cor,
quando todas as tonalidades do Mundo nem mesmo chegavam perto
da dela.
Ela parou. Apenas parou. Os olhos intrincados ao mar pareciam
um lugar em que os caminhos se cruzavam de forma confusa,
tornando fácil alguém perder-se.
De forma inesperada e desajeitada, Maisie correu para a costa
da praia.
Ela estava fugindo? Inferno, ela só podia estar fugindo. Corri a
seu enlace quando a vi arrancar as botas terríveis.
O que...O que essa maluca está planejando? Nadar em fuga?
Gritei por seu nome mais vezes que conseguia contar, todas
conscientemente ignoradas.
Quando ela saltou naquele oceano cristalino em braçadas de
arder meu coração por serem mais perfeitas que eu seria capaz de
admitir, eu compreendi o que estava acontecendo. A ladra não
estava fugindo, ela corria para salvar a criança que se afogava. O
garotinho provavelmente caíra do veleiro e a correnteza o
distanciara.
Acionei o socorro enquanto aguardava Maisie alcançar a criança
que se afogava. Por mais que eu fizera tudo que estava ao meu
alcance, não me sentia confortável em apenas observar a ruiva se
arriscar. De acordo com a naturalidade em que nadava, ficou
evidente que era muito boa, mas, ainda assim...
Arranquei meu par de botas e cada possível peça de roupa.
A água fria pelos joelhos, em poucos instantes subiram para o
pescoço. Alguns passos depois e eu já não sentia a areia áspera em
meus pés.
Mergulhei contra a correnteza com menos destreza que a ladra.
Não foi fácil alcançá-la, mas mais difícil estava sendo um de nós
chegar no garoto.
— Nick — ela me gritou. — Segure isto para mim. — E me atirou
o seu vestido.
O agarrei, com a consciência beliscando minha masculinidade
para ignorar o fato de ela ter ficado nua.
O garoto. Foque no garoto. E assim o fiz. Graças a Deus, o fiz.
Algumas braçadas e batidas de pés depois, Maisie finalmente
apanhara o menino.
— Consegue levá-lo? — ela perguntou ao se aproximar.
— É claro. — Tomei a criança em meus braços e lhe devolvi o
vestido.
O socorro chegou cerca de três minutos depois e ajudou Maisie
e eu no meio do trajeto. O garoto apesar de ter engolido bastante
água, não sofrera nenhum dano grave.
— Você é doida? — O questionamento saiu enquanto eu a
observava calçar as botas novamente.
Ela arqueou as sobrancelhas, então tive de me explicar:
— Você podia ter morrido.
— O menino podia ter morrido. — Me corrigiu.
Soltei uma palavra indecente que se iniciava com P, depois outra
com C. Até conseguir formular uma frase sem praguejar.
A agarrei pelo cotovelo e encarei seus olhos embalados de água
salgada.
— Não faça mais isso.
— Está preocupado comigo? — indagou. Não era uma pergunta
difícil, bastava eu responder sim ou não. Só que o “sim” seria
comprometedor demais, e o “não” carregava uma desumanidade que
não era verdadeira.
Limitei-me em soltar o ar pelo nariz com impaciência.
— Não saia correndo outra vez sem me consultar — falei, então.
Ela puxou seu braço abruptamente.
— Não espere que eu vá pedir permissão a você ou a qualquer
outro para salvar uma vida.
— Maisie... — Mordi minha língua, mas o desejo era o de
morder a sua. — Você está sob meus cuidados. Se algo acontecer a
você, eu terei de me responsabilizar. Comporte-se ou eu serei
obrigado a algemá-la. Fui claro?
Ela desviou o olhar para o leste.
— Fui claro, Maisie!? — pressionei e procurei por seus olhos.
Eles eram como um espelho que refletia sua alma. Puros, pacíficos.
E verdes. Deus, tão verdes. Mas, assim que ela os retornou para
mim, não havia nada de ingênuo neles. Estavam tão arteiros como o
dia em que a vi com a boca cheia de pão e açúcar.
— O que acha de me pagar um chá agora, Nick?
Me retraí no mesmo segundo.
— O quê?
— Estou com fome, e, bem... nós salvamos uma vida. Acho que
devíamos comemorar, não?
Claro que sim.
— Não. Claro que não.
— Eu sei que você quer dizer “sim”.
Como ousa?
— Eu acho que sei muito bem o que quero dizer — contrariei.
A expressão de decepcionada não devia ser motivo para me
fazer mudar de ideia.
Que praga...
— Quinze minutos. Apenas quinze minutos ou nada feito.
— Quinze minutos e alguns pães doces — disse, divertida.
— Você ainda me fará ser suspenso. — Era um comentário que
eu não havia planejado dizer em voz alta, mas não era a primeira vez
que ele se passava por minha cabeça. Maisie não era como as
outras ladras, desde o primeiro momento em que bati os olhos nela,
eu soube que teria um grande desafio pela frente.
— Por que?
Ela era mesmo tão ingênua ou fingia ser?
— Já viu algum policial pagando chá para uma detenta?
— Então deixe que eu pague. — Ofertou e me fez gargalhar alto
o bastante para sobrepor qualquer outro som ambiente. — O que
foi? Estou certa de que posso lhe pagar um chá.
— Lembra-se do porquê foi algemada?
À essa altura já estávamos na metade do caminho da padaria.
— Porque não quiseram aceitar meu dinheiro.
— E...? — A incentivei continuar.
Ela franziu o cenho.
— ...e eu sai correndo depois de ter comido todos os pães. Eu
sou uma injustiçada...
— Você é uma peste, Maisie. Uma peste das grandes. — A
cortei, incontrolavelmente.
A ruiva... Não... “Ruiva” era uma denominação simples demais
para ela. Ela era uma deusa que deixava um rastro multicolorido ao
atravessar os céus. Quê? Ah, pelo amor de Cristo, quando infernos
virei um poeta?
Seu nome é Maisie. É apenas dessa forma que devo chamá-la.
— Por que as pessoas estão nos olhando? — perguntou em um
cochicho.
Olhei à nossa volta, enquanto puxava uma cadeira para me
sentar. Eu comprava chá toda manhã naquela padaria, mas nunca
acompanhado de uma mulher. As pessoas falariam no dia seguinte.
Em uma cidade tão pequena, as pessoas sempre falavam.
— Provavelmente porque estamos ensopados.
— Talvez devêssemos dizer o que aconteceu — cochichou pela
segunda vez, ainda de pé.
— Apenas sente-se e vamos logo acabar com isso, preciso
trabalhar — retruquei, inquieto e apontei-lhe sua cadeira. Ela se
sentou.
— O que é aquilo? — perguntou, me fazendo virar o pescoço
para olhar.
— Café com whisky e chantilly, provavelmente — respondi, sem
dar muita atenção para sua curiosidade, então vi que ela parecia
realmente interessada na bebida do rapaz, como se fosse algo
desconhecido para ela. — Gostaria de provar?
Seus olhos ficaram enormes, como os de uma criança
entusiasmada.
— E também quero provar aquilo. — Apontou para o Muffin que
a mulher levava à boca e prosseguiu: — Aquilo e aquilo vermelho.
Aquilo ali também...
Ergui as duas mãos em um gesto de “pare”.
— Tem certeza de que caberá tudo isso em você? — questionei,
preocupado. Me parecia tão pequena e delicada, mas era um
dragãozinho faminto.
— Acho que sim, se eu me esforçar um pouco.
— Você não precisa comer tudo de uma vez, sabe? O Muffin, a
torta de blueberry e todo o resto, não fugirá da padaria. Você poderá
retornar para provar tudo que quiser uma outra vez — a alertei.
— Não pretendo voltar.
Apoiei os cotovelos na mesa.
— E por que não?
Ela se encolheu na cadeira.
— Não gosto da cidade.
— Ela já lhe mordeu alguma vez? — Não pude me controlar.
Abriu a boca, mas não disse nada de imediato. Demandou
alguns poucos minutos até que conseguisse dizer algo.
— A chuva lhe mordeu alguma vez ou você a teme por temer?
Senti meus olhos tremerem.
— Isso não é da sua conta — repliquei, na tentativa de ser
menos grosseiro possível.
— Talvez não seja, mas não muda o fato de me deixar curiosa.
— Um dragãozinho faminto e intrometido.
— Como?
— Os seus quinze minutos estão acabando. Peça de uma vez o
que quer.
— Qualquer coisa?
Ergui os olhos para ela e consentir foi meu erro.
— Quero uma resposta — ela disse e eu sabia que se referia
sobre meu segredo nunca revelado, sobre a infância de uma criança
traumatizada. Sobre o passado que me fazia sangrar a cada vez que
era lembrado.
Bati o punho na mesa com força.
— Ouça, garota. Não sei o que você pensa estar acontecendo
aqui, mas isso não é um encontro e tampouco sou seu amigo. Eu só
a trouxe aqui porque não quero que passe fome, entende isso?
Quanto do que eu disse era mentira? Não. Quanto do que eu
disse eu queria que fosse mentira?
— Agora me diga o que quer comer ou levante-se e vamos
embora — acrescentei, um pouco mais calmo. Eu odiava perder a
cabeça e odiei mais ainda ter sido o motivo de emudecê-la. Eu mais
que ninguém sabia o que era ter medo de falar, ter medo de que
suas palavras pudessem lhe causar um novo machucado. Eu não ia
machucar Maisie, em nome de Deus, claro que não. Só que ela não
sabia disso.
— Não queria assustá-la, perdoe-me — disse sincero e
massageei a têmpora direita.
— Homens descontrolados não me assustam, apenas me fazem
questionar a sanidade deles — respondeu, afiada.
— Eu não sou... — Me calei. Dizer que eu não era um homem
descontrolado quase me descontrolou pela segunda vez.
O problema, descobri então, estava na forma como aquela ladra
de apenas 23 anos mexia comigo. Duvidava que estivesse me
apaixonando, era cedo demais para dar um nome para o que eu
estava sentindo e definir cada batida forte que meu coração dava
quando Maisie estava por perto. Mas, se eu não desse um fim àquilo,
se eu não mandasse a garota ruiva de volta para suas terras, eu teria
todas as definições possíveis para o que eu sentia e seria inútil fingir
que elas não existiam.
Dei a ela tudo o que pediu, ainda que duvidasse que caberia em
seu estômago. A observei comer como se não houvesse amanhã.
Talvez para Maisie, que comia desesperadamente, realmente não
houvesse.
— Você não tocou no seu prato — ela reparou, sem erguer os
olhos para mim.
— Foi mais interessante vê-la se esforçar arduamente para
limpar o seu.
— Eu não ousaria desperdiçar coisas tão boas quanto essas. Se
eu soubesse que os pãezinhos dessa padaria eram tão melhores
que os da que roubei...
— Suplico para que não dê continuidade à frase — a cortei.
E com o canto da boca sujo de chocolate e os olhos mais
iluminados que tudo ao nosso redor, ela me perguntou:
— Por vezes me esqueço que o senhor é um turrão de farda.
Precisei recolher minhas mãos da mesa para controlar o impulso
de limpar o chocolate dos seus lábios com meus dedos. E eu queria
tocá-los. Deus, como eu queria.
— Acho que acabei — ela falou, avaliando a situação da mesa.
Eu só conseguia olhar para seus lábios.
— Perdoe-me o atrevimento, mas, permita-me? — estiquei o
braço para tocar seu rosto.
E foi a minha desgraça.
Permito. Permito o que quiser, Nick. Pensei.
Ele esticou o braço e passou o dedo no cantinho da minha boca
com extrema delicadeza. Eu não devia estar me perguntando o
porquê de ele ter ignorado o guardanapo a seu alcance na mesa,
talvez ele nem mesmo o tivesse visto. Mas eu era fantasiosa. Tão
fantasiosa que achei que ele prolongou aquele toque mais tempo
que era preciso. Fantasiosa a ponto de achar que não havia sujeira
por onde ele percorreu o dedo.
Fosse o que fosse, eu apreciei e hiperventilei.
— Tinha chocolate no canto da sua boca — ele explicou, ao
afastar a mão. — Precisamos ir. Levante-se. — Acelerou e empurrou
sua cadeira para se levantar no exato momento em que o céu optou
por ficar cinzento como se a resplandescência do dia não tivesse
surgido naquela manhã.
Nick ficou estático no meio da padaria. Mãos e pernas sem
reação.
— Nick? — O chamei para lembrá-lo da minha existência e
também da sua.
A chuva começou a cair sem fazer muito barulho.
— Podemos esperar a chuva passar, se você quiser. — Dei a
opção. Eu queria poder ter dito algo melhor, mas sem saber o que o
amedrontava tanto, era impossível consolar.
Ele me olhou com uma expressão quase de dor. E irritado.
— É só água — ele disse.
— Sim. Só água — concordei.
Nenhum dos dois se moveu.
— Mas, raios, eu odiaria me molhar agora que comecei a ficar
seca. — Resolvi acrescentar para fazê-lo se sentir melhor. Eu sabia
como um homem adorava preservar sua masculinidade.
Ele esticou os lábios quase em um sorriso. Apenas quase.
— Maisie, você me disse que gostava de chuva.
— As pessoas mudam, Nick. — Dei de ombros.
— Em menos de um dia?
— Às vezes em menos de um minuto.
Ele ficou quieto outra vez, tal como se estivesse em uma batalha
contra seus próprios demônios. As pessoas deixavam a padaria,
uma atrás da outra, enquanto Nick e eu apenas aguardávamos algo.
Eu não tinha menor ideia de quê.
— Isso não terá fim. — Ele quebrou o silêncio em um estado
catatônico.
— O que não terá fim? — perguntei com cautela.
— O que eu sinto a cada vez que a água cai do céu. —
Novamente a expressão foi de dor. Aquilo que ele sentia, ainda que
eu não compreendesse, era perceptível que o matava. Havia tanto
terror em seu rosto, que chegava me dar pena...
— Quer enfrentar isso?
Ele relançou os olhos para mim.
— Maisie... — Meu nome soou tenebroso.
Eu me levantei com cautela.
— Maisie... — Soou como da primeira vez. — Por favor, não
faça isso comigo.
— Ainda que me odeie de súbito, um dia me agradecerá —
garanti, corajosamente.
Recuei ligeiramente. Os azuis de Nick desafiando os meus
verdes.
— Maisie. Maisie. — Ele demonstrava estar com meu nome
engasgado na garganta.
— Se não vier, eu irei embora. Acredite, Nick, não há nada que
eu queira mais que ir embora.
E assim, com o coração partido em pedaços bem pequenos e a
angustia de ver a súplica no rosto do homem me devorando, corri
porta afora para fugir.
Na teoria, por eu ser uma ladra e Nicholas Coleman um policial,
ele teria de correr para me prender. Ele teria que escolher entre o
orgulho da sua farda e seu trauma (bem, só podia ser um trauma).
Fugir fora um salto no escuro.
Parei de correr para olhar por cima do ombro. Nick ainda não
tinha saído da padaria.
Talvez ele não acredite em mim; talvez ache que estou blefando.
— Maisie, volte agora mesmo! — Ouvi o som da sua voz às
minhas costas.
A chuva não estava densa a ponto de me impedir de enxergar
os ombros tensos de Nick conforme os pingos caíam nele.
Furioso não era uma palavra forte o bastante para sua
expressão naquele momento. Então, voltei a correr, e já não era para
ajudá-lo a enfrentar seu medo, era por minha sobrevivência. Quando
Nick me pegasse...se Nick me pegasse, ele me faria pagar pelo que
eu o fizera passar.
Ouvi o som das suas botas pesadas no asfalto molhado bem
atrás de mim.
Eu posso não o ter ajudado, diabo, talvez eu tenha o afundado
ainda mais.
Corri em direção à costa da praia. Nadar novamente não era
uma alternativa. Eu planejava encontrar um barco que me levasse
até a ilha de Guernsey. Até a minha casa. Uma vez que eu estivesse
lá, meus amigos me ajudariam a lidar com meu enorme problema. A
lidar com...
— Aaaaah! — Fui de cara para a areia.
— Eu vou matar você. Está me ouvindo? Vou matar você. — Ele
bradou em meu ouvido e me virou, fazendo eu me sentir um peixe
empanado.
Nick arfava descontroladamente e ajoelhou por cima de mim,
cada joelho ao lado de um quadril meu.
— Nick, eu...eu...
Eu desisti de falar ao notar que ele não me ouvia. Ele agarrou
meus pulsos e se preparou para me algemar. Eu nunca o vira tão
fora de si. Mas, eu não era íntima de nenhuma das suas inúmeras
versões.
— Isso que você fez comigo. Como pôde? — Ele perguntou em
um estado profundo de agonia. — Como pôde?
— Fiz por você. — Não houve uma gota de confiança em minha
voz, mas uma profunda camada de arrependimento.
— POR MIM? Você não sabe nada sobre mim. Não sabe do que
preciso.
— Você está certo, eu não sei nada sobre você — concordei,
por fim e tentei ignorar os pingos de chuva caindo em meus olhos. —
Mas sei que fiz você enfrentar isso que tanto te assombra.
Ele cerrou os dentes ao dizer:
— Enfrente seus próprios medos ao invés de se intrometer nos
meus!
Eu pensei sobre o que ele disse, ao passo em que era algemada
em uma posição bastante comprometedora. Nick estava certo.
Droga, estava certo. Eu me envolvi tanto em suas perturbações que
ignorei as minhas. Ignorei que o que eu tanto desejava, era o que
mais temia. Eu era uma covarde. Uma covarde que não era capaz de
admitir para si mesma que ansiava por um beijo.
— Nick?
— Fale — retrucou sem me encarar.
— Me beije.
— O quê? — Dessa vez não só me olhou, como também soltou
seu peso em cima de mim sem perceber. Meu pedido desmontara o
homem como se ele fosse um soldadinho de brinquedo.
— Você pediu para que eu enfrentasse meus medos —
expliquei. Àquela altura eu já não sabia como estava conseguindo
projetar frases.
— Tem medo de ser beijada? — questionou, indeciso. —
Você...você nunca foi beijada?
— Por favor, não me obrigue a falar sobre isso. Já me basta a
humilhação de ter me exposto.
Procurei algum colete salva-vidas enquanto sentia a âncora me
puxar para o fundo. Eu que sempre fui tão boa em me manter na
superfície, estava me afogando pela primeira vez, e eu sequer
precisei estar no oceano; bastou compartilhar meu temor para
alguém que era incapaz de compreendê-lo.
— Maisie, eu não posso beijá-la — disse com cuidado. Eu fechei
os olhos com força para engolir o choro constrangido. — Mas posso
permitir que me beije.
Nada teria me feito abrir os olhos mais depressa que aquilo.
— Como...como posso beijá-lo se...se...
— Se não sabe como fazê-lo? — Ele completou para me ajudar.
Se estava debochando, não ficara claro.
Eu não era uma tola completa. Sabia os movimentos que os
lábios deviam fazer, ao menos eu achava que sabia. Nunca colocara
em prática para ter certeza. Mas eram os dentes que me
preocupavam. Já ouvira os rapazes em Kerrera falarem sobre os
dentes que colidiam nos das moças. E a respiração? Como raios não
se sufocar enquanto está devorando outro ser humano com a
língua?
— Esqueça que lhe pedi por isso — falei, me remexendo
embaixo dele.
Nick percebeu que soltara seu peso em mim e voltou a posição
inicial de apoiar os joelhos na areia molhada.
Ele se levantou e me ajudou a me levantar.
— Esse será o primeiro beijo da sua vida. Tem certeza que
deseja entregá-lo a mim?
Assenti demoradamente com os cabelos cobertos de areia.
— Sendo assim, Maisie — passou os cinco dedos de uma mão
por minha nuca —, eu me sinto honrado.
E me beijou. Não como se o fizesse apenas por mim. Foi como
se fizesse também por ele. Como se dentre todos os lugares do
mundo em que pudesse estar, Nicholas Coleman preferisse aquele.
Meus lábios.
Uma língua buscava a outra no desejo de possuir. A intenção
era de ser breve, mas, introduzir meus dedos nos cabelos de pôr do
sol, foi minha desgraça. O que era para ser delicado e um gesto de
piedade, se tornou sedento e demorado.
Aproximei seu corpo do meu um pouco mais com uma mão em
suas costas, quase perto do quadril.
Que Deus me ajude.
Que Deus me ajude.
Como flutuar. Como um pássaro que deu seu primeiro voo
depois de passar meses com as asas quebradas. Como um sol
poderoso o bastante para derreter o Alasca.
Eu não sabia bem como descrever aquilo. Mas, que Deus me
ajude, porque foi bom. Foi melhor do que imaginara.
Inexperiente coisa alguma. Que garota inexperiente teria
movimentos tão bons com a língua?
Intenso. Ardente. E molhado como a chuva que caía em meus
ombros.
A chuva que caía em meus ombros. Deus do céu, que merda
estou fazendo?
Por mais que a desgraça já estivesse feita, para poupar o resto
da minha dignidade, eu a afastei.
— Maisie, eu...
— Obrigada. — Ela não me deixou terminar de falar. Ela
também parecia afetada por aquele beijo. Só que sua justificativa era
incontestável, aquele era o primeiro beijo da sua vida, a primeira vez
que seus lábios foram possuídos com tanto desejo por um homem.
Mas, e a minha justificativa? O que diabos explicava a minha falta de
controle em tomar uma ladra nos braços?
Incapaz de fazer qualquer outro movimento, eu assenti com a
cabeça.
— De nada. — A honra me levou a responder e, na tentativa de
parecer menos imbecil, acrescentei: — Temos que ir agora.
Maisie concordou e começou a andar chutando a areia
propositalmente.
— Como eu me saí? — perguntou ela.
Tive que tossir para me desengasgar.
— A que se refere? — questionei. Ela não podia estar falando
sobre o beijo. Teria de ser muito atrevida para querer conversar
sobre aquele deslize de modo tão espontâneo.
— Que raios, sobre o beijo. Como me saí?
Não era possível.
— Não acho que esse assunto seja apropriado.
A peste parou de andar e ficou na minha frente, me obrigando a
parar também.
— Amadan! — murmurou. — Amadan!
— Me chamou de tolo? — indaguei. Eu não falava gaélico tão
bem quanto ela, mas aquela palavra em especial... Ah, eu a
conhecia.
— Chamei — admitiu. — E duas vezes para não haver dúvida.
Tinha mesmo que ser muito atrevida para me desrespeitar de tal
maneira. Se eu não colocasse aquela garota em seu devido lugar,
ela ia destruir toda a Escócia.
— O que a faz pensar que tem o direito de me insultar? Você
ainda é uma ladra, esse fato não sofreu alteração somente porque a
beijei.
— E como foi? — perguntou feito uma bobinha.
— Como foi o quê? — questionei ainda mais exaltado.
— O beijo. Que diabo! — Se exaltou também.
— FOI BOM, MAISIE. FOI BOM! — gritei e, sem perceber, a
chacoalhei pelos ombros. — Deus do céu, não posso ficar perto de
você por mais nem um minuto ou acabarei cometendo um
assassinato!
— Dizer que foi bom não me é o bastante. Eu preciso de...Que
raios está fazendo? Nick Coleman, me coloque no chão!
A joguei por cima do meu ombro. Eu me sentia tão enfuriado,
que nem mesmo reparei em seu peso ou em seu vestido ensopado.
— Se você se recusa a me obedecer, pois bem, a farei passar
vergonha e a carregarei assim até a delegacia.
— Isso é ultrajante! — Exclamou.
— Deve ser, mas eu não me importo.
Na primeira quadra, eu já me sentia mais calmo. Na segunda, eu
cogitei colocá-la no chão, mas não o fiz. Maisie era uma caixinha de
surpresa, nada me garantia que ela não daria uma de louca e sairia
correndo novamente. Na terceira quadra, a chuva começava a me
incomodar. Os tremores, a náusea, a sensação claustrofóbica da
corda em meu pescoço, tudo voltara à solavancos. Ainda que a ladra
não tivesse resolvido meu problema, eu não podia negar que ela me
ajudara. Fazia longos anos que eu não passava tanto tempo na
chuva.
— Já estamos chegando. Me coloque no chão — ela disse.
— Terá que andar, está me ouvindo? — O tom foi autoritário.
Pude sentir quando ela balançou a cabeça em afirmativa.
Ela passou as mãos pelo vestido para desamarrotá-lo assim que
a coloquei no chão. Verifiquei suas algemas para garantir que estava
bem presa e a empurrei delicadamente para que começasse a andar.
Limpei os pés no tapete assim que cheguei na delegacia. O
plano era colocar Maisie em uma cela e ir para casa trocar o
uniforme molhado por um seco, mas tudo mudou quando vi aquele
bando de escoceses fazendo a maior algazarra e o delegado
tentando contê-los.
— O que é isso? — Questionei para ninguém em especifico.
Apesar da gritaria, eu soube que fui ouvido porque, quando
menos esperava, fui prensado na parede.
— O que você fez com ela? — Ele grunhiu.
— Solte-me agora mesmo! — Exigi com lentidão.
— Eu não me importo se é um policial, se você a feriu de
alguma forma, eu irei matá-lo. — Ameaçou e apertou os dedos em
meu pescoço.
— Charlie, pare com isso. — Ouvi Maisie dizer. — Ele não me
machucou.
— Não é o que parece, piuthar (irmã). — Ele sequer desviou os
olhos para ela. — Por que está molhada e com areia dos pés à
cabeça?
Maisie não teve tempo de responder porque um ruivo de cabelo
comprido já estava se aproximando.
— Vamos, homem — ele disse para o sujeito que me esganava
e segurou-lhe o braço. — A ruivinha já disse que ele não a feriu.
Aos poucos o tal do Charlie afrouxou os dedos e quando por fim
me soltou, eu falei:
— Eu podia prendê-lo por isso. Na verdade, o que todos vocês
pensam que estão fazendo aqui?
Foi uma mulher de longos cabelos escuros que se dignou a
responder.
— Soube que o senhor invadiu minha festa de casamento para
prender uma de minhas madrinhas.
— Eu não sabia que aconteceria uma cerimônia, peço desculpa
pelo desconforto que causei — respondi com sinceridade.
— Já está feito. — A mulher retrucou. — Diga, seu policial,
Maisie já pode ir para casa?
— Qual seu nome? — questionei antes de explicar para ela.
— Me chamo Tess. Sou esposa do idiota que achou coerente
agredir um policial.
— Controle-se, criatura! — O marido retrucou para ela e
relanceou um olhar crítico em sua direção.
Engoli a risada para não perder a compostura.
— Muito bem, Tess. Sua madrinha de casamento furtou alguns
pãezinhos doce, como a senhora já deve saber — esperei por sua
confirmação para continuar. — O padeiro que prestou queixa pede
por 40 libras para retirar a acusação.
O delegado me lançou um olhar de incredulidade. Para ser
sincero, qualquer um que ouvisse a quantia de dinheiro que o
padeiro pedia pelos pães, adquiriria a mesma reação.
— Tudo bem, é uma quantia absurda. Mas podemos pagar por
ela sem problema algum — Tess respondeu.
— Não mesmo! — Rebateu Maisie, emburrada. — Se eu não
posso roubar, então o padeiro também não pode.
Deus do céu.
— Eu sugeri que Maisie contratasse um advogado, mas ela
também se recusa — acrescentei.
— Devem estar te tratando muito bem aqui, já que se recusa a ir
embora, hein ruivinha? — O ruivo brincou.
— Cale a boca, Gael! — Maisie grunhiu.
Charlie diminuiu a distância e falou diretamente com a peste,
mas todos pudemos ouvir.
— Piuthar, se você não for embora, então nós também não
iremos. Você mentiu para mim quando disse que tinha tudo sob
controle e eu acreditei. Não serei estúpido duas vezes.
— Eu não queria que se preocupasse comigo justamente no dia
mais feliz da sua vida — ela murmurou com doçura. — Eu já sou
uma adulta, Charlie, não precisa mais cuidar de mim.
— Eu sempre cuidarei dos meus, Maisie. Se você não voltar
para casa, essa delegacia terá que providenciar celas para cada um
de nós — declarou Charlie com veracidade suficiente para fazer o
delegado agir.
— Tudo bem, preciso que alguns de vocês saiam. Não há
necessidade de tanta gente aqui — ele disse e se virou para mim em
tom ríspido. — Coleman, leve a prisioneira de volta para a cela e
providencie toalhas secas para vocês dois.
Anuí e indiquei o caminho para Maisie passar. Ela relutou no
primeiro momento, mas logo obedeceu.
— Não aceitarei que meus amigos paguem por meu crime — ela
comentou já no corredor.
— Então pague você mesma — repliquei com cuidado.
Ela se virou com um semblante furioso, como eu nunca vira.
— O senhor deve ter criado uma impressão errada a meu
respeito, mas não o julgo, porque em momento algum se diligenciou
para me conhecer. Mas ouça o que irei lhe dizer, Nick.
E eu me empenhei para ouvi-la com pouco menos de um passo
de distância.
— Eu não sou uma imbecil. Estou cansada de todos me
tratarem como uma inválida. Eu já passei por coisas que ninguém é
capaz de imaginar. É claro que não quero ir presa aos vinte e três
anos, mas não aceitarei ser chantageada por ninguém e tampouco
permitirei que meus amigos se responsabilizem por mim.
Eu senti o impacto das suas palavras em minha nuca, como um
sopro forte. Havia dor em cada sílaba. Eu a julgara errado.
Honestamente, nem se passou por minha cabeça conhecê-la afundo.
Maisie era uma ladra, isso era tudo o que importava. Não era do meu
interesse saber de onde vinha, quem foi e quem pretendia se tornar.
Eu tinha apenas um trabalho: algemá-la e garantir que pagasse por
seu crime. Era o que fiz durante toda minha vida de policial, era o
que me pagavam para fazer. Até aquele momento.
Até aquele maldito momento.
Fazia quanto tempo que eu não vivia outra vida que não a do
homem fardado? Bem, eu sabia exatamente quando isso começou.
O exato instante em que coloquei correntes de aço envolta do meu
coração para resguardá-lo.
Se eu ousasse. Se eu apenas ousasse mergulhar no pântano de
Maisie, eu estava certo de que não sairia intacto, que minhas fraturas
seriam tão profundas que não existiria reparo...
— O que está olhando? — Seu timbre foi mais alto que a voz da
minha mente me mandando os alertas.
Apertei os olhos mais um pouco. Eu não tinha visto coisas.
Tinha?
— Acho que vi alguém na sua cela — respondi, afinal.
— O que? — Maisie aparentou não ter gostado da mudança
repentina de assunto. Ainda assim, virou o rosto para olhar. — Sim.
Há alguém na minha cela. Mas, de que importa? Na pior das
hipóteses, serei transferida para um presídio de verdade.
— Na pior das hipóteses, você pode não chegar viva no presídio
— rebati, a alarmando. — Já tivemos casos terríveis de presas
dividindo cela.
O que eu disse nem mesmo a espantou. Maisie, pelo que eu
percebera, não era capaz de enxergar riscos nas situações, por mais
explícitos que estivessem.
Ela arquejou sem demora.
— Ao que noto, nossa conversa já se deu por encerrada. Então,
leve-me logo para minha cela e traga minhas toalhas como o
delegado ordenou!
Foi minha vez de arquejar.
— Tenha cuidado com a forma que fala comigo. Ainda sou um
policial — falei, mas ela já tinha me dado as costas.
A segui e procurei com os olhos o rosto da indivídua com quem
Maisie ficaria. Eu não a conhecia, provavelmente acabara de chegar
na delegacia e esperava para ser transferida.
A presa não me parecia perigosa, no entanto, em minha opinião,
os olhos castanhos exalavam muita maldade.
— Ande logo com isso, Nick! — Maisie me apressou.
A puxei com truculência para um canto e cochichei:
— Se ela tentar algo com você, grite. Está me entendendo?
Ela revirou os olhos verde-limão.
— Diga que me entendeu!? — a pressionei.
— Eu sei me defender, mas gritarei se precisar.
Mesmo me sentindo inseguro, eu precisei deixá-la. O jeito
inocente de Maisie me fazia querer protegê-la, me deixava inquieto,
como se eu estivesse disposto a enfrentar qualquer coisa que
pudesse quebrá-la. Foi exatamente com esse pensamento
incoerente que eu questionei o delegado ao esbarrá-lo no corredor.
— Quem é aquela?
O velho ergueu a sobrancelha branca sem compreender.
— A presa na cela de Maisie, quem é? — Acrescentei, ansioso.
— Iolanda? É uma presa como outra qualquer. As celas ou
estão ocupadas ou com goteira. A ruiva terá de dividir espaço com
ela.
— Qual crime ela cometeu? — questionei, sem dar espaço para
que ele passasse.
— E isso importa? — retrucou, se esquivando. — Vá trocar esse
uniforme imundo e deixe que da minha delegacia cuido eu.
Engoli em seco e procurei me acalmar.
— O que aconteceu com os amigos de Maisie?
— Mandei voltarem amanhã com um advogado. Agora saia da
minha frente, Coleman. Eu tenho mais o que fazer e estou certo de
que você também. Afinal, quando me dirá que droga aconteceu com
você? Está com areia até nas sobrancelhas.
Prendi a respiração por meio segundo.
— Vou trocar meu uniforme. Volto mais tarde.
E fui.
— Ei, bonequinha ruiva. — A fulana me chamou.
— Oi? — disse, indecisa.
— Qual seu nome? — Ela questionou de um jeito malandro.
— Maisie — respondi sucinta. — O seu?
— Iolanda. O que você tá fazendo aqui, Maisie?
Me abracei e escorei na parede, procurando manter distância
dela.
— Furto de pães. E você?
— Eu sou inocente. Eles me prenderam aqui por engano.
Assenti, sem dar muita credulidade.
— Vai pegar quanto tempo de cadeia? — Ela insistiu no assunto.
Balancei a cabeça.
— Ainda não sei.
— Hummm. Sabe de uma coisa, Maisie? Hoje é seu dia de
sorte.
Arqueei as sobrancelhas.
— Estou certa de que a sorte visita todos outros lugares, exceto
esse — retruquei com cautela para não a aborrecer.
— Não, menina — ela se aproximou. Era um pouco menor que
eu e os cabelos ensebados fediam a fumaça. — Você tem sorte
porque eu estou aqui e a levarei comigo.
Eu tentaria recuar, caso já não estivesse grudada na parede
feito uma lagartixa.
— Co-mo assim? Me levar para aonde? — gaguejei de modo
covarde.
Os dentes amarelados, como eu pude reparar assim que ela
sorriu, estavam quebrados.
— Você, bonequinha ruiva — tocou meu tórax com um dedo —,
trabalhará para mim.
— O quê? Não. Não. Eu estou presa, lembra?
— Isso não durará por muito tempo. Eu sairei daqui hoje e você
virá comigo.
Como é?
Me esforcei para ignorar a náusea que seu hálito me causava.
— Eu não sairei daqui hoje, Iolanda. E receio que você também
não saia.
O sorriso morreu em seus lábios.
— Ouça, bonequinha ruiva, eu lhe dei alguma outra opção? —
Soou ameaçadora e meus batimentos cardíacos reconheceram
aquilo.
Logo me lembrei do aviso que Nick me dera antes de me colocar
na cela com Iolanda. Ele me alertara sobre os riscos que eu corria e
eu o ignorei. Eu simplesmente o ignorei porque estava irritada
demais com ele. Agora eu estava em uma situação pior do que podia
sequer imaginar. Aquela maluca fedendo a fumaça pretendia fugir e
queria que eu fosse com ela. Raios. Se eu fugisse, passaria de uma
simples ladra de pãezinhos, para sabe-se lá o que.
— Como pretende sair? — Resolvi perguntar.
— Não se preocupe com isso. Eu garanto que você se divertirá
— Ela contornou o assunto sem me apresentar os detalhes.
— E o que quer que eu faça por você, Iolanda?
Ela me segurou pelo queixo e o apertou.
— Relaxe, bonequinha. Tudo no seu tempo. Agora, por que não
descansa, hã? Teremos uma longa viagem pela frente.
Eu senti o café da manhã em minha barriga se revirar. Senti o
frio do mergulho que eu dera nas águas geladas. Todas as
sensações que eu ignorara durante o dia, estavam surgindo naquele
exato momento. E medo. Eu senti medo, porque a todo momento
vozes ecoavam na minha mente dizendo o quanto eu estava ferrada.
Eu esperei por Nick por longas horas. Ele me dissera que se
algo de errado estivesse acontecendo, eu devia gritar. Mas, como
gritaria com Iolanda me observando? A mulher faria picadinho de
mim se eu a delatasse. Era um risco que eu covardemente não
estava disposta correr.
Nicholas apareceria. Ele tinha de aparecer.
Conforme a noite se aproximava, e isso eu podia relatar através
da pequena janela da cela, a minha esperança sucumbia. O turrão
não dera as caras.
Ele me esqueceu. Apenas me esqueceu.
E o que eu esperava, afinal? Um beijo não era motivo suficiente
para fazer o homem pensar em mim, por mais inesquecível que
tivesse sido.
E para mim foi, um beijo simplesmente inesquecível.
— Está quase na hora. — Iolanda disse despretensiosa.
Fiquei em estado de alerta e ergui os olhos para ela.
— Iolanda...eu não imagino o que tenha planejado para mim,
mas, eu sou alguém totalmente desqualificado para qualquer tarefa.
Meus amigos sempre falaram sobre eu ser desleixada. — Tentei me
menosprezar na tentativa de fazê-la desistir de me levar com ela.
— Você servirá — disse, somente.
Senti o choro arder em meus olhos e em minha garganta.
Talvez eu possa chamar algum policial e dizer que...As luzes se
apagaram de modo extremamente suspeito.
— Está na hora — anunciou Iolanda.
Eu me levantei e aguardei, sem saber exatamente o quê. Um
tiroteio, uma bomba...era difícil adivinhar o tipo de coisa que se
passava na mente de criminosos. Eu era uma ladra de pães. Apenas
a droga de uma ladra de pães!
Iolanda agarrou minha mão assim que passos ecoaram no
extenso corredor.
Que seja Nick. Que seja Nick.
Não era Nick. Era um policial que eu não estava familiarizada.
— Você demorou — resmungou Iolanda para o rapaz.
— Estávamos esperando o momento certo. Anda logo. Vista
isso. — Ele respondeu e jogou um boné para Iolanda antes de
destrancar a cela.
— Vista você. Seu cabelo chama mais atenção que o meu. —
Ela se virou para mim e colocou o boné em minha cabeça de modo
desleixado. Relanceou sua atenção para o rapaz e explicou: —
Decidi levá-la conosco. Ela pode ser útil.
O policial (que eu não sabia se era mesmo um policial) me
avaliou dos pés à cabeça.
— Você ao menos a conhece? — Ele questionou para ela e me
ignorou.
— Não. Mas eu também não conhecia você. — Ela rebateu e
me apressou: — Arrume isso na sua cabeça. Ou prefere que eu
arrume pra você?
Imediatamente, com as mãos trêmulas, ajeitei os fios dentro do
boné. Era muito cabelo para pouco espaço.
— Ande logo. E você — o policial apontou o dedo na minha cara
e declarou —, se tentar alguma coisa eu mesmo estouro seus
miolos!
Com os olhos arregalados e o coração saltando no peito,
concordei e os segui para fora da cela.
Não imaginava o que Iolanda e seu amigo haviam planejado.
Contudo, assim que atravessamos o corredor eu pude ver de perto o
que fizeram com os policiais. Alguns pareciam desacordados no
chão, outros, como o delegado por exemplo, estavam presos aos
pés das mesas. Procurei por Nick e não o encontrei; não por culpa
da escuridão, graças a lua ainda era possível discernir cada rosto. A
verdade era que Nick não estava entre eles.
Eu não soube me decidir se isso era algo bom ou ruim.
A pergunta na minha mente sobre como os criminosos fizeram
tudo aquilo estando em menor número, foi respondida assim que
dois homens e uma garota altamente armados foram de encontro a
Iolanda.
— Não mataram ninguém? — Iolanda questionou.
— Não foi preciso, eles souberam cooperar. — A outra garota
debochou e guardou sua arma na parte detrás da calça. — E essa
daí, quem é?
Todos se viraram para mim. Eu usei o boné a meu favor para
esconder o rosto.
— Ela virá conosco — declarou Iolanda. — Vamos antes que
chegue reforços.
Quando o primeiro passo foi dado fora da delegacia, a minha
fuga foi oficializada. Estava feito. Não havia volta. Estava tudo
perdido de modo que não existia retorno.
— Ande mais rápido, bonequinha ruiva. Você não quer que eu
mande um dos meus amigos carregar você, quer?
Olhei de soslaio para Iolanda e neguei. Acelerei os passos sem
compreender como minhas pernas, que mais pareciam duas varetas
trêmulas, ainda não tinham me derrubado.
— Maisie? MAISIE! — Ele gritou meu nome.
— Nick? — Me virei ao som da sua voz. Foi como se tivesse
acendido uma luz dentro de mim.
Nicholas provavelmente acabara de chegar na delegacia quando
me viu; será que reconhecera de longe os insignificantes fios de
cabelo que teimosamente se desprenderam do boné? Ele parecia
não compreender o que estava acontecendo ali, pois não sacara sua
arma. Ele só estava estático ao lado de um carro que eu suspeitara
ser seu, assim, como quem não sabe de que modo deve reagir.
Até que houve um disparo. Eu infelizmente estava familiariza
àquele sonido que agredia meus canais auditivos e o reconheceria
em qualquer lugar, a qualquer hora do dia e da noite. Levou alguns
instantes até que eu notasse que Iolanda sacara uma pistola e
disparara contra Nick.
Meu corpo inteiro estremeceu.
— NÃÃO. O QUE VOCÊ FEZ? — Gritei à plenos pulmões.
Na tentativa de correr até Nick ao vê-lo atingir o chão, um dos
homens de Iolanda me pegou por trás e me imobilizou com os
braços. Me sacodi, tentei chutar, mas ao mesmo tempo em que a ira
me deixara mais forte, a angustia me deixara mais sensível.
— Se controle, bonequinha ruiva, ou você será a próxima! —
Iolanda ecoou sem emoção.
Além da famigerada e constante humilhação, existia uma outra
área na minha vida em que eu era especialista: engolir o choro. Não.
Eu não ia chorar. Eu me recusava olhar para aquela mulher com
meus olhos encharcados de água e permitir que ela soubesse que
me amedrontava.
— Vamos, a coloque no porta-malas! — Ela ordenou para o
sujeito que me segurava.
E foi exatamente o que ele fez.

A escuridão era a parte menos sofrida.


A minha aflição era por ser pequeno demais, minhas pernas
tinham de ficar encolhidas, e eu nem era alta. E abafadiço. Por Thor
ou Odin, ou qualquer outro deus, se eu não saísse daquele inferno
eu ia morrer de uma forma bem mais estúpida que imaginara a vida
toda.
Como se não bastasse todo o desconforto do maldito porta-
malas duro, eu ainda precisava dividir espaço com umas tralhas.
Dentre as tralhas, parecia ferramentas ou algo do gênero, havia uma
bagagem grande. Como eu era uma mulher curiosa e entediada,
resolvi correr o zíper pelo trilho. E...
Puxei o elástico do saquinho de pano.
Ainda que a iluminação não fosse um ponto forte dada a minha
circunstância, pelo toque, eu soube que se tratava de colares. E,
pela textura: lisa e arredondada, eu arriscaria dizer que eram de
pérolas. Lembrava-me de ter visto Tess, a esposa de Charlie, usar
algo semelhante certa vez. Eram pérolas. Ah, sim.
Você não é uma ladra. Eu não era mesmo uma ladra, mas eu
estava certa de que aqueles colares também não pertenciam a
Iolanda.
E, entre tê-los para mim e deixá-los com Iolanda...bem. Eu podia
precisar deles, futuramente, não? Quando dei por mim, já estava
escondendo os três dentro das minhas botas encardidas.
Entre uma sacodida e outra e novamente entediada, eu gritei e
chutei o porta-malas, fazendo um tremendo escândalo que obrigou o
motorista a parar o carro.
— Será que dá pra você calar a boca!? — Iolanda resmungou,
assim que botou os olhos e mim.
— Você não pode me levar aqui. É desconfortável — rebati, com
a raiva revestida de serenidade para não me causar ainda mais
problemas.
A mulher me cravou seu par de olhos cortantes.
— E você acha que eu me preocupo? — Veio a resposta
truculenta. — Ouça, menina, se você não ficar quieta eu a largarei
aqui no meio do nada e cortarei suas pernas para que você não
possa correr. Entendeu?
— E o que você acha que acontecerá com as minhas pernas se
eu continuar encolhida...Espere. — Minha voz soou sofrida quando
percebi que Iolanda ia me trancar novamente.
Ferramenta ou não, eu percorri uma mão pelo assoalho do
porta-malas de forma cautelosa e peguei o primeiro objeto que tive
contato.
O que eu ia fazer com aquilo? Eu vi com meus próprios olhos e
ouvi com meus ouvidos quando Iolanda atirou contra Nick, se ela
fora capaz de disparar em um policial, que raios não faria comigo
assim que me usasse?
O momento foi oportuno e, se não tivesse sido, eu descobriria
nos próximos minutos quando recebesse uma bala na cabeça.
Iolanda foi pro chão quando a empurrei com os dois pés. Saltei do
carro e parti pra cima dela com a ferramenta que eu tinha em mãos.
Um pé de cabra. Não me preocupei em descobrir, apenas sovei com
ele em sua cabeça a ponto de desnorteá-la e antes que seus amigos
- que riam de algo em particular no interior do carro - viessem
socorrê-la, fugi.
Corri, como nunca correra em toda vida.
Foi questão de sorte. Uma tremenda sorte eu diria. Eu podia
contar nos dedos de uma mão às vezes em que usei colete à prova
de balas. Não me lembrava do porquê eu decidira colocá-lo naquela
noite em especial. Foi mais como um estalo na minha mente. Assim,
de forma quase mecânica, o peguei e o vesti antes de sair de casa.
Eu não era um homem muito intuitivo, contudo, daquela vez eu não
podia negar que minha intuição me salvara.
Se não fosse pelo colete, muito provavelmente, àquela altura eu
estaria morto ou em uma situação crítica.
Me apoiei com cotovelos, depois com as mãos, para me erguer.
A costela que recebera o projétil ficara dolorida e sensível ao toque.
Na camisa, era possível ver um rastro de sangue.
Retirei o colete e avaliei minha situação física. Eu irei sobreviver.
Podia ter sido pior, muito pior.
Me levantei por completo e entrei na delegacia meio
cambaleando.
As luzes estavam mesmo todas apagadas ou eu estava mais
atordoado que pensara?
— Michel? — Chamei pelo delegado.
— Aqui. Estou aqui.
Olhei para baixo, pois era de lá que parecia vir o som da voz. O
delegado estava algemado à própria mesa, assim como alguns
outros policiais. Haviam poucos no turno da noite, mas todos que
tinham ficado trabalhando foram detidos de alguma forma.
— Que droga aconteceu aqui? — Questionei, confuso, ao passo
em que trabalhava para soltá-lo.
— O que acha? — perguntou irritado.
Sem conseguir perder a oportunidade de perturbá-lo, eu disse:
— Uma noite picante?
— Não me faça querer socá-lo, Coleman, porque estou certo de
que o faria sem pestanejar — afirmou, desprovido de humor. E olhou
para os próprios pulsos assim que foi liberto. — Os amigos
desgraçados de Iolanda vieram soltá-la. Apagaram as luzes e
jogaram alguma droga de gás tóxico aqui. Acordei quando já estava
preso feito um cão.
Avaliei a situação ao redor.
— Alguém se feriu?
Ele balançou a cabeça em negativa e acrescentou verbalmente:
— Não. Acho que não. E você, está bem?
— Sim. Quando cheguei eles já estavam na rua. — Quando as
luzes foram acesas, Michel volteou os olhos para a manchinha de
sangue em minha camisa. O olhar foi indagativo. — Isso não é grave
— o assegurei.
— Você viu se eles saíram em um carro?
— Um utilitário preto — falei. — Não vamos perder tempo
conversando, delegado. Se eu for agora, talvez ainda possa alcançá-
los.
— Tudo bem. Vou passar um alerta e te...
Saí antes que ele pudesse completar seu pensamento.
Me sentia nervoso.
Aquela peste. Aquela peste de cabelo laranja. Que merda ela
pensa que está fazendo? Se recusou a pagar 40 libras mas estava
disposta a fugir e piorar ainda mais sua situação?
Entrei no carro e dirigi sem saber ao certo que direção seguir. Eu
só precisava pensar: se eu quisesse fugir, qual rota pegaria? Qual
caminho mais deserto?
Foi com esse pensamento que virei à direita e pisei fundo no
acelerador. Aquela devia ser a única rua em Dindow que não era
pavimentada e de baixíssima iluminação. Perfeita para quem estava
fugindo, mas péssimo para quem estava em perseguição.
Dirigi por alguns quilômetros sem ter qualquer veículo no meu
campo de visão e sem qualquer alerta do delegado.
Mas o quê...Que desgraça é aquilo?
Diminuí a velocidade e inclinei o corpo para frente na esperança
de identificar aquilo que chacoalhava os braços no alto e corria no
lado direito da estrada. Dei farol alto.
Não pode ser.
Reduzi mais a velocidade, até parar por completo. Saquei a
pistola e desembarquei.
— FIQUE ONDE ESTÁ! — gritei, com a arma em punhos.
Maisie não parou de correr em minha direção, agitada. — EU
MANDEI PARAR!
— Nick? — A ouvi dizer, poucos metros de mim. — Graças aos
deuses você está bem.
— Mãos atrás da cabeça — ordenei, sem baixar a guarda. — Eu
disse, mãos atrás da cabeça!
— Por que?
Será que é porque eu levei um tiro da última vez que a vi?
A resposta não me veio fácil.
— Mãos atrás da cabeça. Não repetirei pela quarta vez — a
alertei.
— O que está acontecendo? — Maisie perguntou, daquele seu
jeitinho manipulador e aproximou-se até estarmos com menos de
dois passos de distância.
Meus dedos tiritaram no objeto gelado.
Eu não conseguiria atirar, ficou claro para mim assim que ergui
os olhos para ela. No entanto, se eu não atirasse, eu quem acabaria
morto em uma vala qualquer.
— Eu preciso saber se está armada. — Cada frase que deixava
meus lábios, fazia Maisie dar um novo passo, até ficarmos
desconfortavelmente próximos.
A peste estava tão suja, que quase me levou a questionar se ela
rolara pelo chão de terra.
— Se estou...Não. É claro que não. Onde raios eu conseguiria
uma arma?
— Com seus amigos que tentaram me matar e prenderam os
outros policiais!? — respondi com sarcasmo.
Ela colocou as duas mãos nos quadris e preparou uma réplica
mordaz.
— Acha que eu compactuei com aquilo? — Deu mais um passo
lento. — Eu fui forçada a fugir. Fui colocada no porta-malas como se
fosse uma bagagem qualquer e ameaçada de ter as pernas cortadas
ou os miolos estourados caso tentasse algo.
— Como escapou? — Eu não estava inteiramente convencido.
Ela soltou um sofrido resfolegar.
— Eu tentei algo. Ignorei os avisos de Iolanda e a chutei, e
então corri. E estava correndo até ver você. — Sua voz ficou mais
baixa. — Por um momento achei que você tivesse morrido.
Desviei o olhar por menos de um segundo para a estrada,
quando a ruiva encurtou nossa distancia um pouco mais.
— Você precisa parar de se aproximar ou eu terei que puxar
esse gatilho, Maisie. — Tentei alertar ambos.
— Você não vai atirar em mim coisa alguma. Podemos entrar no
carro? Eu estou começando a ficar com frio.
— Quer entrar no carro?
— É o que acabei de dizer.
— Então vire-se. Irei algemá-la — exprimi. Meus dedos já não
seguravam a pistola com tanta firmeza.
— Tá de sacanagem, Nick?
— Pereço estar? — devolvi. — Enquanto eu não tiver certeza de
que você não tem qualquer envolvimento com essa fuga, eu a
tratarei como uma prisioneira qualquer.
Ela cruzou os braços.
— Sabe por que fui jogada no porta-malas?
— Não tenho a menor ideia — garanti.
Aproximou-se a ponto de me fazer encostar a arma em seu
tórax.
— Iolanda ordenou que eu fosse colocada lá quando esperneei
feito uma maluca ao vê-lo cair no chão. Fui colocada lá por causa de
você, Nicholas Coleman, e agora você está aqui, dizendo que sou
como uma prisioneira qualquer.
Ela arrancou minha força com aquilo. Ela desmontou minha
coragem. E todos os planos que eu tinha de continuar impedindo
Maisie de quebrar os cadeados do meu coração, ficaram apenas na
teoria e nada mais. Eu queria poder fingir que não desejava colocar
minhas mãos em seu corpo e apreciar cada toque. Eu deveria estar
fugindo daquilo, não planejando me jogar de cabeça.
— Vá em frente, atire — acrescentou.
Deixei meus braços caírem ao redor do corpo.
— Entre no carro...antes que congele — falei, baixinho, não
porque quis. Foi mais um reflexo da minha covardia.
— Com todo prazer, seu policial!
Dirigi por quase uma hora a esmo. Maisie ao meu lado fingia
estar dormindo. Era inquestionável que fingia porque eu ouvi sua
respiração profunda quando dormiu na cela, era muito mais intensa
que aquele simples arfar. Ela também tinha um estranho hábito de
ranger os dentes.
— A levarei em minha casa para que possa tomar um banho —
falei decididamente. — Está me ouvindo?
Ideia estúpida. Santa ideia estúpida.
— Para sua casa? — perguntou, sobressaltada.
A olhei de esguelha.
— Sim, para minha casa — reiterei. — Você está suja e trêmula.
Precisa de um banho.
— Que coisa para se dizer a uma dama. — Deitou a cabeça no
vidro da janela.
— Não era minha intenção tê-la ofendido...
— Não ofendeu — garantiu e estreitou os olhos.
Ela foi com uma mão nos cabelos e prendeu um cacho atrás da
orelha. O movimento me chamou a atenção. Sua orelha me pareceu
pequena demais para uma adulta. Era tão delicada que me vi
tentado a tocar.
Fechei os dez dedos no volante com força.
— O senhor achou que eu seria burra o bastante para piorar
minha situação com a lei. É monstruosamente ofensivo.
— E cá estou eu, ofendendo-a pela segunda vez em menos de
dois minutos — falei.
— Dessa vez receio que não poderei discordar. Tudo que diz
respeito à minha inteligência é insultante.
— Perdoe-me a babaquice. — Aquela foi a troca de olhares
mais longa da história. Por estar dirigindo, eu devia ter sido o
primeiro a desviar, mas fora Maisie quem se encarregara dessa
responsabilidade.
Meu celular tocou e fez nós dois pularmos assustados. Levei o
indicador na boca sugerindo que Maisie ficasse calada.
Apertei o botão para falar.
— Fale.
— Coleman? Conseguiu localizá-los? — questionou o delegado.
Os ruídos ao fundo insinuavam que ele também estava dirigindo.
Encarei a ruiva ao meu lado ao mentir.
— Ainda não. Na verdade, seu delegado, tive que fazer uma
pausa na busca para cuidar do meu ferimento. Ele é pior do que eu
imaginava.
Por alguma razão, Maisie achou conveniente rir daquilo, mas
colocou a mão nos lábios para abafar a risada. Deus do céu. Eu
estou perdido.
Para sua casa. Para sua casa.
Raios, eu estava prestes a entrar na casa de Nick Coleman. Eu
nem mesmo saberia dizer como isso viera acontecer. Em um
instante, eu estava sendo carregada feito lixo no porta-malas de
criminosos, no outro, atravessando as portas de um edifício que me
fazia ter vontade de me esconder devido meu traje encardido.
— Tem certeza de que quer enfrentar seis lances de escadas?
— Sua pergunta me paralisou e me fez transferir o olhar para seu
rosto.
— Seis? — balbuciei, ele foi com o queixo pra cima e pra baixo
duas vezes. — Se não iremos de escada, então usaremos aquela
coisa totalmente perigosa.
Ele fez aquilo com as sobrancelhas que fazia eu me sentir a
boba da corte.
— Presumo que esteja se referindo ao elevador — Nick disse.
— Eu lhe asseguro, nunca fui engolido por um.
— Até ser — deblaterei, mais para mim que para ele.
Nick apertou o bendito botão. Eu me abracei enquanto
aguardava. A expressão gaifona no rosto era para ser algo particular,
mas não pude me conter. Em uma troca de perna de apoio, as
pérolas ainda dentro da minha bota fizeram um insignificante ruído.
Quer dizer, insignificante caso eu não estivesse com um policial
desconfiado ao meu lado.
Passei uma mão na barriga, em um ato dissimulado.
— Acho que estou com fome. — Tentei disfarçar ao notar que
Nicholas me examinava insolitamente.
— Quando é que não está? — retorquiu.
— Quando estou comendo.
— Às vezes me ocorre que nem mesmo nesse instante —
comentou, assim que a porta do elevador se abriu. Entrei depois
dele.
Esperei Nicholas selecionar o andar desejado para então
perguntar:
— Não terá problema caso o delegado descubra que você me
trouxe para sua casa?
— Terei — admitiu, curto e áspero.
Prendi uma mecha de cabelo atrás da orelha. Era a segunda vez
em uma noite que desejara diminuir aquele comprimento. Também
era a segunda vez que eu flagrara Nick escoltando o meneio com os
olhos.
— Não quero arrumar problemas para você. — Ergui as
pálpebras para ele. Diante olhos tão serenos quanto um chuvisco,
quase me esqueci do quanto odiava elevadores. Quase me esqueci
de que precisava respirar para não morrer.
— É até cômico ouvi-la dizer isso, adorável Maisie.
Apesar de ter soado cínico, o adorável e o Maisie combinaram
de modo impecável com seus lábios.
O segui assim que a porta se abriu no sexto andar. O corredor
estreito, era também silencioso e de uma iluminação questionável.
— Vai esperar por um convite formal para entrar? — O
questionamento me arrancou do devaneio.
— Como?
— Estou há quase dois minutos segurando a porta entreaberta
— atentou. O momento em que Nick tirou a chave do bolso e
destrancou a porta, era algo que eu realmente não percebera.
Contudo, aquele maldito singelo sorriso que me deixava com as
pernas moles, diabo, eu sempre o captava. Não importava para qual
ponto fixo eu estivesse olhando, quando Nicholas Coleman sorria,
era inevitável, meu olhar ia se arrastando até ele. E como se
estivesse sendo açoitada para fazê-lo, eu sorria de volta.
Obriguei meu corpo congelado a se mover e entrei, logo
tropeçando no imenso vaso de planta.
— Desgraça — gemi, ao sentir a dor pulsante dos dedos. Me
agachei e acariciei o pé por cima da bota.
— Como é que você conseguiu tropeçar em algo desse
tamanho? — Nick questionou, com um semblante de incredulidade e
apontou para a planta assassina.
— Era meu dever imaginar que você tinha uma selva dentro de
casa!? — revidei, na defensiva.
O turrão cruzou os braços, fazendo com que os músculos
parecessem bem maiores que eram de fato.
— Você mora em uma ilha. Era de se esperar que já estivesse
acostumada com a vegetação, não?
Rangi os dentes com força.
— Claro. Devo esperar por um banho de cuia também?
— Eu não me espantaria se você ansiasse por um! — Exprimiu
e se curvou. — Tire esse negócio feio do seu pé e me deixe ver se
você se feriu.
— Chame minha bota de feia mais uma vez e eu a farei voar na
sua cabeça — esbravejei.
— Faça a gentileza de me deixar examinar seu pé?
Praguejei baixinho, antes de desamarrar o cadarço e tirar a
meia. Apesar de os dedos estarem avermelhados, a pancada não
parecia ter causado um dano grave.
— Posso lhe oferecer um remédio para dor, mas não me parece
ser preocupante — cominou Nick, após uma breve analisada com os
olhos.
— Não precisa. Já me machuquei pior — confessei e me
levantei, sem apoiar o pé ferido no chão.
Nicholas retomou a postura.
— Como quiser. Me acompanhe.
Meneei com a cabeça, em concordância, e esperei até que ele
seguisse em direção ao objetivo. Porém, Nicholas permaneceu
estático.
— O que foi? — questionei, confundida.
Ele olhou para baixo, exatamente em meus pés.
— Vai assim?
— Assim como?
Ele gesticulou com uma mão.
— Assim. Não vai tirar a outra? — Ele se referia à bota ainda
calçada; a que naquele momento servia como meu porta-joias.
— Por que tiraria? Só machuquei um pé — enfatizei.
— Que Deus me ajude... — suplicou. — Maisie, perguntarei
apenas uma vez — anunciou e respirou fundo. — Há alguma razão
lógica para que você não queira tirar seu outro calçado?
Senti minha cabeça rodar. Aquela era a oportunidade de contar
para Nick o que eu fizera. Ele era um bruto, mas no fundo da minha
alma eu sabia que ele me ajudaria. Se eu me abrisse e
compartilhasse com Nicholas que eu roubara os colares de Iolanda,
ele primeiro surtaria e depois consertaria a situação.
Mas, na hora de abrir a boca e esclarecer o ocorrido, não
consegui encontrar as palavras. Elas simplesmente morreram dentro
de mim. Como se tivessem sido trituradas, espalhando cada pedaço
em um canto.
— Não — falei.
Ele me olhou de forma suspeita, de modo que demonstrava que
sabia que eu mentira.
— Tem certeza? — pressionou e se pressionasse mais um
pouco arrancaria suor de mim.
— Sim. Certeza. — Engolir saliva nunca foi tão cortante.
Pareceu rasgar minha carne como uma afiada lâmina.
Nicholas optou pelo silêncio. Ele seguiu em direção à um
corredor e eu o acompanhei, igualmente calada. Eu queria varrer o
ambiente com os olhos e desvendar mais sobre aquele homem
através dos seus objetos, mas erguer a cabeça era quase impossível
quando a mentira a empurrava para baixo.
— Há toalhas limpas dentro do armário — avisou e indicou com
o dedo. — Procurarei algo para você vestir. Qual seu tamanho?
Me analisou dos pés à cabeça, causando palpitações estranhas
entre minhas pernas. Era como se eu quisesse que ele me tocasse
bem ali, na minha parte mais íntima e inexplorada, com os dedos, a
boca, com tudo que ele quisesse. Eu me sentia como uma concha
que se cansara de ficar fechada. Essa concha queria ser vista e
apreciada, assim como todas as outras do mar.
Nick ficou mais ofegante quando me aproximei e me ergui na
pontinha dos pés, perto o bastante para ser queimada feito papel
diante seu hálito cálido. Não havia mais dor, nem medo. Aquilo que
eu sentia, os tropeços que meu coração dava perto daquele sujeito,
a respiração desgovernada, era mais intenso que tudo. Tinha a força
de um tornado.
Não me bastando somente olhá-lo. Fui com as duas mãos em
seu rosto, lenta como uma sonata clássica e suave como uma pétala
de lírios brancos. Ele que era gelo, derreteu ao meu toque. Os azuis
tempestuosos cravados em mim, abrandaram-se até se tornarem
meros chuviscos de verão.
— O que está fazendo? — O timbre foi rouco.
— Tocando você.
— Por que? — Colocou sua mão sobre a minha, abrupto como
se pretendesse retirá-la de início, mas desistira durante o processo.
— Porque senti-lo uma única vez não me foi o bastante.
Encostei meu nariz no seu.
— Isso é errado... — falou e fechou os olhos. Foi possível ouvir
as reticências na sua mente.
— Olhe para mim.
— Não.
— Não? — perguntei, retraída.
— Olhar para você me faz pensar em mil poemas diferentes.
— Poemas são amáveis.
Ele abriu os olhos e me sorriu descaradamente com eles,
provocando uma chama mais ardente entre nós.
— Não os meus — respondeu, diabólico, e apertou seus cinco
dedos em minha mão, exigindo que eu o tocasse com mais firmeza.
— Meus pensamentos geralmente são sobre agarrar seus cabelos.
Arfei.
— Agarre-os.
Ele comprimiu os lábios e depois mordeu o inferior, como se na
esperança de não perder a cabeça. Para mim era um pouco tarde
tentar algo desse tipo, uma vez que meu interior estava molhado
feito à margem de um rio.
— Maisie — soou severo. — Se você nunca deu um beijo,
então, nunca...— franziu o cenho. — Deus do céu. Eu não posso.
Não posso.
— Por que sou uma ladra?
Ele se afastou de supetão, fazendo jus ao apelido que me dera
de “peste”.
— Não. — Foi firme na resposta. — Foda-se aqueles pãezinhos.
Não posso porq...Porque você é pura demais. Você é só uma garota,
Maisie. Uma doce garota que come como se não houvesse amanhã.
Que suja o canto da boca de chocolate e me faz desejar limpá-lo.
Só tive tempo de piscar rapidamente e absorver o discurso.
— Apenas entre no banho. Por favor — ele acrescentou.
— Eu na...
— Estou pedindo, por favor.
Apenas entrei.

Não imaginei que fosse demorar tanto em um banho. Eu tinha


uma forte suspeita de que a culpa não era da água quente, apesar
de deliciosa e relaxante. Tampouco culpa do sabonete de odor
bastante masculino que fazia eu me sentir agarrada ao próprio corpo
do Nick.
A culpa era EXCLUSIVAMENTE da minha depravação. Por
Odin, nunca imaginara que desejos sexuais podiam ser tão
incontroláveis. Minha feminilidade nunca ter sido apalpada por um
homem não significava que minha mente não se divertia imaginando.
Claro que meus pequenos dedos não eram capazes de realizar as
mesmas mágicas, mas aliviavam-me.
Desliguei o chuveiro e peguei a toalha para... Não, não, não.
Tive tempo apenas de ver o tecido ser consumido pela água da
privada.
Inclinei o pescoço para avaliar a situação. Eu não era corajosa o
bastante para enfiar minha mão e retirara-la de lá. Tampouco seria
vantajoso, visto que sua função era me secar e, bem...
Revirei novamente o armário em busca de outra peça, mas as
que sobraram eram toalhas de rosto.
Hoje não é meu dia. Não é meu dia!
Sem alternativa, peguei duas e me sequei o máximo possível,
depois usei-as para proteger minhas partes. Os seios até que
ficaram bem escondidos, já as nádegas...não podiam dizer a mesma
coisa.
Abri a porta vagarosamente.
— Nick? — Chamei.
Não houve resposta.
— Nick? — Um pouco mais alto. A terceira vez saiu em um grito:
— NICK?
O silêncio absoluto me obrigou a colocar o primeiro pé fora do
banheiro.
Que maldição.
O segundo pé. Me esgueirei pelas paredes e fiz uso dos objetos
para proteger minha nudez. Mas, Nick não parecia estar no
apartamento. Estava tudo quieto demais. O homem arfava e
praguejava o tempo todo. Eu o ouviria de longe se estivesse lá.
Aproveitei a oportunidade e corri em busca do meu vestido. Era
preferível uma roupa suja que aquela depravação. Assim que dei o
primeiro impulso, a porta da frente foi aberta.
Eu gritei. Não. Eu esguichei. De pânico, vergonha. Era difícil
descobrir qual sentimento me dominava quando todos pareciam
competir com ímpeto.
— Eu estava procurando por você. — Arduamente, consegui me
explicar sem gaguejar.
De modo cavalheiro, virou-se de costas.
— Me sinto honrado, mas já falamos sobre isso...
— Não. Diabhal (diabo). Eu tive a infelicidade de derrubar a
toalha na privada e não encontrei outra para me secar. Apenas essas
pequenas demais... — Me olhei, e depois pra ele de novo. — Onde é
que você estava?
— Saí para comprar outro vestido para você, após pensar que
seria muito suspeito se a senhorita retornasse à delegacia com
minhas roupas no corpo — explicou solicitamente e ergueu a sacola
que possuía na mão para comprovar o que dizia. — Deixarei a
sacola no chão e irei de costas para meu quarto. Avise-me quando
estiver pronta, sim?
Ele começou a se abaixar de modo lento até largar a sacola no
chão como disse que faria.
— O vestido não é idêntico, mas, semelhante. Creio que o
delegado ou algum outro policial não vá reparar.
Ele olhou por cima do ombro. As gotas de água que ainda
estavam sobre minha pele, evaporaram após aquele olhar cálido de
Nicholas percorrendo em minhas curvas. Eu não era ousada, só que
quando eu estava perto daquele sujeito, transformava o mundo no
meu próprio inferno. Minhas mãos ardiam, meus pés queimavam. A
inocência costumava me cair como uma luva. Só que não mais.
Ele deixou a sala sem erguer os olhos do chão, murmurando
coisas simplesmente ininteligíveis.
Corri até a sacola assim que ouvi Nick fechar a porta do cômodo
que entrara. Havia de fato um lindo vestido verde, do mesmo tecido
que eu usara no casamento de Tess. Não havia qualquer outra coisa
além disso. Bem, seria muito pedir que tivesse me comprado
também roupas íntimas.
Joguei o vestido por cima do corpo e o ajeitei. Não coubera
perfeitamente, ficara um pouco grande nos braços e no
comprimento, mas ainda era muito melhor que...
— O que é isso!? — Ele bradou.
Levantei os olhos ao som da voz e vi os benditos colares de
pérolas em suas mãos. Quando Nicholas entrou no cômodo para me
dar privacidade, eu não percebera que fora no exato banheiro em
que eu esquecera minha bota valiosa.
— Eu lhe fiz uma pergunta — repetiu rispidamente e se
adiantou.
Engoli em seco.
— Colares.
Cerrou o cenho até formar penosas linhas na testa.
— De quem são esses colares, Maisie!? — Cruzou o curto
espaço que nos mantinha em uma distância segura e ficou frente a
frente comigo. — DE QUEM SÃO ESSES COLARES!?
Fechei os olhos ao som do seu ardido grito.
— E-eu não sei. Não sei.
— Não sabe? — Riu nervosamente.
— Eu os peguei de Iolanda.
— Por que? Por que infernos você faria isso?
Encolhi os ombros.
— Acho que...acho que eu pretendia pagar minha liberdade.
Ele arregalou os olhos em um misto de surpresa e deboche.
— Ah, você pretendia pagar por um roubo cometendo outro?
Passei as mãos pelo rosto.
— RESPONDA!
Estremeci com seu último berro.
Eu entendia a irritação de Nick, de certa forma. Ele
generosamente me levara em sua casa para que eu tomasse um
banho descente, me comprara roupa, e de repente, descobriu que eu
era uma desgraçada que roubava não só pãezinhos, mas também
outros criminosos.
— Eu...— Amansou a voz. — Não sei o que farei com você,
Maisie. Estou tentando ajudá-la. Juro que estou.
— Não sou sua responsabilidade. — Me irritei.
— Não. Não é — concordou. — Mas eu quero protegê-la.
— Não é verdade. Se quisesse me proteger não teria apontado
uma arma para mim horas atrás.
— Eu nunca planejei puxar aquele gatilho — confidenciou e
deixou os braços antes estendidos, descansarem.
— Você foi com os dedos nele, eu vi — relembrei.
Ele ergueu a sobrancelha, indeciso.
— Sabe usar uma arma?
— E algumas outras coisas.
— Isso me deixa em uma situação complicada. Trouxe uma
ladra para minha casa e agora descubro que ela poderia facilmente
me matar — falou seriamente.
— Facilmente — reiterei.
Cruzei os braços. Eu estava adorando aquele tipo de poder. Até
aquele momento, Nicholas Coleman me via como uma tola que
precisou lhe pedir por um beijo. Uma maluca que arriscou a liberdade
em troca de comida. Mas, de repente tudo mudou. Agora era eu
quem o via como um policial tolo que se deixou levar por um rostinho
singelo.
— Era isso que fazia? Aprendia disparar uma arma enquanto
garotas da sua idade beijavam?
— Prioridades, Nick. Prioridades.
— O que mais sabe fazer?
Passei a língua pelos lábios, enquanto ponderava a resposta.
— Deixar um homem tão curioso a ponto de ele esquecer que
estava bravo.
Ele apertou os olhos discretamente e passou uma mão pelo
cabelo castanho-claro, ajeitando-o para trás.
— Isso — ergueu os colares mais uma vez — poderia matá-la
verdadeiramente. Iolanda e os outros sacrificaram suas vidas por
esses colares.
— Ela foi presa por roubá-los?
— Descobri que Iolanda trabalhava numa joalheria como
vendedora. Ela se uniu à um grupo de falsificadores de joias e
arquitetou um plano que consistia em trocar peças originais da loja
por réplicas. Isso durou por um mês. Ela só foi descoberta porque a
Duquesa de Sussex recebeu uma das peças falsificadas.
Abri a boca em espanto.
— Agora compreende o quão ferrada estaria se usasse isso
para pagar seus pãezinhos?
Encarei o brilho das pedras brancas. Quase era possível ver
meu reflexo.
— São tão lindas — admiti.
— Mais linda que ter sua liberdade? — contrariou Nicholas.
Neguei.
— Nada é mais lindo que a liberdade — disse.
— O que fará com isso? — questionei ao vê-lo guardar meus
colares roubados no bolso da calça.
— Como assim o que farei? Vou entregá-los à polícia, é claro.
— Você é a polícia — contestei.
Nick me sorriu com doçura, corando minhas bochechas.
— Sim, mas isso não significa que tenho direito de ficar com os
objetos roubados.
— Sendo assim, me parece um serviço chato — falei, sem
papas na língua.
— Costumava ser. O que você está olhando? — Ergueu uma
sobrancelha.
Apontei com o indicador.
— A mancha de sangue em sua camisa. Você está ferido?
Ele baixou o olhar.
— Não. O colete me protegeu.
Me encolhi toda.
— Eu sinto muito — disse, com pesar e honestidade.
— A culpa não foi sua. Eu gostaria que fosse, facilitaria as
coisas para mim.
— Prometo, então, que da próxima vez eu me encarregarei
dessa tarefa — falei para descontrair. Ele reagiu ao comentário com
um largo sorriso.
— A senhorita tem uma boa pontaria?
— Muito boa — garanti. Era mentira.
— Permita-me dizer que você não me parece muito convicta
disso. — Riu no final da frase.
— Ora, então me dê uma arma — exigi e cruzei os braços na
defensiva.
— Eu não seria tão maluco.
— Está com medo — falei, com um ar provocativo.
— É claro que estou com medo. Você teve a capacidade de
tropeçar em um vaso de 67cm de altura, e eu não sei nem como
conseguiu isso.
— Ele estava no meu caminho — rebati, zangada.
— Não é muito inteligente da sua parte culpar algo que nem se
move.
— Não estou culpando.
Me sentei no chão para calçar minhas botas, enquanto ouvia
Nick rir de mim.
— Como seus amigos ainda não enlouqueceram na sua
presença?
— Meus amigos são peculiares. Me passe o outro pé? — pedi,
vendo o calçado do pé direito bem atrás dele.
Nick gentilmente o pegou.
— Consegue fazer isso sem se matar? — questionou, sem
qualquer menção de entregá-lo.
O encarei e respondi com seriedade:
— Não sou tão boba quanto pensa.
Devolveu o olhar.
— Acha que é isso que penso a seu respeito?
— Eu honestamente não sei o que pensa sobre mim. Na
verdade, deve ser o mesmo que todo homem. — E revirei os olhos.
— Não sou como a maioria dos homens.
Molhei a garganta.
— Tem razão. Você me beijou por piedade. Isso já é mais que
qualquer um fez.
Nick se agachou e, antes que eu percebesse, segurou meu pé
descalço e calçou minha bota com cavalheirismo.
— Não sou tão piedoso, Maisie. Nunca tomaria uma mulher em
meus braços por piedade — garantiu. — A beijei porque seus lábios
sempre me pareceram convidativos.
— São? — Passei a língua por eles inconscientemente.
Ele amarrou o cadarço com destreza. Seus cabelos pareciam
ainda mais iluminados àquela luz branca. Eu nunca havia reparado
em cabelos masculinos com tanta atenção. Eram tão... Charmosos?
— Eles têm um formato curioso e quando estão cheios de
comida...não existe nada igual.
Formato curioso? Por favor, Nick. Você pode encontrar um
adjetivo melhor.
— Você, Maisie — prosseguiu, finalizando o laço —, me
enlouquece e eu ainda estou por decidir se o efeito é algo realmente
bom.
— Gosto da sua honestidade — admiti.
— Não estou sendo honesto. A honestidade em um momento
delicado como esse me faria cometer uma atrocidade. Quando a
beijei, “lábios curiosos” não foi o que se passou por minha cabeça.
Foi algo muito mais diabólico.
Inclinei o queixo para frente. Entreabri a boca e permiti que,
através da minha respiração, Nick sentisse o calor que ele
despertava dentro de mim.
— Pare de fazer isso — exigiu e agarrou meu tornozelo. —
Apenas pare. Não quero ferir você.
— Como poderia me ferir? — Não houve medo dentro de mim.
Não houve absolutamente nada além de um desejo que me
consumia lentamente.
— Não sou o cavalheiro que você merece, Maisie. Eu anseio por
seu corpo, não por seu coração.
E aconteceu nada diferente do que ele disse. Fui ferida sem
precisar ser tocada. Fantasiosa. Eu fantasiava o romance perfeito,
mas romances perfeitos não existiam. O mundo real consistia-se
muito mais em perversidade que amor.
Me levantei bruscamente e fingi que não vi quando pisei de
propósito na mão de Nick. Ele ganiu em dor.
— Ah, sinto muito. O machuquei? — Fui dissimulada.
Ele fechou e abriu a mão pisoteada e se ergueu.
— Seja mais convincente na próxima mentira. — Me alertou.
— Não estou mentindo. — Tentei sair pela tangente. — Acha
que eu pisaria em sua mão apenas porque você disse que deseja
apenas sexo de mim?
— É sempre tão direta?
— Isso o amedronta?
Não respondeu.
— O venci? Estou surpresa por não ter uma réplica preparada
— falei.
— Certa vez me disseram que sou muito mais inteligente calado.
— Uma pessoa sábia, certamente.
Sua expressão ficou sombria e os olhos tornaram-se uma
nuvem carregada.
— Quem me disse isso foi a mesma pessoa que me deixou
embaixo de chuva por cinco dias amarrado à uma árvore.
Cambaleei como se alguém tivesse me empurrado.
— Como assim?
Virou o rosto. Sua face ficou pálida e os ombros tensionados.
— Não importa mais.
— Importa, sim — garanti. E fui franca.
— Não quero falar sobre isso, Maisie.
— Por que?
O questionamento atraiu sua atenção, apesar de ter sido
simples.
— Porque isso a traria para dentro do meu mundo. A faria visitar
meus demônios.
— Seria tão ruim assim, para você, ter uma amiga como eu?
Franziu o cenho.
— Eu tenho uma filha, Maisie. Eu a conheci em um abrigo
quando fiz uma viagem a Malawi. Passei anos tentando adotar essa
menina, para salvá-la. Ela fora abandonada por seus pais, estava
com a saúde comprometida, beirando à morte — engoliu em seco ao
recordar. — Eu estava noivo quando consegui a guarda da criança.
Minha noiva e Luli, minha filha, se tornaram a minha âncora. Eu
finalmente estava construindo a família que nunca tive. — Olhou
para as próprias mãos com desgosto. — Eu poderia aplicar o clichê e
dizer que em um belo dia tudo acabou. Mas não seria verdade. Não
foi um belo dia quando minha noiva me trocou por meu melhor amigo
e abandonou minha filha e eu. — Seus olhos lacrimejaram. — Eu me
recuperei, sou uma pessoa acostumada com a dor. Mas não é fácil
para uma criança ser abandonada duas vezes pela mãe.
Uma filha? Como eu poderia imaginar?
— Eu lamento. E-u realmente não sabia.
— Seria estranho se soubesse — soltou uma risada forçada e
ingressou os dez dedos nos cabelos. — Não sei porque compartilhei
esse tipo de informação com você.
— Talvez tenha achado que dessa forma você me afastaria.
Mas, sinceramente, acho incrível o que você fez pela criança. Onde
ela está?
— Na casa das tias dela.
— Eu gostaria de conhecê-la.
O semblante fora de dúvida.
— Não tenho certeza de que será uma boa ideia. Ela é uma
criança retraída e que se apega facilmente às pessoas. Se você
entrar na vida dela, Maisie, e depois sair...
— Não pretendo sair — interrompi.
— Você não pode afirmar tal coisa quando só está aqui porque
as circunstâncias a obrigou.
Ele tinha razão. Eu não estava ali porque queria, contudo, cada
decisão da minha vida me levou até aquilo. Quantas coisas
precisaram dar errado, quantas adversidades aconteceram no cosmo
para me levarem até Nick? Não haviam sido somente 5 pãezinhos.
Fora o destino. Se Nicholas Coleman não tivesse atravessado a rua
naquele momento, se eu não tivesse sido encarregada de comprar o
bolo de Tess, eu nunca o conheceria. A verdade era que nada dera
errado, tudo já estava prescrito para acontecer exatamente daquele
jeito e naquele instante. Então, eu descobri que, na verdade, não
fora os pãezinhos doces que eu desejara fervorosamente, fora Nick.
O tempo todo, Nicholas Coleman.
— Não sairei. — Tornei afirmar. Só que dessa vez não fora para
ele, fora para mim.
E naquela noite as estrelas sorriram satisfeitas quando Nick me
cravou olhos que fizeram meus pés se aproximarem de um
penhasco de 75 metros de altura. Foi uma nascente de azuis cianos
— fortes e cristalinos — que fizeram meu mundo parar de girar e
meu coração agitar diante o inquestionável: eu estava apaixonada.
Perdidamente apaixonada.
Um único passo e eu estaria acabado. A intensidade com que
Maisie me observava, me obrigava a decantar meus sentimentos. Eu
não podia beijá-la. Mas era impressionante o quanto eu queria.
Suas madeixas, quase secas, formavam ondas revoadas nos
seus ombros. Seus olhos, naquela ocasião, azul-esverdeado
desembocavam pequenos rios que queriam se aglutinar ao mar,
tornando-os ainda mais encantadores. Era quase como se me
dissessem: venha, mergulhe sem medo nos meus 12 metros de
profundidade.
Como uma garota de apenas 23 anos era capaz de me deixar
tão hipnotizado a ponto de eu não perceber que eu dera alguns
passos em sua direção?
Contemplando-a um pouco mais perto, era impossível dizer não.
— Nick...
— Shhh, não diga nada. — Passei a mão por seus cabelos. Do
início ao fim, tornando a experiência um banho de excitação. —
Apesar de eu não ter refletido com clareza o que diabos estou
prestes a fazer, admito que estou adorando.
— Então continue — ela pediu.
— Quer me ver perdido, não é, garota? — Puxei seus cabelos.
— Gosta de me ver sacrificar minha dignidade?
Maisie suspirou de modo atrativo. Daí em diante todas as
partículas do meu ser foram seduzidas por ela, se tornando inútil
clamar qualquer santo.
— Pro inferno minha dignidade! — E a beijei, sem qualquer
controle. A tomei como um ébrio anseia por um copo de água para
curar a ressaca, e me embriaguei como um alcoólatra infeliz. Me
tornei um virgem em seus lábios, um maldito descontrolado
percorrendo por seu pescoço. Eu queria feri-la com os dentes,
afundar minha língua entre suas pernas. Apertar seu corpo com os
dez dedos e torná-la minha.
Minha?
A empurrei. Tive de me afastar enquanto a sanidade não havia
sido totalmente sufocada pelo cheiro feminino. Olhos arregalados
aguardavam por uma explicação e lábios avermelhados por mais
beijos. Sua respiração elevada obrigou meus olhos a encarar os
seios arrepiados no fino tecido que os cobriam.
Ela é uma intocada. Me tornar o primeiro homem da sua vida
mudará tudo para Maisie e ela nem me conhece de verdade.
— Maisie...
— Não pense e não fale — ela ordenou.
— Eu preciso. É a sua...honra que está em jogo.
Eu queria ser esse cara? Com toda certeza eu queria ser o
sujeito encarregado de fazer aquela garota subir pelas paredes, mas
não o cara a deturpar sua castidade.
— Sempre achei que fossem as garotas que ficavam nervosas
em momentos como esse. — Tirou sarro.
— Não estou nervoso — menti. Tudo o que eu não estava, era
calmo.
— Você está — refutou.
— Só um pouco — confessei. Ela sorriu. Era tão doce as curvas
que faziam aqueles lábios.
Acalentei seu rosto com a ponta dos dedos, sentindo a maciez
da sua pele. Mas, ainda que o fogo estivesse queimando da minha
pele ao coração, eu sabia que ela merecia algo muito mais singelo
que um agarrar de cabelo e mordida nos lábios.
Para a minha tragédia, ela deitou a cabeça em minha mão.
— Eu sou um homem com uma bagagem grande demais para
uma garota como você.
— Uma...Uma garota como eu? — Balbuciou e endireitou a
coluna. Eu senti a falta do calor da sua pele assim que se afastou.
— Uma garota pura. Qualquer homem que se sujeitasse a
magoá-la mereceria ser levado à forca — falei com honestidade.
— Você pretende me magoar?
Engoli em seco.
— Certamente não pretendo magoá-la. É exatamente por isso
que não posso e não irei desonrá-la, sabendo o quanto isso é
importante para você. E está claro para mim que é.
Ela se aproximou um passo.
— O senhor faz parecer que imploro por isso, quando na
verdade, é você quem não deixa de encarar meus lábios um minuto
sequer. — Contra-atacou, me deixando sem qualquer expectativa de
reverter os fatos.
— Deve ser do conhecimento de todos que eu quero beijá-la,
mas não seria justo com... — Ela segurou meu rosto com as duas
mãos e não olhou qualquer outra coisa que não meus olhos. Todo
meu corpo se arrepiou, o calafrio alcançou até mesmo minhas
orelhas.
Era inenarrável o quanto eu estava perdido.
— Deixe que eu decida o que é justo e o que não é. Se quiser
que eu vá embora...
— Não quero — a cortei, surpreendendo a mim mesmo com a
rapidez com que aquilo atravessou a minha garganta. — Maisie,
você nunca foi uma ladra qualquer — afaguei seus cabelos
ondulados. — Você sempre será a ruiva que me fez encarar meus
medos. A garota mais linda de toda a Escócia.
— Conhece todas as garotas da Escócia? — perguntou.
Eu sorri.
— Nem preciso. Eu conheço você e duvido muito que alguma
outra supere o que vejo.
— O que vê? — Ergueu-se na pontinha dos pés.
Aproximei meus lábios dos seus, mas não a beijei. Apenas
queria que aquelas palavras fossem ditas próximas o bastante para
que nenhum vento pudesse distorcê-las ou modificá-las.
— Algo que desejo como nunca desejei nada antes. Mas que
não posso ter.
— Sim, você pode. Estou bem aqui.
E o que eu mais temia se concretizou. Amordacei sua boca com
a minha. Não foi sob à luz do luar que a beijei pela terceira vez, mas
eu podia jurar que vi estrelas quando nossos lábios se uniram. Eu
deixei de lado meu profissionalismo porque a angustia renovada de
querê-la e não a possuir, fazia eu sentir como se todos meus ossos
estivessem se partindo. Sendo esmagados.
Se ao menos ela soubesse quem em eu sou de verdade.
Agora tudo estava irreparavelmente perdido.
— Prometo que serei gentil. Prometo que pararei assim que
você pedir, nem um segundo depois — murmurei e fui
insensivelmente obrigado a completar: — Mas, você precisa saber
que eu não posso lhe prometer nada além de prazer.
Minhas mãos em seus quadris estavam pressionadas o bastante
para eu ser capaz de sentir o frio que domou seu corpo tal como um
cadáver.
— Não estou pedindo por seu coração.
A ergui em meu colo, arrancando um harmonioso gritinho dela.
— Está dizendo que se eu me sujeitasse a lhe entregar o meu
coração, eu seria rejeitado? — perguntei cautelosamente, na medida
em que a levava em direção ao meu quarto num bailado erótico.
— O senhor não seria tolo em entregar seu coração, em suas
palavras: “para uma garota como eu.”
Empurrei a porta com o pé.
— Eu teria que ser muito estúpido, não é mesmo? — As
palavras saíram sufocadas.
— Muito — sancionou.
A deitei sobre o lençol cinza, agindo frágil feito um sonâmbulo. A
minha mente estava tão domada, que tudo o que se passava por ela
estava relacionado àquela garota e em sua aparência de crepúsculo
da manhã. Ela era mágica e irreal. Tudo nela brilhava, o rosto
parecia um diamante e os olhos, transparentes como cristais. Ela era
perfeita, em cada mínimo aspecto.
— O que foi? — Ela perguntou ao notar a minha confusão.
— Isso será ruim para você. Ainda que eu me esforce
arduamente para tornar a experiência o mais agradável possível.
— Me parece impossível algo feito por você ser ruim.
Cerrei o cenho. Ela estava... Deus do céu. Maisie evidentemente
estava apaixonada por mim. Como pude não notar antes? Que
homem eu seria se me deitasse com uma garota apaixonada sem ter
nenhuma intenção em corresponder aos seus sentimentos.
— Novamente fechou a cara. Começo a pensar que há algo de
errado comigo.
Me levantei da cama.
— Não há nada de errado com você. Eu quem sou um tremendo
de um idiota.
— Por que?
— Não está claro o suficiente?
— Ainda que esteja, faça a gentileza de explicar. — Pediu em
um timbre áspero.
— Eu preciso que isso acabe. Prometa que não me seduzirá
novamente ou eu ter...
Ela não permitiu que eu completasse a frase.
— Seduzi-lo? Me parece improvável que eu tenha
conhecimento o suficiente sobre a libido dos homens para saber o
que os agrada.
— Não sei nada a seu respeito para imaginar do que é capaz. E,
por favor, não pense que estou isentando minha culpa. É muito
possível que eu a tenha cortejado e isso fez florescer sentimentos...
— Sentimentos? — A voz soou seca.
Tive de encará-la. Maisie não seria capaz de negar, seria?
— Sentimentos. É nítido que está apaixonada.
Eu esperava qualquer outra coisa dela, exceto um arremesso de
travesseiro em minha cabeça.
— Como ousa?
— Nega que está apaixonada por mim!? — Me exaltei.
Suas maçãs ficaram da cor de um morango.
— Nego e ainda me atrevo a afirmar o oposto. — E, na
satisfação em me esnobar, ela fez uma imitação grotesca da minha
voz: — “Não há escocesa mais bela que você.”
Trinquei o maxilar.
— “A olhei tanto, que em determinado momento pude contar
suas sardas” — prosseguiu.
— A lançarei por essa janela se continuar — ameacei, sentindo
a humilhação esmagar o meu orgulho.
Ela cravou os olhos em mim e deu um sorrisinho torto.
— O que foi, Coleman? O fiz corar? O fiz perceber que não é o
turrão que pensava ser? — Empinou o nariz e disse como se tivesse
propriedade para dizer: — O senhor é gentil e doce, por debaixo
dessa farda.
— Você não sabe nada sobre o homem por debaixo dessa farda
— retruquei.
— Então mostre-me.
— Não a desnudarei se suspeitar que esteja apaixonada por
mim — garanti, como uma verdade que eu mesmo não partilhava.
Maisie se levantou e deu duplos e leves passos em minha
direção.
— Tem a minha palavra de que não sinto nada por você. Nada
— jogou os cabelos para o lado de modo instigante e começou a se
despir, desavergonhadamente — a não ser desejo.
A olhei admirado e subitamente, ferido.
O vestido deslizou por seu corpo, massageando suas curvas
perfeitas. Perfeitas. Não era a primeira vez que Maisie fizera tal
palavra atravessar meus pensamentos. A perfeição não existia, mas
parecia cair tão bem quando se tratava dela.
— Se continuar me encarando dessa forma, eu perderei toda a
coragem que me surgiu de não sei onde — murmurou e passou a
mão fresca pelo dorso. Me sentia sozinho e com o Universo inteiro
para mim.
Parecia não existir um único espaço em sua pele onde as
pintinhas não estavam. Era curioso perceber o quanto elas me
encantavam. Os seios pequenos e rosados, caberiam perfeitamente
em minha boca. Não havia dúvida.
— Amadan (uma tola)! — Disse, engasgada e se preparou para
recolher a roupa do chão.
Fitei, inconscientemente, a sombra dos seus olhos.
A angústia me enlaçou.
O choro aprisionado ardia na garganta. Eu não saberia dizer
porque raios fiz aquilo. Na verdade, eu queria parecer confiante para
ele. Me mostrar uma mulher madura e decidida, mas acabara me
tornando um motivo de espanto. Nick continuava me fitando com
aquela expressão indecifrável, era como se estivesse em choque.
Recolhi o vestido do chão. Não sabia por mais quanto tempo
conseguiria segurar o choro, os soluços, e tudo que acompanhava
aquele sentimento de fraqueza.
— O que pensa que está fazendo? — Ele me segurou pelo
cotovelo com firmeza ao encurtar a distância imprecisa e vagamente
perturbadora.
— Pretendo me vestir. Não sou uma escultura para ser
analisada deste modo.
Pude ouvir o rumor da sua respiração.
— Então não devia ter nascido tão deslumbrante.
Baixei o olhar.
— Dê-me licença — exigi.
— Maisie, o que você fez foi golpe baixo. — Não sei em que
momento suas mãos piedosas instalaram-se em meus seios e meus
olhos se fecharam. Tudo que eu segurava foi para o chão, inclusive
minha dignidade. — Diga que me quer e eu serei seu.
Ele massageou caridosamente meus seios, destronando meu
orgulho.
Bem lenta e vagamente.
Eu nunca teria imaginado que ser tocada ali me faria querer
soltar gemidos.
— Isso não ficou claro o bastante? — consegui balbuciar. Gemer
na frente de um homem ainda me parecia extravagante demais.
— Sim. No entanto, a ideia de ouvi-la dizer me parece
encantadora. — Apertou com mais força. Eu me engasguei com o
oxigênio, tornando inviável pronunciar qualquer sílaba. — Vamos,
garota, estou aqui para obedecê-la.
Minha alma se ajoelhou em seus pés.
— Eu o...
— Olhe para mim — pediu, antes que eu pudesse concluir a
frase. — Isso não terá graça se o fizer de olhos fechados.
O obedeci. Ainda que o azul dos seus olhos continuasse
parecendo um céu límpido, uma chama quente bailava dentro deles.
Minhas mãos suavam como se eu estivesse em um estado
febril. Seus dez dedos partiram dos seios para um pouco abaixo do
meu umbigo, não muito distante da minha parte mais molhada. Num
êxtase, me debrucei sobre ele.
— Apenas pronuncie as palavras e eu juro que farei de tudo
para tornar essa noite a melhor da sua vida — soou rouco.
— Eu o quero.
O sorriso singular e amargo do infeliz me derreteu. Ele era um
aquecedor humano.
— Que seja feita a sua vontade. — Quando a última palavra
deixou seus lábios, ele se transformou. Foi como se tivesse libertado
um ser que se cansara de ficar preso. Os olhos azuis, tornaram-se
infernais.
— O que...O que pretende fazer comigo? — A frase saiu
estrangulada. A mulher desinibida voltou a ser uma criança
assustada. Talvez eu tenha brincado com fogo sem estar pronta para
me queimar.
Ganhei um sorriso rebelde, semelhante ao anterior. Senti ondas
revoltadas na minha barriga e meus pés pareceram de barro.
— O que quer que eu faça? Estou aberto a sugestões. — Atiçou,
com cheiro de pecado. Tão confiante e solto. Recuei e ele reparou
no breve espaço que causei entre nós. — Virá até mim por conta
própria ou eu terei de buscá-la?
Ele esticou sua mão para que eu a segurasse.
— Eu nunca faria nada para machucá-la.
Eu engoli em seco e coloquei minha mão sobre a sua. Ele me
puxou para seus braços longos e tentadores, debruçou-se para um
suave beijo em meu ombro nu, acendendo novamente uma vela
dentro de mim.
— Pararemos quando você quiser. Ou se preferir, nem
começaremos. — Soprou as palavras em meu ouvido.
Prendi o ar. Era tão reconfortante estar envolvida em braços tão
fortes e protetores. Fazia eu me sentir como algo valioso. Mas não
era a verdade, eu seria só mais uma na vida dele. Eu tive de mentir
sobre meus sentimentos para tê-lo.
Nada que começa com uma mentira, terá um final feliz.
Aquilo soou como um sino na minha cabeça.
— Me beije — pedi, acompanhada de um gemido quase
melodioso. Ele segurou meu queixo para acatar ao meu pedido
quando o mais alto trovão estremeceu o céu.
— Maldição — rosnou quando um trovão mais alto que o
anterior eclodiu no céu. Seus olhos voltaram a ser mares sem
horizontes precisos.
Aquilo fora um sinal. Só podia ser um sinal dos deuses para
mim. Thor viu o que eu estava prestes a fazer e mandou um recado.
Me desvencilhei de Nick e fui até meu vestido. O peguei e o
coloquei sem pensar duas vezes.
— Aonde está indo? — Nicholas questionou ao me ver pronta
para atravessar a porta do quarto.
Dessa vez foi um relâmpago quem deu seu espetáculo no céu.
O clarão foi tão intenso, que por um instante a noite pareceu dia.
— Está vendo isso? — Apontei para a janela de vidro que dava
um vislumbre claro do céu. — É por culpa minha.
— O que é culpa sua? A chuva? — indagou, perdido.
— Sim. — Cruzei os braços no peito. — Eu estava prestes a me
deitar com você em virtude de uma mentira.
— Uma...Uma mentira? De que diabo você está falando?
Desviei o olhar. Eu não era corajosa o bastante para admitir que
me apaixonara por ele. Não depois de tanto ter negado e jurado em
vão.
— Eu a alertei inúmeras vezes que não precisávamos fazer isso,
não precisa se agarrar a desculpas...
Rilhei os dentes.
— Acha que é isso que estou fazendo? Criando desculpas?
Ele olhou pela janela, como se para garantir que o céu não
planejava pegá-lo desprevenido com outro estrondo quando ele
passasse.
— Maisie, pode se ouvir? Você quer que eu acredite que é a
culpada pelo temporal?
— Quer saber? Apenas me leve de volta para a delegacia.
Ele não se moveu.
— Está chovendo — soou trêmulo, como se ele avançasse
numa corda bamba. Eu podia imaginar o quão penoso era para ele
demonstrar fraqueza por algo tão irrisório.
Suspirei. Eu compreendia e aceitava seus traumas, mas não
quando ele debochava dos meus.
— Está bem. Acho que sei o caminho.
Trovejou novamente.
— Maisie, se você tentar atravessar essa porta eu terei de
algemá-la — vociferou. O rosto parecia uma ardósia prestes a ruir. —
Espere a chuva cessar, então prometo que eu mesmo a levarei.
A sua paciência me sacodiu feito uma fera. Como ele era capaz
de rir das minhas crenças depois de eu tê-lo ouvido resmungar seus
medos por mais de uma vez?
— Egoísta.
— O que disse? — perguntou, com um ouvido em mim e outro
na chuva.
— Não importa. — Desconversei e ele não insistiu.
Me sentei no sofá da sala para esperar a chuva diminuir. E sem
que eu me desse conta, as pálpebras tombaram sobre meus olhos
cansados.

O clarão da manhã abriu meus olhos com a sutileza de dois


ganchos.
Não. Droga.
Pulei do sofá meio sonolenta e parti com os joelhos direto para o
chão.
— Quem é você?
Procurei pela voz. Uma loira, de cabelos pelos ombros, me
encarava com curiosidade. Os olhos castanhos pareciam divertidos e
generosos.
— Maisie. — Dizer apenas meu nome não foi o suficiente para
desfazer as linhas de expressão da sua testa. — Amiga de Nick.
Amiga?
— Amiga? — questionou e gritou para alguém que não estava
ao alcance dos meus olhos: — Ouviu isso, cacau? Nico tem outra
amiga além de nós.
A tal da cacau gritou em resposta:
— Isso me parece suspeito.
Por mais que minhas pernas parecessem gelatinosas, eu
reconhecia que ficar no chão acabava com o pouco orgulho que me
sobrara. Me levantei.
— Onde ele está? — perguntei e molhei a garganta.
— Pensei que fosse nos dizer. Quando chegamos ele já não
estava. — A loira respondeu. — Ah, desculpe meus modos, sou
Júlia, a tia legal.
— Pelo amor de Deus, Júlia, pare de dizer para todo mundo que
você é a tia legal. Deixe que Luli decida isso. — A bendita cacau
finalmente resolveu dar as caras. O apelido fez sentido quando os
olhos cor de chocolate me encararam. — Ignore o que a loira diz. Eu
sou a tia legal.
Júlia deu uma cotovelada no braço da outra.
— Maisie, essa é a Tainara. Se você ignorar metade das coisas
que ela diz, você aprenderá a gostar dela. — Júlia avisou.
Sem saber o que responder, eu sorri. Eu costumava ser uma
pessoa sociável, mas era diferente quando eu estava em uma terra
que não conhecia, com duas mulheres que me pareciam ansiosas
para me ouvir falar.
— Não sabíamos que Nico tinha amigos além de nós duas. —
Tainara quebrou o silêncio.
Dei de ombros. A voz se perdeu em algum lugar dentro de mim.
— Ele te falou sobre a filha dele, certo? — Júlia questionou.
Confirmei com a cabeça. A filha dele estava ali?
— Cacau, vá buscar a menina, acho que ela já terminou de usar
o banheiro.
Cacau a fuzilou com o olhar e deliberou.
— Às vezes me pergunto porque me casei com você — falou.
— Digamos que ser incrível é uma das minhas inúmeras
qualidades — respondeu Júlia e apressou: — Agora vá antes que a
criança desça pela privada!
Meu corpo congelou quando Tainara se foi. Eu queria muito
conhecer aquela criança, mas, e se Nick ficasse furioso porque fui
contra sua vontade? Bem, nada disso teria acontecido se ele não
tivesse me deixado dormir em seu apartamento e desaparecido pela
manhã. Ou pela noite? Quando ele diabos se foi, afinal?
— Vamos, Luli, diga de uma vez para sua tia Júlia que eu sou a
tia mais legal. — Tainara disse para a criança que carregava nas
costas de jeito brincalhão.
A menina soltou uma deliciosa gargalhada exalando cores.
Tanto a pele, quanto os olhos, eram deslumbrantes como a noite. O
sorriso era feito uma névoa de luz. A pureza esculpia aquele olhar e
uma necessidade transparente de ser amada. Ela dobrou o meu
peito. Bastou ouvir sua risada e pronto, meu coração já era seu.
Será que foi assim que aconteceu com Nick? Será que bastou
ele vê-la para tornar-se seu pai?
— Pense bem, Luli, eu sou a única tia que anda de carrossel
com você — disse Júlia para se defender.
Com a vista pregada em mim, sem piscar uma única vez, a
criança demonstrou estar longe de cogitar respondê-las. Ela
desmanchou o sorriso e era incontestável que se retraiu.
— Olá. — Minha voz deflagrou como uma trovoada.
A insensatez nunca fora algo que combinasse comigo. Mas, ali
enquanto eu subia escada acima, pé ante pé, por estar apressado
demais para aguardar o elevador, não me ocorreu um termo que eu
julgara mais conveniente para descrever o que eu fiz.
E o que foi aquilo que eu fiz?
Desembolsei 60 libras para libertar uma ladra. Eu não estava
pensando com a cabeça, ao menos não com a que eu deveria.
Empurrei a porta e fui abordado por mais mulheres que eu havia
deixado em meu apartamento ao sair.
— O que...O que estão fazendo aqui? — questionei.
— Aqui sou eu quem faço as perguntas, mocinho. — Júlia falou
em um cruzar de braços e cara de emburrada. — Primeiro, onde é
que você se meteu?
Passei a mão para jogar uma mecha de cabelo que caía nos
olhos para trás, numa inutilidade de mantê-la lá, porém, ela sempre
retornava, soleníssima.
— Precisei ir à delegacia — disse, sem delongas.
Instantaneamente pares de bicos foram formados.
— Agora voc...
— Ainda não acabei. Irá nos dizer o que era aquele negócio
laranja que estava dormindo no seu sofá? — A rebuscada estrutura
de sua frase transpassou a minha.
Meu olhar recaiu sobre o sofá em que eu havia deixado Maisie e
meu coração bateu um pouco acelerado ao não a ver.
— Onde ela está? — perguntei às pressas.
— Ela foi embora, eu acho — retrucou energicamente, cacau.
Cheguei o corpo para a frente.
— Como assim ela foi embora?
Júlia me olhou de maneira desconcertante.
— Estávamos conversando, ela trocou algumas palavras com
Luli e de repente disse que precisava ir. — Baixou a voz ao ver que
minha expressão não se suavizara. — Irá nos explicar o que está
acontecendo?
Me certifiquei de que Luli não estava por perto antes de começar
a compartilhar com as duas tudo que acontecera nos últimos dias.
Decerto poupando os detalhes picantes com Maisie e o fato de que
tive a rude intenção de violá-la imbecilmente como um animal.
— Não consigo pensar em uma maneira menos regateira de
perguntar se você enlouqueceu? — O questionamento partiu de
Júlia. De todos nós, ela era a que eu julgava ser politicamente
correta. — Uma ladra para sua casa!?
— Não precisa dizer. Sei que fiz merda, porra — rebati,
recolhendo meus modos. — Ela disse para aonde iria?
A resposta negativa foi feita com a cabeça de Júlia.
— Irá atrás dela? — cacau indagou.
Uma inquietação profunda me ardeu interiormente.
— Não vejo razão para isso. Ela ainda precisará ir à delegacia
para protocolizar sua liberdade, mas eu não sou o policial
encarregado dessa função. — E acrescentei ao julgar necessário: —
Resolvi tirar as férias que eu tanto vinha protelando.
As duas me olharam em silêncio, com questionamentos
misteriosos sobre as faces. Talvez fosse porque eu nunca tirava
férias.
— Meu bom Deus. Dá para vocês dizerem algo!?
Se entreolharam.
— Cacau está induzindo sua filha a dizer que ela é a tia
preferida. — Para o bem da minha sanidade, Júlia mudou de
assunto.
Cacau, que tinhas as mãos ocupadas por seus majestosos
cachos, interrompeu o coque para pousar os dez dedos nos quadris.
— Sabe aquilo que eu prometera fazer em você está noite,
minha linda esposa? ESQUEÇA! — Fingiu estar zangada.
— Isso é cruel.
E, ao passo em que as ouvia abstratamente, meu coração dava
batidas sonoras que segredavam em meus ouvidos o medo que ele
sentia em não ver novamente aquela garota de longos cabelos
laranja.
O fim de tarde só não foi regado de solidão porque o passei em
frente à televisão com a minha filha, a única que era capaz de
preencher meu peito vazio. Mas, ainda assim, foi inevitável não ter
Maisie dentro dos meus pensamentos, pensar em nossos corpos
unidos, o calor que eu ainda podia sentir da sua pele, em seus lábios
viçosos de cereja que torcia risos que até um padre pararia para ver,
os vigorosos, formidáveis e inexperientes beijos que suavemente
melhoravam a cada tentativa.
— Papai?
— Já sei, já sei. Quer seu chocolate quente — disse, e dei um
demorado beijo em sua cabeça. — Muito chocolate ou pouco?
A ergui em meu colo e segui com ela em direção à cozinha.
— Muiiito — Luli disse, numa alegria contagiante.
— Pouco? Tem certeza que quer pouco? — Brinquei, lúcido de
amor.
Seus olhos reluziam animação e sorriam de tudo.
— Nããoo. Muito, papai. Muito.
A sentei no balcão da cozinha, assim como era feito toda tarde,
para preparar seu chocolate quente. Éramos dois, mas quando eu
via aquela luz do luar dentro dos seus olhos, tornávamos um só. E
para mim bastava.
— Você está com cheiro de fragrância mórbida — Gael disse,
sentando-se ao meu lado.
— Que agradável — comentei, enterrando os pés na fina areia
da praia. A aurora surgia mais uma vez, contabilizando assim, quatro
dias que eu voltara da cidade.
— Você gosta dele, não gosta? — Não esperou eu assentir. —
Mais do que gostou de Charlie?
Obrigou-me a encará-lo. Era do conhecimento de todos que eu
fui apaixonada por Charlie, esposo de Tess, durante anos. Mas
éramos todos considerados irmãos ali, crescemos juntos e eu
sempre soube que minha paixão nunca passaria de algo platônico.
— O que eu sentia por Charlie era simples como uma melodia
de um único acorde. Já meu sentimento por Nick, é como um
emaranhado de fios numa gaveta. É confuso.
Os olhos dele assumiram uma expressão solidária.
— Você precisa esquecê-lo, piuthar (irmã). Estão todos
preocupados com você. Desde que voltou tudo o que faz é pensar
em homem que não a deseja.
Ninguém jamais ousara abordar-me com tanta franqueza. Para a
minha sorte, tive a decência de calar minhas lágrimas quase extintas.
— Por que sou tão tonta, irmão?
— Você tem um coração puro. Não está acostumada com a
maldade humana.
Virei o rosto, observando o vento assoprar por entre os
pinheiros.
— Tenho vontade de ir até ele e enchê-lo de porrada por deixá-
la assim.
E para o meu espanto, Gael se levantou.
— Ficou doido? Tudo o que conseguirá é apanhar e ter de brigar
comigo por um espaço nessa areia melancólica.
Seus olhos eram como astros malignos e enganosos.
— Levante-se, ruivinha. — Ele tentou me puxar pelo braço. —
Vamos procurar esse filho da puta para bater, e se não o
encontrarmos, sinto que Jailson servirá muito bem como cobaia.
Fui obrigada a rir e para o meu horror, comecei a pensar em
como seria bom desferir alguns golpes em Nick para deixá-lo menos
atraente.
— Não entendo, piuthar, como pode ter se apaixonado pelo
homem que a prendeu? — questionou Gael, enquanto chutava a
areia da praia rumo à nossa casa. Jailson, Gael e eu passamos a
morar juntos quando nossas casas em Kerrera foram destruídas em
um incêndio.
— Qualquer um que colocar os olhos em Nicholas Coleman
estará sujeito a ter seu coração roubado. Já viu aqueles olhos, Gael?
Há um sossego dentro deles. São mais azuis q...
Ele fez gesto de pare com as mãos.
— Entendi, você o acha bonito — disse, entre os dentes. — Mas
você já viu homens atraentes antes, não?
— Sim. Mas nem um outro me beijou — falei.
Seu rosto ficou ainda mais branco. O olhar, fixos e absortos.
— Ele a beijou?
— Algumas vezes.
O rumor do vento em surdina, lembrou-me seu praguejar.
— Ele é pior do que eu imaginava.
Fechei a carranca e cruzei os braços, encolerizada.
— Apenas porque me beijou? Algum homem teria de fazê-lo
cedo ou tarde, não? Já não sou uma criança, bràthair (irmão)!
— Sim, mas...
— Não tem “mas”. Ele foi o único que quis me beijar.
— É por esta razão que se apaixonou? Por que ele foi o único
homem a beijá-la? — questionou, ele realmente estava se
esforçando para me entender.
— Iss...
E para a minha curiosa sensação de espanto, aconteceu algo
que parou as engrenagens do meu cérebro, que abafou toda a
existência da terra e do céu e desfolhou todas as rosas. Gael me
puxou para seus braços e me beijou.
O empurrei com força e recuei alguns passos tão
atordoadamente, que me surpreendi por não ter caído.
— Vo-cê ficou doido? Por que...por que...você... — Não
consegui soar compreensível.
O ruivo respondeu, desinibido:
— Agora ele não é o único homem a beijá-la, não há razão para
torná-lo especial.
Ele só pode ter enlouquecido.
— Gael, você é o meu irmão — disse, espantada. Meu coração
estava pela boca.
— Não partilhamos o mesmo sangue, ruivinha. Foi só um beijo,
e eu nem dei o meu melhor.
Em seus olhos brotaram divertimento. Eu por outro lado, me
sentia estranha, trêmula. Nunca pensara em ter a língua de Gael
invadindo a minha boca. Pelos deuses, ele era...Gael. O idiota a
fazer piada de tudo. Eu nunca o vira como alguém disponível para
ser beijado.
— Nunca mais faça isso, está me ouvindo? — Apontei-lhe o
dedo na cara. — Nunca mais, está me entendendo?
Ele gargalhou alto.
— Pare de surtar. Foi só um beijo.
— Jure pelos deuses, Gael — exigi, ferozmente.
Ele ergueu as mãos e revirou os olhos bem menos azuis que os
de Nick, porém, muito mais atrevidos.
— Tem a minha palavra.
E, talvez por conhecê-lo, eu soube que ele mentiu.
Aquela fora a primeira noite em que Nick não me tirara o sono. A
razão de eu não ter conseguido pregar os olhos tinha o cabelo bem
mais alaranjado e sardas pelo nariz.
Não há motivo para pânico, Maisie. Foi só um beijo.
Me virei na cama.
Ele fez por fazer. Você sabe bem como é Gael, ele brinca o
tempo todo e com tudo.
Virei-me novamente, transformando a cama em um casulo, na
medida em que me enrolava entre o edredom e os lençóis. Tentar
entender os homens nunca fora minha prioridade, mas quando um
dos meus irmãos me rouba um beijo, eu sou obrigada a refletir sobre
sanidade do sujeito.
Eu sabia que não poderia fugir para sempre e, pelos deuses, eu
não era uma mulher de fugir de nada. Eu só precisei de um tempo.
Um tempo para conseguir encará-lo e estar disposta a rir do que nos
aconteceu sem sentir minhas pestanas medrosas tremerem
A aurora brilhando constante do outro lado da janela, me alertou
que era hora de encarar aquilo. Ainda que eu não soubesse muito
bem o que fora aquilo.
Troquei de roupa o mais breve possível, preparei no cabelo duas
tranças e deixei meu quarto.
Com meus passinhos curtos, ia deixando a casa quando ouvi
murmurinhos tentando ser abafados preencherem o espaço
vaporoso da cozinha.
Eu era a maior mexeriqueira da Escócia, ainda que o apelido
não me descesse pela garganta, eu o reconhecia. Eu não
bisbilhotava por maldade, apenas me agradava estar sempre a par
dos acontecimentos, por solidariedade ou, quem sabe, por solidão.
Como uma fera que estuda a vítima, afundei minhas garras no
batente da porta e me inclinei apenas o suficiente para ver e ouvir
Gael e Jailson com nitidez, à espera do início da conversa.
Num combinar astuto de referência, Gael disse:
— Eu fiz porque surgiu-me oportunidade.
Jailson fez pouco caso do croissant no prato.
— Você não podia ter feito isso. A não ser que queira morrer!
— Faça-me o favor, pançudo de merda, há anos que venho
carregando essa chama que caminha dentro de mim, me ardendo,
me queimando. Permiti que outro a beijasse porque sou um covarde.
— Você está se perdendo em um caminho errado. Ela é nossa
irmã! — Jailson bateu com o punho na mesa.
Um feixe de silêncio. Eu nunca vira Gael ou Jailson ignorarem
um croissant.
Gael fitou o outro escocês com olhos turvos de quem não
dormia. Mais alvo que o luar de inverno.
— Não. Ela é sua irmã, irmã de qualquer outro dessa ilha. Mas,
como ninguém, você sabe que meu desejo sempre foi diferente. Se
for da intenção dela me odiar, que me odeie. Só não me peça para
que fique de braços cruzados enquanto vejo outro levá-la de mim. —
Suas palavras gorjearam em meus ouvidos, mas permaneci quieta,
sem um grito.
— Isso me parece um desastre — queixou-se Jailson.
O pavor se insinuava no meu peito.
— Um desastre tranquilo — rebateu sem oscilar. — Eu a amo
desde que me conheço por gente. A vi suspirar por Charlie e a
consolei enquanto meus olhos se transformavam em duas feridas.
Agora pede para que eu a veja se deleitar por outro que não a quer?
Pede para que eu o espere descobrir o quão magnifica ela é
enquanto eu, seguramente, sei disso a vida toda?
O terror se dissipou por todo meu sangue.
— Chan urrainn a bhith! (não pode ser) — esganicei e, de
súbito, todos pares de olhos frustrados se voltaram para mim.
— Deamhan (diabo). Isso vai ficar interessante — expressou
Jailson e dessa vez foi com a mão no croissant.
As brumas azuis de Gael pairaram em mim e a brancura dos
seus lábios fazia parecer que ele morrera há dias. Pouco a pouco a
muralha de trevas em seus olhos perdeu densidade e um diáfano se
elevou lentamente.
— Maisie...o que foi que você ouviu? — Sua voz era humilde e
lamentosa.
E o que era para ser um mexerico divertido, acabara se
tornando uma emboscada.
Fazia alguns minutos que eu perdera a voz e os movimentos,
mas quando eu vi que sua intenção era a de se aproximar, eu tive de
reagir. Atravessei a porta como se tivesse três pernas. Eu não sabia
bem para aonde estava indo, eu só precisava...ir.
Ouvi o som das botas de Gael me perseguirem. A força dos
seus passos era um sinal da sua determinação.
— Maisie, espere! — Ele gritou.
Não vou olhar. Não vou....
Uma olhada para trás por cima do ombro foi o bastante pa...
— Fugindo novamente? Devo prendê-la? — Ele me segurou
pelos braços. Seus olhos eram como bordas de abismos silenciosos.
— Nicholas? O que...O que está fazendo aqui? — gaguejei. Eu
odiava quando a covardia assumia o controle de mim.
— Maisie? — Me virei ao som da voz de Gael. Ele já estava
perto o bastante de nós, abrandando o ritmo dos seus passos, com
olhar azul de amolecer o mar.
— Está tudo bem aqui? — Nick perguntou para mim, após
encarar Gael com fúria. Suas mãos ainda em meus braços eram
delicadas como asas de cetim.
— É claro que está! — Gael rosnou para ele.
Uma neblina cobriu, tapou os cerúleos de Nick, tornando-os
insensíveis, cruéis, inextinguíveis. Como um sol de gelo petrificando
minha cara.
— A pergunta não foi feita para você — ele devolveu.
Os punhos de Gael já pareciam estarem decididos a irem no
rosto do outro. Nick não era bobo, ele mesmo percebeu a intenção
do ruivo e me afastou para ganhar espaço. Se antes eu era a razão
dos dois estarem ali, agora eu me tornara nada menos que um
estorvo os atrapalhando de brigar.
— Ainda bem que você veio até aqui. Assim me poupou o
trabalho de ir até você — disse Gael, em um ranger de dentes.
— A que devo a honra, rapaz? — atiçou Nick. Os membros
relaxados faziam parecer que ele estava muito à vontade com a
situação.
— Vocês, parem agora mesmo. Parecem dois moleques! — Me
intrometi, me pondo entre eles.
— Terei de concordar com a dama. Não tenho mais idade para
me atracar com ninguém. Se quiser, podemos resolver isso feito
homens.
— Nicholas, você ficou maluco!? — rosnei para ele, em choque.
— Não vou quebrar sua cara por Maisie. Se não fosse por ela,
eu meteria uma bala na sua cabeça sem pensar duas vezes.
— Gael...
Nick olhou de Gael para mim.
— É evidente que há algo entre vocês — disse Nicholas.
Tudo que havia dentro de mim, despejou-se pelo chão.
— Foi só um beijo. — Em algum momento na vida de Gael, ele
desaprendeu a ficar calado e, em algum momento da minha, eu
aprendi a conviver com isso. Mas naquele dia, eu quis quebrar os
dentes do escocês. Eu queria que chovesse pedras em sua cabeça.
— Pensei que nunca havia sido beijada. — Nick riu com
amargura e pareceu se esforçar para não permitir que sua raiva
transbordasse, ainda que o consumisse. Provavelmente se sentira
enganado por mim.
— De que lhe importa quem eu beijo ou quantos homens se
dispuseram a me beijar? Não vejo como isso possa ser do seu
interesse.
— Não é — respondeu, impiedoso.
— Bem, tenho mais o que fazer! — Gael disse e se foi.
— O que veio fazer aqui, Nicholas? — indaguei, no instante em
que encontrei forças.
— Tenho me feito essa mesma pergunta desde que saí da
minha casa. Parece que todas as vezes em que venho aqui, eu
nunca estou certo do que estou fazendo.
— Talvez tenha vindo me prender — sugeri, ácida. Ele não
estava de farda naquela manhã, mas eu não achava que ele
precisasse de uma para executar sua função. Aqueles braços me
pareciam fortes o bastante para me arrastarem ilha afora.
— Tornou a roubar? — Ergueu a sobrancelha, desconfiado.
O fitei, severa.
— É claro que não.
— Então porque diabos eu viria prendê-la?
— Pelos pães, oras.
— Stephie ainda não veio aqui?
— Stephie?
— Minha parceira de trabalho. — Foi breve. — De qualquer
forma, não há qualquer crime ligado a seu nome. Não tenho razão
para prendê-la novamente.
— E os pães? — perguntei, em dúvida.
— Já foi tudo resolvido.
— Não entendo. Eu pedi aos meus amigos que não pagassem...
— Eles não pagaram.
Seus cabelos pareciam um sol agitado.
— O que você fez? — inquiri.
Ele soltou um riso nervoso. Foi um tipo de riso que apenas
homens enfiados numa poltrona da melancolia davam.
— A deixei livre.
Os olhos eram como uma gota de morfina para os meus
sentidos.
Meu coração que era de abismo e crateras, ardeu incessante.
— Agora é uma mulher livre — afirmei.
— Quando...quando o senhor pagou por minha liberdade?
— Acredito que enquanto você beijava outro homem. — Não tive
controle da língua.
Maisie ficou vermelha como um vulcão.
— Obrigada pela gentileza dos pães — rebateu.
— Não por isso — obriguei-me a dizer. — Eu preciso ir.
Seu vestido balançou ao vento e eu adoraria que ele fosse um
pouco mais ousado no próximo toque.
— Sua filha é adorável — ela disse, de repente.
— Ah, sim. Você a conheceu. Por que foi embora sem me
esperar?
Ela volteou o rosto para o oceano e deixou que a brisa do dia
embalasse seu rosto.
— Você teria me levado para a delegacia — sorriu vagamente e
me saudou com um olhar agridoce.
Sorri de volta.
— Acho que nunca saberemos — falei.
Maisie olhou por cima do meu ombro. Algo atrás de mim a
retraiu. A silenciou.
— O que foi?
— Diga que está armado — soou frágil.
— Como é?
Virei o pescoço para ver o que a ruiva via. O tempo entre o
disparo e a minha reação foi curto, mas o suficiente para levar Maisie
e eu para o chão. O tiro atravessou um pinheiro logo atrás de nós.
— Iolanda! — rosnei, assim que minha pulsação estabilizou. Eu
me tremi por dentro e por fora, e relação alguma tinha com os golpes
infernais do vento.
— Estamos ferrados — ganiu Maisie.
Rolei para o lado e ergui as mãos para o alto. Iolanda pisou em
meu peito com força.
— Pensei que havia matado você, policial — ela disse com sua
arma apontada para mim.
— Acho que a sorte não está a seu favor.
Ela pressionou o pé em meu peito, dificultando minha
respiração.
— Acho que está sim — respondeu e foi com os dedos no
gatilho.
— Espere. Espere. — Maisie se envolveu em desespero e teve
a ousadia de segurar o cano da arma de Iolanda. — O que quer?
Iolanda olhou para ela e falou nada gentil:
— Eu chegarei em você logo, logo, bonequinha ruiva. Aguarde
sua vez.
— Tem a ver com os colares que roubei?
— Fique quieta, Maisie! — rosnei para ela. Ela acabara de
destruir nossa chance de mentir sobre não ter conhecimento dos
colares, porque era certo que Iolanda desembarcara na ilha por eles.
— Você me roubou e ainda me feriu. Não tenha pressa, meus
planos para você são ótimos! — ela falou para Maisie. — Agora
levantem-se. Os dois virão comigo.
Olhei à minha volta, havia crianças demais para eu pensar em
fazer algo. Eu podia facilmente lidar com Iolanda, mas, ela
provavelmente não fora até a ilha sozinha. Seria arriscado reagir sem
estar ciente de todos possíveis riscos.
Fui obrigado a acatar a ordem da mulher cuja mãos cruelmente
me apontavam uma arma.
Assim que levantamos, Iolanda guardou sua pistola e ameaçou
baixo:
— Nem pensem em tentar algo ou eu juro que farei em
Guernsey o mesmo que fizeram em Kerrera. Incendiarei tudo,
inclusive as pessoas.
Maisie disse algo em gaélico, mas eu estava concentrado
demais para tentar decifrar a frase da escocesa.
Seguimos Iolanda até uma pequena embarcação com outras
três pessoas.
— Não precisa me puxar. Eu sei subir em um barco — disse
Maisie, ríspida, quando um dos homens a pegou pelo cotovelo.
Assim que embarcamos e ficamos longe o bastante para sermos
vistos da ilha, Iolanda ordenou que Maisie e eu fôssemos revistados,
pegaram minha arma e depois nos amarraram juntos.
— Isso é mesmo necessário? O que vamos fazer, hã? Saltar no
mar? — A ruiva questionou, encolerizada.
Eu fui o único que se dignou a respondê-la.
— Algo me diz que essa ideia não lhe parece absurda.
Eu sabia que ela teria me lançado um daqueles olhares cínicos,
caso não estivesse de costas para mim.
— Eu já estive em uma situação parecida. Apenas faça o que eu
mandar, ok? — cochichou.
— Você já...O quê?
— É uma longa história. O barco em que eu estava foi alvejado,
tivemos que saltar no mar para sobrevivermos. Só não se desespere.
Encontraremos um jeito de lidar com isso.
— Eu não estou desesperado. Sou um policial, estou
acostumado com criminosos.
— Ainda não o vi em ação — retrucou.
Cerrei o cenho, permitindo que ela influenciasse minhas
emoções.
— Me lembrarei de colocá-la de joelhos e algemá-la na próxima
oportunidade!
— Isso me parece tentador, policial — instigou.
Eu não conhecia ninguém que fosse capaz de dizer tal coisa em
uma situação tão embaraçosa.
— Acha que irão nos matar? — ela perguntou, após poucos
minutos de silêncio absoluto.
— Você quer a resposta pronta ou a sincera?
— Há uma resposta pronta?
— Sim. Nós, policiais, temos que tentar tranquilizar as vítimas
quando estão em perigo. Eu tentaria apaziguar a situação, tentaria
reconfortá-la, procuraria tentar tirar algo de bom da coisa ruim —
expliquei, me remexendo.
— Ah, por favor, se o senhor for capaz de providenciar algo de
bom nisso tudo, eu mesma lhe darei uma medalha.
Suspirei.
— Iolanda poderia ter nos matado assim que embarcamos, mas
não o fez. Isso é algo bom, não?
Ela pendeu a cabeça para o lado.
— Sim, mas...
— Não há “mas”. Quero minha medalha, gracinha — sorri.
Ainda que de costas para mim, soube que ela sorriu também.
— Vocês dois são maravilhosos juntos. — Iolanda se colocou de
cócoras na minha frente e deu uma mordida na maçã. — Ouça com
atenção o que direi a vocês. Nós desembarcaremos logo e se algum
dos dois tentar fugir ou dar uma de herói, o outro morre. Fui clara?
Respondam!
— Clara! — rugi.
— Sim — disse Maisie, da mesma forma.
Iolanda mordeu a maçã e falou enquanto mastigava:
— Ótimo. E, se eu puder te dar uma dica, bonequinha ruiva, os
gregos são muito melhores que os escoceses.
Me alarmei e falei alto assim que Iolanda se levantou e me deu
as costas:
— Gregos? Seremos levados à Grécia?
A resposta veio clara, como um rumor frio e alto do vento:
— Se preocupe mesmo, policial. É da sabedoria de todos que os
gregos são donos de um padrão de beleza referencial e que mexe
com o imaginário de muitas mulheres. Não é à toa a expressão: deus
grego, né?
Há algo que acontece com nós, escoceses, que pouca gente
sabe. Temos vergonha da covardia e, acima de tudo, defendemos os
nossos quando estão em perigo, ainda que isso signifique colocar
nossa vida em risco.
Eu fui ensinada assim, não por meus pais. Meus pais...eles me
ensinaram o gosto amargo da rejeição. Eu era nova quando
compreendi que eu não era bem-vinda dentro da minha própria casa,
aquele pequeno espaço fedendo a mofo e a crosta endurecida nas
paredes que meu pai e minha mãe eram obrigados a dividirem
comigo. A minha cama, que até a minha adolescência ficava num
canto estreito demais para ser chamado de quarto, era uma das
poucas coisas que meu pai fizera para mim. Não por vontade
própria, ele foi obrigado a colocar a mão na massa quando a minha
antiga cama que os vizinhos deram quando eu ainda era criança,
ficou pequena demais para mim.
Tudo o que eu sabia, desde ler a manusear uma arma, eu
aprendi com algum vizinho.
— Não podemos ir para à Grécia. Eu tenho uma filha —
balbuciou Nick para mim assim que tornamos a ficar sozinhos.
— Eu também tenho um milhão de razões para não poder ir à
Grécia, inclusive o fato de eu não querer ir à Grécia. No entanto, eu
compreendo que se remexer como se tivesse formigas nas calças
não me ajudará em nada! — reclamei. Quanto mais Nicholas
Coleman se mexia, mais feria meus pulsos.
— E o que quer que eu faça? Aproveite o banho de sol!? —
questionou, sendo sarcástico. O sol brilhava no alto, impossível de
fitar.
— Sinto lhe informar que não é quebrando seus pulsos e os
meus que você nos libertará — rebati. Àquela altura as ondas
haviam se intensificado, tornando a viagem ainda mais desgastante
e enjoativa, ainda que eu estivesse acostumada, senti meu
estômago embrulhar.
Ele bufou alto o bastante para ser ouvido pelos outros. Mas
ninguém pareceu querer dar atenção a ele. Exceto eu.
Iolanda, que estava na proa da embarcação, vez ou outra olhava
para nós. Seus amigos, deviam estar na popa, também nos vigiando.
Seria impossível tentar qualquer coisa sem sermos flagrados.
— Eu nos coloquei nessa merda. Darei um jeito de nos tirar —
garanti.
— Não é hora de se culpar, Maisie. E pelo amor de Deus, não
tente nada sem me consultar.
— Não posso consultar você a cada vez que uma ideia estúpida
me surgir à mente.
Ele soltou o ar com lentidão e certa graça.
— Apenas não roube os bandidos outra vez, está bem?
— Ainda que eles mereçam?
— Maisie! — repreendeu e apertou meu dedo. Eu gemi baixinho
pra não atrair atenção.
— Acha que o que Iolanda disse sobre os gregos é verdade? —
perguntei para nos distrair. Era inútil procurar escapatórias quando
ficara evidente não haver nenhuma. Não enquanto estivéssemos
abordo.
— Como é que pode estar pensando em algo assim? —
repreendeu, como se meu comentário fosse uma fatalidade sublime.
— Eu posso sentir sua libido daqui. O perigo por acaso lhe causa
prazer?
A sombra da vergonha mascarou meu rosto, foi como se suas
palavras tivessem me despido. Eu apertei e torci seu dedo da
mesma forma que ele fizera comigo, só que com muito mais fúria.
— Que Thor jogue um raio em sua cabeça! — amaldiçoei. — A
pergunta não foi feita porque estou interessada em algum grego.
Tenha piedade! Perguntei sobre a veracidade do termo “deus grego”
que ela mesma disse.
— Você quase quebrou meu dedo — queixou-se. A dor o fizera
ignorar minha explicação.
— Pois eu devia tê-lo feito.
— Você. Quase. Quebrou. O. Meu. Dedo — repetiu em pausas
longas e feito uma espada fresca.
— Pare de drama — resmunguei, fazendo pouco caso. Em
troca, ganhei um beliscão na mão que me fez soltar um gritinho. —
Desgraçado!
Devolvi o beliscão. Era inacreditável o esforço que fazíamos
para machucar um ao outro com os dedos, enquanto um perigo
iminente nos rondava com armas muito mais perigosas.
— Acha que terei piedade apenas por ser mulher? — Ele
prendeu seus dedos nos meus e me deixou imobilizada.
— E você acha que não darei o meu melhor apenas por ser
policial? — E lhe dei uma cabeçada. Se eu não o fizera sangrar, com
toda certeza cheguei muito perto.
— Eu vou lançá-la ao mar. Juro que vou! — Ameaçou ao se
recuperar. Esperei por seu golpe. Mantive minha cabeça afastada da
sua, temendo que ele copiasse a pancada, só que não aconteceu.
Nick Coleman era muito mais astuto quando se tratava de
vingança, eu pude perceber. Ele se concentrou, usou a força das
pernas e nos ergueu. Ele simplesmente nos colocou em pé no barco
e me ergueu em suas costas.
— Nicholas. Nicholas. — O chamei, assustada, ao vê-lo se
aproximar do convés e dos outros homens, amigos de Iolanda. Por
um momento, o medo me subiu à garganta. Eu não temia cair ao
mar, eu temia cair ao mar com as mãos amarradas.
Para a minha sorte — e eu nunca pensei em dizer isso —
Iolanda nos interviu.
— Aonde pensam que vão? — Ela questionou aos gritos e um
dos seus amigos chutou a perna de Nick para colocá-lo de joelhos.
Fomos os dois pro chão. Tornando à estaca zero. — Levantem-se
novamente e eu amarrarei os pés de vocês também, ouviram? — Ela
atentou, em uma expressão que faria qualquer soldado obedecer.
Assim que ela voltou à sua posição inicial, eu tive de perguntar a
Nick:
— Ia mesmo saltar no oceano amarrado comigo?
— Claro que não. Queria apenas testar uma coisa.
— Testar? O quê?
— Se um dos amigos de Iolanda é mesmo surdo.
Ergui as sobrancelhas, surpreendida.
— Surdo?
— Sim. Eu já tinha uma breve suspeita. Então quando nos
levantei e fui até ele, sem que ele se virasse para nós apesar de todo
o barulho que fiz, eu tive a certeza que precisava. Há outra coisa que
vi, há uma mala num canto próximo a ele, me parece estar sendo
muito bem protegida, deve ser as joias roubadas. Bem, eu espero
que seja.
— Qual o plano? — Fui direto ao ponto.
— Vamos jogá-las no mar. Iolanda não sairá do país sem elas.
Se conseguirmos atirá-las na água, ganharemos um tempo até que
eles as recuperem — explicou, sendo cuidadoso para que não
fôssemos ouvidos.
— Me parece uma boa ideia — admiti.
— Aprenda algo sobre mim, querida Maisie: eu sempre estou
um passo à frente — disse, nada modesto.
— Egocêntrico. — Foi tudo o que consegui dizer. Eu realmente
fui pega de surpresa. Enquanto eu achava que era tudo uma disputa
de força entre mim e ele, Nick tinha outro plano minuciosamente
arquitetado.
— Você queria me ver em ação. Está satisfeita?
— Satisfeita — murmurei, num mar de chamas, e o atrevimento
me levou a repetir. — Inteiramente satisfeita.
— Mas eu preciso admitir, quase não funcionou. A pancada que
se atreveu dar em minha cabeça me deixou atordoado — exprimiu e
devia estar incomodado por não poder tocar a ferida.
Arquejei.
— Você mereceu cada golpe, mas não guardemos remorso —
falei e esperei que Iolanda encarasse outro ponto fixo para então
sussurrar: — Não acha que será muito difícil conseguirmos nos
aproximar da mala?
— Sim, e seria mais fácil se conseguíssemos nos soltar.
O vento ergueu meu vestido um pouco acima dos joelhos.
— Eu posso pegar a mala com os pés se me erguer em suas
costas novamente.
— De forma alguma. — Negou sem sequer ponderar.
— Eu posso fazer isso. Não subestime a mi...
— Não estou subestimando, acredito que você execute muito
bem a arte de roubar...
— Não sei bem se isso foi um elogio — o interrompi.
— ..., no entanto, se o homem notar nossa intenção, teremos um
problema. Me recuso a colocá-la em um risco ainda maior. Eu me
soltarei e farei isso sozinho.
— Acho que posso aguentar levar um soco ou outro — falei,
corajosa. Eu já havia apanhado de rapazes em Kerrera, claro que os
murros ou os puxões de cabelo que ganhei deles enquanto
disputávamos algo, não foram dados com a mesma violência que
aqueles sujeitos do barco dariam. Mas, diabos, eu podia suportar,
não? Era a nossa vida que estava em jogo.
— Isso não vai acontecer. Esqueça!
Enquanto eu tentava desvendar a profundidade daquela frase,
Nicholas agarrou minhas mãos, suave como ondas batendo na areia.

Eu não sabia que havia caído no sono até acordar. Já era noite.
Meus braços estavam doloridos por ficarem tantas horas na mesma
posição. Além do desconforto físico, a fome também era motivo de
me deixar irritada. A fome sempre me deixava irritada.
— Maisie? — chamou. — Tá acordada?
— Sim — balbuciei, confusa. — E o nosso plano? Quando o
colocaremos em prática? — A voz saiu diluída.
Nick virou o rosto dele. Ficamos tão próximos, que eu até pude
sentir seu hálito quente acariciar meu rosto de forma terna. Parecia
uma pluma a me alisar.
— Eu já te disse para ficar fora disso.
— Estamos amarrados um ao outro. Não seja idiota. Você não
conseguirá fazer isso sem a minha ajuda — rebati, em um
chacoalhar do barco. Minha voz estava especialmente seca naquele
momento.
— Por que está tão zangada, chick (garota)? — perguntou ele,
em um sorriso audível.
— Por que estou com fome. Não há nada que mexa mais com o
meu humor que a fome.
— Ah, que sorte a minha em ficar amarrado à uma onça com
fome — zombou, mas sem deixar transparecer que zombava. Nick
tinha uma capacidade admirável de ser debochado e sério ao
mesmo tempo. — Ouça, se vamos fazer isso — fez uma pausa para
avaliar o local —, precisa ser agora.
Demorei alguns minutos para compreender que Nick se referia
ao plano de se desfazer da mala de joias. Quando olhei para Iolanda
e a vi absorta de nós, entendi o porquê ele dissera que aquele era o
momento. Os sequestradores pareciam muito entretidos com algo
que Iolanda segurava. Era um mapa? Forcei a vista para enxergar
com mais clareza, ainda que a noite não estivesse tão estrelada, era
possível me guiar apenas com a iluminação da Lua.
— Você tem certeza de que quer fazer isso comigo, Maisie?
A vontade em dizer “não” me pareceu muito tentadora, mas eu
era uma escocesa e os escoceses nunca, nunca recusavam um
desafio.
— Apenas me erga, Nicholas Coleman, e eu lhe mostrarei como
eu sou quando estou em ação.
Não era preciso ter muita experiência, mas, erguer uma mulher
em minhas costas com um barco em movimento, as mãos
amarradas e com bandidos com armas em punhos... Ah,
definitivamente, eu não estava preparado para aquele dia. Contudo,
se eu não tentasse coisa alguma, iria para a Grécia com Maisie.
— Nick? O que está esperando? — Acelerou-me em um
cochicho.
— Espero pela oportunidade certa — falei, por fim.
— Suas mãos estão suando — reparou, em um entrelaçar de
dedos.
Seus dedos trespassando os meus estava longe de ser erótico,
mas a minha mente ardilosa se excitou com o movimento
escorregadio e me lançou lembranças do corpo sardento e nu em
meu quarto. Do seio pequeno em minha mão. Do beijo molhado e
ardente. E lembrei de todas as coisas que não fiz, mas que pensei
em fazer.
— São as reações do meu corpo me alertando que estou
prestes a cometer uma burrada. — A respondi, me esquivando o
máximo possível da realidade.
Esperei até que o amigo de Iolanda, que conversava com o
rapaz surdo, o deixasse sozinho. Como era ele quem estava
resguardando a mala que eu pretendia roubar, tive de esperar que
ele me desse as costas. Mesmo que todos os outros estivessem
entretidos do outro lado do barco, era mortal tentar algo com o surdo
nos observando.
Assim que ele me desse as costas, eu agiria.
— Prepare-se para se levantar comigo — alertei a ruiva.
Ela assentiu.
— Agora — ordenei.
Assim que o sujeito fez menção de se virar, Maisie e eu
tentamos nos erguer. Um usando o outro de apoio. O fato de eu ser
muito mais pesado que ela — como comparar o peso de um cavalo e
o de um coelho — dificultou bastante o processo.
— Use algo para empurrar com o pé — aconselhei. — Deve
haver algum pilar de madeira a seu alcance.
Ela arfou, cansada, na segunda tentativa fracassada. A maré
aumentava, quanto mais avante.
— Sim, há uma aqui. Mas não sei se...— E respirou fundo. —
Tudo bem, vamos tentar de novo.
— No três, ok? — Esperei ela confirmar com a cabeça para
iniciar a contagem. — Um, dois. Agora.
Depois de algumas tentativas frustradas, finalmente
conseguimos ficar de pé.
A caminhada foi ainda pior que tentar se levantar.
— Na minha cabeça, isso era mais fácil e menos doloroso —
comentei, levando uma pisadela no meu tendão de Aquiles
esquerdo.
— Doloroso? — questionou, inocente, pisando pela segunda vez
em mim.
— Sim. Suspeito que não chegarei ao objetivo com todos os
membros em meu corpo. Ande direito!
— Ah, me perdoe se não estou acostumada a andar de costas
amarrada há outro ser humano! — replicou. Ela sempre tinha, entre
os lábios, uma resposta para se dizer. — Pare de queixar-se e preste
atenção para aonde está nos levando.
— Estamos quase lá. Os outros ainda estão atentos ao mapa?
— perguntei, já que eu estava de costas para eles.
— Sim, mas não será por muito tempo. O que...por que raios
parou?
O homem surdo e eu nos encaramos em uma troca de olhares
embaraçosa. Não era para ele ter se virado tão rapidamente. Faltava
menos de três passos para Maisie e eu alcançarmos a mala. Eu teria
que lidar com ele, era a nossa única chance. O sujeito foi com a mão
no revólver e se preparou para sacá-lo.
— Maisie, acha que me aguenta? — inquiri, com urgência.
— Se eu te...Ahhhh... — Ela ganiu quando soltei meu peso em
suas costas, a usando de apoio para empurrar o homem com os dois
pés para fora do barco. Foi uma jogada arriscada e dolorosa para a
ruiva, ela poderia não suportar o peso e levar nós dois para o chão,
mas Maisie e suas pernas finas se saíram muito bem.
— Nunca. — Respirou ofegante. — Nunca mais faça isso, está
me ouvindo? Estou com as pernas bambas!
Não tive tempo de respondê-la. Àquela altura os outros já
estavam cientes do que fizemos.
— Estão vindo...Nick, estão vindo até nós — alertou-me. Eu
pude sentir o tremor percorrer por seu corpo.
A ergui em minhas costas com toda minha força, e a virei. Era
hora de trocarmos de posição. Agora eu podia ver os bandidos
agindo. Um dos homens de Iolanda correu em direção à uma boia e
a lançou no mar para o outro que eu impiedosamente empurrei para
fora do barco. A garota, uma loira de aproximadamente 1,60 de
altura, sacou sua pistola e a mirou em mim, parecia estar
aguardando a ordem da chefe, Iolanda.
Chefe. Pensei com ironia.
Eu teria que lidar com a situação. Tentei precisar quanto tempo a
ruiva e eu teríamos até que Iolanda desse a ordem do disparo. Eu
poderia me render naquele instante, colocar Maisie e eu de joelhos,
só que já estava tudo fodido. Era tarde demais para qualquer
rendição. Eu sabia como criminosos pensavam, e Iolanda fora muito
específica quando disse que se Maisie e eu tentássemos algo, ela
mataria um de nós.
— É agora — murmurei para Maisie. — CORRE!
Foi tudo muito rápido, desde nos aproximarmos da mala e eu
erguer Maisie para que ela a pegasse com os pés e a jogasse ao
mar. Eu só soube que a tática funcionou, porque Iolanda gritou à
plenos pulmões e também porque um disparo foi dado em direção ao
céu.
A próxima casa daquela bala será na minha cabeça.
— Vocês dois — começou Iolanda, dando um passo por vez —
morrerão. Nessa noite e aqui. Mas não será com um tiro
misericordioso. Eu abrirei a barriga de vocês e arrancarei cada órgão
para alimentar os peixes.
Maisie segurou em minhas mãos e rastejamos um pelas veias
do outro; naquele momento o medo era a única coisa que
compartilhávamos.
Iolanda chegou muito perto de mim e algo metálico surgiu em
sua mão. Uma faca, afiada, e que em um piscar de olhos foi parar
em minha barriga. Mas Iolanda não a penetrou fundo em minha
carne, apenas a encostou e pressionou a ponta para um corte
pequeno na região do meu pâncreas. Eu não senti dor, ainda que
devesse. Graças ao meu pai, antes dos meus doze anos, eu já tinha
enfrentado sofrimento pior.
Os olhos de Iolanda mergulharam fundo nos meus. À essa
altura, meu sangue já coloria sua lâmina. E Iolanda certamente
esperava que um ganido permeasse de meus lábios. Eu não lhe
daria esse gosto.
— Qual dos dois buscará minhas joias? — Ela questionou e deu
uma leve torcida na faca.
Apertei meus lábios.
— Você não achou que eu mandaria um dos meus entrar nessa
água fria por um erro de vocês, achou, seu policial?
Claro que achei. Não contava com Iolanda sendo piedosa com
seus cães.
— É impossível recuperar as joias à essa altura — eu disse.
— Então alguém morrerá tentando — respondeu e puxou a faca.
— A questão é: qual dos dois?
Todo esforço foi em vão. Era um bom plano, só não contávamos
com Iolanda ser esperta. Se fosse algum outro criminoso, já teria
saltado no mar para salvar as joias. Mas não aquela criminosa.
Aquela criminosa era calculista, manipuladora, e, acima de tudo,
calma. Ela sabia mover as peças do tabuleiro sem tomar xeque-
mate. E naquele momento, as peças do tabuleiro eram Nick e eu. Ela
ia jogar com a gente. Claro que ia.
— Tudo bem. Se nenhum dos dois se oferece para ir, eu
escolherei — ela acrescentou após um tempo. — Você sabe nadar,
bonequinha ruiva?
Olhei para o horizonte e não vi nada devido a escuridão.
— Ela não irá! — A resposta de Nick foi mais rápida que a minha
e muito mais áspera.
— Claro que irá. Eu já tomei a minha decisão. — Iolanda veio ao
meu encontro com um passo cadenciado e sorriu com seus dentes
monstruosos. — É simples, ruivinha. Você mergulha, pega minha
mala e pronto.
— É impossível encontrar algo dentro do mar nessa escuridão
— falei. Foi um milagre minha voz não ter falhado. O oceano, àquela
noite, era como um quarto escuro onde os meninos tinham medo de
ir.
— Não tenho pressa. Você pode procurar até o nascer do sol —
respondeu, bem serena. Era visível seu divertimento.
— Tudo bem — respondi, por fim. Não era parte de mim ser tão
covarde. — Me desamarre.
— Ah, eu ia me esquecendo desse detalhe. — Sua cabeça
pendeu para o lado e ela acrescentou em um cruzar de braços. Sua
maldade se desvelando aos poucos. — Você fará isso amarrada.
— O quê? — bradei, com um horror perseverante. — Se quer
me matar, mate de uma vez!
E outra vez ela jogou seu veneno.
— Ouça, bonequinha ruiva. Eu não sairei daqui sem minhas
joias. Ou você faz isso, ou eu cumpro minha promessa em...
Inspirei e expirei. Era minha culpa Iolanda ter nos raptado. Eu
era a causadora de tudo aquilo. Se eu não tivesse a roubado Nick
não estaria em perigo. Ele estaria agora com sua filha. Nada era
mais triste, trágico e profundo.
— Eu irei — eu disse, tenaz, quando na verdade, estava usando
a forca em meu pescoço como se ela fosse um colar, pois eu não
queria demonstrar meu medo, apesar de meus membros estarem
congelados e eu sentir como se meus pés estivessem pisando em
cacos de vidro.
— Não. Não irá! — Declarou Nick, com um espantoso ímpeto, e
largou minhas mãos. Me senti solitária. — Quer culpar alguém pelos
colares? Culpe a mim. Se quiser usar essa faca em meu corpo, que
use. Apenas a deixe fora disso!
Meu coração saltou dez batidas ao mesmo tempo. Aquelas
palavras me rasgaram em pedaços. O meu disfarce se despedaçou.
Provei a sensação das lágrimas salgadas na minha bochecha. Eu
amava e odiava a forma como ele demonstrava se importar comigo.
Odiava o fato dele dizer não me querer quando estava claro que meu
nome era tudo o que se passava na sua mente.
Meus cabelos se soltaram à brisa do vento que ganhava força a
cada hora, levantando furiosas ondas e dando um balanço ao barco.
— As ordens sou eu quem dou, seu policial. Você não querer
que eu fira a ruiva, só me faz ter mais vontade ainda em fazê-lo.
Estou brincando com o coração dos dois e ao mesmo tempo. — Ela
soou como algo semelhante à um monstro. E deu a ordem à um de
seus amigos: — Tragam uma corda para eu amarrá-la longe dele.
Nicholas se agitou. Minha boca seca fazia parecer que eu
comera areia a noite toda e meus olhos queimavam como se eu
chorasse puro sal.
— Iolanda... — Ele tentou atrair a atenção da mulher que se
preparava para passar a faca na corda que nos unia. — Alastor.
A criminosa cessou o movimento de vai e vem da lâmina afiada.
— O que disse? — ela indagou.
—Alastor — Nick repetiu. — Você me ouviu bem!
Ala... quem?
Iolanda agiu como se tivesse perdido seu ponto de equilíbrio e
eu podia jurar que ficou boquiaberta. A mulher agora não passava de
um vão na penumbra.
— Não pode ser... Isso é... é impossível. — Ela disse, então. Na
voz, um visível traço de pânico.
— Solte-me agora mesmo! — Ordenou Nicholas, com uma
espessa fúria e eu imaginei um lajedo frio em seus olhos. Os
mesmos olhar que para mim tinha seu selo de coisa inesquecível.
— Você é... é um policial. — Ela o lembrou.
Que raios está acontecendo aqui?
— Eu mandei me soltar! — O fez pela segunda vez.
Por que ela o obedeceria? SOMOS SEUS REFÉNS!
Só que aconteceu. Pelos deuses, Iolanda nos soltou. Quer dizer,
ela soltou Nicholas, mas, por estarmos juntos na mesma corda, em
consequência, fui libertada também.
Me virei de imediato e a tempo de ver Nicholas agarrar o
pescoço da mulher e prensá-la contra a pilastra. Eu, como todos os
outros, apenas observei. Perdida, era um espaço que eu nunca
esperei ocupar, mas lá estava eu; tão esquecida quanto as paredes.
— Nick? — O chamei, alheia em tudo. Eu sabia que ele não me
responderia. Ele estava completamente fora de si.
— Ordene que seus cães baixem as armas! — Ele grunhiu para
ela. — Você sabe quem sou e sabe como adoro torcer o pescoço
daqueles que me desafiam.
Quem sou...? Quem sou? O que quer dizer? Nicholas Coleman.
Você é Nicholas Coleman.
Me tremi inteira, reentrando diversas vezes no mesmo vazio de
seus olhos, porque agora eu estava de frente para ele e não era
capaz de dizer se aquela havia sido uma boa ideia. Tentei manter
aceso o fogo da consciência: ele era doce e gentil.
— Baixem as armas. AGORA! — Ordenou Iolanda, à meio fio de
voz.
— Mas... — Tentou dizer um dos rapazes. O outro, ensopado,
apenas observava tudo com olhos tão arregalados quanto eu.
— EU MANDEI BAIXAR AS ARMAS! — Iolanda se esforçou
para ser mais clara e autoritária da segunda vez. Eles obedeceram.
— Maisie — pulei ao ouvir meu nome soar com a voz de Nick
—, traga as armas para mim.
Não consegui agir. Ele virou o rosto e me encarou com olhos
vagos que pairavam de mim, além. Àquele ponto, não havia mais
ossos em meu corpo para se quebrar, mas Nick conseguiu.
— Maisie — farfalhou macio dessa vez. As ondas acenavam em
seus olhos —, eu preciso de você.
— Precisa de mim? — questionei, arrepiada. — Mas quem
diabos é você?
Não era para ter acontecido daquela forma. Eu fui obrigado a me
revelar para reverter aquela situação irremediável e triste. Pelo amor
de Deus, Maisie me cravou olhos que só se cravam na pior espécie
de assassino. Não que existisse tipos bons de assassinos, mas eu
também não me enquadrava nos piores.
Ela estava ali, plantada de imobilidade absorta. Estranhamente
quieta, murcha, resignada. Olhos agudos numa tristeza que me
corroeu, que abortou a minha coragem. Que me consumiu de víscera
a víscera.
Como eu poderia mudar aquele olhar julgador sendo que ela
ainda não sabia nem 1% de tudo que já fiz? Que tive que fazer. Ela
não era capaz de imaginar os tipos de segredos que eu abrigava na
minha mente. Que em meu cérebro existia um descomunal jazigo
onde havia vermes aos mil.
— Então a bonequinha ruiva não sabe quem você é de
verdade? — Iolanda provocou, com o pescoço entre meus cinco
dedos, alcançando novas proporções de sua mortalidade. — Não
sabe o segredo que ambos partilhamos?
Os verdes de Maisie ficaram raiados de preto, como uma estrela
fossilizada.
— Que segredo? — Ela questionou. O fruto infeliz da sua
curiosidade a fez ignorar que Iolanda há poucos minutos estava
prestes a matá-la.
— A ignore, garota, depois eu explicarei tudo a você. Eu
prometo! — Garanti, mas era mentira. Eu nunca teria coragem de lhe
contar tudo o que Alastor fez. Foram tantas coisas que nem cabiam
dentro de mim. Mas eu não me esqueceria jamais daqueles dias de
tormento, sob a pressão de um inverno rigoroso; a razão de Alastor
ter nascido.
Ela me olhou da mesma forma que alguém olha uma lagarta
devorar uma maçã.
— Maisie, eu preciso de você — acrescentei, agoniado com
aquela incomensurável distância de meio metro que me impedia de
tocá-la para arrancá-la daquele transe que entrara. Cada átomo da
minha carne queria senti-la. Mas eu não podia. Não enquanto havia
uma mulher cujo pescoço eu desejava enforcar sob minha mão.
Ela finalmente reagiu. Recolheu as armas do chão, cerca de
quatro, mas me entregou apenas três.
— Amarre-a — ordenou, mirando em mim a pistola que ela fez
questão de não me entregar.
— O que está fazendo!?
Em resposta, ela chutou uma corda em minha direção.
— Mandei amarrá-la! — repetiu e disse para os outros três, sem
desviar de mim sua face fria: — Vocês, para a cabine!
— Obedeçam-na — acrescentou Iolanda, feito um bicho atento,
ao perceber que os três não se moveram após a ordem da ruiva.
Assim que eles se foram, Maisie seguiu em direção à cabine e a
trancou.
— Maisie...
— Eu não me importo com quem você seja, se não acatar minha
ordem, eu darei o disparo — me interrompeu. Sem escolha, eu a
obedeci. Amarrei Iolanda na pilastra com um nó bem apertado e me
voltei para a ruiva que, naquele momento, eu não reconheci. Ela já
não era quem foi naquela manhã.
Nos dirigimos até a proa do barco sem que nenhum de nós
falasse. Ela já não me apontava sua arma, no entanto, continuava
intocada e sem aparentar querer trégua.
— Eu posso explicar — falei, o busto inteiriçado.
— Quem é você? — questionou, voraz, sem rodeio.
— Nicholas Coleman — afirmei.
— E Ala... — Ela aparentou dificuldade em repetir o nome.
— Alastor? — A ajudei.
Assentiu.
— Quem é?
Engoli em seco e examinei serenamente o meu problema.
— Eu — fui objetivo. Eu responderia qualquer coisa que ela me
perguntasse, mas de forma alguma lhe daria informações por
vontade própria. O que eu pudesse esconder de Maisie, eu
esconderia.
Ela arqueou a sobrancelha e, para minha tragédia, também foi
objetiva em sua pergunta.
— E o que Alastor fez?
— Essa é uma pergunta tão vasta quanto uma música —
desconversei. — Pode largar essa arma, por favor?
— Responda minha pergunta, Nicholas Coleman! — exigiu e
ignorou o meu pedido.
Suspirei. Eu podia facilmente desarmá-la, tinha oportunidade e
destreza para fazê-lo, mas sabia que isso só me deixaria em
desvantagem com a ruiva.
— Alastor é meu codinome. Eu o uso para executar — fechei os
olhos, não podia encará-la — meus crimes.
— Seus...seus crimes? — balbuciou, notei a ênfase. Foi tão
baixo que o vento sobressaiu sua voz. — Você não é um policial?
Tornei a fitá-la.
— Sou.
— Seja claro! — Foi autoritária e impaciente. Eu não teria
escapatória, Maisie não era o tipo de garota que eu conseguiria
enrolar.
— Alastor é um apelido que me deram na Grécia. Digamos que
eu não fui um bom hóspede quando estive por lá. Eu fiz coisas que
um policial não deveria fazer — fui específico, pois sabia que ela
faria a pergunta: — Eu roubei e matei.
Ela cambaleou para trás, como se o vento a tivesse empurrado
e se segurou no barco.
— Ifrinn (inferno). Por que você faria algo assim?
— Tive meus motivos.
— Isso não me consola — falou.
— Não estou tentando consolá-la — rebati.
— Essa é a verdadeira razão de você não querer ir à Grécia?
Medo de ser reconhecido? — inquiriu em um timbre acusatório.
— Ninguém conhece meu rosto, se é isso que quer saber. Bem,
ninguém vivo. Apenas você e aqueles quatros — indiquei com a
cabeça para Iolanda e os outros na cabine.
— O que fará comigo? — Sua voz tremeu. — Eu quero voltar!
— Não posso levá-la de volta — falei.
— Então eu voltarei nadando! — ameaçou e fez que ia pular do
barco. A agarrei por trás a tempo. Ela se debateu em meus braços e
foi obrigada a largar sua arma.
— Controle essa cauda, sereia. Nós ainda temos muito o que
conversar.
Se ontem me dissessem que um dia eu odiaria ser carregada
pelos braços de Nicholas Coleman, eu acusaria essa pessoa de
desajuizada. Mas, naquele instante em que Nick, ou Alastor, me
carregava em seu ombro, eu o odiei. Eu fiquei furiosa. Eu quis
mordê-lo e arrancar pedaço.
Ele mentira para mim durante todo aquele tempo, me acusara
de ladra enquanto ele não passava de um impostor, de um
assassino.
Pelos deuses. ASSASSINO!
— Me coloque no chão agora mesmo! — exigi, socando suas
costas com força.
— Não — disse, apenas. Após alguns minutos, acrescentou: —
Não permitirei que dê uma de peixe e vá embora nadando. Você é
mesmo doida a esse ponto?
— Ao menos na água eu tenho alguma chance de vida — rebati
em um ranger de dentes.
— Eu não irei machucá-la.
— É isso que diz para todas suas vítimas antes de enfiar uma
faca no peito delas?
Ele me colocou no chão e começou a amarrar minhas mãos. Ele
estava me amarrando. ME AMARRANDO!
— O que está fazendo? Me solte. — Me sacudi, e dificultei de
todas as formas o nó que ele inutilmente tentava dar em meus
pulsos.
— Ficará amarrada até eu terminar de me explicar. É para sua
segurança.
Me empurrei com os calcanhares para o mais distante possível
dele e assim que consegui ficar de pé, corri para a proa. Julguei ouvir
Iolanda rir ao se deparar com a cena, só que podia ser um engano,
eu estava nervosa demais para ter certeza.
— Maisie! — Nicholas me chamou e advertiu: — Não faça isso.
Você vai se afogar!
Coloquei uma perna para fora do barco. Projetei o pescoço para
frente, afim de avaliar a situação do mar. Foram poucas vezes em
que estive no mar de noite, a escuridão era de asfixiar. Eu não tinha
muita certeza se valia a pena encarar o risco da maré alta. No
entanto, eu sempre me dei melhor com a natureza que com os
homens.
— Você pode morrer. Desça já daí! — disse, feito o latido de um
cão e me perseguiu até o limite do barco. Um passo por vez. — Não
irei machucar você. Eu prometo. Isso nunca nem passou por minha
cabeça.
Meu coração deu alguns pulos na brevidade de um instante
cruel. Um silêncio hostil nos rodeou. Apenas um sussurro brando do
vento.
Ah, coração tolo! Inocente. Estúpido. Juvenil.
— Você matou pessoas — disse solene e majestática, mesmo
que com medo.
O pé fora do barco parecia bobo. O outro, firme no chão nas
madeiras que estalavam.
— Não eram inocentes — disse de súbito. Olhos incrédulos e
astuciosos. — Eram monstros. Todos eles!
Ouvi suas pegadas frescas se aproximarem ainda mais.
— Você se enquadra perfeitamente em seu próprio comentário.
Cretino! — devolvi. A ofensa não era para ter sido ouvida, mas,
àquela altura, Nick já estava muito próximo. Até o mais baixo suspiro
seria audível para ele.
Com um sorriso mórbido, pungente, me respondeu:
— Tem todo direito de me ofender. Eu sou um mentiroso, um
grande filho da puta. Mas se você saltar desse barco, eu irei atrás de
você, mesmo se levar dois tiros em cada perna, mesmo sem ser um
bom nadador, eu irei atrás de você. Então saiba que se resolver
encarar a maré alta, não será apenas sua vida que colocará em
perigo — declarou sem piscar. Com reflexos de uma sinceridade
desenhada à giz, e eu acreditei...por um segundo.
Engoli em seco e, entre um floco de cabelos osculado pelo
vento, devolvi:
— Por que não me deixa ir? Eu não direi nada a ninguém —
garanti em um murmúrio. Não sabia bem em que momento minhas
tranças se soltaram e eu fiquei tão descabelada, que fazia parecer
que passei a tarde toda em frente a um tornado.
— Apenas me ouça. Por favor, Maisie. — O olhar liberto
penetrou o meu.
— Faça isso sem me amarrar. Sem tocar em mim! — Acabei lhe
dando uma trégua impensada.
Ele concordou com um balançar de cabeça, mas não disse
nada. Uma sílaba sequer.
— E então?
— Eu não quero que ela nos ouça. — Se referiu a Iolanda, que
nos olhava como se assistisse uma novela.
— Será difícil isso acontecer em um barco tão pequeno —
atentei, de modo rude. O suor da inquietação me escorrendo pelas
costas.
— Eu não sei porque estou amarrada se agora somos aliados,
Alastor. — Iolanda gritou para ser ouvida claramente. Ela estava
adorando jogar álcool na fogueira. Claro que sim.
— CALE A BOCA. — Nicholas gritou para ela.
— Por que ela o soltou? — resolvi perguntar.
Ele me fitou de soslaio.
— Por que todos que me ajudam ganham minha gratidão e há
boatos de que eu sei muito bem recompensar.
— Dinheiro? — perguntei, inocente.
— Favores. — Uma expressão tristonha dominou sua face.
— Ele mata — esclareceu Iolanda.
— Sim, eu mato. E é o que farei com você se continuar se
intrometendo. — Nicholas a respondeu. — Maisie, desça daí.
Esqueça por um momento o que ouviu sobre Alastor. Eu ainda sou
Nicholas Coleman.
— Escute, bonequinha ruiva, você já está muito envolvida nessa
merda. Ou você entra em um acordo com ele ou eu terei que ser
dura com você. Tudo o que não farei, será levá-la de volta para casa.
Vocês dois acabaram com meus planos, espero que saibam me
pedir perdão.
— Você está amarrada, não pode me impor nada! — retruquei.
— Não. Não estou — ela disse e ergueu as duas mãos, me
deixando desolada. — Eu sempre ando com um canivete no bolso,
tolinha.
Nick se virou para ela. E não me pareceu nenhum pouco
surpreso por vê-la livre.
— Eu não a ajudarei — falei para ela.
— Então terei que matá-la. — Respondeu. Usou a mais cruel
linguagem e se levantou, aproximou-se aos poucos. Havia uma arma
em suas mãos. Não vi quando a pegou.
Nicholas se colocou na minha frente e ficou entre nós duas.
— Se encostar nela eu não farei nada por você. Eu esquecerei
que poupou minha vida e me agarrarei ao fato de que você viu meu
rosto e que essa é uma boa segunda razão para eu matá-la.
— E qual seria a primeira? — Iolanda perguntou, em um timbre
sibilino e deu um distraído palpite: — Ela!?
Eu?
Eu era a única trêmula ali? A única que tinha suor em cada
dobra do corpo?
— Sim. Ela — ele confirmou. — A leve de volta e eu farei
qualquer coisa que me pedir.
Tentei olhar por cima do ombro de Nick para saber que
expressão Iolanda usava, mas ele era muito alto.
— Eu seria muito idiota se fizesse isso, Alastor. Essa
bonequinha ruiva é minha garantia de que não fará comigo e com
meus amigos o mesmo que fez a todos que viram seu lindo rosto.
Ele fechou as mãos em punhos. Mas logo relaxou.
— Me deixe falar com ela. A sós.
Eu ouvi os passos de quando ela se afastou. Não entrava na
minha cabeça a facilidade que os criminosos tinham de entrar em um
acordo logo após se atracarem. Por Odin, eu nunca confiaria em
alguém que até poucos minutos queria me matar.
— Tudo bem. Essa é a hora que peço para que confie em mim
— disse, ao se virar. — Iolanda sabe quem sou; se ela espalhar pela
Grécia que Nicholas Coleman é Alastor, o sujeito que assassinou
grandes criminosos, eu colocarei a vida da minha filha em risco. Eles
virão atrás de mim e usarão todas as minhas fraquezas para se
vingar.
— Você MENTIU para mim. Como pode me pedir para que eu
confie em você quando fingiu o tempo todo que...
Vi em seus olhos, o brilho do luar.
— Eu não fingi o tempo todo. Todas as vezes em que a beijei, eu
fui eu mesmo. Posso ter dois nomes, Maisie, mas tenho um único
coração e agora ele é seu — falou, no calor do momento.
Aquilo foi mais doído que uma ferida rasgada a navalha.
Ele é seu. Ele é seu. Essas palavras ecoaram sem cessar em
meus ouvidos. Outra vez eu estava sendo embalada no berço da
ilusão.
— Iolanda não deixará você ir embora, não com vida. Eu
conheço pessoas como ela. Confie em mim, Maisie — ele
acrescentou.
Voltei com a perna para dentro do barco e me sentei na borda.
Cair daquela altura não me assustaria, quando o tombo que levei ao
descobrir a verdadeira face de Nicholas Coleman fora muito maior.
— Eu prefiro morrer nesse imenso oceano sombrio a ajudar
pessoas como vocês. — Minha voz foi fraca, mas meu coração foi
valente.
Assim que minha frase foi concluída, eu senti um impacto no
peito. Uma dor violenta e nova. Foi como se algo estivesse me
esmagando.
Eu estava caindo feito uma folha, numa velocidade apavorante,
um silêncio desmedido, um frio que parecia o de inverno. Então fiz
um cálculo rápido durante a queda: eu levara um tiro e ele me
lançara para fora do barco.
O foco me abandonou como se tudo fosse névoa e muros. Meus
músculos pareciam cansados demais para que eu obrigasse minhas
mãos a agarrarem algo. Por mais que tentasse, já não sentia meu
coração bater.
E, como quem sabe que está morto ou prestes a morrer, fechei
os olhos e esperei o mar me engolir.
Preparei-me para morte.
Tudo parecia sossegado. Tudo o que podia se ouvir era o som
da voz de um homem, e aves - um monte delas. Ergui as pálpebras
pesadas. A claridade do sol, atravessando a janela, cuja cortinas
azuis abertas oscilavam à leve brisa do dia, pinicou meus olhos
como se fosse agulha.
Minha garganta estava seca demais para que eu conseguisse
projetar palavras e meus lábios ardiam como se estivessem
cortados. Por outro lado, os objetos à minha volta iam ganhando
foco. Tudo era branco, desde as paredes texturizadas ao cobertor
sobre meu corpo na enorme cama. Mas as cortinas, reparei mais
uma vez, eram azuis.
Obriguei a saliva descer por minha garganta.
— Á-gua. — Foram quatro letras que me custaram muita energia
e desabrocharam no ambiente, onde o silêncio afluía e se
concentrava, como um grito.
— Maisie? Finalmente você acordou. — Ele esticou os lábios no
mais diminuto sorriso e esticou a mão para pegar um copo ao lado
da cama. — Venha, eu a ajudo. — Ele passou uma mão por detrás
da minha cabeça e me ajudou a alcançar o canudinho.
O líquido escorreu feito ácido, mas me ajudou a desfazer o nó
na garganta.
Deslizei o olhar pelo seu corpo. Seu rosto tinha uma cor que não
se distinguia dos ossos, mas sua face fria parecia brilhar sempre que
me fitava.
— O que aconteceu?
Uma sombra apagou o lampejo dos seus olhos.
— A fraqueza da memória fortalece as pessoas, garota — falou
com cuidado e devolveu o copo para seu devido lugar ao lado da
cama.
— Eu quero saber. Eu...eu — levei as duas mãos às têmporas e
as pressionei com força. — Eu me lembro do tiro. — Tentei no
mesmo minuto tatear o ferimento, mas Nick segurou meu pulso.
Era o seu porte, seu olhar, seus dedos, mas não era o Nick
Coleman que eu julgava conhecer. Aquele, com os cinco dedos em
meu braço, me parecia vulnerável.
— Você precisa descansar.
— Estou aqui há quanto tempo?
Onde é aqui?
— Quatro dias.
Eu vi algo se esconder na sombra dos seus olhos.
Quatro dias. Puxei meu braço.
— Como saí da água? Eu acho que me lembro de ter caído de
costas no mar. Como...como...
Eu estava confusa. Já não sabia diferenciar o sonho da
realidade. Talvez eu não tivesse caído. Talvez...
— Eu lhe disse, garota, que se você pulasse, eu pularia —
disse, subitamente. A maestria e maciez das suas palavras aos
poucos me acalmou.
Meu corpo foi afundando no colchão como se eu estivesse
deitada em areia movediça e tivesse o peso de um chumbo. A dor
latente na minha cabeça me obrigou a fechar as pálpebras
novamente.
Eu queria continuar acordada e fazer mais perguntas a Nick,
mas dormir parecia ser inevitável. Antes que eu pegasse no sono
profundo, senti o toque cálido dos lábios dele em minha testa e suas
palavras foram claras:
— Eu os farei pagar. Ninguém mexe com a minha garota.

Fechei os olhos pela manhã e tornei abri-los quando já era noite,


me sentindo duplamente melhor. Não curada, apenas melhor.
Com uma perna por vez, desci da cama. Um tapete fofinho fez
cócegas em meus pés assim que toquei o chão. Não fiquei surpresa
ao constatar que ele também era branco.
Me arrestei pelo quarto dando um passo por vez, como uma
moribunda, e envolvida em uma camiseta que não me pertencia.
Minhas pernas, dois galhos ressequidos, estavam nuas e a cabeleira
rúbida solta pelas costas. A curiosidade em tocar o ferimento de bala
era crescente, eu precisava vê-lo e senti-lo, mas eu ainda não me
sentia corajosa o bastante para encarar a dor aguda.
— Que diabo faz de pé!? — Seus olhos prenderam-se nos
meus, desafiando-me.
Ele estava afundado num sofá e com um jornal aberto sobre o
colo.
— Como saberei que o disparo não foi dado por você? —
questionei, o espantando. — É uma pergunta plausível, já que não
me recordo dos detalhes.
Ele fechou o jornal, cerrou o cenho e me olhou como um animal
que gosta de brincar com a comida.
— Porque quando dou um tiro em alguém eu miro precisamente
no coração, não numa região próxima.
Minha coluna enrijeceu. Tentei não encolher o corpo. Passei a
língua pelos lábios secos. Estava sendo difícil me manter de pé, mas
eu precisava de respostas e demonstrar que não estava mais tão
frágil era necessário em uma situação como aquela. Eu já não
confiava em Nicholas, não sabia do que ele era capaz. Até onde eu
sabia: o policial bonzinho fora substituído por um assassino frio e
calculista.
— Como me salvou? Como viemos para cá?
Ele revirou os olhos e suspirou.
— Não pode simplesmente agradecer? — perguntou
rispidamente.
— Responda! — Contive o xingamento que se acumulava em
meu peito.
Ele se levantou feito um predador e eu pude contar seus passos
— suaves e mortais — ao se aproximar de mim. Foram cinco. Cinco
passos para ficarmos frente a frente com o outro e fazer eu me sentir
como se estivesse com o corpo coberto de neve.
— Eu fiz uma promessa a Iolanda. Em troca, ela me permitiu
salvá-la e me forneceu todos os recursos necessários. Está
satisfeita?
Fiz esforço para me manter parada.
Tossi e, a mera força me fez sentir dor. A careta foi inevitável.
— Que promessa? — consegui perguntar.
— Não é da sua conta. Você está viva. É isso que importa.
O encarei com meu olhar mais insensível, mas os flocos de gelo
logo se derreteram diante suas pupilas azuis e penetrantes.
— Como devo pagar pelo serviço de Alastor? — Soei amarga e
irônica.
Trincou o maxilar e franziu a testa como se buscasse algo para
me dizer.
— Você tem um jeito estranho de agradecer.
Avaliei os riscos como uma presa e, como uma tola, os ignorei.
Era lindo. Tudo o que eu via naquele rosto, era lindo. A barba
desleixada, o cabelo cor de ouro, a expressão de quem tenta com
todas as forças não perder a cabeça diante uma ruiva
inconsequente.
— Não sou sua. Está me ouvindo!? — Fiz meu melhor para não
parecer patética.
— Como? — indagou, aturdido.
— Eu o ouvi antes de pegar no sono. Você disse que ninguém
mexe com a sua garota.
Suas bochechas ruborizaram levemente.
— Foi apenas um modo de dizer. Não se preocupe, você
continua sendo um mágico tesouro inviolado, ruivinha.
Senti um intenso fogo me invadir. Como se o sol me abraçasse
pelas costas.
— E-eu não quero dever nada a Alastor. Diga-me, como posso
pagá-lo? — Mudei de assunto ao sentir as malditas borboletas em
minha barriga.
— Não me deve nada. Eu cuidei de você porque foi o certo a se
fazer. Qualquer um no meu lugar teria feito o mesmo.
— Um policial, sim. Um assassino...
Ele segurou meu queixo com a mão e eu mergulhei fundo em
suas órbitas severas.
— Me julgue como quiser, mas você não sabe nada sobre mim.
Nada do que passei. Se acha melhor que eu, garota? Mas o que
faria se visse tantas crianças passarem pelo mesmo que você já
passou? — rugiu, a voz embargada de angústia. Gotas dançavam
em seus olhos, colorindo-os. Transformando aquele homem grande
em algo que podia ser facilmente quebrado. — Eu era só uma
criança quando vi meu padrasto violentar uma menina, o vi subir em
cima dela como quem monta em um animal. Eu ouvi os gritos dela,
pude contar suas lágrimas, uma a uma. E não pude fazer nada, nada
além de olhar. E sabe o que aconteceu comigo por ser curioso,
garota? Fui amarrado à uma árvore em pleno inverno de chuvas
rigorosas. Passei fome, frio, urinei nas próprias calças. O único gosto
em minha boca era o sabor das minhas lágrimas salgadas, o único
cheiro, era o de terra molhada misturada com o meu desespero.
Foram dias, noites, com a corda amarrada ao meu pescoço e
trovoadas a me ensurdecer. Lembro do olhar da minha mãe pela
janela, e até hoje não posso garantir que ela me via. Eram tantas
drogas em suas veias que era difícil saber quando ela estava
verdadeiramente sã. — Ele me soltou quando se viu perto de
desmoronar.
Meu coração subiu para a boca.
— É isso que Alastor faz? Mata pessoas como o seu...padrasto?
— A dor do remorso me levou a perguntar.
— Meu padrasto assassinou a menina que violentou. E sabe
quem era ela? Eu descobri só depois de alguns anos, garota. Ela era
filha dele.
— Nic...
— Eu me tornei policial porque achei que assim conseguiria
salvar as vítimas, Maisie. Só que aos poucos vi que a lei não dá a
sentença que eles merecem. Mas Alastor as dá.
— Então você não um assassino. É um protetor — murmurei,
envolvida em seu sofrimento. Eu tive uma infância difícil, mas nada
que se comparasse àquilo. Eu não fiquei amarrada à uma árvore em
dias chuvosos, não fui maltratada por meus pais. Eu não tive amor.
Já Nicholas Coleman, ele teve uma dose extra de ódio.
— Não sou um protetor. Eu não protejo ninguém. Eu apenas os
vingo. — Seus olhos desceram para um pouco abaixo do meu seio.
— Sua ferida está sangrando. Eu não devia tê-la aborrecido com
meus problemas. Venha, irei levá-la de volta para a cama.
Recuei um passo, evitando que ele me tocasse.
— Eu estou bem.
— Não, Maisie. Não está. Você quase foi morta por minha culpa.
Precisa se recuperar para voltar para a Escócia.
— Voltar para a Escócia? — esguichei. — Onde raios estamos?
Ele quase sorriu.
— Bem-vinda à Grécia, Maisie.
— Você me trouxe para a Grécia? — bradei. — Como ousa me
trazer para a Grécia?
— Em nome de Deus, era trazê-la ou deixá-la morrer. O que
queria que eu fizesse, garota!?
— Você é Alastor. Não sei que raios esse nome significa, mas
estou certa de que deve possuir alguma magia.
Ele gargalhou estridente.
— Uma magia?
— Você me entendeu.
— A única magia que possuo, está entre minhas pernas,
querida. Estritamente proibido para alguém como você. — E
acrescentou uma piscadela descarada à sua frase indecente.
Meu rosto queimou de raiva e de vergonha. Nick continuava me
tratando como uma donzela apenas por eu ser virgem.
— Pois bem, talvez eu passe alguns dias aqui e verifique
pessoalmente o que Iolanda disse sobre os gregos. — Me sentei no
sofá que outrora Nick ocupara. Eu podia estar gravemente ferida,
mas minha língua ainda continuava afiada como uma espada.
— Você fala grego, garota? — ele indagou, se virando para mim.
— Não...
— Então como pretende se comunicar com eles? Na ilha em
que estamos, a grande maioria não fala em inglês.
— Então deixarei que minha libido fale por mim — falei, entre
um ganido de dor e outro.
— Por que não tenta se recuperar primeiro, hã? Depois
conversamos sobre sua depravação.
Olhei para baixo. Para a coloração vermelha na camiseta
branca.
— Tenho que trocar o curativo — atentou Nick, reparando no
mesmo que eu.
Ele desapareceu em um corredor por minutos e logo retornou
com uma caixa de madeira em mãos.
Ele se ajoelhou e foi com a mão na barra da minha camiseta,
para erguê-la. Eu lhe dei um tapa no braço que o paralisou.
— Que diabo foi isso? — questionou, sem entender a agressão.
— Eu posso trocar meu curativo.
— Está com medo de eu vê-la nua? Sabe que quem a trocou e a
lavou durante todos esses dias fui eu, certo? — perguntou, sendo
debochado. — Por falar nisso, achei adorável a marca de nascença
que você tem bem aqui. — Foi com o dedo um pouco abaixo do meu
umbigo. Eu hiperventilei com aquele minucioso toque.
Pensar naquele homem me lavando enquanto eu estava
desacordada, era demais para a minha cabeça.
— Olhe para mim, Maisie. — Chamou-me em um sussurro. —
Eu não fiz nada que a desrespeitasse. Eu nem mesmo olhei para
você. Imploro para que acredite nisso. Eu estava tão desesperado
para salvá-la, que...
Tomei seu rosto com as mãos. Inclinando-me até onde a dor
permitisse.
— Eu acredito em você — fui sincera.
Uma gota saltou dos seus olhos congelados e escorreu por sua
face. Depois outra.
— Obrigado — suspirou aliviado e se recompôs. — Agora, pare
de pressionar o ferimento. Queremos você boa logo, garota. Os
gregos a esperam.

Na manhã seguinte não fora o sol quem me despertara, apesar


de ele ser escaldante. O ar quente e seco, mitigado por um
constante sopro que provinha da brisa marítima e através da janela
aberta, era confortável e me fez desejar não sair da cama o resto do
dia. No entanto, uma figura masculina ao pé da cama e me olhando
atentamente, me sobressaltou. Não era Nick Coleman. Aquele par de
olhos castanhos e lábios carnudos perfeitamente desenhados, não
era do escocês.
— Bom dia. — A voz grave falou. — Não tive intenção de
assustá-la. Como está se sentindo? Com dor? Sensível?
Usei as duas mãos para conseguir me sentar na cama.
— Bem...Quem é você? — Tentei não soar grosseira.
— Ah, claro. Perdoe meus modos. Sou Heitor, o médico que
está cuidando de você — apresentou-se e só então reparei que luvas
brancas cobriam suas mãos. — Nicholas não falou de mim?
Neguei com a cabeça.
— Claro que não ousou dizê-lo. Ele tem o dom de esquecer
detalhe que não diz respeito a ele. — Rezingou, como se fosse um
segredo. — Bem, a senhorita ficou hospitalizada por dois dias sob
meus cuidados. Assim que seu corpo começou a reagir e apresentou
melhoras, Nicholas a trouxe para cá e pediu para que eu o ajudasse
a tratá-la em casa. É o que tenho feito desde então.
Franzi o cenho e deixei meu ouvido vagamente atento para tudo
o que Heitor tivesse para dizer. Ele era minucioso com os detalhes,
muito diferente de Nick que falava muito e não dizia absolutamente
nada.
— Obrigada por cuidar de mim. — Primeiro a educação, depois,
a curiosidade. — Eu estava à beira da morte, doutor?
Ele puxou as luvas para arrumá-las.
— Você deu muita sorte. A maioria das pessoas não
sobreviveriam à um ferimento desse. — Foi direto e sem nenhum
tato.
Engoli com dificuldade. Eu ainda me sentia fraca e com o apetite
de um dragão.
— Eu preciso examiná-la. Posso? — Ele pediu e se aproximou
quando eu concordei.
Deixei que Heitor fizesse seu trabalho e gemi de dor quando ele,
ainda que cuidadosamente, tocou na região afetada.
— Está se recuperando bem e rápido — concluiu e tirou as
luvas. Colocou uma dentro da outra e as jogou em um cesto próximo
à cama. Eu não havia reparado antes, havia uma quantidade
exuberante de luvas lá dentro e alguns tecidos manchados de
sangue.
— Você precisa se alimentar e beber bastante água —
aconselhou, sendo gentil.
— Ninguém nunca precisou se preocupar comigo em relação à
comida, doutor.
O fiz sorrir pela primeira vez. Heitor tinha uma beleza diferente,
eu não saberia dizer como. Ele apenas era bonito, mesmo que nada
em seu rosto fosse extraordinário. Era o tipo de homem que quando
você olhava duas vezes, a segunda te faria suspirar.
— O senhor é grego? — resolvi perguntar.
— O que me entregou?
Eu não teria coragem de dizer que fora seus lábios ou aquele
olhar misterioso graças às marcantes sobrancelhas, então me limitei
à:
— Estamos em uma ilha grega.
Ele sorriu pela segunda vez. Os dentes brancos lembravam-me
um rabisco em nuvens escuras.
Uma sombra passando pra lá e pra cá pela janela, inquieto,
capturou minha atenção. Era Nick, mesmo sem vê-lo, eu podia senti-
lo com cada célula do meu ser.
— Ele está ao telefone com a filha. Ele liga para ela toda manhã.
É um ritual. Se ele souber que o mundo acabará às dez horas, ele
telefonara para ela as nove enquanto todo o resto do Mundo estará
gritando em desespero e fazendo de tudo para tentar se salvar. —
Heitor compartilhou. Ele parecia conhecer Nick mais que qualquer
um.
Tive uma dilacerante vontade em perguntar se ele sabia sobre
Alastor, mas não podia correr o risco de ferrar com tudo.
— Vocês são amigos? — perguntei, então. Eu reparei quando
ele se retraiu, como se tivesse uma tênue lembrança.
Tristeza ou alegria? Eu não tive tempo de descobrir.
Antes que ele pudesse me responder, ou antes que pudesse
pensar sobre a resposta, a silhueta de Nicholas invadiu o quarto. Foi
como um eclipse. Não havia no Universo alguém que olhasse
Nicholas Coleman sem prender o ar.
— E então? — ele perguntou diretamente para Heitor, com olhos
de mármore e severo como um túmulo fechado.
Como ele conseguia ser tão rude com um homem que salvara
minha vida? E ainda teve a indecência de dizer que eu tinha um jeito
estranho de mostra gratidão.
— O corpo dela tem reagido bem. Mais alguns dias e ela estará
escalando árvores. — O médico disse, gracioso.
— Você acabou de descrever os meus vinte e três anos de vida,
doutor — brinquei. Em troca, fui degolada pelo olhar de Nick. Seus
lábios retesados deviam ter criado presas.
— Preciso ir. Retorno em alguns dias para saber como você
está. — Heitor disse para mim, provavelmente reparando na
atmosfera tensa.
— Eu ligo se precisar — replicou Nick.
Lhe dei um olhar crítico antes de agradecer o médico.
— Eu gostei dele — confessei para o turrão assim que o outro
se foi.
Nick trincou o maxilar e eu imaginei seus dentes rangendo
enquanto a resposta queimava sua língua.
— Minha ex noiva também gostou — escancarou.
— Ah, que merda. Eu não sabia...não podia imaginar. — Senti o
colchão me engolir. — Então Heitor era o seu melhor amigo?
Ele se sentou na beirada da cama. A camiseta preta
contrastando o cerúleo dos seus olhos.
— Hoje ele não passa de alguém que desejo morto — disse com
seriedade e deve ter notado que eu me retraí. — Que Deus me
ajude, foi apenas um modo de dizer, Maisie. Não farei mal ao seu
amigo.
Engoli em seco.
— Já não sei quando você está sendo honesto. Não me culpe.
— Me defendi. — Se o odeia tanto, por que pediu a ajuda dele?
Nossas almas se encararam em uma confidência interminável.
— Porque salvá-la era minha prioridade.
Soltei o sobejo de ar que restava em mim.
— Como gosta do seu chá? — Ele mudou de assunto. O raio de
sol roçava em sua barba.
— Pouco açúcar e pouco leite.
— E o que gostaria de comer? — Ele ergueu a mão para me
silenciar. — Deixe-me adivinhar, pães doces?
Sorri largo. Não apenas por ele conhecer meus gostos, mas
porque eu iria comer.
— O que acha de tomar um banho de sol enquanto busco seus
pães? — Ofereceu em um timbre irrecusável.
Permiti que Nicholas me ajudasse a descer da cama. Me apoiei
nele como se fosse minhas próprias pernas.
Enquanto ele me guiava para fora da casa, em um caminhar
preguiçoso de quem quer que aqueles instantes durem mais do que
o necessário, eu perguntei por curiosidade:
— Como sua filha está?
— Bem. Está com as tias. — Foi vago.
— Deve estar sentindo sua falta e você, a dela.
— O que quer realmente saber? Seus questionamentos sempre
acompanham segundas intenções — ele falou.
— Você sempre é sucinto. Mas hoje você está especialmente
quieto.
Ele foi ainda mais cuidadoso ao me ajudar com os degraus.
— Não tenho conseguido dormir muito bem — admitiu.
— Tenho sido uma péssima paciente? — perguntei para
descontrair.
— Pelo contrário. O único momento bom do meu dia,
curiosamente é quando estou com você.
Não derreta como neve ao fogo.
Nick me soltou para abrir a porta de vidro que dava para uma
pequena varanda. A vista me deixou sem palavras. O céu azul
límpido e o mar cor de Safira, adornado por magníficas ruínas. Se ali
não era o paraíso, certamente era uma passagem para ele.
— Por que tão lindo? — balbuciei, sem fôlego.
— É exuberante — ele respondeu.
Me sentei numa poltrona com a sua ajuda. Fechei os olhos,
inspirei e expirei profundamente o ar puro, ouvi as gaivotas e permiti
que o sol pintasse ainda mais o meu rosto. Eu realmente não me
importava em parecer com uma onça pintada, ainda que a maioria
das pessoas torcessem o nariz ao me ver.

— Demorei tanto assim?


Era a segunda vez em um dia que eu despertara sobressaltada.
Nicholas se sentou numa poltrona igual a minha, de frente para
mim, e passou uma perna por cima da outra como os homens eram
acostumados a fazer.
Esfreguei os olhos e bocejei.
— Não percebi que pegara no sono — falei.
— Seu chá vai esfriar — alertou e apontou com o dedo para
uma xícara posicionada numa mesinha ao meu lado. Os pães doces
também estavam lá. Os peguei sem pensar duas vezes e comi pelo
menos três antes de dar o primeiro gole no chá.
Assim que terminei de encher meu poço sem fundo, olhei para
Nick e vi que ele já me observava com um sorriso radiante no rosto.
— O que foi? — perguntei sem entender.
— Nada.
Lhe lancei um olhar fulminante.
— Eu sei que como muito...
— ...e desesperadamente — completou em um cruzar de
braços. — O que me espanta é você não engasgar, dragãozinho.
Fiquei boquiaberta com o apelido que me dera. Ainda que eu
tivesse a delicadeza de um cavalo relinchando, nenhum outro
homem ousara ser tão franco com a minha peculiaridade na hora de
comer.
— Posso fingir que não ouvi isso e poupar sua vida — respondi
austera.
Ele não devia temer a morte, já que não apresentou reação.
— E eu posso repetir, se quiser, e acrescentar que essa é uma
das infinitas coisas que eu aprecio em você.
Borboletas na barriga. Nó na garganta. Suor nas mãos e nos
pés. As reações eram sempre as mesmas quando ele fazia
comentários daquele tipo. Ele fazia eu atingir a gigantesca
substância da imortalidade apenas por apreciar coisas em mim,
coisas que qualquer outro não apreciaria.
— E quais seriam as outras?
Seus olhos se perderam em um grande pedaço de mim e
fizeram uma pausa íntima em meus seios.
Entre sons minuciosos que me chamaram atenção, ele disse
com um eco límpido:
— Na verdade, Maisie, a verdadeira dificuldade é encontrar algo
em você que eu não admire.
Fingir que o comentário não me afetou era inútil, então não
tentei esconder minhas bochechas coradas.
— Tenho pintas demais — menosprezei. Era o que as pessoas
sempre diziam. E, bem, era óbvio. — Parece que cada dia coleciono
uma nova.
— Isso a incomoda?
Dei de ombros.
— Não gosto nem desgosto. Apenas não ligo.
— Então por que as mencionou?
— Por que as pessoas sempre comentam sobre elas. Sempre
que eu conheço alguém, eu preciso me apresentar e apresentá-las
como se fossem minha irmã.
Ele descruzou os braços.
— Não sou alguém digno de conhecê-las? — indagou. — Você
não as apresentou a mim.
— E você não me apresentou a Alastor — revidei.
— Justo. Devemos começar de novo?
Empinei o nariz e esperei ele rir, era a única forma de saber que
estava brincando. Como não aconteceu, estiquei minha mão em
cumprimento para que ele a pegasse.
— Sou Maisie Lawrence, nascida e criada na ilha de Kerrera.
Essas são minhas irmãs, eu costumava dar nome a cada uma, mas
com o tempo descobri que o alfabeto não teria letra suficiente para
todas.
Ele se inclinou, pegou minha mão de modo cavalheiro e a levou
em seu lábio para um beijo suave. O arrepio vacilante me subiu pela
coluna e fez meus pelos se arrepiarem.
— Estou encantado por conhecê-la, Srta. Lawrence, e às suas
adoráveis irmãs, é claro. — E sem desviar o olhar do meu, ele
acrescentou: — Se importaria se eu beijasse cada uma delas?
Antes que ela pudesse me responder, eu me levantei e me
ajoelhei aos seus pés. Era a segunda vez que a ruiva me deixava em
tal posição.
Entrelacei meus dedos nos seus, adorando poder sentir o efeito
que eu causava em sua pele, o arrepio, o calor.
— Certa vez me ocorreu que suas cores eram tão incríveis
quanto as de um arco-íris, mas, você, Maisie, é da cor do momento
em que o Sol aparece no horizonte, na direção leste. A imagem de
todos os dias, em todas as regiões compreendidas entre os dois
círculos polares.
Me encarou sem piscar. Percorri as mãos por suas pernas nuas
e perguntei:
— Quer que eu a beije?
Sua respiração ofegante só permitiu que ela assentisse, pôr em
palavras o que queria demonstrara ser demais para ela.
— Um beijo do policial gentil ou — minhas mãos foram um
pouco mais longe. Um movimento lento que a fez se contorcer —
prefere que eu demonstre verdadeiramente o quanto a quero?
— E o quanto me quer, Nick? — ela sussurrou e fechou os olhos
com a delicadeza de quem fecha a janela quando percebe um
vendaval se aproximar.
Soltei uma baixa risada.
— Digamos que eu iria longe para tê-la. Mais longe que já fui por
qualquer mulher.
Minhas mãos ousadas separaram suas pernas. Me encaixei
entre elas.
— Quão longe? — perguntou em um resfolegar.
— Peça-me o que quiser. Estou à mercê da sua satisfação.
Então ela tornou a me fitar com uma sombra crepuscular que a
noite não atingia. Olhos inocentes não deviam ser tão ardentes. Não
deviam fazer tudo que há em um homem queimar, se agitar.
Maisie abriu os lábios no exato momento em que um de meus
dedos a penetrou. Ela se abriu para mim como uma rosa se abre
com o toque firme de um dedo.
— O que pretendia me dizer, chick? — perguntei, sob um olhar
indulgente e um gemido glorioso.
— Nicholas...! — repreendeu com fulgor.
— Ah, então deixei de ser Nick? Que tragédia, eu adorava seus
esforços para me irritar. — Ela se contorceu ainda mais quando o
segundo dedo atravessou seu interior. Ela era como um cálice cheio
dum líquido que extravasa. Quente assim... nem mesmo o verão.
— Não...não devíamos fazer isso aqui — ela ofegou.
— Você não fez a menor alusão de me parar. Mas, se quiser...
— Ouse parar e eu juro que faço chover! — Ameaçou, em um
misto de desejo e fúria.
Deixei meus olhos correrem por seu peito e seu ferimento.
Aquilo era a única razão de eu não a ter jogado no chão ou sobre a
mesa.
— Garota má. Se quer me ferrar, ao menos faça isso de uma
forma prazerosa. Se vo...
Hesitei. Tirei minhas mãos do seu corpo e me levantei. Meus
instintos à solta, como feras. O mais bárbaro ruído vindo do andar de
baixo a ferir meus nervos e sentidos.
— O que foi?
— Não estamos sozinhos.
Maisie se levantou de imediato. A coloquei atrás de mim e a
protegi com meu corpo. Quem subia as escadas se esforçava para
não ser ouvido, mas ao mostrar minha verdadeira face para Maisie
eu a colocara em perigo. Era meu dever saber se havia algo de
errado, meu dever ouvir até mesmo se uma folha caísse no chão.
Eu tinha poucos minutos até impor uma ordem à garota. Poucos
instantes até que o intruso se fizesse presente e cumprisse fosse lá o
que fora cumprir. Me partir ao meio e me lançar ao fogo devia ser
uma das suas inúmeras opções.
Me virei agarrando os ombros da ruiva.
— Não saia daqui. Feche a porta e não abra, mesmo se me
ouvir gritar. Entendeu?
— O que vai fazer? — perguntou baixinho.
— Diga que entendeu — exigi, sem respondê-la. Ela também
pareceu nenhum pouco disposta a acatar a ordem. — Essa é uma
versão minha que eu não quero que você veja. Esse é meu lado
ruim.
— Você não tem um lado ruim — balbuciou, na tentativa de
ajudar.
Acalentei seu rosto.
— Todos temos. Alastor é como um urso feroz que passou a
vida inteira enjaulado, garota. Eu não suportaria se você o visse
arrancar algumas cabeças. — Soletrei velhas palavras desprezíveis.
Ela se espantou. Ótimo.
— Não saia por nada! — Ordenei outra vez e a deixei.
Saquei minha arma e, em um andar vagaroso, plácido, diminuí a
distância entre mim e o sujeito. Quando o homem, um senhor de
idade, se materializou ao alcançar o último degrau — um rosto que
eu desconhecia, marcado por cicatrizes profundas — eu ergui a
pistola na altura perfeita para um disparo fatal.
— Quem é você? — questionei em um timbre exigente.
O velho não estava armado, suas mãos estavam vazias, mas
isso não significava que ele não tinha um objeto pontiagudo
guardado em seus bolsos.
— Perguntarei mais uma vez — alertei. — Quem é você?
Ele deu passos em minha direção como se o fato de eu estar lhe
apontando uma arma de fogo não o assustasse. Mantive os pés
firmes.
— Estou há anos esperando por esse encontro — parou de
andar —, Alastor.
Minhas mãos quase falharam e minhas pernas por muito pouco
não cederam.
— É uma pena não poder lhe dizer o mesmo, já que ainda não
sei seu nome — rebati. Mantive a expressão dura. Mostrar fraqueza
nunca fora uma opção para mim.
— Não se faz necessário um nome quando você é marcado
inteiramente com o sinal das minhas mãos — sorriu.
A revelação me partiu como um raio parte uma árvore. Todo o
tempo que dediquei na minha vida, foi para tentar esquecê-lo, para
consertar o dano significativo que causou em mim. Mas aquelas
poucas palavras que ele proferiu foram o bastante para que eu
voltasse a ser um menino medíocre e mudo.
A voz se escondeu em minhas muralhas.
— Não dará um abraço no homem que o alimentou por anos? —
Ele zombou como só ele era capaz de fazer.
Como pude me esquecer completamente do seu rosto?
A coragem me abandonou no momento mais importante da
minha vida. Eu deixei que aquele homem me abraçasse. Que
passasse os braços em minhas costas traumatizadas. Eu podia ter
puxado o gatilho e acabado com tudo, mas naquele momento eu não
passava de um boneco de pano.
— Você tem feito uma grande bagunça por aqui, rapaz.
Foi por Deus que consegui falar e me desvencilhar.
— Como me encontrou?
— Da mesma forma que muitos o encontrarão se continuar aqui.
Agora todos conhecem o rosto daquele que assassinou grandes
nomes. — Talvez tenha sido um aviso, mas eu interpretei como uma
ameaça.
Iolanda...Por que acreditei que ela manteria minha identidade
em segredo quando se era mais vantajoso ajudar marginais como
ela? Ganhar alguns pontos aqui, outros ali...Bem, não podia culpá-la.
Eu teria feito o mesmo.
— O que ganha vindo me alertar? — grunhi.
— Acha que é o que vim fazer? Alertá-lo para vê-lo se esconder
feito um rato, como sempre fez? — Cuspiu as palavras. Sua típica
forma de falar.
— Então veio me matar. — Foi uma afirmação.
— Não.
Ri com escárnio e voltei a mira da arma para sua cabeça.
— Eu poderia lhe oferecer um copo de uísque para acompanhar
essa adorável conversa, mas prefiro oferecer um veneno mais forte,
aceita? — Eu disse num incontrolável desejo de avançar em seu
pescoço. Mas eu não podia matá-lo, não sem descobrir o motivo da
sua visita.
— Sabe o que querem fazer com Alastor? — Ele ignorou minha
pergunta. — Alguns comentam sobre depená-lo e fazer um
churrasco no espeto com sua carne. Os mais generosos cogitam
usar o garfo dos Hereges em você e até fazem aposta sobre quanto
tempo você duraria sem baixar a cabeça.
— Fico lisonjeado em saber que dedicam grande parte de suas
vidas falando sobre mim — zombei, sem me deixar abater. — Em
qual dos dois grupos você se encaixa?
Ele me avaliou dos pés à cabeça.
— Comer sua carne não me parece apetitoso.
Meu estômago ficou embrulhado. E emudeci.
— Já falou com sua criança africana hoje? — Ele jogou sua
carta na manga.
Meus dedos foram parar no gatilho. Então eu descobri a razão
dele ter ido desarmado e aparentar estar confortável tendo uma mira
voltada para ele.
Luli...Minha pequena e doce Luiza.
— Não toque nela! — rugi. Meus dentes estavam tão cerrados
que as palavras quase não saíram.
Deu de ombros.
— Eu jamais machucaria minha neta — foi cínico.
— Ela não é nada sua — retruquei.
— Não temos o mesmo sangue, rapaz, mas eu sou a mão que o
alimentou por anos.
Que Deus me ajude, mas eu ia torturá-lo de todas as formas
possíveis. Ia...ia...
A silhueta de Maisie e seus caracóis laranja através da porta de
vidro à minha frente me dispersou.
Em nome de Deus, o que ela está fazendo?
Queria balançar a cabeça e obrigá-la a abortar seus planos,
fossem eles quais fossem. Mas qualquer gesto seria arriscado
demais.
As mãos sardentas foram no puxador. Eu prendi a respiração. O
ruído dos trilhos chamaria atenção do meu padrasto. O problema não
seria ele vê-la, mas sim ele perceber como eu reagia quando estava
perto dela.
Fique. Fique.
Maisie abriu a porta em um deslizar macio e silencioso. Estava
tudo indo muito bem, o sujeito continuava dizendo coisas para mim,
apesar de eu não dar a mínima atenção para ele. Até que...
Não. Não. Droga!
Ficar escondida era covardia, mas eu não podia correr o risco de
prejudicar Nick. Eu ouvi tudo atrás da porta, principalmente depois do
homem ter revelado sua identidade.
Então foi esse desgraçado quem traumatizou Nick?
Eu estava contida, até o abominável mencionar Luli. Se Nicholas
não matasse o velho, eu mataria. Por que ele estava tão calmo?
Como podia estar calmo depois de ouvir alguém falar sobre sua filha
em uma conversa tão perturbadora?
Atire nele. Por Odin, atire!
Meu olhar e o do Nick se encontraram. Havia uma súplica dentro
deles, como se ele me pedisse ajuda.
Ele mandou eu não sair por nada.
Eu devia fazer algo. Qualquer coisa. Só que tudo que estava ao
meu alcance parecia inútil e leve demais para desmaiar uma pessoa
com uma pancada na cabeça.
Outra vez Nick me lançou aqueles olhos azuis cheios de pedidos
incompreensíveis.
Se ele quer que eu saia, eu sairei.
Deslizei a porta lentamente, eu estava me saindo melhor do que
esperava já que na maioria das vezes era estabanada e ferrava com
tudo. Mas algo inesperado aconteceu.
Uma gaivota. Uma maldita gaivota achou oportuno pousar na
varanda e gritar. Não fora um grito qualquer. Foi um grito que colocou
tudo a perder.
O homem se virou ao som e me viu. Seus lábios se esticaram na
pior tentativa de sorriso.
— Você estava acompanhado — disse ele para Nick.
O escocês não o respondeu. Seu rosto empalideceu e o peito
elevado era como se prendesse o ar com muito ímpeto. Ele,
literalmente, congelara.
A ave que aparecera para dar seu espetáculo, já voltara para
seu habitat original, como se sua missão ali já estivesse cumprida.
— Eu sou o...
— Eu sei bem quem o senhor é! — Impedi o velho de concluir
sua apresentação.
Ele não se chocou com minha audácia.
— Então, por favor, diga-me quem você é, pois estou certo de
nunca a ter visto.
Desviei o olhar para Nick, na esperança de encontrar auxilio.
— Ela é só uma garota — ele respondeu por mim.
Só uma garota. Não uma garota qualquer... Tentei não me
incomodar com seu jeito insensível de falar sobre mim.
— Essa garota tem um nome? — O velho perguntou
diretamente para mim.
Minha língua empedrou. Aquele homem me causava calafrio,
não apenas porque eu sabia com detalhes o que ele fizera com Nick,
como também pela forma que ele me encarava da cabeça aos pés.
Era como se falasse para si mesmo: “O que farei com você,
menina?”.
— Diga de uma vez o que quer de mim, Athos!? — Nick interviu
pela segunda vez. — Se está com a minha filha...
— Eu não estou com a sua criança. — Athos o cortou de
imediato.
Algo no rosto de Nick se iluminou, então deu um passo na
direção do padrasto. Depois outro.
— Sendo assim, posso cortá-lo em mil pedaços — ameaçou
sem nenhum traço de piedade. Ele guardou sua pistola, como se
soubesse que não precisaria dela para acabar com o velho. Aquele
ódio cintilando em seus olhos me fez ter certeza de que ele não
precisaria de qualquer arma. Apenas das enormes mãos.
— Eles querem você, rapaz. Querem Alastor. — Foi o suficiente
para imobilizar Nick, mais eficiente que uma picada venenosa.
— O que disse? — O escocês indagou.
Sim, o que disse?
— Érebos quer sua ajuda. Em troca, eles o perdoarão por
assassinar cruelmente alguns membros da nossa Sociedade.
— Você só pode ser louco. Diga-me que é um louco, talvez
assim eu consiga ter alguma piedade! — replicou Nick.
— Querem ajuda dele para que? — A curiosidade me levou a
perguntar.
Senti quando Nicholas me fitou com olhos escancarados. Eu os
ignorei.
— A filha do nosso superior desapareceu há onze dias.
Utilizamos de todos meios possíveis para encontrá-la, mas não
conseguimos qualquer pista de onde ela possa estar. — Athos
explicou.
— Nunca lhe ocorreu que ela tenha fugido para sobreviver!? —
Vociferou Nicholas.
O outro o fitou com olhos semicerrados e cuspiu. Ele cuspiu
muito próximo aos pés de Nick.
— Ele é o pai dela. A menina não passa de uma ingrata!
— Tudo o que farei, será orar para que vocês nunca mais a
encontrem! — respondeu Nick e cuspiu de volta.
Se aquilo era um hábito entre eles, eu desconhecia.
— Se você não aceitar ajudá-lo, meu superior o encontrará e
você terá sorte se ele decidir matá-lo — alertou Athos, mas não
havia qualquer vestígio de preocupação.
Cansado de controlar a fúria, Nick pegou o padrasto pelo
pescoço e apertou os dez dedos, a fim de estrangulá-lo.
— Como se atreve vir em minha casa e me ameaçar? — rosnou
para ele.
O rosto branco de Athos começou a ficar vermelho. O sujeito
estava agonizando e tentando reproduzir qualquer outro som além
do ganido que Nick permitia.
— Nick? — O chamei, mantendo uma distância segura da sua
cólera.
Ele não me ouviu.
— Eu matarei primeiro você e depois cada membro desse seu
grupinho estúpido — ameaçou. Então ouvi um som oco e estranho.
Como se fosse algo colidindo contra...a parede.
Athos caiu imóvel no chão. A coisa oca que eu ouvira, fora da
sua cabeça se chocando contra a parede.
Nick o matara?
...O meu lado ruim.
Não. Ele só o desacordara.
Assim que os olhos de safira encontraram os meus verde-limão,
como ele mesmo costumava chamar, eu me encolhi. Eu não queria
me encolher, não queria temer o homem que me deixava tão
ofegante e que era dono dos melhores beijos. Mas eu não pude...não
soube controlar minha covardia.
— Você precisa ir — ele disse baixinho e fez minha nuca
arrepiar.
— Não. — Meus lábios se movimentaram por conta própria.
Naquele momento, Nick Coleman não passava de um monstro
encantado. Sim, um monstro encantado, porque ele continuava
sendo o homem mais lindo que eu já vira na vida, mas ele não
parecia humano. Parecia como um bicho selvagem com sede de
sangue. Senti que eu era a única razão dele não ter arrancado as
veias do pescoço de Athos com os próprios dentes ainda.
— Eu preciso que saia. Não somente dessa casa. Preciso que
saia da Grécia — comentou, mantendo quase dez passos de mim. —
Você ouviu o que ele disse. Outros virão atrás de mim. Não é seguro
para você, Maisie.
Eu queria dizer a ele que eu não conseguiria ir embora mesmo
se quisesse. Além de não falar grego, eu não sabia andar em cidade
grande. Eu era uma garota de terras escocesas; de ilhas escocesas.
Uma ignorante.
Mas meu orgulho só me permitiu dizer:
— Também não é seguro para você. Se quer que eu volte para a
Escócia, então volte comigo.
Ele fez cara de surpreso.
— Se eu sair daqui sem resolver isso, estarei levando o perigo
para todos que amo.
Mordi o lábio inferior, pensativa.
— Podemos pedir ajuda aos meus amigos — sugeri, depois de
um tempo calada.
— Ao escocês que quis me matar apenas por que a beijei?
Imagino como ele ficaria ao saber por onde andou meus dedos. — E
sorriu indecente, com uma fácula nos olhos.
Minhas bochechas arderam.
— Meus...meus amigos podem ajudar. — Maldito sorriso
libertino que me leva à gagueira. — Já passamos...já passamos por
coisas que você não pode imaginar.
— Não pedirei ajuda aos seus amigos. Eles morreriam nos
primeiros dois minutos.
— Você não os conhece — rosnei para defender nossa honra.
— Acha que é o único que sabe manusear uma arma? Pois em
Kerrera fazíamos nossas próprias armas, criávamos nossas próprias
armadilhas.
— Uma guerreira — brincou, com a delicadeza de quem
acarinha um animal adormecido. — E ainda assim levou um tiro.
Rilhei os dentes e cravei as unhas curtas na palma das mãos.
— Foi uma covardia o que Iolanda fez comigo — retruquei. —
Mas há um fato sobre mim que você não sabe, Nicholas Coleman.
Quando os ingleses incendiaram Kerrera, nós não partimos sem
lutar. Eu e meus amigos brigamos com todas nossas forças e
durante a briga eu tive que matar. Se eu não matasse, eu e os que
amo morreriam. Isso é algo que eu tento esquecer, a sensação de
tirar uma vida não me agrada. — Engoli em seco e não consegui
encará-lo. — Talvez seja por isso que eu aceito Alastor, seu lado
ruim, porque eu também tenho um.
O silêncio me obrigou a erguer as pálpebras. Ele ficou menos
surpreso do que eu esperava. Eu tinha cara de assassina por acaso?
Minha ruindade estava estampada em minha testa?
Ele permaneceu quieto. Tão quieto que eu pude ouvir a música
saliente do mar e das malditas gaivotas dedo-duro.
— Por que está me olhando dessa forma? — questionei, farta
daquele olhar de sepultura com grades acinzentadas.
Ele sorriu com agrado e murmurou. Mas eu mal o estava
ouvindo. Sua voz era como sinos duma capela pequenina.
— Eu... — Ele parou de falar e encarou os próprios pés. A
expressão foi da mais inesperada. Não era dor, tampouco medo. O
arregalar dos olhos foi como se ele tivesse acabado de decifrar um
enigma. — Desgraçado. Desgraçado.
Ele se agachou e de súbito segurou Athos pelo colarinho. O
chacoalhou algumas vezes antes de dar tapas em seu rosto para
que ele acordasse.
— Nick? O que foi? — Me aproximei com cautela, como se
andasse na geleira. Minha mão coçou para pousar em seu ombro. A
detive.
— Durante todo esse tempo eu dei atenção para uma cavidade
mínima. Esse desgraçado disse que ele não está com a minha filha.
Eu não tinha reparado na entonação afetada nas duas vezes em que
garantiu que ele não a machucaria e que ele não estava com ela. —
Nick chacoalhou o homem desacordado mais uma vez. — Só há
uma razão para ele tê-la mencionado, para me alertar que os gregos
a pegaram ou pretendem pegá-la.
— Mas por que ele faria isso? Por que ele o alertaria? — Se o
odeia tanto.
— Por que Athos sempre gostou de brincar com a minha
inteligência. Pelo visto, para ele eu ainda não passo de um mudinho
burro! — respondeu com rancor.
— O que faremos agora?
Ele virou o pescoço para me olhar profundamente. Tão
profundamente que senti o impacto nos meus batimentos cardíacos.
— Eu não consegui falar de verdade com a Tainara ou a Júlia
hoje, deixei mensagens e até a última vez que constatara, elas não
haviam respondido. Agora faz todo sentido.
Um gemido anunciou que Athos finalmente acordara. Ele tocou
na parte detrás da cabeça e fez careta, claramente sentia dor.
Os olhos de Athos buscaram os de Nick.
— Você sempre foi um garoto malcriado — gemeu.
— O que farão com a minha filha!? — Nicholas foi direto ao
ponto.
O outro sorriu largo e satisfeito.
— Você não é mais tão lerdo, mudinho — zombou. O encarei
com asco e quis ser como eles, quis cuspir, mas eu me controlei. —
Gosta de brincar de esconde-esconde, garota ruiva?
Nick o bofeteou no rosto. Um tapa forte e ardido que estalou no
ambiente.
— Não dirija uma única palavra a ela — disparou ele.
— Então meus instintos estavam certo? Ela não é só uma
garota. É a garota — Athos disse a ele ao se recuperar do tapa. —
Meu superior não quer machucar ninguém, mudinho, ele apenas
quer que você encontre a filha dele.
Superior?
Minha língua enrolava na boca a cada vez que aquele homem
asqueroso falava com Nick daquele modo. Eu nunca imaginei que
estar só de camiseta e calcinha na frente de dois homens fosse o
último dos meus problemas.
Vi quando os dedos de Nick afundaram ainda mais na camisa de
Athos. Ele o segurava firme.
— Perguntarei só mais uma vez. — As palavras saíram por uma
fenda pequena da sua boca. — O que fizeram com a minha filha!?
Athos olhou de mim para ele. Um sorriso brincava nos seus
lábios.
— A criança e as duas moças estão seguras e sendo bem
tratadas. Mas, o bom tratamento e a segurança dependerão de
quanto tempo Alastor levará para encontrar a filha do meu superior.
Afundei os dedos dos pés no chão frio.
Esconde-esconde.
Um jogo. Tudo não passava de um jogo para os malditos
gregos.
— Por que a filha do seu superior fugiu? — Quebrei o silêncio
perturbador que se alastrara.
Nicholas praguejou, ficara claro para mim que ele odiava me ver
interagir com seu padrasto e eu o entendia. Eu era uma ruiva
ingênua para ele, enquanto Athos era um ser monstruoso que sabia
conseguir o que queria sem precisar mostrar as garras. Pior que um
bicho de duas cabeças, era um bicho que não revelava sua face.
— Isso não é relevante para a missão. — Athos me respondeu.
— Eu digo o porquê — replicou Nick. — A menina fugiu porque
esses desgraçados não passam de ervas daninhas que usam e
abusam de suas crianças. Acham que têm total controle sobre elas,
que são suas servas. Eles as torturam, as violentam, as matam
lentamente!
— Não fazemos nada disso — retrucou o outro.
Nicholas quase não o deixou terminar de falar para contra-
argumentar.
— Claro que fazem. Essa Sociedade idiota que você faz parte,
eu já ouvi falar, vocês são obcecados por ordem. Querem controlar
tudo o que veem, começando pela esposa e filhos.
— Foi o que fez com Nicholas? — A pergunta me escapou.
O corpo de Nick enrijeceu e me fez querer desfazer a indagação
no mesmo minuto. Mas era tarde demais.
— Aquilo foi há muito tempo. Já superamos. — Athos me
respondeu.
Nick riu com escárnio e largou o colarinho de Athos. Ele se
levantou e manteve distância do sujeito ainda caído no chão.
— Me leve até seu superior — exigiu com pacificidade.
— Nic...
Sem me olhar, ele ergueu a mão em sinal de pare. Obrigando-
me a ficar quieta.
Me abracei para conter a tremedeira dos braços. Não fazia frio lá
fora, mas tudo em mim fora transformado em neve quando Athos me
fez a próxima pergunta:
— Você vem com a gente!?
Mas ele não disse isso como se fosse uma opção.

Não fomos amarrados ou encapuzados. Apenas acompanhamos


o velho Athos pela areia da praia, mantendo uma distância de
cinquenta passos. Fazia parte da lógica, estávamos o seguindo por
“livre e espontânea” vontade, não havia razão para ele nos amarrar.
Antes de sair, me vesti com a calça e a camiseta feminina que
encontrei dentro do armário. Eu poupei meu orgulho e não perguntei
de quem eram. Exceto as botas que calcei em seguida. As botas me
couberam perfeitamente e eram genuínas. Quando não pude
suportar e perguntei de quem eram, com seus adoráveis olhos azuis
e mansidão nas palavras, Nick disse: "— As comprei para você. Não
são tão horríveis quanto às que você tinha, mas há de servir."
— O que aconteceu com o "não saia nem se me ouvir gritar?" —
questionou ele áspero e chutando a areia da praia.
Lhe lancei meu olhar mais duro.
— Você me pediu ajuda!
— Eu o quê? — Me segurou pelo braço. — Pode me dizer por
que diabos eu faria tal coisa?
Tomei cuidado com meu ferimento ao cruzar os braços para
confrontar o turrão.
— Você me fitou com esses seus olhinhos pidão. Eu pensei que
estivesse precisando de ajuda.
Ele continuou impassível.
— Pelo amor de Deus, da próxima vez que vir esses meus
olhinhos, interprete qualquer coisa, exceto que preciso da sua ajuda,
principalmente se ela vier acompanhada de uma ave escandalosa!
Talvez eu possa socar seu nariz sem deformar sua cara. Ah,
sim, eu posso.
— Bem, você gostando ou não, eu o ajudei.
— Tá de gozação, Maisie? Você ao menos sabe para aonde
estamos indo?
Meus olhos foram da esquerda para a direita, depois para Athos
que agora acendia um cigarro e nos olhava com impaciência. Nick
seguiu meu olhar.
— Você o teria matado se eu não estivesse lá. Teria o matado
sem saber que os gregos estavam com Luiza — o lembrei.
As veias saltaram em sua testa. Não era mais o homem gentil
que cuidou de mim. Era Alastor. Um monstro com o qual eu não
sabia lidar.
— Não a agradecerei por me impedir de acabar com ele. Não
espere por isso, garota!
Eu não o temerei. Não mais.
— Eu não quero sua gratidão. — O respondi e puxei meu braço
que ele ainda segurava.
Ele o pegou novamente.
— Nunca mais fale sobre minha infância na frente de outros. Me
ouviu? Aprenda a controlar sua língua — rosnou. Eu sabia que aquilo
o havia irritado, fora algo que eu disse sem pensar. Eu não tinha o
direito de expor sua dor tão abertamente. Fazer aquilo foi tão
desrespeitoso quanto cavar um túmulo e pegar os ossos do defunto.
— Não tive a intenção...— murmurei com lágrimas honestas
brincando nos olhos.
Ele me soltou e me deu as costas.
— Acredita mesmo em deuses, garota? — Olhou por cima do
ombro para me ver assentir, sem cessar a velocidade dos passos. —
Pois sugiro que comece a clamar por cada um deles!
Dei uma corridinha para alcançá-lo e segurei seu bíceps
musculoso para obrigá-lo a ir devagar.
— O que quer dizer?
Aquele foi o sorriso mais venenoso que ele me deu desde que o
conheci. Nick fez eu me sentir da forma que ele me via: uma
ingênua, uma garota tola que se achava durona e não passava de
uma folha ao vento.
— Quero dizer que você não faz a menor ideia de onde se
meteu. Acha que lidar com um ou dois ingleses faz de você uma
guerreira, uma valentona? — Foi severo nas palavras meramente
escolhidas. — Acha que saí da Grécia porque quis? Acha que não
amo esse lugar? Eu saí porque vi o que essa Sociedade maldita para
qual estamos indo faz com os que os desobedecem. Eles arrancam
seus olhos e qualquer órgão que você não precisa para continuar
vivendo.
Minha boca ficou amarga.
— Foi por isso que implorei para que ficasse naquela maldita
varanda, não queria que ninguém a visse. Era a única forma que eu
tinha de protegê-la, agora não posso mais — falou, pesaroso. Nick
não estava sendo indelicado para me assustar, eu percebi. Ele o
fazia porque perdera o controle de tudo. Inclusive de si mesmo.
Eu não podia culpá-lo. Eu também perderia.
— Nós encontraremos a filha do superior e salvaremos Luiza.
— Não entende, Maisie? — passou a mão pelos cabelos. — Se
eu entregar essa pobre menina de volta para seu pai, eu estarei
condenando-a.
E se não entregar, sua filha morre. Completei os pensamentos
que ele não fora capaz de revelar em voz alta.
— Nós...nós pensaremos em algo — a voz soou fraca.
Assim que tornamos a andar com o desespero da incerteza
sendo o principal culpado das batidas erradas do meu coração, eu
segui o conselho de Nick e clamei à todos os deuses
Eu não esperava por um calabouço com ossos empilhados num
canto, nem corpos pregados à parede. No entanto, uma mansão com
objetos dourados, flores muito bem cuidadas em vasos de cerâmica,
paredes pintadas em cores alegres, cães deitados de bruços em
tapetes felpudos, estava muito distante do que eu imaginava.
Aquilo era a Sociedade? Não. Não podia ser. Onde estava os
homens cruéis que torturavam mulheres e crianças?
— Não se deixe enganar, chick — cochichou Nick, como se
pudesse invadir meus pensamentos. Ergui uma sobrancelha para
ele, em um questionamento mental. E ele o respondeu: — Está
estampado em sua cara o que você está pensando.
— Me conhece tão bem assim? — desafiei.
Ele entrelaçou os dedos atrás do corpo para estalar as costas. O
som do estalo foi seguido por uma arfada de alívio.
— Cada centímetro de você — soou malicioso.
Athos, que estava a longos passos à nossa frente pareceu não
nos ouvir ou não achou nosso diálogo interessante o bastante para
fazer qualquer tipo de comentário. Eu preferi assim. Quanto menos
aquele monstro interagisse conosco, melhor.
— Um pouco injusto — falei.
— O que é injusto?
— Você já me viu nua algumas centenas de vezes enquanto
eu...— pigarreei, sem concluir. Eu sequer sabia porquê raios aquilo
se passou por minha cabeça.
— Não achei que não me ver nu fosse o tipo de coisa que
andava tirando seu sono. — Seus lábios se esticaram em um sorriso
devasso, ardente, insuportavelmente provocante.
Não tropeçar em meus próprios pés durante a caminhada, me
exigiu muito, muito esforço. Principalmente com Nick usando todos
seus métodos para me deixar acanhada.
Eu queria que ele fosse menos bonito para me fazer desejá-lo
de forma menos escancarada, uma verruga na ponta do seu nariz já
ajudaria, um dente a menos. Qualquer coisa, mas era tudo tão
perfeito que beirava o irreal. Por um momento pensei que o fato dele
ter uma face perigosa fosse me manter afastada. Mas aconteceu o
oposto.
— Não tira meu sono... — Consegui responder e em seguida
tropecei em um bendito cachorro tão pequeno quanto um esquilo. O
bichano não se feriu, porém lançou-me um olhar viperino antes de
sair correndo. — Só acho que...Ah, por favor, por que estamos tendo
esse tipo de conversa!?
— Porque é divertido. Porque você fica corada.
— Você é cruel Nicholas. — Revirei os olhos para demonstrar
meu descontentamento.
— Esse é o tipo de coisa que as garotas dizem quando estão
montadas em mim — falou, sendo convencido e brincalhão.
— Não planejo montar em você. — Rebati um pouco tarde
demais para compreender o que ele quis de fato insinuar. Montada
nele. Não em suas costas como eu havia interpretado.
Ingênua. Ingênua.
Ele jogou a cabeça para trás e riu do meu espanto.
— Cruel. Muito cruel! — Rangi os dentes, detestando ser motivo
de gozação. — Você não tem vergonha de me dizer essas coisas?
Viramos à esquerda.
— Maisie, doce garota, a cada passo estou mais perto da morte.
Se eu não puder me divertir com você, com o que me divertirei?
Trinquei o maxilar e finquei as unhas nas mãos.
— Sou seu brinquedinho, então?
— Depende. Poderei brincar com você? — Outra vez, soou
malvado e os olhos encheram-se de brasa. Ele era terrível, desafiava
qualquer limite. Enquanto ele não me ouvisse implorar para que
parasse, ele não pararia.
— O inferno o aguarda, Nicholas Coleman! — Retruquei e me
obriguei a encará-lo.
— Então não há razão para que eu não peque.
Como não encontrei uma reposta adequada, fiquei em silêncio e
Nick aceitou isso. Ele realmente estava tentando amenizar a situação
com suas provocações, mas quando o peso da realidade caiu sobre
nós, ele enrijeceu. O semblante era o de quem sabia o que o
aguardava. Pela primeira vez, eu agradeci à minha ingenuidade por
ela me poupar de inúmeros pensamentos desprezíveis. Por me iludir
sobre a ínfima chance de Nick e eu sairmos vivos e intactos do
palácio.
Eu queria sentir dor no meu ferimento de bala, assim eu
conseguiria ignorar a ansiedade que me fazia suar como nem
mesmo um calor de 40 graus andando por dias sobre areia seca
faria. Só que não havia nada. Não havia dor. A adrenalina foi tão
eficiente tratando dos meus sentidos quanto morfina.
A mão de Nick encontrou a minha e sem dizer nada, sem sequer
me olhar, ele entrelaçou nossos dedos. Foi íntimo, foi maravilhoso.
Foi como se aquele turrão precisasse da minha força tanto quanto eu
precisava da dele.
Seguimos Athos sem puxar assunto e de mãos dadas por
extensos corredores. Eu nunca visitara um lugar como aquele. Era
enorme, um labirinto luxuoso e com mais brilho que purpurina. Eu me
perderia facilmente.
Meus calcanhares começavam a reclamar quando Athos
finalmente parou em frente à uma porta grande o suficiente para se
atravessar em uma carroça.
Nick me puxou com força antes que pudéssemos acabar ao lado
do seu padrasto. Eu o fitei. Suas pupilas se dilataram ao me encarar.
— Não fale com eles, sequer olhe. Não mostre fraqueza e não
saia do meu lado, entendeu?
Não fale, impossível. Não olhe, difícil. Não mostre fraqueza, ok.
Continue ao meu lado, fácil. Eu poderia fazer isso.
— E se falarem comigo? Se...se me perguntarem algo? —
questionei, nervosa.
Regras... sempre as odiei.
— Responda. Só não dê o que eles querem.
— O que querem?
— Algo sobre você para destruí-la.
Meus amigos. Foi a primeira coisa que se passou por minha
cabeça.
Nick esperava uma confirmação minha, então balancei a
cabeça. Ele não largou minha mão durante todo o tempo, cada
passo a segurou mais forte, apenas quando Athos abriu a pesada
porta que nos desvencilhamos. Um salão, grande como se para uma
festa, foi revelado. Eu não gostei da cor escolhida para a parede, o
vermelho era muito semelhante a sangue e dava um aspecto
melancólico ao que tinha como finalidade, ser lindo. A escultura nua
do homem olhando para o próprio membro era grotesca e a estátua
da mulher com apenas um braço, me fez questionar se era aquilo
que eles pretendiam fazer comigo.
Bile me subiu à garganta.
Não demonstre fraqueza. Foi uma das ordens de Nick.
Não olhei diretamente nos olhos dos três homens sentados em
poltronas na área mais elevada do salão, mas eu os vi tempo
suficiente para constatar que dois deles tinham o cabelo grisalho e o
outro, de cabelo escuro, parecia um pouco mais jovem que Nick. Era
como se estivessem em tronos, e o ar de superioridade que
exalavam no rosto, deixava nítido que se sentiam como próprios
monarcas. Quando decidi que minha avaliação estava ultrapassando
um dos avisos de Nick, baixei a cabeça. Descobri que era difícil
conciliar duas de suas recomendações: não demonstrar fraqueza e
não olhar para eles. Meu rosto precisava estar com uma elevação
cuidadosamente calculada para harmonizar uma ordem à outra.
Athos parou ao meu lado esquerdo, enquanto Nick, ao direito. O
encarei de soslaio, seus ombros pareciam relaxados, a respiração
controlada, quase como se estivesse em paz, no entanto, veias
saltavam em seus punhos e testa, como se manter aquele
autocontrole exigisse muito dele.
— Alastor. — Uma voz masculina retumbou e foi por muito
pouco que não pulei. Foi um dos grisalhos quem falou, o do meio. —
Eu o imaginava um pouco maior.
— E um pouco mais feio — acrescentou o de cabelo escuro.
— Não sabia que devia ter me preparado para um desfile —
Nick respondeu, afiado.
Todos riram, exceto eu. Quanto menos atenção eu chamasse,
melhor.
— Devo admitir que por um momento questionei sua
competência, Athos. — O outro grisalho resolveu falar. Sua voz era
um pouco mais baixa que a dos outros.
Athos se curvou, discreto.
— Estou aqui. Digam o que querem. — Apesar de soar
grosseiro, Nick foi cuidadoso com o timbre.
— Minha filha fugiu — disse o do meio.
Então aquele era o superior? Ergui o olhar cuidadosamente. Me
parece tão frágil.
— Eu soube — disse Nick. — E para me fazer servi-los, vocês
sequestraram a minha.
— Não devia ser considerado sequestro quando a criança me
parece muito mais feliz na casa em que está agora. — O de voz
baixa comentou.
Nick deu um passo a frente. Fique perto de mim. Dei um passo
também, só que isso chamou a atenção do de cabelo escuro.
Quando resolvi fitar os gregos, percebi que o mais jovem já me
encarava com uma sobrancelha erguida.
Droga. Droga. Fui notada.
— E quem é essa? — Ele questionou e todos os olhos se
voltaram para mim. O café da manhã revirou na minha barriga.
— Estava com Alastor — explicou Athos.
— Qual seu nome, cabelo de fogo? — O de cabelo escuro
indagou e se levantou.
Não se aproxime. Não se aproxime.
Os pés protegidos por botas pretas e a calça escura dobrada no
tornozelo, deixou claro que era inútil implorar para os deuses. O
sujeito já estava diante de mim.
Não responda. Ouvi a voz de Nick gritar na minha cabeça.
— Você sabe falar? — Ele ergueu meu rosto pelo queixo. O
toque arrefeceu minha pele.
— Você tirará a mão dela ou terei que fazer isso por você? —
Nick rugiu para ele.
Ouvi risadas.
— Seu bichinho é mudo, Alastor? — O sujeito zombou, mas
largou meu rosto.
Bichinho?
— Não me comunico com idiotas — falei, para o espanto de
todos, e quebrei a primeira regra de Nick. Tive que encarar o
estúpido nos olhos para vê-lo engolir a ofensa.
— Deixe a garota em paz, Damon. — O superior ordenou.
O sujeito continuou me lançando na escuridão perigosa de seus
olhos antes de me dizer:
— Será divertido tê-la conosco, cabelo de fogo. — E voltou a
ocupar seu lugar no trono.
Só respirei quando ele se distanciou.
Nicholas, que até o momento lidava muito bem com tudo, deixou
que sua fera fosse libertada. Ele deu um novo passo em direção aos
gregos. Dessa vez grudei meus pés no lugar e não o segui. Eu ainda
absorvia as palavras de Damon, mas encará-lo novamente era um
risco que eu não estava disposta a correr.
— Ela não fará parte disso. — Nick falou para o superior. —
Quer que eu encontre sua filha? Tudo bem, eu a encontro. Mas
tenho algumas condições.
O superior apoiou os braços na poltrona e se preparou para o
discurso.
— Eu não esperava menos de alguém que abriu o peito de um
dos meus e arrancou-lhe o coração. Quais são suas condições,
Alastor?
ARRANCOU UM CORAÇÃO.
O sorriso preenchendo os lábios de Nick não foi coisa da minha
imaginação. Ele estava literalmente sorrindo. Eu não conseguia parar
de olhá-lo. Havia quinze chamas dentro daqueles olhos de oceano.
Nick seria capaz de queimar uma cidade inteira com eles.
Foi então que acabei descobrindo que eu tinha o próprio diabo
na minha equipe.
— Um, quero falar com a minha filha para garantir que ela está
segura. — O superior ponderou e aceitou. — Dois, como eu já disse,
a ruiva não fará parte disso e será levada de volta para sua casa.
Eu pretendia rebatê-lo, ia dizer que estávamos juntos naquilo.
Ou talvez eu fosse mais ríspida e dissesse que ele não tomava
decisões por mim, mas Damon disparou:
— Negado. Ela já está aqui, temos quartos para muitos
hóspedes.
— Ela não é uma hóspede — atentou Nick.
— Athos, a viagem foi longa, não foi? — Damon perguntou para
o velho ao meu lado.
— Sim. — Athos foi claro.
— Sendo assim, Alastor, a cabelo de fogo e você merecem um
descanso apropriado. Nossos quartos são mais aconchegantes que
muitos hotéis e como agora trabalhamos juntos, nada é mais lógico
que dividirmos todo esse aconchego com vocês.
— Não ficaremos! — Afirmei, me afundando nos olhos sombrios
de Damon.
— Não foi um convite, gracinha. — Devolveu com um sorriso
perturbador.
— Controle seu corvo ou eu mesmo o farei. — Nick disse para o
superior com um requinte de perversidade.
O superior se remexeu na cadeira e ergueu a mão para
interromper Damon. Me perguntei o porquê um rapaz tão jovem
ocupava um lugar entre eles. Eram todos velhos e asquerosos.
Exceto por Damon. Por que? O que aquela Sociedade esquisita tinha
de bom para lhe oferecer?
— Qual sua terceira exigência, Alastor? — O de voz mais baixa
me arrancou do devaneio.
O que Nick disse não combinou com o tom brando que usou:
— Quero permissão para cometer um assassinato.
Como é?
Senti como se estivesse me afogando e tudo que podia ouvir era
minhas últimas batidas. Me amordaçar me silenciaria menos.
— Alastor nunca pediu nossa permissão. — O superior foi
arisco.
— Não. Mas é como seu corvo disse: agora trabalhamos juntos
— Nick provocou Damon diretamente e não deu tempo para que o
outro devolvesse o insulto — e o sujeito que desejo matar, é um
membro dessa Sociedade.
A expressão no rosto de todos foi a mesma: choque.
— Tem um nome? — O velho de voz baixa perguntou com
cuidado.
— Sim. Athos. O meu padrasto, e como ele está entre nós, seria
interessante se os senhores consentissem agora mesmo para que
possamos eliminar uma de minhas exigências o quanto antes, não?
Tensão no maxilar, fortes pontadas no peito, punhos muito bem
preparados para atacar. Bastava o aval dos gregos para que eu
acabasse com Athos. Para que um de meus pesadelos fosse
enterrado.
Os homens se agitaram como colegiais. Maisie ao meu lado me
fitava incrédula, ainda que ela entendesse minhas razões, ficara
explícito que não concordava.
— Que ganancioso, Alastor — provocou Damon. O corvo (só um
corvo para vestir preto da cabeça aos pés) se levantou e caminhou
em minha direção. — Mas você está exigindo sua recompensa um
pouco cedo demais.
Cerrei o cenho. Eu ia socar aquele sujeito até fazê-lo sangrar.
— Você precisa primeiro fazer o que queremos, então depois
poderá resolver seu conflito familiar. — Ele acrescentou e enfiou as
mãos nos bolsos da calça.
— Como podem me entregar dessa forma!? Depois de tudo que
fiz. — Athos se revoltou. Seu desespero foi um gole de satisfação
para mim.
— Comparado àquela menina fugitiva, você é insignificante para
essa Sociedade, Athos — retrucou Damon, sem desviar os olhos dos
meus.
— Se eu encontrar a menina, tenho a permissão da Sociedade
para executar um membro dela? — questionei para que ficasse claro
e torci para que eles não captassem as entrelinhas.
— Sim. Um membro — garantiu o superior, sem perceber que
talvez eu pudesse escolher ele.
Athos berrou de frustração e rogou maldições para todos.
Praguejou diversas vezes antes de sair batendo a porta feito uma
criança birrenta.
Damon tirou as mãos dos bolsos e deu duas palmas para que
voltássemos nossa atenção para ele.
— Agora que temos tudo às claras, gostaria que vocês dois me
acompanhassem para que eu apresente seus quartos. — Ele olhou
de mim para Maisie.
— Não ficaremos. — Eu o alertei, brusco.
— Claro que ficarão. Amanhã você começará sua busca pela
garota bem cedo, Alastor. Acha que confiaremos em você se não
estiver bem debaixo do nosso nariz por vinte e quatro horas!?
Rangi os dentes e reconheci a derrota.
O corvo sorriu largo antes de nos dar as costas. Odiava fazer
qualquer mesura para aqueles gregos filhos de uma puta, mas seria
idiotice desrespeitá-los em sua propriedade. Maisie me copiou e
encontrou seu lugar ao meu lado novamente.
Acompanhamos Damon até duas escadas acima. Eles não
mentiram ao dizer que havia muitos quartos no palácio. A criadagem
estava por toda parte e nenhum ousou erguer os olhos para nós ou
trocar poucas palavras.
— Antes que perguntem, não peço para que algum deles lhes
apresentem os quartos porque, além de não falarem seu idioma,
essa é a parte que mais gosto — explicou Damon rodando uma
chave no dedo.
Ele abriu uma porta que revelou uma suíte grande o bastante
para ser chamada de lar. Não havia tanta necessidade de espaço
desperdiçado para uma cama, um armário e um abajur.
— Esse quarto me parece adequado para você, Alastor — disse
Damon. — Vazio e sem graça.
Dei um passo decisivo em sua direção e tinha como plano lançá-
lo contra a parede, até a ruiva me segurar pelo braço. Se Maisie não
estivesse ali...eu faria Damon descobrir como era voar sem asas.
— Diga, cabelo de fogo. Qual desses quartos você prefere? —
Damon perguntou para a ruiva e apontou para duas portas que
ficavam de frente para o meu quarto. Ambas estavam fechadas.
— O que ficar mais longe do seu — rebateu Maisie, destemida.
O corvo sorriu com malícia para ela antes de enfiar uma chave
na fechadura da porta.
— Veremos se até o final da sua estadia você continuará
pensando dessa forma.
Assim que ele abriu o quarto para Maisie, eu a puxei para o meu
antes que ela cogitasse entrar no dela e fechei a porta na cara de
Damon.
— Se eu continuasse mais um minuto com ele eu ia matá-lo —
expliquei ao notar sua cara de confusa.
— Ele só está o provocando. Você precisa ser mais frio. — Me
aconselhou, sendo doce e gentil como de praxe.
Arranquei meus sapatos e os lancei na parede com os pés.
— Aceito que me insultem, que me torturem. Mas eles não têm o
direito de desrespeitá-la.
Ela abriu um sorriso que iluminou suas sardas como se fossem
estrelas.
— A vida inteirei eu lidei com homens assim, Nicholas. Posso
me virar com mais esse.
Aquilo só me deixou ainda mais colérico. Maisie não era minha
para eu protegê-la. Mas pensar nas mãos daquele grego imundo a
tocando...
— Eu prometo que encontrei uma forma de levá-la para sua
casa — garanti, encarando-a com atenção.
Ela fechou a cara.
— Eu disse que o ajudarei, Nicholas — falou, implacável.
— Você está ferida — acautelei.
— Eu estou melhor.
— Deixe-me ser mais específico: você levou um tiro que quase a
matou. Não me importo se você é uma guerreira, uma garota que faz
as próprias lanças e pesca peixes com os dentes, você não está em
condições de se envolver em uma briga.
Ela cruzou os braços com cuidado, e se sentiu dor, não deixou
transparecer.
— E você está? Quase perdeu a cabeça por causa das
gracinhas de Damon...
— É diferente — a cortei, afiado. Quando vi, já estava com
menos de um passo de proximidade dela.
— Diferente?
— Foi o que eu disse.
Ela trincou os dentes, arisca, aparentando não ter ficado
satisfeita com a minha resposta.
— Eu já estou aqui e, pelo que os gregos disseram, eu não irei
embora até que você encontre a tal menina. Não colocarei minha
vida em suas mãos, Alastor. Talvez eu mesma possa encontrá-la.
Eu riso ardente atravessou minha garganta e como
consequência, levei um belo de um tapa na cara.
— Você me bateu? — Acalentei o rosto, ardido, em choque.
Ninguém nunca havia sido tão atrevido. Ninguém vivo.
— Ria da minha capacidade mais uma vez e o próximo será
ainda mais forte — ameaçou e girou com os calcanhares.
A puxei pela cintura e a imobilizei em meus braços. Tudo
naquela garota parecia feito para me deixar maluco e rendido.
— Repita sua ameaça, só que agora olhando em meus olhos.
Seus lábios tremeram, assim como os cílios.
— Não acho que você seja surdo — respondeu, rude.
Outra risada escapou por entre meus lábios. Uni nossos corpos
um pouco mais. O calor de um, se misturando ao do outro. Senti seu
coração palpitar sob sua camiseta.
— Talvez você precise cochichar em meu ouvido.
Ela não respondeu.
— Por que está tão ofegante, garota? — provoquei e aproximei
meus lábios dos seus, sem beijá-la.
— Não estou — respondeu em um sussurro.
— Não? — Percorri uma mão por suas costas com lentidão. —
Eu posso senti-la.
Engoliu em seco.
— Nicholas.
— Maisie. — Sussurrei seu nome, olhando-a avidamente. O
olhar brando e o coração tão inocente era de me estrangular.
— Por que não me beija? — Ela perguntou e umedeceu os
lábios. Era mesmo muito convidativo.
Procurei a fundo o meu autocontrole.
— Porque estamos em um quarto, sozinhos. Não sei se eu seria
forte o bastante para me contentar com tão pouco.
Ela ficou na ponta dos pés. Alongou seu corpo quente ainda
mais em meus dedos trêmulos, a ponto de pulverizá-los.
— Perder a cabeça seria tão ruim para você? — Seu olhar
misterioso pareceu me morder.
Avaliei minha situação com cautela e observei seus olhos
diamantinos.
— Para mim? Não. Mas você merece muito mais que um quarto
na casa de criminosos.
Esperei que ela entendesse onde eu, subitamente, tentava
chegar.
— Se não pretende fazer nada comigo — suspirou, flamejante
—, por que está abrindo minha calça?
Aceitei a delícia do pecado. Puxei seu cabelo com a mão livre,
me inclinei, e passei a língua por seu pescoço, mas foi uma mordida
que a fez gemer. Eu desci ao inferno.
— Porque eu não presto. Porque sou egoísta e quero ser o
único homem que estará em seus sonhos essa noite.
Minhas veias arderam. Ouvi o crepitar dos meus ossos que com
toda fúria tentavam controlar meu anseio delirante.
Não resisti à tentação. A ergui em meu colo com urgência e
cuidado. Ela gritou e me segurou com as pernas. Se havia hóspedes
nos outros quartos, então eles nos ouviriam.
Incendiei sua boca com a minha língua em um gesto voraz,
rubro e desesperado. Foi como me aproximar de constelações
distantes, uma cálida tempestade. Aquilo era meu prêmio e meu
castigo. Eu estava pronto para ela, para dominá-la. Agarrei seus
cabelos tão macios quanto asas ruivas. E a cada gemido, arfada,
mordida em seus lábios, eu a desejava um pouco mais.
Meu corpo se transformou em um vulcão.
A cama estava próxima, porém, a porta estava mais. Uma lasca
diminuta, tênue e microscópica que encontrei de autocontrole,
conseguiu me deter.
Procurei pela maçaneta e abri a porta.
— Vá. Agora — alertei ao colocá-la no chão.
O olhar feito caco de vidro na areia e no sol quente, cintilou e se
apagou de repente.
— Você merece um outro tapa, Nicholas Coleman — falou. A
respiração descontrolada, os cabelos desalinhados. Tudo belo,
perfeito e feito para me rasgar.
— Não ousarei impedi-la.
Ela semicerrou os olhos.
— Se fechar a porta na minha cara, eu clamarei a Odin para que
sua noite seja longa e solitária — amaldiçoou.
Dei um sorriso de canto.
— Não espero outra coisa de uma garota como você.
— Uma garota como eu — repetiu com escárnio. — Você
sempre é cheio de dedos comigo.
— Faço isso para poupá-la — avisei.
— Talvez não devesse. Seja quem de fato é, Alastor.
Segurei a porta. Eu devia fechá-la e tentei, mas a ruiva a
segurou com o pé. Eu nunca sentira meu coração bater tão
violentamente.
— Quer mesmo ouvir? — questionei afiado. Ela anuiu. — Está
bem. Acha que não quero arrancar sua roupa e lamber sua pele,
garota? Eu quero. Deus, como quero. Toda vez que a olho eu me
questiono porque diabos não estou dentro de você. Não irei fodê-la
essa noite porque o que pretendo fazer com você exige que esteja
cem por cento bem. — Afundei os dedos na porta. — Não me
provoque, Maisie. Não sou o príncipe encantado que você imagina.
Se soubesse os pensamentos sobre você que atormentam a minha
mente e tiram meu sono, você não brincaria comigo.
Olhou-me altivamente, sem a antiga sombra de desejo ou de
emoção.
— Eles...Os gregos disseram que você arrancou um coração —
ela titubeou. A mudança repentina de assunto me fez segurar a porta
com mais leveza e também diminuiu a chama dentro de mim.
— Só fiz com o sujeito o que ele fez com a esposa dele!
Seus lábios ficaram brancos.
— Isso é...
— Nojento? Cruel? Coisa que só o diabo faria? — Tentei
completar fosse lá o que estivesse engasgado nela.
Seu dar de ombros cravou em meu peito como lanças.
— Como consegue matar e viver com isso, Nick?
— Pensando o oposto: que eu não viveria se não os matasse —
respondi, em um frêmito vibrante.
Ela sorveu o ar.
— Quando eu...quando tive de lutar contra os ingleses...—
Soltou um soluço de respiração. — Às vezes as lembranças me
atormentam e nunca consigo dizer para ninguém. Não consigo fingir
que não tenho esse peso em minhas costas.
Passei os dedos em sua bochecha rosada.
— Você não teve escolha, Maisie. Se não o fizesse, você
morreria. Por nenhum momento pense que isso a torna uma pessoa
ruim. Você é a mulher mais incrível que eu já tive a oportunidade de
conhecer. Que outra maluca me faria encarar a chuva mesmo sem
saber porque eu a temia? Ser morto por suas mãos devia ser uma
honra. Devia ser o tipo de coisa a se implorar de joelhos — falei para
descontrair. Senti seu sorriso na ponta dos meus dedos. Lábios de
ouro. Aquilo só podia ser lábios de ouro para me parecerem tão
valiosos. — Eu carregaria o peso da sua culpa se pudesse, apenas
para vê-la sorrir outra vez.
Eu senti quando sua maçã queimou, corada. Foi a sensação
mais inusitada da minha vida e a mais simples.
— Esperarei ansioso por sua recuperação, querida.
Eu podia facilmente esmurrar a porta ou dar um pontapé, mas
ser tão baixa não era conveniente. Gostando ou não, Nick estava
preocupado com meu bem-estar. E, bem, se era para nos
entregarmos, eu iria querer apreciar cada segundo lentamente, sem
ter qualquer outra coisa se passando por minha cabeça. E naquele
instante tinha coisa demais me atormentando.
Respirei fundo e me virei.
Raios, qual dos quartos Damon disse ser o meu?
Segurei na maçaneta e torci para que eu tivesse escolhido a
porta certa.
O quarto não era muito diferente do de Nick, exceto pela
mobília. O de Nick era apático, sem vida. Já aquele, ele era
primaveril, desde o papel de parede florido próximo à cama aos
detalhes em amarelo nas cortinas. O armário dourado, um tapete
grande e cor de creme. E... Uma figura sombria, jogada na poltrona e
de pernas cruzadas, me fez recuar.
— Você disse que esse era meu quarto — falei sem muita
convicção, pois eu não tinha certeza de mais nada.
— Disse? Acho que me enganei. Mas, por favor, há espaço para
dois aqui — disse com educação e perversidade.
— Prefiro dormir com os cães — rebati, estúpida.
— Se quer algo que morde, então está no lugar certo — atiçou
de modo perigoso, me mostrou os dentes e se aproximou. Recuei
até dar com as costas na parede. — Sinto o cheiro da sua calcinha
molhada, cabelo de fogo.
Eu teria corado, caso a indiferença que eu nutria pelo sujeito não
fosse mais forte que tudo.
— Você é nojento!
— E você é encantadora, apesar de idiota.
— Idiota é você — devolvi, na tentativa de não soar infantil
demais. — Se esse não é meu quarto, qual é!?
— Eu ouvi seus gemidos daqui — desconversou e apoiou um
braço na parede, bem acima da minha cabeça. Ele era alto, tão alto
quanto Nick.
— Sua vida é tão solitária assim?
Damon sorriu, revelando dentes muito branco.
— Talvez eu precise de algo vermelho nela. — Me fitou. — É
uma pena que você seja o bichinho de Alastor.
O empurrei com força, mas sua determinação se mostrou
resistente.
— Não sou o bichinho de ninguém.
Ele ergueu uma mão e fez um cacho em meu cabelo. Estremeci.
Diabhal, estava sendo difícil não demonstrar fraqueza estando em
um quarto sozinha com um homem feito Damon.
— Então porque Alastor fica tão irritado quando eu a toco?
Dei um tabefe na sua mão para afastá-la, mas ele teve a
audácia de fingir não se importar.
— Por que ele sabe o que você faz com as crianças e não quer
um desgraçado feito você me...
— O que eu faço com as crianças? — Me interrompeu em uma
confusão transparente como água.
— Não se faça de inocente! — O enfrentei com meu resquício
de coragem.
— O que acha que sou? Um devorador de crianças? — zombou.
Soube logo que o Damon irônico conseguia ser ainda pior que o
Damon tarado.
Rilhei os dentes e desejei que seu corpo não estivesse
bloqueando minha passagem para que eu saísse correndo de lá.
Nem se passou por minha cabeça gritar por Nick, não quando
minha intenção era que ele aceitasse minha ajuda para encontrar a
garota. Se eu fosse uma covarde, ele nunca me levaria para ajudar
na missão.
— Foi Alastor quem colocou essa ideia absurda na sua cabeça?
— Indagou ao me ver sem uma réplica pronta.
— Vendo a forma como você está me assediando, não faz a
ideia parecer tão absurda assim — retruquei, torcendo para que
assim ele se distanciasse.
Damon continuou imobilizado. Estávamos tão próximos, que sua
respiração se confundia com a minha.
— Eu sei que quer me beijar — falou.
Eu quero o quê?
Cravei os olhos nele como se fossem garras.
— O que de tão terrível fiz para deixar essa impressão?
— O modo como me olha.
— Então talvez eu arranque os olhos pela manhã!
Seu sorriso diabólico não alcançou os olhos.
— Por que não me diz seu nome completo, cabelo de fogo? —
Respirei aliviada quando ele levou seu corpo para longe de mim. A
desgraça foi que deitou na cama que eu pretendia dormir e
entrelaçou os dedos atrás da cabeça como quem não tem pressa
alguma de ir embora. Seus braços semiabertos, lembraram-me asas.
— Não fui clara o suficiente ao dizer que não interajo com gente
como você? — rebati, como se aquilo fosse uma disputa que valesse
minha vida.
— Um homem que tem coragem de dizer o que pensa?
O respondi antes que continuasse a se gabar.
— Um homem que tortura crianças.
Eu o ouvi rosnar, podia jurar que sim.
— Pare de dizer que maltrato crianças. Tire essa ideia maluca
da sua cabeça.
Cruzei os braços e me aproximei dos pés da cama.
— Se não é quem eu afirmo que é, por que faz parte dessa
Sociedade desprezível?
Com um impulso, Damon se levantou. Seu andar era de um
homem que tinha intenções, de um homem que sempre conseguia o
que queria.
Retraí.
— Se quer saber algo sobre mim, preciso que me dê algo sobre
você.
A brincadeira não demorou para começar.
Empinei o nariz e dei tudo de mim para que ele não percebesse
meu desconforto.
Não demonstre fraqueza. Não demonstre...
— O que quer saber? Meu nome?
Damon me deu um sorriso traiçoeiro. Ele parecia ter um
Universo deles.
— Você quer uma informação valiosa a meu respeito, cabelo de
fogo. Saber seu nome é algo fútil demais.
A saliva parou na metade da minha garganta, causando-me
tosse.
— Então o que quer? — indaguei ao me recuperar da crise.
Ele deu a volta em mim, rodeando-me, me avaliando como se
eu fosse uma das esculturas da mansão.
— Quero que me diga quantas pintas há no seu corpo.
— Como? — perguntei. — Por que isso é relevante para você?
Só senti sua mão em meu cabelo quando sua respiração tocou
minha nuca. Ele afastou os fios para ter liberdade ao cochichar ao pé
do meu ouvido:
— Porque como não confio em você, terei de me certificar de
que está falando a verdade.
Meu coração foi parar na boca. Ele era um bom adversário,
precisava dar algum crédito.
— Eu tenho sardas por todo o corpo. Não ficarei nua para você!
— Minha voz soou firme.
Como se soubesse que eu ia me distanciar, Damon me segurou
pelo pulso.
— Isso a assusta?
— Não. Me enoja. — E cuspi como vira Nick fazer com Athos.
Nunca imaginei que presenciar tamanha imundice fosse me servir de
algo algum dia.
Quando ele finalmente me soltou, eu corri para a outra
extremidade do quarto. Se aquele desgraçado insistisse em
permanecer ali, eu juro que gritaria.
Para a minha surpresa, Damon abriu a porta.
— Espero que goste do quarto — ele falou, com um pé já no
corredor.
— Mas você disse qu...
— Eu menti. Esse é o quarto que escolhi para você. Ele é meu
preferido da mansão.
— Então por que me deixou ficar com ele?
Uma luz indecente dominou sua face.
— Porque eu gostei de você.
E sem dizer mais nada. Ele se foi.

Dormi maravilhosamente bem. A cama era confortável, não


podia negar. O colchão agarrava meu corpo como se tivesse sido
feito para ele, e acordar com o canto dos pássaros sempre foi o meu
despertar favorito. No entanto, seria hipocrisia dizer que não fiquei
surpresa por ter pego no sono tão rapidamente em uma casa com
criminosos ...
— Bom dia. — A voz masculina serviu de estímulo para me
fazer pular.
Damon estava na mesma poltrona da noite passada. As pernas
cruzadas do mesmo modo, mas a expressão em seu rosto era
diferente, mais...transtornada.
— Como entrou? — questionei. Eu me lembrava de ter conferido
a tranca na porta pelo menos duas vezes antes de me deitar.
— Eu te disse que esse é meu quarto preferido. Tenho uma
cópia da chave — respondeu com uma voz preguiçosa.
Puxei o edredom até meu queixo, temendo que ele visse a
camisola de tecido maravilhoso e leve que encontrei no armário e
resolvi usar.
— Se gosta tanto, por que não ficou com ele?
— Porque o meu é muito maior.
Maior que aquilo? Pelos deuses, os gregos não sabem com o
que gastar dinheiro?
— Não imagino porque você precisa de tanto espaço. — Deixei
escapar. Não queria que Damon pensasse que eu tinha interesse em
sua vida ou algo perto disso, mas se tornava difícil manter meus
pensamentos calados quando o corvo parecia tão disposto a ouvi-
los.
— Eu gosto de me exercitar e gosto de privacidade para isso.
Agora faz sentido esse tanto de músculo.
Mordi a língua para não dizer em voz alta, mas o sujeito me
flagrou encarando seu tronco na camiseta preta.
Ele piscou duas vezes para mim, bem devagar.
— Se troque. Estão todos nos esperando — comentou e
apontou para um vestido rosa claro, quase branco, pendurado num
cabide próximo à janela.
— Eu já tenho roupa — retruquei, sendo a típica garota que não
aceita subornos...até olhar uma segunda vez para o lindo vestido,
onde a luz da manhã realçava sua cor e o tornava mágico. Talvez
para aquele vestido eu abra uma exceção, afinal.
— Hoje é dia do não. É esperado que todos usem sua melhor
roupa para assistir à celebração.
— Dia do não?
Ele trocou a perna cruzada.
— É o dia de celebrar a bravura dos gregos em um período da
Segunda Guerra Mundial. A Grécia era um território desejado e
quem a ocupasse teria controle sobre o Mar Mediterrâneo. Com o
objetivo de ocupar parte do território e avançar na sua estratégia
durante a Segunda Guerra Mundial, Mussolini “ofereceu” à Grécia a
chance de sucumbir à ocupação de forma pacífica. O ultimato dizia
que: “Se a Grécia não deixar o Eixo ocupar certas partes
estratégicas do país, essa recusa será entendida como um ato de
guerra”. A resposta do primeiro ministro grego foi negativa, lançando
a Grécia uma guerra contra a Itália — explicou com paciência.
Como se já não me bastasse ter que suportar os gregos, eu
ainda era obrigada a comemorar com eles. Bando de dissimulados.
— Ah — falei para conter uma ofensa e apontei para com o
dedo para a porta. — Então saia para que eu me troque.
Ele se levantou sem pestanejar. Damon parecia bem menos
humorado naquela manhã. Eu não sabia qual dos dois tipos me
assustava mais.
Esperei até que ele se fosse e me levantei.
Perdi alguns minutos em frente ao espelho, encarando meu
ferimento como se ele fosse um corpo estranho, como se não fizesse
parte de quem eu era. Passei os dedos com delicadeza. Ficara uma
marca pequena na pele, mas, em minha memória, ela conquistara
um espaço gigante.
Em menos de dez minutos eu já estava com o vestido grego e
com o cabelo trançado nas costas. Ainda que a fenda do vestido na
perna me parecesse ousado demais e bem distante do que eu
costumava usar, eu me sentia encantadora como nunca antes, uma
verdadeira dama (com as unhas sujas de terra).
Dei mais uma olhada no espelho para ajeitar as sobrancelhas
bagunçadas e percebi que duas novas pintinhas surgiram no meu
nariz desde a última vez que reparara. Pensei que se eu continuasse
mais tempo na Grécia onde tudo era sol, em pouco tempo seria
dominada por elas.
— Botas? Não deixaram sandálias para você? — questionou
Damon assim que abri a porta. Seus olhos foram dirigidos para os
meus pés.
— Deixaram, mas eu preferi assim. — Não me dei ao trabalho
de olhar para ele ao respondê-lo.
Fui direto para bater à porta do quarto de Nick quando Damon
alertou:
— Ele já está lá embaixo.
Claro que sim. Muito possível que ele sequer tenha dormido com
tantas preocupações o atormentando. O respondi com um balançar
de cabeça.
Estávamos nos últimos degraus da primeira escada quando
resolvi dizer:
— Você não me parece muito animado para a celebração.
Ele escondeu as mãos nos bolsos da calça.
— Não sou Grego. Nunca me animo com as festividades.
— Ora, eu também não sou — falei e percebi tarde demais que
eu lhe dera uma informação sobre mim.
Aquele detalhe não passou batido por Damon, mas por alguma
razão ele não se importou em comentar.
— Mas, se quer agradar ao superior, é esperado que você e
Alastor estejam presentes — aconselhou.
— Não queremos agradar ninguém. Estamos aqui porque não
nos deram outra opção — retruquei, agarrando a barra do meu
vestido com mais força que deveria. Não tropeçar e cair da escada,
se tornara uma preocupação insignificante perto da raiva que senti
ao ouvir Damon. Eu teria dito mais, caso uma dor no peito não
tivesse me silenciado. O medo não influenciava na minha
recuperação, a fúria por outro lado...parecia abrir meus pontos como
se fossem laço.
A reação do corvo foi a de não argumentar, ele apenas
murmurou algo incompreensível e continuou o trajeto. Eu o
acompanhei, mantendo uma distância de dois degraus.
A mansão parecia normal para mim. Sem convidados, música,
ou decoração, como era esperado para uma celebração. Cheguei a
pensar que Damon estivesse zombando com a minha cara ao sugerir
que existia o tal dia do “não”.
O segui até um dos cômodos onde, pelo cheiro de queijo e de
café fresco, serviam o café da manhã. Minha barriga reagiu graças
ao olfato e deixou um barulho nada gracioso escapar.
— Aí está você. — Damon falou para ninguém em especial e
deu a volta na mesa para se juntar ao seu superior e ao outro
senhor.
Nick sorriu gentilmente assim que nossos olhos se encontraram.
Ele olhou para mim, da mesma forma que eu olhei para a mesa -
recheada de morangos, pêssego, damasco, uma variedade de
queijos, iogurtes e ovos mexidos - como se fosse me devorar.
— Alastor, não está vestido para a celebração — Damon
reparou. Ao ouvi-lo, notei que os dois senhores usavam roupa
elegante como a minha. A vestimenta não era nada além de um
manto arredondado preso por uma tira de pano, os braços ficavam
expostos, mas os joelhos cobertos. A túnica do superior era branca e
a do outro senhor, um tipo escuro que se assemelhava à carmim.
— Prefiro ser enforcado a usar isso — grunhiu Nick.
— Se quiser, eu o ajudo — provocou o corvo.
— Damon! — O superior o repreendeu.
— O quê? Estou sendo solícito como me pediram. Se o
convidado quer uma forca, devo negar?
Os lábios do moreno se esticaram num sorriso maldoso.
— Por que não se senta, senhorita...? — O superior perguntou a
mim, após lançar um dos seus olhares críticos para o corvo.
Assenti e escolhi minha cadeira ao lado da de Nick. Me sentei
diante uma mesa farta, mas fiquei com o estômago embrulhado ao
me dar conta de que aqueles homens que gentilmente me
convidavam para o café da manhã, eram os mesmos que
sequestraram a filha de Nick. Eu não tinha ideia do que eram
capazes e se todo aquele agrado teria um preço mais tarde.
— Você tem um nome, menina? — O velho de voz baixa me
perguntou, enquanto uma criada me servia café.
— Ela se recusou a me dizer seu nome mesmo após eu
encurralá-la contra a parede em seu quarto e enfiar minha perna
entre as suas que, se me permitem a ousadia de dizer, estavam
especialmente quentes ontem de noite — Damon comentou, sentado
de frente para mim, levando um morango à boca.
Os punhos de Nick batendo na mesa fizeram as xícaras
dançarem e meu café derramou sobre meu colo. Esperei que o
líquido quente me queimasse, mas estava gelado. Que raios de
gente toma café gelado?
— Entre no quarto dela novamente e eu juro que faço você
sentir o gosto metálico desse garfo em sua garganta! — Nick se
inclinou sobre mesa e segurou o garfo diante o rosto de Damon com
tanta força, que não me espantaria se o talher entortasse.
Muito calmamente, Damon pegou outro morango e deu uma
mordida.
— Se retire — O superior ordenou para o corvo. — Saia agora e
só volte quando eu ordenar!
Os azuis dos olhos de Nick guerreavam com os pretos de
Damon. O corvo era um perturbado, um homem destemido e que
visivelmente gostava de ser o centro das atenções. Ele limpou os
cantos da boca com o guardanapo de tecido, apesar dos morangos
não terem o sujado, e se levantou com graciosidade.
— Bom apetite para vocês — falou nenhum pouco convincente e
se foi.
Usei meu guardanapo para tirar o excesso de café do meu
vestido que havia sido arruinado, enquanto uma das criadas limpava
a mesa.
Nick tornou a se sentar, mas não tocou em nada, exceto no
garfo que ele ainda segurava. Tentei seguir seu exemplo, mas eu
estava faminta demais para ignorar aquela fartura. Me deliciei
primeiro com uma fatia de queijo, depois com o iogurte e mel.
O silêncio era tanto que quando levei uma torrada à boca todos
ouviram. Os gregos se retiraram após o café e falaram algo sobre
Nick encontrá-los na sala de reunião em poucos minutos.
— Sinto muito — ele disse ao ficarmos a sós.
— Está tudo bem. Era um vestido feio. — Menti para aliviar sua
expressão consternada. Não aconteceu.
— Por que não me avisou que aquele delinquente estava no seu
quarto!?
— Porque eu soube lidar com ele — retruquei.
— Não foi o que ele sugeriu!
Expirei e o fitei.
— Damon só quer provocá-lo, foi por isso que foi ao meu quarto.
Ele deve ter pensado que eu chamaria por você como se fosse uma
donzela em perigo. Acha que eu daria esse gosto a ele?
Enfiei um pedaço de melão na boca e o mastiguei sem deixar de
encarar Nick.
— Ainda que você tenha lidado muito bem com o ocorrido, não
me agrada saber que ele visita seu quarto pela noite — ele disse,
seus olhos seguiram o movimento da minha boca.
Engoli.
— Não vamos falar sobre isso como se fosse acontecer sempre.
Não acho que Dam...
— Ele o fará de novo. O corvo sabe que você é uma das minhas
fraquezas e usará isso para me fragilizar — me interrompeu
bruscamente.
Uma de minhas fraquezas. Uma de... Prendi o ar e a próxima
fruta que levei à boca, eu sequer senti o gosto.
Pigarreei para desfazer um nó na garganta.
— Vejo que gostou de toda essa fartura na mesa — ele sorriu
largo. — Aproveite o café da manhã.
Ele empurrou a cadeira e se levantou. Imediatamente fiz o
mesmo.
— Quero participar da reunião — declarei, com as mãos firmes
nos quadris. Minha intenção não era impor nada, mas eu soube que
minha postura acabou dando essa impressão.
— Maisie, já falamos sobr... — Ele se calou assim que fechei a
cara. — Tudo bem.
Sério?
— Assim, tão fácil? Eu já havia preparado um longo discurso.
A camisa branca de Nick estava com os dois primeiros botões
desabotoados. Aquilo era o mais longe que eu já vira do seu peito.
Foi o bastante para me fazer suspirar.
— Você é uma adulta, não posso e não irei impedi-la de nada,
ainda que eu ache sua decisão uma maluquice — ele disse.
Eu só sorri.
Deixamos a sala de jantar juntos e seguimos um dos corredores
que fazia eco sempre que minha bota colidia com o piso.
— Você me parecia bem disposto a me proibir de participar
disso na noite passada — comentei e baixei o olhar para a grande
mancha que o café deixara em meu vestido.
— Se você não poderá ir embora até que eu conclua a missão,
prefiro tê-la ao meu lado que deixá-la sozinha com Damon. — O
nome do corvo soou feito rosnado.
Ergui o queixo e disse provocadora:
— Está com ciúmes, Nicholas Coleman?
— Eu devia estar? — rebateu e apontou para algo atrás de mim.
Me virei, e dei de cara com uma porta grande de madeira. — Hiéros,
“aquilo que não se pode tocar.” — Nick leu a insígnia afixada à porta.
— O que é isso? — Perguntei.
— Provavelmente um lugar sagrado para os gregos — explicou
e então me olhou. — Será o primeiro lugar onde eu a farei gemer.
Meu rosto inteiro ruborizou perante sua indecência.
— N-icholas! — O repreendi, mais tímida que tudo.
— O que foi!? Pensei que seus deuses fossem nórdicos. —
Olhou-me de soslaio.
— E são. Mas não se deve fazer esse tipo de coisa em lugares
sagrados, ainda que não seja necessariamente sagrado para mim.
Nick voltou a andar e esperou até que eu estivesse ao seu lado
para me responder.
— Esse tipo de coisa? Me diga, Maisie, que tipo de coisa acha
que farei com você? — Fomentou a indecência, desinibido. Nenhum
fogo seria forte o bastante para Nick. Um grande incêndio era uma
mera faísca para aquele ser.
Mordi o canto do lábio inferior.
— Por que não...nos apressamos? Os gregos não me parecem
ser muito pacientes — desconversei. Ele riu.
— Reflita sobre isso e depois me conte — disse e foi com a mão
na maçaneta da porta.
A sala de reunião era tão generosa como todos os outros
cômodos, só que a tonalidade era mais escura. As grandes estátuas
decoravam as arestas do ambiente, as poltronas cor de chocolate
sobre um tapete vermelho cobria grande parte do piso, e um lustre
de cristal folheado a ouro caía feito uma cascata no lugar. Eu nunca
tinha visto nada como aquilo, nada tão...brilhante e valioso.
— O que ela faz aqui? — O superior questionou Nick.
Nick fechou a porta antes de respondê-lo.
— Ora, não é óbvio? Ela veio participar da reunião.
— Não vejo como ela pode ser útil. — O outro velho respondeu,
sempre compactuando com o superior.
Nick olhou de um para o outro.
— Acho que sou eu quem devo me decidir sobre isso, não? —
Ele foi áspero e, pela primeira vez, eu aprovei o timbre escolhido.
— Ela é o bichinho dele. Claro que fará parte disso. — Damon
disse. Não tinha reparado nele até sua voz asquerosa me atentar.
Ele estava sentado numa das poltronas com um livro aberto sobre o
colo.
— Pensei que animais não soubessem ler — murmurei. Nick me
fitou por cima do ombro e me deu um pequeno sorriso de aprovação.
Seus melhores sorrisos sempre eram destinados a mim, seus
olhares mais doces e suas falas mais mansas. Enquanto todos
conheciam o temível Alastor, eu tinha Nicholas Coleman.
— É como você disse, a decisão é sua. Se você confia na
garota, não contestarei. — Disse o superior e se sentou na cadeira
atrás da escrivaninha.
— Fico lisonjeado, mas não preciso da sua aprovação —
retrucou Nick e pareceu satisfeito ao notar que calou a todos.
Enquanto Damon e o outro senhor eram obrigados a baixar a cabeça
para seu superior, Nick era arrogante e desrespeitoso porque o
poder naquele momento era todo dele. Ele tinha aqueles malditos
gregos em suas mãos e iria esmagá-los. Ao seu lado, ainda que suja
de café, eu me sentia a própria rainha. Não sabia ao certo o que
mudara, como de prisioneiros nos tornamos líderes, mas Nick
parecia confiante e se ele não estava mais com medo, então eu
também libertaria minha valentia.
Segui Nick até sua poltrona, como o número de assentos era
menor que o número de integrantes, de modo cavalheiro, Nick
deixou que eu ocupasse o seu lugar e ele ficou em pé.
— Posso pedir que tragam um...
— Ficarei de pé — ele interrompeu o velho de voz baixa.
Olhei de um para o outro, esperando que um dos gregos
tomasse à frente da conversa. Foi Nick quem disse, no final:
— Por que não me dizem o real motivo da menina ter fugido?
— Minha filha, Lidiane, estava de casamento marcado e não
estava muito feliz com a união — disse o superior.
— Me deixe adivinhar, foi o senhor quem escolheu o noivo? —
Nick questionou, presunçoso.
O superior uniu as sobrancelhas grisalhas, desaprovando o
comentário do outro.
— Isso não diz respeito a você.
— Na verdade, Dionísio, cada detalhe é importante para a
investigação — Damon falou para o superior. Foi uma grande
surpresa vê-lo compactuar com Nick em algo.
O superior relanceou o olhar para o corvo de maneira severa.
— Importante seria se você ficasse calado! — rebateu.
Atrás de mim, Nick deixou um riso zombeteiro escapar dos
lábios. Damon se remexeu na poltrona e voltou a dar atenção para
as páginas do livro. Se ele realmente estava lendo, era impossível
saber, sua expressão era inabalável.
Como se soubesse que eu o observava, de um modo misterioso
que destruiu todas as barreiras de coragem que eu erguera poucos
minutos atrás, o corvo sorriu para mim...Apenas para mim. E eu
gelei.
A reunião fora resumida no sumiço da menina que não queria se
casar de forma alguma com o homem que seu pai escolhera.
Durante a conversa, o superior, Dionísio, disse que o último lugar
onde a garota fora vista, foi na cidade de Ártemis, na Grécia. Pelo
que disseram, a menina não levara nada além da roupa de corpo e
estava sozinha.
Depois de Dionísio fornecer cada detalhe que achou pertinente,
Nick pediu uma foto do rosto da menina, para que ele pudesse
começar a investigação, mas o superior recusou.
— Não quero que comece hoje, Alastor — disse o superior. —
Hoje é um dia sagrado para nós, teremos uma festividade durante a
noite e quero que você e a garota estejam presentes.
— Permita-me dizer, mas, para mim, hoje é um dia como
qualquer outro — rebateu Nick, nenhum pouco inclinado a aceitar o
convite.
— Você e ela — se referiu a mim —, são nossos convidados.
Seria extremamente desrespeitoso se não viessem. Teremos
banquete para uma multidão.
Nick abriu a boca e fechou.
— Estaremos lá — eu disse, então. Era a primeira vez desde
que entrara naquela sala que eu expressara minha opinião.
Eu não estava animada para a festa, apesar de eu sempre ter
adorado as que dávamos em Kerrera, mas eu reconhecia uma
pessoa insistente quando via uma e Dionísio, sem dúvida alguma,
não aceitaria um “não” como resposta. Apesar de o dia ser dedicado
a isso.
Tudo o que eu queria era deixar aquela sala e poder me
encontrar com Nick sem aquele bando de grego nos rondando.
Como eu suspeitara, a reunião se deu por encerrada após
minha concordância.
O corvo foi o primeiro a deixar a sala, Nick e eu fomos os
próximos.
— Por que aceitou fazer parte da festa tão facilmente? — Ele
me perguntou e colocou a mão em minhas costas, como se para me
fazer andar mais depressa.
— Porque eu não aguentava mais ouvi-los. — Fui clara. — Pode
nos ajudar em algo avaliar os convidados... E, bem, talvez seja
divertido.
— Posso enumerar muitas outras formas de nos divertirmos,
garota — atiçou. — Mas estou disposto a concordar com você.
Preciso saber quantos membros há nessa Sociedade antes de tomar
qualquer atitude.
Quando dei por mim, estávamos deixando a mansão e
adentrando num jardim não muito distante.
— Sei que o odeia, mas Damon me pareceu ofendido quando eu
sugeri que ele torturava crianças — comentei, despretensiosa.
— Você falou com ele sobre isso antes ou depois dele se meter
entre suas pernas!?
O que ele disse me fez brecar os passos.
— Isso importa?
— Não seja ingênua. Ele quer seduzi-la, usará de todos meios
possíveis para convencê-la de que é honesto.
— E quem está me alertando, o ciúme ou a preocupação!? —
rebati, enfurecida.
Ele conteve sua força ao me segurar pelo braço.
— Me ouça, Maisie, não confie em tudo que vê e ouve, por mais
sincero que pareça.
A preocupação.
— Eles querem saber meu nome. Não sei se conseguirei me
esconder por mais tempo — acautelei.
Ele me soltou e continuamos atravessando roseiras, árvores
frutíferas, até chegarmos em uma pequena plantação.
— Diga seu nome. Apenas não mencione aqueles que você ama
ou coisas pertinentes a seu respeito.
O sol estava quente naquela manhã, ao menos para uma
escocesa acostumada com temperaturas mínimas. Sempre que ele
tocava o rosto de Nick, eu curvava a boca em um sorriso. Era
automático.
— Quando poderá falar com sua filha? — perguntei com
cuidado.
Nick passou os dedos por uma folha verde.
— Acredito que amanhã.
— Ela está bem. As três.
Ele se virou para mim.
— Eu sei. Eu jamais trabalharia para os gregos se suspeitasse
de algo errado.
Ergui o vestido para não o sujar de terra.
— Nick...
— Liberdade para não a poupar? — Me cortou e ergueu meu
queixo para ele.
Arqueei a sobrancelha, mas então compreendi aqueles olhos
indecentes.
— Liberdade — concordei.
Ele deu um passo para frente e eu me preparei para um
comentário que me faria corar.
— Você está escandalosamente deliciosa nesse vestido e eu
estou louco para tirá-lo.
— Acha que o café combinou com meus olhos? — brinquei para
aliviar minha vergonha.
— Acho que não há nada nesse mundo que não combine com
seus olhos, garota.
Só sorri.
— Eles não são fofos, Damon?
Nick e eu nos viramos com urgência ao som da voz. Daquela
voz. Da desgraçada que quase me roubou a vida.
— Olá, bonequinha ruiva — disse Iolanda, ao lado de Damon. O
meu sangue ferveu.
Não me importava onde eu estava, nem com quem. Eu ia matá-
la. Ia me vingar com toda força que tinha.
— O que está fazendo aqui!? — Nick questionou, tão surpreso
quanto eu, porém, mais calmo.
— Ela é minha convidada — disse Damon, com ar de
superioridade. — É como eu disse, há muitos quartos aqui.
— Espero que haja muitos caixões também. — Nick grunhiu e
me segurou pela mão como se tivesse desvendado meus planos.
Planos? Não. Não se faz planos quando se age por impulso. Se Nick
não tivesse me segurado, eu ia avançar naquela cadela.
Damon desceu com os olhos para nossas mãos entrelaçadas.
— O combinado foi o de não matar nenhum dos nossos até o
final da missão, Alastor. — O lembrou.
— O combinado não se aplica a mim — retruquei, fazendo todas
minhas veias saltarem.
— Tem razão. Mas seria péssimo se meu superior tivesse que
lidar com um assassinato num dia tão especial. Acho que a
decoração que prepararam não combinaria muito com vermelho-
sangue. — Damon falou.
Rangi os dentes e apertei a mão de Nick com extrema força.
— E eu acho que não estou muito preocupada com o que seu
superior pensará. — Rebati e fiz o corvo sorrir.
— Controle seu cão, Alastor. — Damon falou e a última coisa
que me lembro, foi de estar me contorcendo nos braços de Nick e
gritando insultos em gaélico.
Eu me entreguei. Eu perdi. Deixei que o corvo entrasse na
minha mente e arrancasse informações a meu respeito. Que ele me
induzisse à confissão. Ele agia de forma porca, baixa, porém, sagaz.
Agora Damon sabia não apenas quem eu não era, mas quem eu
era. Uma escocesa. Uma maldita escocesa burra!
Me providenciaram outro vestido, muito mais lindo que o anterior
e dessa vez era da minha cor preferida: verde. Se tornara a minha
preferida desde que Nick reparara em meus olhos e os descrevera
com tanta paixão.
No lugar da trança que fizera de manhã, para a noite, optei por
deixar os cachos soltos sobre os ombros.
Eu colocava os brincos banhado a ouro nas orelhas quando
minha porta foi aberta.
— Aceitou meu presente?
De susto, deixei que a tarraxa caísse.
— Não sabia que era um presente seu. Se soubesse, o teria
jogado na sua comida — rosnei.
Damon cruzou os braços e se escorou na parede, passando
uma perna por cima da outra. Eu odiava a segurança que ele
aparentava ter sobre si. Aquilo me deixava em desvantagem, me
deixava trêmula.
— Acho que fui descortês com você mais cedo. Peço desculpa.
Não queria tê-la aborrecido.
— Para me aborrecer você precisaria ter algum efeito sobre
mim. E posso lhe garantir que não tem. — Arranquei o brinco que eu
já havia colocado e deixei que caísse no chão também.
Damon coçou o queixo, pensativo.
— Então o que foi aquele monte de palavras pejorativas que
disparou para mim?
Me obriguei a encará-lo.
— Um momento de fraqueza ocasionada pela presença de
Iolanda. Nada além disso.
Era preferível dizer que aquela vigarista me desequilibrava do
que assumir que Damon influenciava negativamente no meu humor.
— Por falar nela, Iolanda me disse o que fez com você.
Respirei fundo.
Que outros segredos meus ela revelaria? Iolanda sabia meu
nome e que fui presa por furtar pães. Ela também sabia onde eu
morava. Por Odin...
Sem mais e nem menos, Damon começou a desabotoar sua
camisa preta. Um botão por vez. Devagar.
— Que raios está fazendo? Pare ou eu grito!
Ele sorriu como resposta e se virou; sua camisa escorregou
pelos ombros até o chão, revelando músculos salientes, firmes e
uma pele bronzeada pelo sol. De tudo aquilo, foi o enorme corvo
preto dentro de um círculo tatuado nas suas costas que me chamou
atenção. Não queria encarar, mas foi mais forte que eu.
— Ela me deu um igual quando nos conhecemos, mas o meu foi
nas costas — disse Damon.
Um igual?
Então eu vi uma cicatriz pequena nos olhos do corvo. Um
buraco de bala que fora preenchido por tinta preta.
— O que você fez para ela? — perguntei.
Damon virou seu peito nu para mim e a frente conseguia ser
melhor que as costas. A pele e a musculatura era de causar
curiosidade.
Ele recolheu a camisa do chão, mas só a vestiu um minuto
depois.
— Tivemos um péssimo começo. Assim como você e eu.
— Bem, se eu tiver a chance que Iolanda teve, eu não darei um
tiro em suas costas.
Ele deu um sorriso pequeno e de canto.
— Por que roubou pão? Passava fome?
— Como é? Não. Claro que não passava fome — respondi
rápido. — Você não tem nada para fazer além de me atormentar e
perguntar coisas a meu respeito para os outros?
— Não.
Me levantei e fui até a porta.
— Saia. Agora! — Ordenei e a abri no exato momento em que
Nick deixou seu quarto.
Ele olhou para mim e olhou para Damon, então a cólera
vermelha sobressaiu os azuis dos seus olhos.
— Maisie, volte para o quarto. — Nick falou. Ele estava tão cego
que acabou revelando meu nome. Mas àquela altura, Damon já
sabia.
— Nicholas? — Também o chamei pelo nome. Todo nosso
disfarce simplesmente se desmanchou por culpa de Damon. O corvo
era a própria imagem da discórdia. O próprio caos.
— Volte para seu quarto porque irei matar esse sujeito agora
mesmo — anunciou Nick e terminou de enrolar a manga da camisa
nos cotovelos. Ele estava lindo. Lindo e selvagem.
Damon merecia uma porrada ou outra, mas ele tinha razão. Era
um dia sagrado para os gregos, se Nick fizesse um grande
escândalo poderia prejudicar sua filha. Poderia nos prejudicar e
Damon não valia o risco.
— Se vai me bater, bata de uma vez. Há uma dama me
esperando no meu quarto. — O corvo falou com seu jeitinho cínico.
— Como quiser. — Nick respondeu e desferiu um murro no rosto
do outro.
Eu levei as duas mãos à boca após um grito.
Damon limpou o sangue que imediatamente começou a escorrer
do lábio ferido e sorriu como se não sentisse dor.
— Está mais aliviado agora, Alastor?
Nick fechou a mão novamente, mas eu o impedi a tempo e
agarrei seu braço.
— Não faça isso. — Eu disse para ele, olhando profundamente
em seus olhos à procura de Nick, não de Alastor.
A tensão desapareceu do seu rosto. E Damon foi embora tão
sorrateiramente quanto surgiu.
Soltei a mão de Nick de modo grosseiro.
— Pare de cair nos joguinhos dele! — grunhi, como se eu
mesma não tivesse caído.
— Não estou caindo nos joguinhos de ninguém. Estou fazendo
os meus próprios.
— Me diga, como bater em Damon te ajudará? — Inquiri sem
baixar o tom.
— Não ajudará. Mas ele é um excelente saco de pancadas.
Praguejei.
— O que ele queria com você? — perguntou com interesse.
— Nada importante. As mesmas gracinhas de sempre.
Ele ficou quieto antes de me passar os olhos pelo meu corpo,
me fazendo pisar em brasa.
— Está com pressa, Maisie?
— Se estou com pressa?
Dessa vez não houve um indício em sua face para eu
acompanhar seu pensamento. Fiquei muito, muito perdida.
— Confie em mim. Deixarei essa nossa noite muito divertida,
garota. — E me arrastou pelo braço para dentro do meu quarto.
Nick empurrou a porta e me prendeu contra ela.
— Nick, o que... o que está fazendo? — perguntei, pelo simples
prazer de adorar ouvi-lo falar. Eu era uma garota que adorava
mergulhar no fogo como se fosse água.
— Apenas sinta. — Foi o que ele disse.
Uma indecência brincou em sua boca e a tornou mais sensual.
Os lábios molhados foram em meu pescoço para um beijo,
depois, uma mordida delicada. Uma mordida que senti no interior das
minhas pernas. Sua barba roçou em meu omrbo, causando-me
espasmos de curvar as costas.
— Sinta cada toque e me diga se estou perto.
— Se está perto? — Ofeguei.
Ele riu contra minha pele. Os lábios trêmulos fizeram eu me
contrair.
— Você saberá.
Ele passou seus dedos pela fenda do meu vestido até conseguir
contato com a minha pele. Os dedos masculinos e desajuizados
subiram lentamente por minha barriga até meu seio nu e arrepiado. A
mão que estava aberta se fechou em mim e me apertou de forma
que se tornou impossível não gemer.
Nick invadiu minha boca com sua língua para me silenciar ou
arrancar outro gemido, não saberia dizer. Enquanto sua mão
executava um prazeroso e ardente trabalho em meu seio,
massageando-o com firmeza, ele arrancava todo meu ar com sua
língua. Um beijo de fazer minha dignidade se esconder e minha
ingenuidade ruir.
— Você está cada dia melhor nisso, querida — sussurrou.
— Você também — murmurei de olhos fechados.
— O quê!? — perguntou rindo. — Que honra a minha.
Dos seios, o atrevido foi para a alça do vestido que eu acabara
de colocar e, sem dizer nada, ele o deslizou para arrancá-lo, mas,
por ser justo nos quadris, o vestido não saíra por completo.
— Que homem de sorte sou, não? Acho que terei de me
ajoelhar.
Nicholas se inclinou, depositando generosos beijos em cada
centímetro do meu tronco nu. Mas nos seios...nos seios ele fez algo
que algemou minha razão. Aquela boca molhada e quente tomou
meu seio da mesma forma que eu devorara o pêssego pela manhã.
Com vontade, desejo, fome. Eu deixei que minhas costas
encontrassem a parede fria, enquanto minha alma era sugada pela
boca de Nick.
Sua língua brincou com meu mamilo em movimento circulares,
então dentes me morderam com leveza.
— Que Odin me ajude!
— Creio que nem mesmo ele me arrancaria daqui hoje, querida.
Quando Nick me libertou, eu pensei que ele já terminara de me
engolir. Mas então ele disse:
— Vire-se.
Arregalei os olhos, mas me virei.
— Mãos na parede — acrescentou.
Engoli em seco e, mãos na parede.
Nick se aproximou por trás, me fazendo sentir tudo, ele inteiro,
seu calor, seus músculos, sua imoralidade, e segurou meus seios
com as duas mãos, me tornando sua, me fazendo querer ser única e
exclusivamente sua.
Aproximou a boca do meu ouvido e sussurrou com sua voz
rouca de falas exóticas:
— Agora, Maisie, esqueça qualquer deus, porque é o diabo
quem está aqui e eu farei com que você goste de pecar.
Me ajoelhei e terminei de arrancar seu vestido. Maisie passou
uma perna, depois a outra, até ficar apenas de calcinha para mim.
Um detalhe minúsculo e de renda que eu também fiz questão de
eliminar em uma tentação desenfreada.
— Você fica bela nesse vestido, só não mais bela que sem ele.
Ela murmurou um ruído indistinto, algo em gaélico que eu resisti
em não pedir tradução e me limitei em contemplar seu corpo com um
olhar criterioso.
Eu não tiraria sua virgindade naquela noite. Ainda não. Mas eu
lhe daria prazer. A faria criar garras grandes o bastante para ela
escalar as paredes.
Me levantei e afastei seus cabelos do pescoço, ela tinha o mais
picante cheiro do início do verão e tinha a cor mais ardente do
entardecer.
— Vire-se — pedi, gentilmente.
Meio acanhada, ela se virou. Meu coração estourou como
bomba e minha cabeça sentiu o impacto. Peguei em suas mãos
pequenas e pálidas, e as beijei.
— Você é linda, Maisie. É de uma beleza que facilmente
encanta. Mas tudo em você parece feito para me devastar.
— Você me parece muito inteiro — ela respondeu, com o prazer
pesando nas pálpebras. Os cabelos pelos ombros como raivosas
cataratas. Me senti um homem com uma fera, sem haver piedade
para me sujeitar.
— Eu sei fingir bem, doce garota. Como agora, estou pensando
se devo ser um cavalheiro ou...
Ela se aproximou. Nos olhos, um rutilar de coriscos ardentes.
Ela era um rabisco de fogo no espaço. Senti seu hálito roçar em
minha orelha.
— Opte pelo ou.
Aquelas se tornaram minhas duas letras preferidas. A peguei em
meus braços e a joguei no branco dos lençóis, sendo cuidadoso; ela
não era feita de cristal, mas eu podia facilmente despedaçá-la se
agisse com todo meu fervor detido.
— O que fará comigo? — Soou como uma faísca.
Me ajoelhei sobre ela.
Desci pelo seu corpo, trilhando o caminho com a língua, eu não
era de regressar nos mesmos lugares, mas o gosto da pele daquela
garota, o adorável cheiro feroz, tornava fácil me perder. Percorri com
a língua para abaixo do seu umbigo. Seus gemidos eram uma
bússola fiel para me indicar que eu estava no caminho certo.
Passei as mãos pelas pernas para abri-las e encaixar meu
corpo.
— A farei gemer, suar e ter uma boa história para aquecê-la nos
dias frios. — A voz rouca saiu como uma trovoada.
Ela se engasgou com o ar, e fosse lá o que tivesse para me
dizer, ficou perdido entre suspiros - meus e dela. Coloquei suas
pernas em meus ombros e tentei ignorar aquelas benditas botas
ainda em seus pés. Enfiei minhas mãos por debaixo dos seus
quadris, afim de erguê-la. Tive a visão mais gloriosa que qualquer
homem naquela noite. Uma rosa escondida no abismo do mapa me
encarou e me convidou para senti-la. Eu não recusei. Me inclinei, e
mais um pouco.
— Nick. Nick. — Sibilou, com as emoções à flor da pele.
— Diga, doce garota. Diga rápido, porque estou prestes a
colocar minha boca em você.
Apertei seus quadris com desejo e soprei suavemente sua
intimidade molhada. Cada gesto meu era demorado, eu não faria
nada com pressa, pois sabia que a ansiedade mastigaria seu bom
senso e nada era mais sexy que uma mulher refém do prazer.
Com a ponta da língua, passei por seus pelos ásperos.
Maisie novamente tentou me dizer algo quando minha boca
atrevida frequentou seu lugar mais impuro - pele divina, sedosa e
amarga, mas não amarga no sentido ruim da palavra, aquele era o
caldo amargo que embriagava todo homem e o rendia. A bebi como
um vinho envelhecido.
A beijei.
Chupei e lambi, com variações de leves ritmos.
Senti seus dez dedos em meus cabelos, os bagunçando e
puxando. Ela sorriu, e gemeu, abrindo-se para mim.
Com voz rouca.
Olhar sensual.
E mais molhada que rio.
— Eu preciso de você. — Seus gemidos pareciam um vendaval
aos meus ouvidos. Eu estava tão duro, que quase cedi ao seu
desejo.
Em resposta, sem afastar meus olhos dos seus, passei o queixo
devagarinho por sua boceta para torturá-la com a barba rala e a
penetrei com a língua.
Ela se contorceu, gemeu e implorou.
— Minha doce garota — passei a língua pela direita, num
movimento circular que se espraiou —, aproveite que hoje a noite é
sua e eu sou seu.
Ainda a encarando e vendo-a arfar, afastei uma mão do seu
quadril e estimulei seu sexo com o dedo, sequestrando sua lucidez.
— Apenas sinta — falei e a invadi com aquele dedo. Senti seu
sexo se fechar e pulsar em torno de mim.
Suas garras foram dos meus cabelos para os lençóis.
— Ahhh! — Sibilou e movimento seu corpo para que meu dedo
entrasse e saísse. Eu apenas deixei que ela ditasse as regras e
sentisse os espasmos.
— Gosta disso, Maisie? Gosta de ter uma parte de mim dentro
de você?
Penetrei outro dedo nela e passei a língua por sua virilha.
— Ahhh...
Como eu já suspeitara, ela não teve fôlego para responder.
Quando um gemido mais alto que os anteriores foi dado e sua
respiração ficou ofegante, os movimentos lentos, eu soube que ela
alcançara o ápice do seu prazer. Ela se soltou, como uma chuva
mansa se solta no ar. E como um bom cavalheiro, ou talvez apenas
um ordinário, para ajudá-la a lambi e bebi cada gota que escorria por
suas pernas.
Maisie se desfez em gemidos torrenciais.
— Você é um cretino! — O xingamento veio traçado por um riso.
Ela era a pura imagem duma tarde quente.
— Não exageremos.
Ela me prendeu com suas coxas, sem me deixar escapar.
— Aonde você pensa que vai? — Ela questionou em um timbre
traiçoeiro.
— Não se preocupe, querida. Estou apenas começando. Ainda
esta noite, eu lhe apresentarei muitas outras formas de prazer.
Ele se levantou assim que o libertei. Eu estava estática, em
êxtase demais para me mover. Meu corpo pegava fogo e ardia a
cada vez que eu lembrava que a língua de Nick visitou o interior das
minhas pernas.
E eu gozei. Gozei pela primeira vez na boca de um homem.
— O que está fazendo? — questionei, ao vê-lo pegar minha
calcinha e guardá-la no bolso.
— Você não precisará disso hoje. — Me lançou um olhar
cafajeste.
Apenas sinta. Eu senti. Senti tudo. Senti demais.
Assim que ele saiu e fechou a porta eu gritei com o travesseiro
enterrado na cara.
Você ainda me matará.
Pulei da cama cerca de dez minutos depois e me vesti. Encarei
meu reflexo no espelho ao passo em que amarrava um rabo de
cavalo. Meus olhos me pareceram mais verdes, vivos, brilhosos. Os
lábios, carnudos, vermelhos e dispostos a sorrirem para qualquer
um.
Deixei o quarto e não tive bravura o bastante para bater à porta
de Nick. Manter a compostura era essencial.
— Está alegre — disse Damon ao correr em meu alcance. Antes
dele aparecer, eu acreditei que nada poderia estragar minha noite.
Mas...foi antes dele aparecer.
— Sim. A felicidade alheia o incomoda?
Seus lábios machucados me sorriram. Eu não perdi tempo
algum refletindo a respeito do soco que Nick desferiu nele, mas,
agora, o vendo de perto, eu até seria capaz de sentir compaixão.
— Você transou — deduziu.
Me passei por doida, e depois, por ofendida.
— Ah, pelos deuses! — Não tive a audácia de encará-lo. Minhas
mentiras nunca foram as melhores, mas dizer a verdade para alguém
como Damon, nem sob tortura.
Ele desceu alguns degraus apenas para ficar na minha frente, e
andou de costas, me fitando.
Caia.
Caia.
Mas o encapetado demonstrara habilidade naquilo.
— Você está com cara e com cheiro de orgasmo — expôs.
— Pensei que havia dito que não participava dessas
festividades? — Mudei de assunto. Nada que se tratava de Damon
era do meu interesse, mas já que ele me seguiria feito um urubu
rondando a carniça, qualquer assunto era melhor que falar sobre
minhas intimidades com Nick.
O corvo deu de ombros, sem um pingo de emoção.
— Esse ano há algo diferente.
— Deixe-me adivinhar — levei um dedo ao queixo, fingia pensar.
— Eu?
Ele ergueu uma sobrancelha de modo desafiador.
— Não achei que fizesse o tipo convencida.
— Não achei que fosse o tipo que foge de uma resposta —
rebati.
Damon voltou a andar normal, só que em silêncio. O traje que
usava não era o mesmo de quando Nick tentou matá-lo, contudo, a
cor era a mesma: preto. E o fato patético de eu odiar ficar quieta, me
levou a perguntar:
— Por que sempre preto?
— Porque estou de luto.
O espanto me fez segurar no corrimão para não cair.
— Sinto muito. Foi alguém da sua família? — Perguntei com
cuidado. Por mais que eu detestasse sua companhia, meu
sentimentalismo me obrigava clemência por sua dor.
— Eu.
Cravei meu olhar mais mortal nele.
— Quase senti pena de você — rosnei, como uma fera prestes a
atacar um veado.
Ele não se abalou. Nenhum pouco.
— O que me tornou indigno de sua compaixão?
Chegamos ao térreo e simplesmente olhamos um para o outro,
sem que nenhum dos dois tomasse iniciativa em andar.
Uma música tocava ao longe, tão distante quanto num sonho. A
melodia agradável me convidava para uma valsa, mesmo que eu não
tivesse a menor noção de como dançá-la. Certa vez Gael tentou me
ensinar, ainda que ele tampouco soubesse, mas desistiu nas
primeiras cinco pisadas que dei em seu pé. Sua boa vontade
terminou com ele resmungando que eu não tinha pés, tinha patas.
— O fato óbvio de você não estar morto? — O respondi quando
me lembrei que ele esperava por isso.
— Há muitas formas de morrer, cabelo de fogo.
— E várias outras de matar — devolvi, maldosa.
Notei quando Damon passou a língua pelo lábio cortado e
quando se retraiu.
— Não sou um inimigo — afirmou, e me esperou acompanhá-lo
no corredor que levava ao...Bem, não tinha certeza do que esperar
daquele corredor, mas a música parecia vir de lá.
— Você é amigo de Iolanda. Qualquer um que aprove o que
essa mulher faz, é meu inimigo — grunhi. A mera menção do seu
nome me fazia tremer de rancor. Despertava um ódio insuportável
dentro de mim.
— Quando foi que eu disse que Iolanda era minha amiga? Não
te mostrei o buraco de bala que ela fez em minhas costas? —
Perguntou meio indignado.
Não tive resposta.
— É como dizem, Maisie — olhou para o horizonte e disse com
a voz arrastada —, se não pode contra seus inimigos, junte-se a
eles.
— É por isso que está aqui? — Indaguei.
Ele só sorriu.
— Não me mandará pro inferno por descobrir seu nome? —
Dessa vez foi Damon quem fugiu do assunto.
— Cedo ou tarde isso aconteceria.
— Um dia usarei essa sua frase contra você, cabelo de fogo. E
algo me diz que será porque minha língua estará dentro da sua boca.
Meu argumento para criticar seu caráter impressivo se dissipou
dentro da minha cabeça quando ele abriu uma porta que revelou um
grande jardim decorado e cheio...de gregos. Todos me pareciam
iguais: vespas. Damon se misturou subitamente entre eles e seu
vulto se perdeu na escuridão imediata.
Me preparei para respirar o ar venenoso.
A música que tocava era diferente de tudo que eu conhecia.
Muito longe de ser valsa, mais longe ainda de ser escocesa. Não me
fazia querer dançar, tampouco me dava sono. Era apenas...
— Gostosa. — O sussurro aveludado em meu ouvido quase me
mordeu.
Sobressaltei e esbarrei numa parede de osso e pele.
— O que disse?
Sem que eu pudesse ter a chance de recusar, Nick levou uma
cereja à minha boca. A mordi. Nick ainda estava com a camisa
branca com abertura saliente no peito. Os músculos saltados no
tecido revelador, eram um deleite para os meus olhos.
— A cereja, ela está muito gostosa.
A mastiguei devagar, ciente de que ele acompanhava o
movimento.
A fruta, com seu leve sabor de pecado, estava mesmo muito
saborosa. Tirei a semente e a joguei fora, antes de começar a fazer
parte da brincadeira perigosa que Nick começara.
— Está quente. Acho que vou me molhar.
O olhar descarado fez minha alma virar do avesso.
— A garganta — pigarreei. — Preciso beber água.
Ele indicou o caminho de pedras e árvores com a mão.
— Claro. Eu a acompanho. Primeiro você, eu gosto de ir atrás.
Mordi a boca para reprimir o riso.
Que endiabrado, Nicholas Coleman.
Quando um garçom passou servindo as bebidas, Nick pegou
uma taça com água e me entregou. Virei o líquido em um único gole.
Ele fez o mesmo, só que com o vinho.
— O que devemos esperar dessa celebração? — Perguntei
baixo, mesmo certa de que seria impossível ser ouvida em meio
àquela multidão de pessoas.
— Espero que nenhuma briga, porque hoje meu humor está
atipicamente bom. — Se fazia parte da sua provocação, eu não
sabia, mas ele passou a mão pelos cabelos e jogou as mechas loiras
e teimosas para trás.
— Acho que bater no corvo o aliviou — aticei, quando uma nova
música começou a tocar.
Os olhos, meu céu azul e particular, correram pela estrada da
minha imperfeição.
— Acho que a culpada por meu alívio tem um cheiro e um gosto
muito mais agradável.
Corei, com uma doce brisa a me impelir.
Roubei uma taça de vinho quando um garçom passou servindo.
A bebida desceu empurrando minha vergonha.
— Alastor. Alastor — Dionísio acenou do outro lado do jardim.
— Ele foi a sua salvação, garota — compartilhou, num sussurro
abafado. Passou um dedo para limpar a gota de vinho em meu lábio
e seguiu em direção ao grego.
Fiquei sozinha. Fora uma opção minha não acompanhar Nick,
sabia que se eu tivesse optado por segui-lo, ele não contestaria, mas
eu achava que minha noite estava boa demais para ouvir aqueles
malditos gregos fazerem ameaças mascaradas de gentileza.
À minha volta, as pessoas literalmente falavam grego. Não
entender o que diziam, conseguia ser pior que visitar cidade grande
onde todo som era motivo de grito e pulo. Para a minha sorte,
também não vi Damon em canto algum. Não que sua imagem fosse
fácil de notar, apesar de ser grande e forte, por sua escolha de
roupa, ele era facilmente confundido com a noite.
— Está gostando da festa, bonequinha ruiva?
Me virei com um relance de olhar.
Qualquer um, menos ela. Podia ser até Damon, só não ela.
— Estava suportável. Agora que você chegou, ter as entranhas
devoradas por lobos me parece menos doloroso.
Ela riu. O vestido branco e grego, a tornava quase bonita. Não.
Era um exagero da minha raiva. Iolanda estava bonita e elegante
naquela noite. Quase uma dama. Algo mágico naquele palácio fazia
qualquer um parecer encantador.
— Eu precisei atirar. Você estava descontrolada e...
— Você quase me matou. Não importa se era ou não sua
intenção, não importa o meu estado de humor. Você ergueu sua
arma e fez o disparo. Agora eu viverei para fazê-la pagar por isso —
falei, rudemente.
— Como eu ia dizendo...Você roubou meus colares. Por sua
culpa serei castigada!
Como?
A ouvi, atenta.
— Castigada?
Ela passou os olhos pelos convidados, como que em busca de
alguém em especial.
— Sim. É o que eles fazem com quem falha numa missão.
— Os colares eram para o superior? — Perguntei, sem disfarçar
o interesse.
Iolanda engoliu em seco e a confirmação com a cabeça foi a
única resposta que consegui.
— Quem a castiga?
Um brilho súbito no limbo dos seus olhos veio acompanhado da
sua sonora risada da minha doce ignorância.
— Não ficou claro? — Seus olhos correram pelo vago campo até
uma figura profana e sombria entre os troncos de árvores dourados
mais distantes da festa. Damon pegou uma das taças em sua
bárbara mão e não a levou à boca, seu interesse repentinamente se
espreitou para nós duas. O preto brunido dos seus olhos encontrou
os meus. — Ou pensou que a roupa preta fosse a última moda na
Grécia?
Levei uma mão ao peito e fiz retroceder os limites do grito que
eu pretendia dar.
— Ele não é um corvo. É a morte — concluí.
Iolanda trombou seu ombro no meu propositalmente, para me
tirar do devaneio. E falou demasiado baixo:
— Não. Damon não é a morte. Ele é apenas um dos
mensageiros do superior. Assim como Alastor, ele mata
impiedosamente, mas apenas se for o ordenado. Na Mitologia
Grega, o corvo era consagrado a Apolo, Deus da luz do Sol, para
eles essas aves desempenhavam o papel de mensageiro dos
deuses que possuíam funções proféticas. Por esse motivo, o animal
simbolizava a luz. O corvo era dotado de poder a fim de conjurar a
má sorte. Diz a mitologia que o corvo era uma ave branca e que
Apolo deu a um corvo a missão de ser o guardião de sua amante,
mas o corvo se descuidou e a amante o traiu. Como castigo, Apolo
tornou o corvo uma ave negra. Damon ficou sabendo dessa história
e para afrontar os gregos, desenhou o bendito corvo nas costas. Foi
justamente por essa valentia e desrespeito aos deuses gregos que
Dionísio o tornou um mensageiro mortal. Ainda não se sabe se o
cargo concedido fora um prêmio ou um castigo.
O meu grito subiu um degrau da escadaria imensa do meu
assombro.
Iolanda ergueu sua taça de líquido transparente para Damon.
Aquilo foi um gesto claro de que estávamos falando sobre ele. Eu
podia contar quantos minutos ele levaria para se aproximar. Eu tinha
que ser rápida e arrancar o máximo de informações possíveis de
Iolanda. Qualquer coisa que pudesse derrubar a paisagem
inexplicável das mentiras dos gregos.
Um convidado olhou para mim com uma estranheza ocasional.
Talvez eu estivesse fazendo gestos e caretas.
— Então, o que é essa Sociedade? — perguntei, fingindo
desinteresse.
O vento rumorejou em meus ouvidos. E o ar, que eu tanto
prendera, entrou fresco em meus pulmões.
— Um lugar onde se faz tudo por dinheiro. Se alguém quer um
assalto à banco, nós o fazemos. Desde um roubo de carro, um
acerto de contas, à um assassinato. Não há nada que não façamos.
Dionísio tem um grupo para cada tipo de crime e ele é bem generoso
na hora de nos pagar.
— Um grupo de criminosos, então? — Tentei entender.
Ela balançou a cabeça de um lado para o outro, como se para
decidir se minha definição caía bem.
— Quase isso. A diferença é que a Sociedade é bem
organizada.
Rodeada de assassinos organizados, quase um alívio...
— Alastor me disse algo sobre crianças. — Soltei no ar.
Ela ficou entre a taça que esvaziava e a minha pergunta.
— É como eu disse, aqui se faz de tudo por dinheiro. Não
importa quem está nos contratando, se é um padre ou um
estuprador. Se nos pedem uma garota de companhia, nós
arrumamos para ele. Se o filho mimado está dando problema dentro
de casa, nós o educamos...
— Tudo bem, já entendi. — A interrompi porque achei que fosse
vomitar se ela continuasse.
Ela riu da minha debilidade. Os convidados vestidos de branco,
era pra que? Para purificarem a alma apodrecida? Há muitas formas
de morrer, cabelo de fogo. Agora eu entendia o conceito de morte de
Damon. Ele era o único que usava preto diariamente porque ele
considerava que sua alma já estava morta...Se essa fosse a
verdadeira razão, então o sujeito tinha alguma decência.
— Esse lugar não é para você, bonequinha ruiva. Devia ir
embora.
— Acha que não quero? — rebati.
— Se me ajudar, eu posso ajudá-la — disse em um timbre
metálico.
Segurei a taça com mais força. O zunido de notas sibilantes deu
início à uma nova música.
— Eu não sei o que de mais nojento e doloroso que ter minhas
entranhas devoradas por lobos eu poderia usar para descrever o
quanto eu a desprezo. Como pode achar que eu a ajudaria?
— Eu ainda não disse o que tenho para você. — Em seu rosto
ficou apenas um pálido sorriso.
— Não importa. A minha resposta continuará sendo a mesma.
Alastor e eu não precisamos da sua ajuda para encontrar a menina.
— Você não entendeu nada, garota burra? Vocês nunca
encontrarão essa menina! — Sua voz foi como um tapa em meu
ouvido. Tudo oscilou. A revelação me extinguiu de surpresa.
— Como é?
— A filha de Dionísio está morta há mais de um mês. Toda essa
história foi uma invenção.
— Que droga está me dizendo Iolanda!?
O que me ardeu, não foi o álcool que enfiei de uma vez na
garganta. Foi uma amargura espinhosa que eu colhi por 23 anos
durante meu caminho. Eu senti o gosto de cada crueldade, injustiça
e morte.
Ela riu, quase meiga, apesar do olhar bacante. O brilho era
fugaz e cintilava na penumbra.
— Acha que isso aqui é uma festa por causa da porra do dia do
"não"? Se acreditam nisso, você e Alastor são mais imbecis do que
eu pensava. — O tapa na orelha foi substituído por um soco no
estômago. Ela passou o braço por cima dos meus ombros e nossos
olhos transitaram entre os convidados. Sua voz de repente
agudeceu. — Está vendo toda essa gente, bonequinha ruiva? Eles
estão aqui para receber o novo membro da Sociedade Érebos. E
sabe quem é? Seu querido Alastor.
Lágrimas quentes queimaram nos meus olhos e caíram
salgadas por dentro de ocultas feridas. O ar à minha volta, de
repente, desapareceu. Queria acreditar que tudo não passava de um
engano de Iolanda, mas ela não me parecia ser do tipo que se
enganava.
Indefesa. Minhas pernas foi a primeira parte do meu corpo a me
abandonar, cambaleei. Depois, as mãos que seguravam a taça. A
deixei cair, explicitando minha vulnerabilidade para os cães e
deixando comestível o meu coração.
— Você só pode estar louca. — Consegui dizer, desolada e
aflita. A voz mais lânguida possível.
— Geralmente são os homens que me dizem esse tipo de coisa.
— Foi um ensaio de brincadeira. Eu não ri.
Passei a mão pelo pescoço para me certificar de que que não
havia uma corda em torno dele. Eu ia recuar para o fundo do jardim
onde as vozes mal chegavam quando trombei nele.
— O que disse para assustá-la a ponto de ela querer fugir?
Iolanda deu de ombro.
— A verdade.
— Você acabou de estragar meu jogo. — Damon rosnou para
ela.
— Como eu ia adivinhar que você estava brincando de gato e
rato com a garota? — Ela rebateu.
— Eu pretendia dar o remate apropriado — desprezou de modo
rígido.
Encarei ambos, hostil, com tempestade de medo nos olhos e o
sangue a ferver nas veias.
— Será que dá para os dois calarem a boca!? — O grunhido
arranhou minha garganta, poupando um grito desesperado. — Não
sou o brinquedinho de nenhum de vocês.
Iolanda ergueu sua taça para mim e disse:
— Nossa conversa ainda não acabou, bonequinha ruiva, mas eu
prefiro conversar sem ter uma plateia. — E me deixou sozinha com
aquela figura desprezível e corpulenta.
— Beba. — Me estendeu sua taça, com o desenho de um
sorriso nos lábios.
— Prefiro morrer desidratada a compartilhar da sua bebida.
— O meu bom humor não é contagioso, não se preocupe. —
Um divertimento esplendor cobriu sua face.
— Eu sei quem você é e o que faz — admiti, irada. Eu devia tê-
lo deixado sozinho e ido procurar por Nick, mas, pensei, talvez
Damon me fornecesse deliberadamente mais alguma informação
importante. Não custava arriscar.
— Quem eu sou e o que faço? — A mudança na sua feição foi
repentina.
— Você é o mensageiro de Dionísio. Você mata aqueles que
falham em uma missão. — O fitei, na tentativa de atravessar a
sombra impenetrável dos seus olhos. Fui arremessada em velhas
ruínas sob um céu apagado.
— Que grande descoberta — respondeu, entediado e cansado.
Deu um longo gole na sua bebida. — Eu também descobri algo
sobre você, cabelo de fogo. — Me preparei para o pior. — Você está
sem calcinha.
Arregalei os olhos e depois os estreitei. Era inútil falar com
Damon. Ele usava de todas artimanhas para desviar o assunto
principal. Sempre que algo sujo saía da sua boca, era para tentar me
distrair, sem que eu percebesse. Eu não era burra, era lerda, mas
não burra.
— Eu não sei porque ainda converso com você.
— Porque é a regra elementar do destino.
Suspirei impaciente e procurei pelo rosto de Nick entre os
convidados. Não. Não. Meu coração se desesperou. Ele não estava
onde eu o vira pela última vez.
— Eles entraram — atentou Damon, sempre me observando. —
E se eu fosse você, não os interromperia.
Fechei a cara.
— Se você fosse eu, Damon, certamente não seria um idiota.
Por que não aproveita a festa junto com seus amigos e para de me
seguir!?
Ele entregou sua taça à um garçom e enfiou as mãos nos bolsos
da calça, despreocupadamente. Damon era frio e não se abalaria
com uma simples garota emburrada.
— É o meu trabalho ficar de olho em você e me certificar de que
não fará uma tolice.
— O quê?
— Eu sei que era uma ladra em terras escocesas.
Cruzei os braços e cerrei o cenho. Minha raiva queimou na
língua e me explodiu.
— Acham que eu vou roubá-los? — gritei, alto o bastante para
fazer Damon olhar ao redor. — Eu não to nem aí para as coisas de
vocês. Por mim poderia cair um meteoro em tudo isso.
— Finalmente concordamos em algo. — Ele falou, para minha
surpresa.
De que lado ele estava, afinal?
Massageei as têmporas. Me recompor. Eu tinha que me
recompor e começar a pensar. Nick e eu tínhamos um grande
problema, onde a única certeza era de que os gregos nos
transformariam em criminosos ou...Espera. Não foi bem isso que
Iolanda me dissera. A Sociedade Érebos tinha planos para Alastor,
não para mim. Que raios fariam comigo?
Se o corvo era o mensageiro da morte, então se eu fosse
assassinada, seria por suas mãos. Era por isso que ele me seguia
feito uma sombra? Para conhecer sua vítima?
Minha boca se amargou como se eu tivesse comido cinzas. Virei
para o lado e vomitei. Duas vezes.
— Você até que suportou bastante. Esperava que fosse vomitar
na sua primeira noite aqui. — Ele tirou um lenço preto do seu bolso e
me entregou. O peguei abruptamente e me limpei.
— Como sabe que não vomitei?
Amassei o lenço e o lancei na lixeira mais próxima.
— Não sabia. Foi um palpite. — Ele respondeu.
Revirei os olhos e ergui meu vestido antes de começar a andar...
Andar, não, correr. Logo que vi a silhueta de Nick retornar ao jardim
eu fui em sua direção. Diminuí o ritmo assim que Dionísio e o outro
senhor surgiram logo atrás. Meus pelos enrijeceram quando os três
me notaram. Para a minha sorte, foi necessário apenas uma troca de
olhares com Nick para ele vir ao meu encontro.
— Precisamos conversar — disparei, e pelo canto dos olhos vi o
corvo se juntar aos seus mestres. — Agora.

Lavei minha boca antes de mais nada. Ao retornar do banheiro,


detalhei toda minha conversa com Iolanda para Nick que me
aguardava sentado na poltrona que Damon costumava ocupar. A
minha surpresa, foi por ele não ter ficado surpreso com o relato. Na
minha cabeça, o macho ia socar paredes e móveis. Ia agir feito um
animal. Mas a fúria de Alastor estava contida. A única surtada, era
eu. A única prestes a se jogar pela janela, era eu.
— Você sabia — concluí em um suspiro esmagado.
— Não. Eu não sabia — assegurou. — Mas, eu desconfiava de
algo.
— Por que não me contou!?
Ele cruzou as pernas.
— Eu não queria preocupá-la. Não sem ter certeza.
Andei de um lado para o outro.
— Da para me dizer o porquê de estar tão calmo enquanto eu
estou prestes a derrubar as paredes?
A sombra de um sorriso perfeito surgiu em seus lábios. Lábios
causadores de orgasmo. Lábios dignos de... Pelos deuses. Pare com
isso, Maisie.
— Porque estamos em vantagem aqui, garota. Nós sabemos a
intenção deles, agora vamos fazê-los de bobos.
— Nick, eles querem que você se torne um membro de Érebos e
estão com sua filha como garantia de que você não recusará. —
Meus batimentos cardíacos ficaram violentos. — E tem eu. O que
farão comigo?
Ele se levantou e me imobilizou pelos ombros.
— Não acontecerá nada com você.
— Como pode ter certeza? Aquele maldito corvo me segue o
tempo todo...
Cravou seus olhos em mim. Eles estavam agitados como uma
correnteza.
— Eu cuidarei dele e arrancarei as mãos de todos que ousarem
tocar em você. — E suas palavras foram como um colete salva-vidas
para eu não me afogar.
— Nick — solucei. — E se não houver qualquer outra saída a
não ser você ficar?
Como eu diria aquilo? Como eu diria que estava com um medo
danado de perdê-lo para aquela sociedade terrível? Como eu diria
que eu não o deixaria para trás, mesmo que isso custasse a minha
vida? Que eu queria protegê-lo da mesma forma que ele sempre fez
comigo?
Ele segurou meu rosto com suas mãos cálidas e ásperas.
— Maisie, minha doce garota, você só precisa saber de duas
coisas fundamentais. — A voz foi ficando baixa e a temperatura,
quente. Havia casaco melhor que a chama de Nick Coleman? — A
primeira, é que eu sempre encontro uma saída. E a segunda, é que
eu não tenho piedade de quem mexe com as minhas garotas.
— Sua garota? — Provoquei, afervorada, para vê-lo
atormentado. — Talvez eu seja sua. Talvez não.
Ele levantou os olhos e eu vi um céu opaco. Alvo como a neve.
Todos os medos foram congelados no buraco mais fundo da
caverna.
— Você gosta de brincar comigo, não gosta?
— É um dos meus passatempos favoritos.
— Eu também tenho um. Sabe qual é? — Ele me soltou, foi até
a porta e a trancou. — Pensar em como seria estar dentro de você.
O que acha disso?
— Depende, quem me pergunta: Alastor ou Nicholas?
Ele tirou os sapatos com os pés e os jogou longe.
— Por que não se aproxima para que eu diga em seu ouvido?
Meus pés foram, minha coragem, ficou.
— Me dê suas mãos. — Ele pediu, ainda que estivesse
acostumado a pegá-las o tempo todo. As estendi. — Me controlar
para não a jogar nessa cama é tão desesperador quanto ficar de
joelhos para você. — Ele direcionou minhas mãos para os botões da
sua camisa. Eu compreendi o que era para ser feito. — Quer me
conhecer de verdade, Maisie? Então comece a desabotoar, devagar.
— Conhecê-lo de verdade? — perguntei, atordoada.
— Abra dois botões — ordenou, como se aquilo fosse um jogo
de tabuleiro. Eu o fiz e tive um vislumbre melhor do seu peito. Nick
pegou minha mão e passou meus dedos lentamente em uma cicatriz
profunda na sua costela. — Isso foi o que ganhei da minha primeira
vítima. Ele enfiou um objeto de prata em mim enquanto eu o
estrangulava. Eu estava tão furioso que só senti a dor depois que ele
já tinha parado de respirar. Abra mais um botão.
Meus dedos frios obedeceram. Ele direcionou minha mão para
perto da sua virilha, onde uma pequena protuberância me alarmou.
— Isso, foi quando um cão enorme me atacou após eu
assassinar seu dono com um disparo na cabeça. Eu encarei o
homem por uma hora seguida para ter certeza de que ele havia
morrido, ainda que soubesse que um disparo daquele seria fatal. A
outra marca você precisará arrancar minha camisa para ver. Elas
estão nos meus braços e se você não olhar atentamente, não verá.
Nick me ajudou a desnudá-lo. Um corpo misericordioso, belo, de
músculos proeminentes e pelos dourados pela barriga. Eu só
conseguia pensar em orações enquanto encarava aqueles
gominhos.
Ele esticou os braços onde veias apareciam e nos bíceps
estavam as microscópicas marquinhas que ele queria que eu desse
atenção.
— Essas foram feitas por Athos. As cordas não estavam
apertadas a ponto de me machucar, mas, quanto mais eu me debatia
tentando me libertar, mais eu me feria. Até criar cicatrizes eternas. —
Ele retesou os lábios e suspirou. — Esses foram meus momentos de
vulnerabilidade, às vezes em que me permiti ser machucado. Então,
a próxima vez que você disser que não é minha, saiba que está me
deixando com uma cicatriz muito mais profunda que qualquer uma
dessas.
Ergui a sobrancelha em espanto.
— Estou?
Curvas de um sorriso doce e misterioso se formaram em seu
rosto.
— Porque eu a amo e não há uma forma disso acabar bem para
mim se disser que não sou digno de tê-la. — Ele encurtou nossa
distância em passos duros e segurou meu queixo para me obrigar a
encará-lo. — Isso é você me deixando de joelhos, garota. Agora, me
diga, como se sente por saber disso?
Eu senti minhas mãos tremerem e eu mal podia respirar. Eu não
aguento. Não aguento. Meu coração parou de bater. Ele sorriu e, por
culpa daqueles olhos onde eu via milhares de estrelas cadentes, teve
tudo de mim.
— Você disse que me ama? — A tentativa de não gaguejar,
quase me fez titubear.
— Disse. Você me fez dizer, Maisie, porque você surgiu como a
mais sutil onda e derrubou todas minhas barreiras como se eu
tivesse construído meu alicerce sobre um castelo de areia. Isso me
agarrou, me consumiu. Não é como se eu pudesse fugir ou
simplesmente fingir que não exista.
— Eu sinto que está tentando me tirar do chão e me matar.
— Quero tirar muitas coisas de você, garota. Principalmente as
que estão em seu corpo. Mas, hoje é você quem está no controle de
tudo aqui.
Eu queria dizer que eu sentia o mesmo por ele. Que meu amor
era dele e de mais ninguém, só que eu não queria que fosse dessa
forma, não queria que ele pensasse que o fato dele dizer me obrigou
a fazer o mesmo. E Nick pareceu não esperar ser correspondido
naquela noite. Ele era um homem maduro e confiante ou talvez até
meu cheiro já tivesse me entregado.
— Por que não termina o que já começou? Eu já estou sem
camisa, agora, tire o resto.
— Sua calça? — A pergunta tola escapou.
Ele confirmou com um aceno de cabeça. Então, ergueu a
sobrancelha num tipo poderoso.
— A não ser que não queira. Temos todo o tempo do mundo,
garota.
Eu quero. Claro que quero. Eu queria Nick Coleman o tanto que
quis aqueles deliciosos pães doces. Eu o queria tanto, que os meus
sonhos normalmente tinham sido sobre seu corpo nu sobre o meu.
Os olhos me fitaram, deixando-me despida.
No lugar de uma resposta verbal, eu optei por ação. Nick levou
as mãos para atrás das costas para facilitar meu trabalho. Corrigiu a
postura, os ombros largos cobriram toda a minha visão do que existia
lá atrás. Absorvi o seu aroma que aflorou os meus sentidos e fez
meus dedos tremerem no botão da sua calça. Um jogo de sedução
num misto de ações comedidas.
Ele, com um sorriso maroto, me disse:
— Não tenha pressa.
Eu, como a ousada que era, me pronunciei:
— Está com medo, Nicholas Coleman?
— Medo? Não. Comportado. Quero que você faça isso na sua
velocidade.
Me coloquei nas pontas dos pés e, fitando-o nos olhos, beijei
docemente sua boca, depois chupei seu lábio inferior como se fosse
uma manga. Eu queria falar, mas não conseguia, enquanto ele
beijava lentamente da orelha ao meu pescoço. Havia um desejo
reprimido na sua língua, ardia.
Quando a coragem me veio, baixei sua calça, roçando a ponta
dos dedos nos pelos das suas coxas. Ele passou uma perna pelo
buraco, depois, a outra.
— Se essa é minha velocidade, qual a sua? — perguntei,
maliciosa. Agachada, com o queixo erguido e os olhos cravados nos
seus.
Ele agarrou meu braço e me ergueu.
— Não fique nessa posição, ela é um pouco demais para mim.
— Me virou rapidamente, segurou meu pescoço com dedos fortes,
quentes, e me beijou com uma fome sem limites. Ele me prendeu
contra a parede com sua carga corporal, juntou seus pés do lado de
fora dos meus e, com a mão esquerda, imobilizou meu braço
esquerdo. Com a direita, o braço direito. Imóvel. Fiquei
completamente imóvel. Nick Coleman não precisava de algemas.
Seu modo selvagem já era o bastante para me deixar enjaulada.
— Se quiser que eu pare, diga. Ou me empurre. Entendeu? —
Cochichou em meu ouvido, após morder meu ombro.
Encostei a testa na parede e gemi em concordância. O meu
traseiro encostou em seu membro rígido. Membro? Os arrojados de
emoções que ele estava me fazendo sentir me deixava mais
promíscua que isso. Nicholas Coleman não tinha um membro rígido,
ele tinha um pau e muito duro colado na minha bunda.
— Tudo bem, Maisie. Será um prazer fodê-la. — Ao me libertar,
ele abriu o fecho do meu vestido numa arte de agressivo prazeroso.
No solo do quarto, ficou as nossas peças de roupa e sapatos.
— Prazer maior será recebê-lo. — O fiz rir, com os dentes em
minha nuca.
Com a palma da mão, cuidando para que os cinco dedos
estivessem em contato com a minha pele, ele deslizou dos meus
seios para a minha boceta, transformando meu corpo em um mapa
do prazer, mas não os penetrou. O que ganhei foi um tapa abusado,
extremamente emocionante e excitante. O efeito? Me deixar ainda
mais molhada.
— O que acha de um beijo grego, chick?
Beijo grego?
Eu não sabia o que era, mas seu tom de voz firme e forte
despertou em mim instintos naturais que não podiam ser impedidos.
— Apenas me mostre — sussurrei.
A boca, atrevida, suja e pervertida que começou me lambuzando
e chupando com beijos quentes e explosivos todas minhas partes, foi
descendo pelas costas. E mais. Sua língua quente deslizou por
minha espinha. Suas mãos seguraram numa pegada mais forte a
minha cintura e Nick me puxou para ele.
Dentes mordiscaram minha bunda e, para o fim da minha
sanidade, sua língua me invadiu por trás. Me lambeu e acariciou meu
traseiro em movimentos circulares, lentos e leves.
Eu vi estrelas. Um sucessivo estrelar transcendental. Respirei
longamente de forma relaxada antes de gemer seu nome, enquanto
ele abusava impiedosamente de mim.
— Vire-se — ordenou, ao terminar a sessão de tortura.
Ou não.
Meio atordoada, o obedeci. Ajoelhado, o macho de grandes
olhos azuis, de brilho inigualável, de misto de desafio, medo e prazer,
me fitou. Fui levada ao delírio.
— Posso te beijar todinha, Maisie? — Ele perguntou com a voz
rouca. Engano o meu achar que ele estava pedindo permissão. Sua
pergunta nada mais era que uma brincadeira perigosa com a minha
mente.
— Faça o que quiser comigo — falei.
Seus olhos infernais me sorriram.
— Você acabou de me presentear com várias opções
prazerosas — disse, sacana. Não tinha como eu não soltar faísca e
me incendiar com um diabo daqueles.
Minhas pernas tremeram, quando a pressão destruidora dos
seus dedos segurou minhas coxas e ele deu uma mordidinha na
parte interna delas. Meus poros explodiram.
— Me olhe nos olhos — falou, autoritário. — Agora, pegue
minha mão e me leve até você.
Quando peguei sua mão, áspera e calorosa, senti que dera um
passo dentro do verdadeiro inferno de Alastor. Ele estava tentando
se conter, era visível que se controlava para tornar a minha primeira
vez o mais agradável possível.
Tentei levá-lo até meu sexo, mas ele não cedeu.
— Não tão rápido, garota. Seu corpo é extraordinário demais
para não aproveitarmos cada pedacinho dele. Me guie por suas
curvas. Seus seios, quero que leve meus dedos até eles... — Senti a
ponta dos seus dedos no meu pescoço, descendo até meus seios. —
Isso, aperte. Do seu jeito, no seu ritmo, onde você gosta.
Sua voz percorreu minhas veias e se apoderou de mim, eu
apenas o obedeci. O obedeci. Entrelacei meus dedos nos seus em
volta do meu mamilo. Arfei. Me contorci.
Prosseguindo, por minha costela.
Prosseguindo, por minha barriga.
Minha respiração afogou. Meus tambores cardíacos rugiam
como leões. Todo meu ar quente gritou por Nick, quando seus três
dedos penetraram intensamente e fugaz o meu esconderijo
escorregadio.
Entrando e saindo.
Meu corpo entrou em convulsão, mesclado com meus gritos,
suspiros e sussurros num calor que se entranhava e me possuía.
— Eu adoro saber que a deixo tão lambuzada.
Agarrei seus cabelos com a mão que não o ajudava a me
masturbar.
— Me diga o que quer, garota. Quero ouvi-la pedir por isso.
A palavra engasgou na minha boca. Ardi em seus dedos como
numa poça de fogo. Ele os movimentou dentro de mim. Meus dedos
unidos aos seus, entrando e saindo, lentamente.
Fitei o brilho candente do seu olhar.
— Estou ansioso para te ver gritar.
Puxei seus cabelos com mais força. O suor salgado das minhas
costas escorria pela parede.
— Eu quero você, Nick. O quero agora. — Me rendi, embriagada
de êxtase, afundada num mar de emoção.
Suor escorreu por meu ventre.
Nossos dedos me atravessaram outra vez. Mais um gemido. Um
grito. Mordi meu lábio na tentativa vã de me controlar.
— Bem fundo? — O desgraçado perguntou.
Concordei com a cabeça, no leito da loucura. Ele tirou seus
dedos do meu sexo e passou a língua pelo meu abdômen antes de ir
direto para a cereja do bolo. Me chupou, seguindo a velocidade dos
meus gemidos, com movimentos nem tão rápidos, nem devagar.
Quando lento, gostoso e íntimo, mais acelerado era excitante e
selvagem.
— Você está trêmula. Acho que posso ser piedoso com você,
garota, e continuar essa pequena tortura na cama. — Sua voz era
oca, rude.
Nick me ergueu em seu colo e me levou para a cama, onde a
obscenidade continuou. Abri as pernas como quem abre uma janela
e deixei o macho se encaixar por cima de mim. O peso do seu corpo
e o calor da sua pele, recebi com brio e de braços e coxas abertas.
Sorvei o punhado de aroma masculino esparso ao vento em goles
profundos que não me bastavam. Dentro de mim, os desejos se
diluíam, a saliva me embriagava como se fosse conhaque. Os
espasmos uivam na minha garganta.
Ele se inclinou e roçou sua barba em meu torso nu, até que seus
lábios chegaram aos meus e cobriram meu arfar. Perdi minhas mãos
por suas costas como uma egoísta que acha que possui estrelas.
Seu pau ficou mais duro ao encostar em mim e me tocou em ritmo
discreto, brando, como quem bate à porta. Mas eu já estava mais
que escancarada para recebê-lo.
— Está pronta para mim, chick? — Perguntou, me beijando, me
lambendo. Os seios, a nuca, o colo. Cada toque absorvendo meus
limites.
Descansei um gemido desavergonhado na boca, pois sabia que
ainda aquela noite eu repetiria o mesmo som de modos diversos.
— Pronta. — A eficácia mecânica das emoções me fez provar a
minha ousadia.
Ele fitou meus olhos ardentes.
— Minha doce garota, que veste as mais singelas sardas por
todo o corpo — as palavras me beijaram como se tivessem boca —,
quero tornar isso muito bom para você, por isso quero que me diga
quando devo parar e continuar. Está bem?
— Sim.
Ele passou os dedos em carícia por meu rosto como se eu fosse
feita de renda. Meu coração ardeu. Havia ilhas, oceanos, o mais puro
fogo dos céus, meu Mundo em seus olhos, e eu caminhei por eles
acompanhando sua luz.
— Se há algo mais belo que você, suas curvas, coxas e o aroma
do seu corpo, o Universo guarda em algum lugar oculto. Meu cravo
vermelho, que foi pintada com pincéis delicados. — Ele me deu um
beijo na testa e se levantou. Foi até sua calça e pegou algo do bolso.
Me sentei na cama e encarei aquela divindade em pé. Seu torso
tinha a mais bela e nítida esquadria que faria eu me render de
joelhos. A beleza dum corpo de guerreiro. Nick foi baixando sua
cueca para acabar com a embalante imaginação da minha frágil e
destemida inocência. Me acovardei diante uma certa montanha. No
mármore rebelde do seu rosto nasceu um sorriso, como se ele fosse
um herói com sua espada.
— Agora entendo porque as fêmeas gritam na hora do coito. —
Minha voz teve a eloquência de um grito evanescente. Não encontrei
uma prece altamente expressiva para me fazer não temer aquilo que
Nick pretendia colocar em mim.
Um raio de luz atravessou o infinito dos seus olhos risonhos.
— Isso foi uma tentativa de elogio? — Ele questionou, já
completamente nu.
— Isso sou eu querendo dizer que eu teria que ser um túnel
para você caber em mim.
Ele jogou a cabeça para trás e soltou um riso vagabundo. Eu
fiquei entre melindre e receio.
— Ah, Maisie. — Meu nome se iluminou ao som da sua voz. —
Você não existe. Eu serei gentil com sua castidade. Eu sou o mar, e
você, o vento. É você quem controla o ritmo das ondas.
— Você costuma gostar de ondas violentas, não? — Perguntei
para descontrair.
O remanso dos seus passos foi esculpindo os degraus da minha
imaginação. Ele subiu no colchão e se aproximou de mim como uma
fera que encontrou a comida que precisava.
Eu o olhei.
Contemplei.
Havia bonde em seus olhos, mas também havia fome. Muita
fome.
— Hoje eu gosto do que você gosta. Mas — passou a língua por
meu lábio —, minhas impiedosas intenções e meus sonhos cruéis,
adorariam dar uns tapas na sua bunda.
Meu peito afugentou os medos bem rudemente. Tornei a deitar
na cama e Nick deitou sobre mim. Seu pau era como uma bússola
sendo atraída para o meu Norte. Eu o senti acariciar minha boceta
ensopada e abrir meus lábios maiores — duro, mas gentil. Voraz e
surpreendente.
Enrijeci a coluna e me contorci de delírio, encostando meu peito
no seu. Me derreti, sentindo uma gota de suor desesperada escorrer
por minhas pernas. Eu fui de fogo, à lava.
— Aaahhh — gemi.
— Gosta de quando encosto assim em você? — Seu murmúrio
embargado chegou ao meu ouvido, o hálito parecia vapor. Se
esfregando em mim outra vez com um movimento dos quadris, e
mordeu o lóbulo da minha orelha. — Se por fora é deliciosa assim,
imagino como deve por dentro. Você não faz ideia de como estou
controlando o apetite que tenho de você.
Me perguntei se eu devia fazer algo para ajudá-lo. Se ele
encontraria sozinho o caminho até dentro de mim, ou se eu devia
segurá-lo e levá-lo até lá.
Bem, mostrei meu interesse e envolvi meus cinco dedos em seu
pau. Foi como segurar uma vela grossa e prestes a derreter. Nick
urrou em meu ouvido e mordeu meu pescoço a ponto de deixar
marca.
— Maisie. Maisie. Está tentando me matar? — Perguntou,
rangendo os dentes até quase esmagá-los numa luxúria febril. Os
músculos hercúleos de um braço passaram por minhas costas e ele
me ergueu de encontro a ele numa teima exigente e
perturbante. Ficamos colados um no outro.
No delírio da gula, calou minha boca na fúria dos seus beijos.
Passeou sua língua pela minha em um querer quase doloroso, como
se me quisesse viva nas suas veias.
O quarto inteiro cheirava a prazer. E eu nunca imaginei que o
cheiro do suor dos nossos corpos em erupção fosse tão bom.
— Me avise quando for me tocar outra vez, porque foi por muito
pouco que eu não me enfiei dentro de você sem proteção!
— Eu estava tentando ser gentil — balbuciei, provocativa.
— Pelo amor de Deus, ruiva desgraçada. Abra essas pernas
para mim agora mesmo!
Eu me abri ainda mais e agarrei seus quadris com as minhas
pernas, seguindo meus perversos instintos.
— Você é uma perdição. O diabo deve se curvar quando você
passa, garota.
— Se o diabo for bonito como você, talvez eu até sente no colo
dele — aticei.
Nick me deu um sorriso que fez tremer o chão e me fez lembrar
do quão gostoso foi ter sua língua lá embaixo.
— Se eu souber que você estará no inferno então prometo que
serei um bom pecador. Sexo com você será a minha penitência. —
Ele desceu a cabeça e sugou meu mamilo com fricção. Senti sua
respiração contra minha pele. E então me soltou e me encarou sem
demora. — Está pronta?
Desci os olhos por sua barriga até seu pau endurecido.
— Eu sempre estive pronta para você, Nick Coleman. Sou toda
sua, me use como quiser.
— Se quer me foder, faça isso com a boca — respondeu, sendo
abusado.
Com um par de olhos como aqueles em mim, com um corpo
como aquele decidido a me possuir, não existia nada que eu não
faria. Se Nicholas queria minha boca nele, ele teria, porque até as
coisas que eu julgara não querer, ele me provocava até me fazer
mudar de ideia.
Tudo o que você quiser.
— Sabe que nunca fiz isso, né? — Achei importante ressaltar
porque ele corria um grande risco de eu acidentalmente mordê-lo. Se
bem que Nick demonstrara ser do tipo que adorava mordidas.
Há, Maisie, você ainda tem que estudar sobre essa raça.
— Se quiser, eu te ensino. Garanto que sou um professor muito
paciente. Mas saiba que você tem a opção de recusar.
Aquele serzinho sabia como despertar meus desejos.
— Acha que sou uma mulher que foge de desafios, Sr.
Coleman? — Incitei.
— Acho que sou eu quem tenho muito que aprender com você,
garota. Espero que esteja disposta a me ensinar.
De submissa, passei para dominadora. Eu tinha um dos homens
mais temidos da Grécia em minhas mãos e não sabia como usar
essa arma tão mortal. Talvez seja como cuidar de um pasto. Pelos
deuses, aquilo ali que ele tinha entre as pernas de fato me lembrava
muito com um cavalo, afinal. As rédeas estão em minhas mãos.
Ah, Tess, como eu preciso de você agora. O sangue quente da
brasileira me levava a acreditar que ela conhecia de cor e salteado
aquele assunto.
Me verguei para a frente, audaz. Por Odin, eu que já enfrentei
tantos desafios, não seria vencida pela porra de um pau.
O peguei vagarosamente em minha mão. Imagine que seja uma
banana. Mas a banana de Nick é generosa demais. Chacoalhei a
cabeça. Toquei em minha memória: você já enfiou uma banana na
boca para fazer não ser tão ruim a sua primeira vez com um pau.
Seja delicada, dissera as mocinhas nos livros. O levei à minha boca
e fui o mais fundo que minha garganta permitiu, em movimentos
rápidos. Uma vozinha dentro de mim me mandava ser rápida e pelo
gemido de Nick mais alto que uma trovoada, soube que estava no
caminho certo. Por alguma razão, senti um baita sabor de abacaxi
em minha boca. Não completamente, tinha lá seu gostinho amargo,
mas em minha cabeça eu imaginava um gosto bem diferente. O fiz
com vontade, não era ruim e após o excelente trabalho da sua língua
entre minhas pernas, Nick se tornou merecedor.
Seus dez dedos foram em meus cabelos e os afagou num baile
erótico.
— Ah, Maisie, eu te amo. — Suas palavras irromperam meus
movimentos com a cabeça.
Sorri, ou quase isso. Era difícil fazer qualquer coisa com sua
montanha quase na minha garganta.
Ouvi outro acorde do seu gemido.
Que adorável saber o que um boquete faz. É como dar um doce
à uma criança.
Desci ainda mais fundo para descobrir meu limite. Eu era um
poço molhado, mas, bem, até um buraco tem seus confins. A terrível
vontade de tossir me obrigou a me afastar.
Meus olhos lacrimejaram para ele.
— Acho que meu pênis nunca fez uma mulher chorar. O que de
tão grave ele te disse? — Nick zombou, enxugando minha lágrima de
derrota com a ponta do dedo.
Meus lábios torceram-se em risos de sabor amargo, só não
antes de desferir um tapa em seu braço.
— Ele me pediu uma mordida e eu recusei. Mas acho que devo
reconsiderar — revidei e mostrei minhas presas.
— Às vezes ele é um sádico, contudo, saiba que você não
precisa obedecê-lo sempre. — A claridade que se deu em seus olhos
coloridos, não fez jus à depravação surdina que fugiu dos seus
lábios.
— Precisamos colocá-lo de castigo, não? — Encorajei. Eu
voluntariamente abandonei meu trono de inocência e me entreguei
em mãos viris e brutas.
Nick se debruçou e deu um beijo em meu ombro esquerdo.
Depois, ainda mais delicado, foi em minha cicatriz antes de erguer
suas pálpebras para mim. Seus olhos foram de azul egípcio para um
damasco roxo.
— Deixe as punições por minha conta. — Seu corpo gracioso
brilhou de suor.
O calor suavemente subiu por meus dedos dos pés, rastejando
por minhas pernas, até me atingir subitamente mais fundo.
Os cílios longos, feito asas de uma garça, baixaram. Ele tateou
pelo lençol em busca do preservativo e o abriu com os dentes.
Éramos uma fogueira que a brisa que batia à janela não era capaz
de apagar.
Acompanhei imóvel cada um de seus movimentos e quando ele
já estava protegido, me disse:
— Feche os olhos e imagine que está no seu lugar preferido,
com suas botas ridículas que você tanto gosta. — Sua voz
hipnotizante adormeceu meu pensamento e eu segui suas
instruções. — Imagine que há uma luz matinal, a minha preferida
desde que eu conheci você. O som das ondas é tão baixo quanto os
rugidos do vento. Você se deita sobre a areia macia e eu me deito
sobre você.
O quarto se tornou plácido e o cheiro ilusório de maresia foi
divino. Me deitei sobre o colchão com as ondas cantando em meus
ouvidos e Nick, com o insaciável desejo a devorá-lo, se deitou por
cima.
Mas, espere.
Abri os olhos e falei antes que ele pudesse queixar-se.
— Eu não preciso fantasiar, Nick. Não preciso estar em uma
praia sob um sol inexorável, ou em qualquer outro lugar repleto de
lírios, eu só preciso estar com você para que isso se torne meu
paraíso. — Uma luz ardente e magnética se alastrou em seu rosto,
abafando toda a existência da terra e do céu, só minha voz ocupava
o quarto escuro de paredes imprecisamente brancas. — Tha gaol
agam ort.
— Que diabos isso significa? — Arqueou com perfeição uma
sobrancelha.
— Acabei de dizer que te amo, seu bruto — falei entre
gargalhadas de me contorcer.
Ele pasmou e me beijou profundamente. Ainda em meus lábios,
o senti sorrir com os cantos da boca.
— Minha pequena ladra escocesa, por que demorou tanto para
roubar aqueles pães?
Envolvi seus quadris com as pernas feito uma serpente e o
segurei, me descabelando em júbilo dos nossos saudosos e íntimos
devaneios. Minha alma elevou-se em êxtase. Era óbvio que Nick
estava tentando me deixar menos nervosa antes de desfolhar minha
rosa.
— Está com medo de se perder na minha profundeza, Nick
Coleman? — Perguntei, remontando o meu espírito provocador.
Ele reclinou o corpo sobre o meu e semicerrou os olhos.
— Confesso que não seria uma pena não encontrar o caminho
de volta, chick. — Passou a língua por minhas clavículas. — Relaxe
e se estiver ruim me avise.
Ele, com amor e singeleza, esperou eu assentir para penetrar
em mim, devagar, paciente e gentil. Até minha alma se abriria para
recebê-lo.
De todas as sensações da minha vida, aquela foi, de longe, a
mais estranha. Era como tentar encaixar um quadrado dentro de um
círculo. O estranho passou a ser doloroso, porém, suportável.
Eu devia ter franzido a testa, porque Nick parou. Ficou estático.
— Eu pensei que isso fosse melhor — comentei, pois eu
confiava nele o bastante para ser sincera.
Ele sorriu com doçura.
— Ficará bom nas outras vezes, prometo.
Não sei se será algo que farei com frequência.
— Quer que eu pare?
— Não — disse, decidida. Eu acreditava que aquilo podia
melhorar.
Ele entrou mais um pouco e eu me perguntei se estava longe do
ponto de chegada. A minha expressão devia ser a da
mais...esquisita, porque o sujeito não parava de me analisar.
— Me deixe tentar uma coisa. — Ele falou e foi com uma mão
em meu sexo, sem tirar seu pau. Eu não imaginava como.... Ahhh.
Raios!
Meu corpo inteiro se arrepiou quando Nick massageou meus
lábios com os dedos. Eu dei um passo enorme na plataforma da
loucura.
Gemi alto.
— Esse era o grito que eu esperava ouvir — murmurou. Ele me
penetrou mais fundo, conforme seus dedos cumpriam uma tarefa
muito importante para o meu prazer.
De repente, torci para que o ponto de chegada estivesse longe e
que aquela noite fosse a mais longa de todas que já existiu na
história.
Sexo era bom. Sexo era divino. Sexo...
O que seus dedinhos sem-vergonha estavam fazendo comigo,
era mágico.
Agarrei suas costas com unhadas cruéis.
— Me desculpe — sussurrei, por achar que o machucara.
— Que isso. O faça novamente. — O descarado pediu.
E eu o fiz, o arranhei sem dó, quando senti minha castidade ser
corrompida. Nick cravou sua espada em mim e ser golpeada nunca
foi tão misericordiosamente delicioso.
— Tudo bem? — Ele me fitou ao perguntar, se movimentando
devagar.
Em resposta, arfei, sentindo seu poder crescer dentro de mim.
Me enchendo, até me fazer transbordar.
— Acho que alguém gozou, não é mesmo? — Balbuciou e se
movimentou com mais exigência, beijando meu pescoço com lábios
tão molhados quanto os meus entre as pernas — A proposta sobre
me perder dentro de você ainda está de pé?
Suspirei e puxei seu corpo aquecido para mais perto. Eu o
desejava desesperadamente e cada vez mais. Uma obsessão sem
limites. Um querer desigual.
— Tudo o que quiser — respondi, sem pudor, elétrica e nervosa.
Ele me penetrou com paixão. O ritmo foi se intensificando, um
degrau por vez para não ultrapassar meus limites. Mas, àquela
altura, eu mesma já não sabia se tinha algum.
Eu não era a única que afogara a cabeça na banheira da luxúria.
Nick também gemia ao meu ouvido.
— Tão apertada. Tão quente. Tão melhor do que eu imaginava.
E com ferocidade enfiou a língua na minha boca, trançando a
minha na sua.
As costas largas e de pele macia do macho se tornara meu
território. Eu o marcara com afinco para torná-lo meu. O arranhei
sem piedade.
— Devo prolongar isso!? — Perguntou, o breu nos olhos de
quem passaria dias me fodendo sem problema algum.
Então sou eu quem controlo?
— Quero o que você quiser. — Saí pela tangente.
Ele arqueou a sobrancelha.
— Você não ajuda, sabia? Não sei se planeja ser tão
provocadora ou se o faz por pura inocência.
— Um pouco dos dois — confessei e me mexi porque começava
a sentir câimbra na perna.
Nick ofegou alto, até pensei que o havia ferido. Petrifiquei.
— Não se mexa — ordenou e fechou os olhos. — Se você se
mexer, eu irei gozar.
O controle era todo meu, soube então. E, bem, Nick fora muito
malvado comigo durante dias. Brincando e sendo desumano com o
meu desejo. E eu era uma escocesa, adorava entrar em uma
guerra... Em algum país, meu nome devia significar “vingança”.
— Não devo fazer assim, então? — Fomentei e movi os quadris
morosamente, em direção ao colchão, fazendo com que seu pau
deslizasse pra fora de mim. Depois, o fiz entrar novamente.
Pra baixo e pra cima. Dentro e fora. Provocá-lo se tornara um
vício inextinguível.
— Maisie! — Grunhiu vaporoso e afagou meu cabelo com força.
Apertou os olhos, mergulhando em um abismo silencioso. Eu
adorava seu jeito selvagem. Nick combinava com os homens que
vestiam kilts. Não só isso, ele merecia aquela saia.
Mas, algo aconteceu. Ele se avolumou dentro de mim, eu o senti
pulsar drasticamente. Cheguei a pensar que não suportaria e que o
pediria para parar, até que Nick relaxou os ombros e se despejou
dentro de mim num alívio sem igual.
Quando a tocha por fim foi apagada, ele tombou. O peso do seu
corpo não me incomodou, pelo contrário. Foi bom tê-lo tão aninhado
— feroz, solitário e mudo.
— Meu deus, seu coração...Você está bem? — Soou perpétuo e
com um lento toque de maldade.
— Estou bem, mas você terá que se esforçar da próxima vez —
brinquei, bagunçando seus cabelos.
Ele mordiscou meu mamilo e rolou para o lado na cama. Tirou o
preservativo e o colocou na embalagem.
— Não se engane, chick. Da próxima vez você terá que pedir
ajuda para me tirar de você. — Os instantes dos seus olhos inertes
em mim foram eternos. Ele deitou a cabeça no travesseiro e
acariciou minha bochecha rubra. Sempre rubra. — Você está bem,
mesmo?
Passei a mão pela barriga. Eu não me sentia intacta, inviolada,
mas eu estava bem. E radiante.
— Eu gostei de pecar — falei, enfim. Ele gargalhou e fez
florescer uma risada também em mim.
— Então desistiu de sentar no colo do diabo quando descer até
lá?
Olhei para o teto, pensativa, e senti um lençol ser jogado sobre a
nossa nudez.
— Não sei. Você tem alguma arma escondida para me fazer
mudar de ideia?
Ele estreitou os olhos.
— A minha arma, garota, é deixá-la sentar onde quiser porque é
inevitável que voltará para mim — disse, com triunfo.
É claro que ele não se sacode tão facilmente.
— É tão seguro assim de si?
— Eu apenas confio nos seus gemidos.
— Você e sua espada são dois convencidos, Nicholas!
— Espada? Eu tenho uma espada? — Me encarou com um
sorriso nos olhos e foi uma das coisas mais doces.
— Não encontrei outro adjetivo para isso que você carrega entre
as pernas. E, ora, você já tem seu nome de guerra, Alastor.
Ele soltou uma risada, cuja interditei com uma cotovelada em
seu braço.
— Nenhuma outra daria uma tão clara definição de mim.
— Foi algo do acaso, está bem? — Revirei os olhos, emburrada.
Ele me olhou de soslaio. Mas de repente, sua expressão alterou.
— Que cheiro é esse? — Perguntou, respirando fundo para
sentir mais forte.
— Cheiro?
— Isso é fogo.
Talvez seja eu.
Sem pensar duas vezes, Nick correu até sua camisa e a vestiu
apressado, nem se preocupou em fechar os botões.
— Nick? — O chamei, em um misto de espanto e confusão.
— Está com cara de incêndio. Vista sua roupa. Rápido.
O fiz.
Acompanhei seu andar soberbo, de levantar poeira, para fora do
quarto sem que ele precisasse me chamar.
Nicholas tinha razão. O ar seco fedia ao longo do corredor. Eu
conhecia aquele odor em especial, não se comparava ao oceano de
fogo que aconteceu em Kerrera, onde tudo que era verde facilmente
se reduziu a gotas de cinzas. Mas, um incêndio ardiloso se alastrava
pelo palácio grego e, agora, algumas escadas abaixo e passos
adiantes, podíamos ouvir zunidos por toda parte. Se alguém não
tinha cutucado uma colmeia, parecia muito.
Dionísio e alguns outros se encaravam com desespero. Um sol
parecia cantar debaixo de uma porta fria. Logo descobri que o lugar
sagrado onde Nick Coleman prometera me fazer pecar, era o berço
do incêndio.
— Que droga aconteceu aqui? — Nick questionou para ninguém
em específico e foi logo abrindo a porta. Alguém precisava conter
aquela chama antes que se expandisse, mas nenhum dos gregos se
demonstrou disposto a agir.
Um calor tão quente que as terminações nervosas do corpo
humano não eram capazes de traduzir para o cérebro, fizera pingos
de suor deslizarem por minhas costas, seios, pescoço e por cada
dobra minha, assim que vi aquela dança de fogo. Nick e eu
chegamos a um ponto onde respirar sem tossir até o peito doer, se
tornara impossível.
Uma cortina. Uma única cortina era a culpada de todo aquele
espetáculo, a culpada por ter encerrado a maravilhosa noite de
orgasmos que eu queria reviver por horas, mas se não fosse contida,
acarretaria em danos mais graves. E eu via, naquele cômodo
sagrado, milhares de formas daquilo piorar. Tudo ali dentro, desde
objetos a paredes, funcionaria como gasolina para a chama.
— Maisie? Preciso da sua ajuda. — Nick me chamou em um
grito. — Pegue o extintor de incêndio no corredor.
Extintor de incêndio? Por que não usamos a cara dos gregos
para ver se funciona?
Nick me relanceou seu típico olhar de quem sabe por onde
vagava meus pensamentos. Compartilhávamos das mesmas
maldades quando se tratava daquela Sociedade.
— Está aqui. — A voz atrás de mim disse. Era Iolanda, a maldita
que ainda me causava tremores. Ela entregou o extintor a Nick e ele
o pegou sem hesitar e agiu.
— Se estava com o extintor todo esse tempo, por que não o
usou? — Questionei a mulher ao meu lado.
— Porque eu estava esperando vocês chegarem — ela
respondeu. A encarei, espantada. — Eu te dei uma informação
importante, bonequinha ruiva, agora vim cobrá-la.
Fui arrastada pelo braço até o jardim, onde alguns membros de
Érebos pareciam absortos do pequeno incêndio que acontecia dentro
da mansão. A ofensa na ponta da língua teve que ficar para mais
tarde, já que Iolanda se apressou dizendo:
— Nem pense em gritar ou me dar as costas ou o próximo fogo
será no seu colchão!
— Foi você? — Perguntei, espantada.
— Sim. Mas foi só uma diversão, não se preocupe. Esses filhos
da puta acham que podem me usar e me descartar facilmente.
— Não se faça de Santa, Iolanda. Você não é nada diferente
deles. — Fui agressiva e cruzei os braços.
Ela me mostrou os dentes amarelados em meio a sorriso torto.
O rosto com escoriações não me dava mais medo como antes. Não
era Iolanda que parecia menos perigosa, era eu que me tornara mais
valente.
— Quando a ajudei fugir da delegacia, disse que tinha um
trabalho para você. Lembra-se disso? — Não esperou eu assentir.
— Então, chegou a hora de você ser útil em algo.
Praguejei audível.
— Você não me ajudou a fugir. Você me obrigou — falei
pausadamente e indignada.
Ela me cravou os olhos castanhos.
— Não me importo com a forma que você vê isso. Eu a ajudei,
dei informações valiosas. Mas, você sabe, de repente tudo pode
mudar. Se Dionísio e o corvo souberem que você e Alastor sabem
que eles estão mentindo, não haverá razão para continuarem sendo
cortês com vocês.
— Você mesma disse a Damon que me contou tudo — a
lembrei.
Ela ergueu a sobrancelha.
— Não sobre isso. Eu teria que ser muito corajosa para revelar
os planos da Sociedade e para Damon eu não passo de uma ratinha
— disse com rancor. Esticou o braço e pegou uma taça sobre a
mesa. Balançou o líquido e observou seu movimento no interior dela.
— É muito simples, bonequinha ruiva. O corvo tem algo que eu
preciso e, como ele tem um afeto especial por garotas de cabelos
laranja, pensei que você poderia pegar para mim.
Engoli saliva como se engolisse gesso endurecido com
extremidades pontudas.
— Por que você mesma não pega? — Questionei. Para mim,
Iolanda estava longe de ser uma ratinha medrosa. Ela não parecia
ser do tipo que precisava usar seu charme para conseguir o que
queria. Ela tinha armas e coragem. Uma mulher com tudo isso podia
fazer o que quisesse.
— Porque eu já tentei e falhei. Todos que tentaram, falharam.
Damon não é descuidado, tampouco um idiota. Pensar que ele fosse
ambos, foi o meu grande erro — expressou, sem vergonha de admitir
a derrota.
Não disfarcei a surpresa. Na minha opinião, Damon além de
idiota era alguém fácil de ser manipulado. Talvez Iolanda e todos que
tentaram pegar - fosse lá o que o corvo escondia - não tenham dado
o melhor de si.
— Certo. Então, me deixe ver se entendi. — Passei o indicador
pelos lábios. Lábios aqueles que há poucos minutos exerciam um
grande poder sobre um homem temível. — Você quer se aproveitar
do meu rutilismo para roubar Damon?
Iolanda esfregou a cicatriz na bochecha esquerda então me
ocorreu, com o mal-estar de um golpe na barriga, que todas aquelas
marcas em seu rosto talvez tenham sido feitas por Damon.
Bem, ela deu um tiro nas costas dele...
— Ele olha para você de um jeito diferente. Não sei se quer
beijá-la ou experimentar a sensação do seu sangue nas mãos dele;
tudo que sei, é que ele não reclamará se você resolver visitar seu
quarto pela noite.
Engasguei.
— Sugere que eu durma com ele? O que pensa que sou!? —
Perguntei, ofendida e um pouco alto demais.
Ela bebericou sua bebida e olhou distraidamente ao redor.
— Por favor, não estou te pedindo para ser fodida por um velho
desdentado. Posso lhe assegurar que você aproveitará cada minuto
sob aquelas mãos. Na verdade, me surpreende que não esteja de
pernas abertas para Damon como a maioria das mulheres
normalmente ficam.
Fiquei branca feito giz.
Agarrei a barra do meu vestido ao sentir algo escorrer por
minhas pernas. Sangue? Só podia ser o sangue da minha virgindade
e tudo que eu não precisava era que ele manchasse o tecido em
meu corpo e que todos aqueles criminosos soubessem que eu andei
gemendo pelos cômodos.
— Não sou sua puta, Iolanda — afirmei, ríspida.
— Escuta, bonequinha ruiva. Só entra no quarto do corvo
mulheres com quem ele dorme. Transando ou não, você pegará esse
pen drive para mim...
— Esse o quê?
— Pen drive — repetiu e estudou as expressões de quem está
absolutamente perdida no assunto. — Aquilo onde armazenamos
dados...Tá falando sério?
Meu rosto esquentou.
— Sou inútil para você. Não posso roubar algo que sequer sei
como é. — Aproveitei da minha ignorância. Ora, não era uma
mentira. Provavelmente eu já vira e/ou ouvira falar sobre o tal objeto,
mas, sua imagem não me vinha à memória. Não que eu estivesse
dando o melhor de mim para lembrar.
Iolanda se transformou num bicho. Ninguém nunca me olhara
com tamanha cólera. Eu, no seu lugar, não ficaria de outra maneira.
Não depois de ter "ajudado" uma ladra a fugir da prisão, ter sido
roubada por ela, e depois ainda descobrir que ela era uma
imprestável. Em menos de um minuto eu destruí seus planos.
— Não sou uma idiota. Sei o que está tentando fazer — acusou.
— E, caso você realmente não saiba o que é um pen drive, então
sugiro que vá à biblioteca para dar uma estudada. A não ser que
também não saiba ler...
— Claro que sei — a cortei.
— Pelo menos isso. Se você fosse totalmente descartável para
mim, eu não precisaria mais ajudá-la.
Ainda agarrando a barra do meu vestido, diminui a distância
entre Iolanda e eu.
— Como saberei que o que contou para mim sobre a filha de
Dionísio é verdade?
— Simples. Se quiser a levo até a lápide da menina. Está
próximo ao pomar, que era onde a criança adorava brincar quando
pequena.
Desviei o olhar. Eu pensaria em como fugir daquilo depois. No
momento, eu desfrutaria de cada ínfima informação.
— O que há no pen drive?
Um riso baixo atravessou seus lábios.
— Coisas — disse, sem intenção de acrescentar algo mais.
Como eu sabia que Iolanda não seria generosa com os
detalhes, não insisti.
— E onde Damon o guarda?
Ela deu de ombros.
— Posso dizer onde ele não guarda. O resto você terá que
descobrir sozinha.
Esperei que o garçom próximo de nós recolhesse as taças
vazias sobre a mesa para continuar minha conversa com Iolanda.
Apesar de Damon ter me alertado que os empregados não falavam o
meu idioma, eu preferi não correr riscos desnecessários.
— Então você quer que eu corra perigo apenas para que você
não conte a Dionísio que você nos revelou os planos dele? Não
percebe que quer que eu me arrisque por algo que pode ferrar tanto
a mim quanto a você? Não é uma troca muito justa — a enfrentei. —
Se quer minha ajuda, me ofereça algo melhor. Agora, saia da frente!
Para a minha sorte, Nick adentrara no jardim antes que Iolanda
pudesse pensar em mil maneiras de me impedir de encerrar aquele
assunto. Com o vestido erguido nos tornozelos, passei por ela com
uma trombada de ombros proposital.
— Conseguiu conter o fogo? — perguntei a Nick ao me
aproximar. Ele fedia a fumaça e tinha cinzas pelos cabelos.
— Alguns incêndios eu apago, outros, alimento — disse,
provocador. As pessoas costumavam dizer que vermelho era a cor
do pecado, mas isso era porque elas não conheciam a cor dos olhos
de Nicholas Coleman. Qualquer um que os visse, faria loucuras para
tê-los sobre si.
Apenas sorri. Ele olhou por cima do meu ombro com um morto
sorriso nos lábios.
— O que ela queria?
Suspirei e indiquei o caminho com a cabeça para que
seguíssemos.
— Uma proposta que me recuso a ponderar.
— Por que? — Perguntou, tocando em minhas costas com a
mão quente.
— Como assim por quê? — Franzi as sobrancelhas.
Atravessamos um aglomerado de gregos que nos olharam
atentamente antes de Nick me responder.
— Maisie, estamos em uma situação complicada aqui.
Precisamos analisar todas as possibilidades cuidadosamente. Eu
odeio Iolanda tanto quanto você, mas, até agora, ela é a única que
tem nos dito a verdade.
Ifrinn (inferno)
— Damon tem um pen drive e ela quer que eu o pegue — disse
em um cochicho.
Ele me olhou atento.
— E ela disse o que há nele?
Neguei com a cabeça.
— Mas deve ser importante. Ela disse que muitos tentaram
pegar. Ela até sugeriu que... — Mordi o lábio.
— ...que? — Me incentivou a continuar.
— Que eu seduzisse Damon para que ele me levasse ao seu
quarto que é onde aparentemente guarda o objeto valioso. — Não o
olhei ao dizer. Apenas me concentrei nos degraus à minha frente.
— Maisie — ele segurou meu braço —, é ridículo ela sugerir
algo assim, mas eu nunca tomarei qualquer decisão por você e
também não sei se quero ouvir o que decidirá, mas, quero que saiba
que você não precisa fazer nada que não queira. Absolutamente
nada!
— O que pensa sobre isso? — Questionei, para a sua surpresa.
— O que eu penso?
— Sim. Sei que tem uma opinião formada.
Ele me soltou, mas permanecemos parados na escada.
— Penso que apesar de você ser de uma beleza que facilmente
seduz qualquer homem, você é, acima de tudo, uma guerreira. E não
é com a beleza que guerreiras vencem uma batalha.
— O que está dizendo? — O encarei, lívida de medo.
— A todo momento os gregos estão nos separando. Iolanda a
levou de mim sem que eu me desse conta. E se algo tivesse
acontecido? Se ela tivesse a machucado novamente? — Havia culpa
na sua voz e uma carga ainda maior de pânico. — Arrumarei uma
arma para você.
Uma...Uma...
— Você é doido? Já me viu atirando?
— Eu queria que você confiasse em você o tanto quanto eu
confio. Como pode não enxergar o quão incrível é e tudo que é
capaz de fazer?
Meus olhos umedeceram. É claro que eu tinha orgulho de quem
era e de tudo que enfrentei de cabeça erguida. Mas, uma arma. Por
Odin, da última vez que eu segurei uma arma minhas mãos
tremeram tanto que eu não consegui usá-la.
— É que...faz tempo que não uso uma arma.
Nick deslocou-se devagar e eliminou o degrau que nos
distanciava com passos de pasmar a terra e segurou meu rosto com
os dez dedos. Não me importei se ele fedia a fumaça ou se estava
cinza, eu o beijaria com todo meu coração e até meu último suspiro.
Eu o amava tanto, que meu coração doía por não poder amá-lo
ainda mais.
— Você é corajosa, chick. Pode estar enferrujada, mas ainda é
capaz de fazer grandes coisas. Eu a ensinarei, se quiser. Tudo o que
quero é que você não precise de ninguém para protegê-la, pois
confio na sua capacidade de proteger a si mesma. Quero que
também confie. — A delicadeza da sua voz parecia uma pluma
acariciando meus ouvidos.
Encarei o eclipsado nos seus olhos.
— Me ensine — balbuciei e ele sorriu. No final das contas, o que
ele estava me oferecendo era um presente. Eu me sentiria muito
mais segura se pudesse carregar uma arma por aquele lugar.
Principalmente depois de descobrir que Damon, de acordo com
Iolanda, olhava diferente para mim.
— Alastor? — Dionísio o chamou, parado ao pé da escada. —
Como nos ajudou a conter o incêndio, pensei em lhe dar um
presente. Quer falar com sua filha?
Nos ajudou? Até onde sei, Nick fez tudo sozinho.
— Que pergunta idiota. Claro que quero falar com a minha filha
— ele rebateu.
— Tudo bem. Então me acompanhe. — O velho ergueu os olhos
para mim. — Sozinho.
— Posso saber por que ela não pode vir comigo?
O velho deu de ombros. Era tão frágil que um soco de Nick o
desmontaria.
— Porque o presente é para você, não para ela. — Era uma
desculpa muito infeliz. Se ele tivesse dito que apenas não nos queria
juntos, me convenceria mais.
— Você precisa melhorar seus argumentos ou ...
— Nick, está tudo bem. Eu preciso mesmo tomar um banho e
descansar. — O interrompi, lacrimosa, antes que o grego
reconsiderasse a proposta e Nick perdesse a oportunidade de falar
com a criança.
O escocês me fitou por um tempo antes de aceitar o convite do
grego. Assim que os dois me deram as costas, eu corri para o meu
quarto.
Uma hora depois, de banho tomado e roupa trocada, me deitei
na cama contendo os impulsos que queriam desesperadamente me
levar ao quarto de Nick. Eu podia só bater à sua porta e perguntar
como foi a conversa com Luli, só que, o que eu de fato queria
daquele homem estava muito além de conversa. Foi como se Nick
tivesse tirado minha virgindade e também minha vergonha na cara,
porque eu só conseguia pensar na sua boca em mim. Eu até poderia
trocar a roupa de cama, pois havia peças limpas no armário, e a
manchinha de sangue sobre o meu lençol era incômoda, mas o
cheiro masculino e libertino que Nick deixara ali, era algo que eu não
estava pronta para largar.
Duas batidas à minha porta me fizeram levantar. Girei a
maçaneta e dei de cara com a maldita Iolanda.
— O que quer!? — Grunhi, apertando a maçaneta e imaginando
que ali era seu pescoço.
— Venha comigo.
— Me obrigue.
Ela me deu um sorriso torto antes de responder.
— Você pediu para que eu te desse algo melhor em troca do
pen drive. — Fez suspense. — O que acharia se eu dissesse onde a
filha de Alastor está escondida?
Aliviei a força dos dedos.
— Como poderia ter essa informação?
Ela se curvou para sussurrar em meu ouvido:
— Essa não é a resposta que quero de você, bonequinha ruiva.
Temos um acordo?
Eu não precisava pensar muito. Claro que a vida de uma criança
valia muito mais que o furto de um simples objeto que eu sabia que
podia conseguir.
— Se estiver me enganando, eu juro que eu mesma a matarei
— ameacei, sabendo que isso selava nosso acordo.
Ela sorriu.
— Tudo bem. Agora não vamos perder tempo. — Ela agarrou
minha mão e me arrastou pra fora do quarto. Me senti pior que um
cachorro na coleira.
— Como assim não vamos perder tempo? — Brequei os
passos.
— Damon está em uma reunião com alguns membros de
Érebos. É a oportunidade perfeita — explicou, sucinta.
— Não farei isso agora.
Senti suas mãos pousarem em meus ombros. Dor não foi bem o
que senti.
— Você não entendeu, garota burra? Eles devem estar
decidindo de que forma me torturarão por eu ter falhado na missão
por sua culpa. Não sei nem se sobreviverei a essa noite.
— Então, que morra! — Rosnei. Em troca, levei um tabefe na
cara. Fiquei entorpecida antes de agarrar os cabelos de Iolanda com
os dez dedos e puxá-los com força. A empurrei contra a parede com
um jogo de corpo.
Eu ia matá-la.
— Se eu morrer, então você e Alastor estarão fodidos. Ele nunca
encontrará a criança se não aceitar trabalhar para o superior e, você.
— Menosprezou com o rosto erguido para mim. — Você será a puta
de todos eles. Acha que está viva ainda por que? Você é uma
covarde, fraca, um estorvo. Você não servirá para ser um membro de
Érebos, então a usarão para dar prazer. Bem, isso senão decidirem
matá-la antes.
Aquilo cortou meu coração de lado a lado. Bati sua cabeça
contra a parede. Ela ganiu.
— Eu posso até ser uma covarde e uma fraca, mas nenhuma
dessas coisas me impedirá de fazer você sentir dor.
Ela me empurrou e então levou a mão à cabeça que
inquestionavelmente latejava.
— Não é a mim que você deve odiar. Estou te dando uma saída.
Se não quer me ajudar para salvar sua pele, então faça pela garota
de Alastor. Não acha que a criança já sofreu o suficiente?
Suas palavras foram absorvidas por minhas feridas. Foi como
cutucá-las com ferro quente. Iolanda fez nascer uma complicação
escura dentro do meu peito. Um misto de mágoa, rancor e revolta.
— Digo e repito, eu a matarei se estiver me enganando —
alertei, voraz. — Me leve ao quarto de Damon e me explique como é
um pen drive.
— É disso que estou falando, garota. — Se animou e com
minúcias me descreveu o objeto.
De acordo com Iolanda, ela já procurara nos lugares óbvios.
Então eu teria que ser inteligente e pensar onde ele esconderia algo
valioso.
— Tem certeza de que Damon não está aí? — Perguntei, parada
à porta do quarto do corvo.
— Tenho — garantiu e girou a maçaneta metálica.
A porta de madeira rangeu ao ser aberta. Foi como entrar numa
catacumba — gelada o bastante para adormecer meus sentidos,
escura para me fazer apertar os olhos e infernal para me fazer orar.
— O que foi? Parece que viu um fantasma — resmungou
Iolanda baixinho. — Entre logo. Eu ficarei de vigia ao lado de fora.
Ela me empurrou pelas costas e eu cambaleei para dentro de
trevas que fizeram meu coração arder como o tumulto e o clamor de
um largo oceano. A primeira coisa que fiz, foi acender as luzes. O
quarto espaçoso era menos horrendo na claridade. Talvez eu
estivesse sendo injusta. Eu estava. Não tinha nada de feio ali. Quer
dizer, era estranho ter uma rocha ao lado da cama redonda ou o fato
de uma das paredes ser feita de vidro. Mas o lugar era digno de
aplausos, seu único ponto negativo era o dono dele.
Exercícios? Damon me dissera que gostava do seu quarto
porque ele era grande o bastante para ele se exercitar. Em relação
aos metros, ele não mentira. Contudo, eu não estava vendo nenhum
equipamento de exercício ali.
Me obriguei a parar de admirar o espaço e me empenhei em
cumprir a missão. Abri os livros que estavam sobre uma mesinha de
madeira em formato de mapa. Livros que, de acordo com a
marcação das páginas, Damon não finalizara a leitura. Vasculhei nos
dois vasos de planta, cada qual em uma extremidade da parede.
Ao menos ele as rega.
Apalpei as almofadas do sofá cinza. Procurei até mesmo por
buracos nas paredes. A minha criatividade estava acabando. Me
sentei no chão no centro do quarto e observei.
Inspire e expire. Você é esperta.
Me balancei para frente e para trás, em estado de agonia. Olhei
para o lustre sobre a minha cabeça. Talvez...
Arrastei uma das poltronas e subi, mas ainda continuava alto
demais para mim. Dei uma nova olhada no cômodo, só que dessa
vez em busca de algo para escalar. Havia uma mesinha pequena, de
rodinhas, se eu arrastasse o tapete e ser...
— Quem deixou você entrar!?
Eu não tinha garganta para o grito que dei.
Maldita Iolanda. Maldita Iolanda.
— Eu...Eu...
Uma mentira. Pense em uma mentira, sua idiota.
O corvo se abeirou de mim hesitante e cauteloso. Pé aqui, pé
ali. Medindo e calculando cada passo.
Mais um.
Mais outro.
— Você vive entrando no meu quarto sem permissão, não posso
fazer o mesmo? — Com um redobrado alento, perguntei. Já que não
consegui mentir, entrei na defensiva.
Avançou mais um passo.
— O que procura? — Ele questionou, rude e ergueu meu queixo
com o indicador. — E não tente mentir para mim.
Fiquei sem voz. Sem forças. Meu coração ficou pequeno e
ressequido. Apenas afundei na sombra dos seus olhos de cílios
densos.
— Por que está calada? Estou tão acostumado com você sendo
arisca e me rogando pragas.
— Me deixe ir embora — exigi, sem falhar a voz. Ele bloqueou a
minha passagem com seu corpo. Seria mais fácil atravessar uma
parede a passar por ele.
— Agora que está aqui, por favor, fique. — Ele tentou ser
educado. Mas o timbre cavernoso da sua voz não dava trégua. — Irá
me dizer o que estava procurando ou brincaremos de adivinha?
Eu não via diferença entre estar descalça no chão de madeira
daquele quarto ou na neve.
— Eu não estava procurando nada. Só queria ver como era seu
quarto. — Menti, um pouco tarde demais.
Ele largou meu queixo, mas permaneceu feito uma árvore na
minha frente.
— Então Iolanda não mandou você vir procurar pelo pen drive?
A saliva entalou na minha garganta. Violenta.
O diabo desatou a sorrir para mim até formar as covinhas nas
bochechas e seus olhos me cobriram de alto à baixo.
— Respeite minha história como mensageiro, cabelo de fogo.
Acha que você é a primeira que Iolanda manda revirar meu quarto?
Pigarreei.
— O que tem no pen drive? — Me fazer de sonsa não era uma
opção, não quando ficara tão nítido que Damon era esperto demais
para se deixar enganar.
— Aceitou se arriscar por algo que não sabe nem o que é? —
Ergueu a sobrancelha em um movimento cuidadoso e perfeito.
— Então corro um risco? — Rebati, acompanhando a
inconsistência que ele flutuava. — Pode me dizer que tipo de risco é
esse?
Ele me deu as costas, porque sabia que ainda que a resposta
fosse banal, ela me enlearia. Observei seus músculos e sua maneira
impessoal de usá-los, como se o mundo fosse feito à sua medida.
— O pen drive é uma lista de todos que um dia contrataram os
serviços de Érebos. Se essa lista cair em mãos erradas, estamos
todos perdidos.
Encheu dois copos com uísque e me entregou um. O peguei
apenas para ter um objeto para atirar em Damon caso ele tentasse
algo.
Ele tomou sua bebida e fez uma inesquecível careta. Por que
bebe se não gosta?
— Por que Dionísio deixou algo tão valioso em suas mãos?
— Porque sou confiável — falou, levando seu orgulho à potência
máxima.
Respirei fundo, alimentando-me do ar proibido.
— Para mim, deixar uma sociedade tão grande em suas mãos é
um sinal de tolice — alfinetei.
Fluiu um riso dissonante e fremente da sua boca.
— Concordo com você, cabelo de fogo — disse, cristalizado.
Nos transformamos em uma grande ilha de silêncio sob uma
incerta eternidade. Eu até podia ouvir o som do uísque descer pela
garganta do corvo.
— Por que faz parte disso, Damon?
Quando ele me virou as costas e sentou na cama, pensei que
não fosse me responder. Larguei meu copo na mesa e me preparei
para deixar o quarto, quando ele disse:
— Porque eu não tive escolha. — Foi um murmúrio triste e
simples, com uma centelha ardente.
Me virei de súbito e acompanhei o fluxo de um Universo
desconhecido através de suas órbitas. O mergulho foi um vórtice
insano. Cada traço do seu rosto era de dor. Uma máscara de dor. O
corvo egocêntrico e sombrio não participava mais daquela conversa
e eu não saberia dizer quando necessariamente ele foi embora,
quando o animal bravio foi convertido em animal tranquilo.
Meu corpo foi movido por pés involuntários.
— Todos temos uma escolha — respondi.
Encarou a bebida antes de virá-la por completo goela abaixo.
— Eu não tive. — Se levantou e deixou seu copo ao lado do
meu na mesa. Se ele notara que eu não bebi do meu uísque, não
comentou.
— Presumo que não me dirá o porquê — demandei.
— Presumiu certo, lindinha.
Baixei o olhar para meus pés sem saber o que dizer. E ouvi
Damon chegar mais perto.
— Pergunte — falou.
Ergui as pálpebras.
— O quê?
— Você ainda não saiu correndo do meu quarto. Ou você quer
transar comigo ou quer me fazer uma pergunta.
— Claro que não quero transar com você — retruquei,
enraivecida.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça.
— Então pergunte — insistiu.
E diabo, ele tinha razão.
— O que fará com Iolanda? Não que eu esteja preocupada,
apenas tenho curiosidade.
Ele deu um suspiro que mal se ouvia.
— Ainda não sei. Tem alguma sugestão?
O comentário me fez dar um sorriso que tinha a pureza da
infância. Ele sorriu de volta.
— Só por curiosidade, também. O que Iolanda te ofereceu em
troca do pen drive?
Droga. Se eu falasse a verdade, acabaria com a chance de
descobrir onde Luli estava. Damon diria a Dionísio que Iolanda
pretendia traí-los, e eles desapareceriam com ela. Sem dúvida iriam
puni-la, talvez matá-la. Nick e eu voltaríamos a estar um passo atrás
dos gregos.
— Uma arma. — Resolvi mentir. Foi o mais rápido que consegui
inventar sem que deixasse evidente que eu mentia.
— Uma arma? Por que quer uma arma? — Num palácio de
sons, ele ergueu sua voz.
— É sério?
— Além do óbvio. Por que quer uma arma? — Refez a pergunta
de forma menos estúpida.
— Para me proteger de você — confessei. — E de Iolanda,
claro. Mas, principalmente, de você.
O semblante de Damon foi de alguém capaz de horrores e de
ações sublimes. Como se em seu peito residissem um demônio que
rugia e um Deus que lamentava. Deu dois passos para a esquerda,
dois para a direita, e voltou para o mesmo lugar de antes. Como se
avaliasse o que fazer comigo.
— Te darei uma arma.
Impossível.
— Qual seu preço? — Oscilei entre crença e desengano, entre
esperança e desinteresse.
Outra vez se perdeu em uma análise mental.
— Ainda não sei. O que posso ter de você? — Ele se animou
em um fogo mais intenso.
Os olhos a me desejar eram um perpétuo que me devorava,
mas aquele era um fogo que eu não o deixaria acender. Eu preferia
dar meu coração aos vermes.
— Você não cansa desse joguinho!? Eu já tenho um namorado.
Namorado? Nick nunca disse que era meu namorado.
Estávamos em pleno século vinte e um. Tirar a virgindade de uma
garota não era motivo de aliança no dedo.
O corvo colocou a mão em meu ombro e enfiou o dedo pela alça
da minha camisola de cetim. Odiei ter me arrepiado. Odiei não ser
capaz de controlar a reação do meu corpo...Um pavor físico me fez
fechar os olhos de repente. Sufoquei.
— Não me toque novamente. — Segurei em seu braço para
obrigá-lo a afastar sua mão de mim.
Ele não reagiu. Era uma pedra que respirava com uma sombra
disforme nos olhos.
— Se sente culpada por gostar? — A voz foi baixa e suave
como o cair de uma noite de inverno e soou longínqua no meu
ouvido.
Trinquei o maxilar.
— Porque você me enoja.
Se antes eu o segurava, agora era sua refém. Sua mão foi em
meu pescoço, mas não me machucou. Era como um lembrete de
que Damon poderia fazer o que quisesse comigo se quisesse. Eu era
fraca demais perto da sua força.
— Tem certeza disso, Maisinha? Você tem o fogo do inferno nas
suas madeixas. — Seus olhos eram cortantes como vidro e o hálito
em meu rosto perfurava a minha pele. — Tenha cuidado da próxima
vez que entrar nesse quarto. Essa será a primeira vez que a deixarei
sair.
— Não tenho medo de você! — Meu orgulho me obrigou a dizer.
Não era a maior mentira que eu contara naquela noite, como
também não tinha uma parcela significativa de honestidade.
Sorriu. O sorriso diabólico era digno de seus lábios. Nenhum
rosto combinava tanto com tais curvas monstruosas.
— Eu sei que não. Na verdade, você tem medo de não me
impedir caso eu decida beijá-la.
— Está redondamente enganado. — Engoli em seco.
Damon aproximou seus lábios dos meus, solene e soberbo, sem
os tocar.
— Não. Não estou. Acho que nossas expectativas para esse
beijo acontecer são as mesmas.
Depressa, submergi na indiferença, e foi preciso muito
autocontrole para parecer uma corajosa, o respondi:
— Você precisa aprender que algumas mulheres apenas
desprezam homens como você. — Levei minha mão em seu peito
ferino e o empurrei. — E eu sou uma delas.
Ele só me fitou. Eu não sabia se eu o deixara sem fala ou se ele
só achava que discutir comigo não valia a pena.
Antes que a madrugada soprasse e o clarão do dia
humildemente repousasse nas minhas pálpebras fechadas, eu saí. E
enquanto eu largava a maçaneta da porta do quarto de Damon como
quem tinha lava nas mãos, eu senti olhos em mim. Olhos que
condenavam.
Nicholas. Imóvel no corredor, em frente ao seu quarto, pronto
para entrar.
— Nick? — o chamei em um sussurro.
— Não precisa me explicar nada — ele respondeu. Os olhos
azuis foram de quem fitava uma enorme pirâmide sob um sol que
feria e queimava.
E então ele entrou e eu fiquei.
Graças aos deuses não demorou para que amanhecesse. Eu
não sabia quando, mas em algum momento eu me tornara uma
pessoa ansiosa e isso estava me matando. Era triste deitar para
dormir e não conseguir, fechar os olhos e contar minutos atrás de
minutos, apenas esperando o sol raiar. A ansiedade não influenciava
somente no meu sono, eu me via cada dia mais faminta, porém,
quando sentava para comer, nada tinha gosto.
Coloquei o vestido lilás mais básico que encontrei no armário e
trancei os cabelos para trás. As botas que Nick me dera,
continuavam sendo minha opção preferida de calçado.
Me levantei quando bateram à minha porta. Eu esperava que
fosse Iolanda para que eu pudesse me vingar com as próprias mãos
por ter sido abandonada noite passada.
Inocente. De malicia, só a cor do cabelo.
Virei a maçaneta.
— Nick — disse, cambaleante e cheia de preâmbulo. Depois do
mal entendido da noite passada, vê-lo pela manhã ia além da minha
admirável imaginação.
Um olhar capcioso e o contorno de um sorriso nos lábios não
foram as únicas coisas a me fazer molhar a calcinha. Subitamente,
seus dedos adentraram em meus cabelos, destrançando-os num
ritmo demorado e sensual. Os cachos que se espalharam por meus
ombros fizeram cócegas quando tocaram meus braços nus.
— Vim me desculpar por ter me comportado feito um garoto. —
Deu um passo para dentro, com as grossas pernas de um gigante,
atléticas, depois outro, e então fechou a porta sem se virar para ela.
— Como recompensa, vim trazer o seu café da manhã.
— Meu café da manhã? — Perguntei. Ele balançou o queixo pra
cima e pra baixo. Estiquei o pescoço, em busca de uma bandeja
atrás dele, qualquer indicio de comida. Nada. Nem um pãozinho
sequer.
Em um gesto hábil, ele me ergueu em seu colo, causando uma
inquietação no meu sangue. Joguei os braços ao redor do seu
pescoço e prendi minhas coxas nos quadris. Seus lábios se tornaram
um alvo frágil, mas eu ainda era uma castanha refugiada no meu
ouriço para tomar atitude de beijá-lo. Acreditei que ele me levaria
para a cama, mas onde Nick me colocou foi mais duro que isso.
Sentada no parapeito da janela aberta, senti o ar atmosférico do céu
azul assoprar em minhas costas e escorregar em cada linha dos
meus cabelos.
— Confie em mim. — Sua respiração roçou na minha bochecha.
— Nós podemos conciliar o prazer e o perigo como ninguém.
Um vento no meu dorso nunca mais teria o mesmo efeito depois
de Nicholas Coleman.
Seu olhar era o de quem ia punir meu corpo inteiro. Criei
coragem de olhar para baixo, o horizonte era como um tapete verde
com pétalas coloridas a me acenar e a sinfonia dos pássaros bailava
por entre as árvores.
— O Alastor está tentando se vingar de mim por eu ter sido uma
menina levada? — Me agarrei a ele com mais força por instinto.
— E por que razão eu devia me vingar? Desde o começo você
disse que não é minha e eu te disse que você é livre para tomar suas
decisões. — Foi irreverente e espremeu meu peito contra o seu.
Senti o calor da sua pele através da nossa camada de roupa feito
uma brasa alastrada.
Ofeguei.
— Acha que transei com Damon? — Fui franca e fria, sem a
pretensão de ser.
Senti sua contração muscular tônica. Os olhos de safira
tornaram-se um cinza que não existia na paleta de cores.
Sua boca moveu-se em palavras mudas. Ele apertou seus
dentes com força antes de morder meu lábio e puxá-lo com
tormenta. Eu gemi de prazer. Era como se Nick quisesse sugar
minha vida para si. Engolir-me inteira com toda plenitude da sua livre
vontade.
Um vento galopante e ensurdecedor brincou com meus pelos.
— Não ligo para o que fez com ele — num toque suave, a
maciez dos seus lábios úmidos em meu rosto me fez atingir uma
quimera profana — e sim para o que fará comigo. Aqui e agora.
Simulei um sorriso e fitei seus olhos como se fossem a linha do
destino, ele me correspondeu.
Pensei em suas palavras.
— Você não liga?
Ele me amordaçou com um beijo violento.
— Não liga? — Perguntei mais uma vez ao ser liberta.
Me roubou outro beijo, ainda mais intenso que o primeiro. O
maldito estava fugindo da pergunta.
O empurrei para que olhasse para mim e o segurei pelo
colarinho da camisa. Numa troca impetuosa de olhares, perguntei
pela terceira vez:
— Você não liga?!
Seu olhar foi de um lobo ferido.
— Quer mesmo me ouvir falar, não quer? — Inquiriu numa
desgrenhada fúria. Me puxou pela bunda para que eu sentisse sua
ereção. — Ligo sim, ligo pra caralho. Mas no lugar de ir quebrar os
dentes de Damon, eu prefiro te dar o melhor sexo da sua vida para
que você pense duas vezes antes de montar em outro!
— Então farei sexo com um macho irritado e sentada no
parapeito da janela? — Ergui a sobrancelha, respirando uma venal
sensualidade.
— Não se você não quiser. — Como cortesia, me deu um sorriso
que nem a geografia explicaria suas curvas.
— Não aceitar fazer amor com você nunca fará parte dos meus
planos, Nicholas Coleman. Aqui ou nos telhados, onde você quiser.
Me puxou pelos cabelos para deslizarmos nosso prazer de uma
língua a outra. Aquilo era a obscuridade de Alastor e eu me doei
como um pássaro que abre as asas para voar.
Os efeitos precários daquela atitude me deixaram perdida.
Flutuei em transe, seduzida por mordidas e gemidos. Eu não estava
preparada para um beijo tão rude quanto aquele, agitado como um
furacão. Tão diferente dos que ele costumava me dar. Sua fome era
animalesca, não qualquer animal, mas o mais perfeito dos animais e
eu, apenas um corpo que ele entreviu na selva escura.
Suas mãos quentes por minhas costas me tornaram um Sol e
quando ele me soltou, seu olhar me empurrou para longe de todo o
céu. Eu me senti pequena e me falharam todas as palavras para
exprimir qualquer pensamento.
Que beijo foi aquele? Foi dos deuses. Era como se seus lábios
melhorassem a cada investida. Se eu já não estivesse integralmente
rendida por ele, depois daquele espetáculo entre nossas línguas não
existiria chance alguma para a minha honra.
— Vou te dizer uma coisa, garota; você está cada vez melhor
nisso.
Então ele também sentiu.
— Preciso parabenizá-lo também, seu policial — brinquei.
Ele piscou, gracioso.
— Deixe-me ver o quão satisfeita a deixei — anunciou e soltou
uma mão das minhas costas. — Não se preocupe, não a deixarei
cair.
O tempo entre o meu assentir e os seus dois dedos me
penetrando, foi mínimo. Arquejei e deixei minha cabeça cair em seu
ombro ao passo em que ele estimulava meu sexo com carícias de
arrancar o fôlego. Agarrei seu pescoço com minhas unhas e lambi
ombro, pescoço, orelha. Traçando uma rota pela divindade da sua
pele.
— Ah, Maisie, por que tem que ser tão perfeita em tudo que faz?
Acha que eu já não a amo o suficiente?
Minha boca se abriu para responder, mas fui impedida.
— Ruivinha? — Bateram à porta.
Aquela voz era...Não. Impossível.
— Olaaa? Dá pra abrir a porta?! — Bateu com mais insistência.
Nick e eu nos entreolhamos, ambos incrédulos.
— É quem eu estou pensando? — Ele perguntou e me ajudou a
saltar da janela. A ausência dos seus dedos dentro de mim foi
decepcionante, assim como seus braços ao redor do meu corpo.
Arrumei os cabelos e fui pé ante pé à porta. Quase não acreditei
nos meus olhos ao ver Gael e Jailson no corredor.
— Não... — Desacreditei.
— Sim — Gael respondeu.
— Mas que raios estão fazendo aqui?! — Foi só o que consegui
pronunciar com a boca seca pelo choque.
Gael me fitou com seus radiantes olhos azuis e me puxou para
um abraço. Os cabelos longos e ruivos como os meus, estavam
presos em um coque bem desleixado. Sua barba, feita como eu não
via há anos. Me deixei ser acolhida por seus braços e me agarrei à
ideia de que ele era meu irmão — ainda que não tivéssemos o
mesmo sangue – e optei por ignorar o que acontecera na última vez
em que nos vimos.
Depois foi a vez de Jailson – o pançudo de dentes quebrados
por puro mérito de Gael após uma brincadeira brutal entre eles – me
abraçar. Apesar do escocês também ser ruivo, a cor de suas
madeixas tendia ser mais castanho que laranja.
— Está fedendo à cerveja — comentei ao me desvencilhar e
esfreguei o nariz.
Os dois riram e permutaram olhares.
— Você é mesmo uma ótima anfitriã — debochou Gael.
— Anfitriã? Vocês têm noção da merda em que se meteram!? —
Alarmei e provoquei o alvoroço que eu tanto queria em ambos. Os
puxei pelo braço para dentro do quarto.
Nick os cumprimentou antes de se voltar para mim com um
semblante indecifrável.
— Eu não os chamei aqui. Eu juro — Comecei dizendo.
— Eu sei que não. Fui eu. — Nick admitiu.
Meu coração deu um pulo de quebrar a caixa torácica.
— Você o quê? Por que?
— Você me disse que eu podia confiar neles e como nós
precisamos de ajuda...
Fiquei sem voz.
Gael, em sua extrema curiosidade de gente que vive dentro de
uma bolha, revirou meu quarto do avesso. Olhou cerca de dez
minutos para o Olho do Oriente preso à parede antes de começar a
perguntar se aquelas coisas pelo palácio eram mesmo banhadas à
ouro.
Jailson e toda sua delicadeza de brutamonte, deu um tapa em
sua cabeça no intuito de trazer o amigo de volta à realidade.
— Não toque nas coisas dos inimigos.
— Como você é dramático. — Gael retrucou. E se virou para
Nick: — Saiba que vim por ela, não por você.
E Nick revidou:
— Eu te chamei exatamente por isso.
O pançudo e eu olhamos de um homem para o outro para se por
ventura saísse faíscas deles, estarmos preparados, mas tudo
transcorreu bem para a minha saúde física e mental. O cacete.
Minha saúde mental acabara de ser arruinada.
— Onde estão os outros? — Perguntei para qualquer um.
— Charlie foi passar a lua de mel no Brasil com a família de
Tess, Hamish e Kate só Odin sabe ou talvez nem ele — compartilhou
Gael.
— Não precisamos de mais gente que isso. — Nick falou.
Eu concordei com a cabeça. Era muito bom ter meus amigos ao
meu lado, em contrapartida, eu teria mais gente com quem me
preocupar. Nick me alertara para que eu não desse qualquer
informação minha aos gregos para que não tivessem o que usar
contra mim. Então por que diabos ele achou conveniente chamar as
pessoas que eu mais amava no mundo para a jaula do leão? O que
mudou?
— Quando enviou uma carta para eles? — Resolvi perguntar.
— Na nossa primeira noite no palácio. De princípio pensei em
ligar, porém, por conhecê-la bem e imaginar que eles fossem como
você, me ocorreu que talvez não tivessem um telefone. Por acaso,
durante aquela nossa reunião eu reparei em algumas cartas
empilhadas na mesa de Dionísio e resolvi arriscar. Quando de
madrugada, desci até a sala e coloquei minha carta entre as dele. O
resto foi pura questão de sorte — esclareceu e acrescentou baixinho:
— Não contei nada a você para não a deixar com esperança.
Soltei uma respiração profunda. Nick não fizera nada além do
que eu insinuara dias atrás.
— Não sei se gosto disso. Quero dizer, eu gosto de ter vocês
dois por perto, mas essas pessoas são perigosas. Não sei nem como
deixaram vocês entrarem aqui.
Gael blasfemou e Jailson respondeu:
— Não sabemos se deixaram de fato. Não entendemos uma
única palavra do que os empregados disseram, tudo que fizemos foi
seguir uma moça quando revelamos o seu nome a ela e cá estamos
nós.
— Calma, ruivinha. Não deve ser tão ruim assim ficar em um
palácio com gregos e comida de graça. Pelos deuses, onde tem
comida de graça é sinônimo de paraíso. — Gael recorreu ao bom
humor de sempre.
— Eu sempre quis provar o tal do Portokalopita — compactuou
Jailson e lambeu os lábios. — Será que terei a sorte de uma
boireannach lançar uma maçã em mim?
— Lançar uma maçã em você? — Perguntei, confusa.
Nick riu antes de me explicar.
— Na Grécia Antiga, os apaixonados tinham o hábito de
arremessar maçãs em seus interesses românticos como forma de
declarar seu amor. Existem até quadros renascentistas que retratam
isso.
Fiz cara feia e não pensei no pobre coração de Gael apaixonado
por mim ao responder Nick:
— Nunca ouse tacar uma maçã em mim se não for para eu
comê-la. — Quando me toquei que fui indelicada, mudei de assunto.
— Vieram de barco?
— Andamos de tudo, até de camelo — respondeu Jailson.
— Camelo é no Egito, seu burro. Não na Grécia! — Gael
refutou.
Jailson deu de ombros.
— Foi só uma brincadeira para a ruivinha entender que
utilizamos de muitos transportes para chegarmos até aqui.
Revirei os olhos. Aqueles dois iam me enlouquecer antes do dia
acabar.
— O que acham de pararem de se matar para conversarmos
sobre o que realmente importa? — Advertiu Nick como se
repreendesse duas crianças.
— Por que vocês não sentam? A história é um pouco longa —
aconselhei.
Gael e Jailson negaram a oferta.
Então, para não perder mais tempo, Nick começou a narrar
nossa trajetória até Érebos. Contou sobre Alastor, Iolanda e o
disparo que ela dera em mim. Gael e Jailson me lançaram olhar de
preocupação e eu precisei garantir cerca de três vezes que estava
bem para que não erguessem meu vestido para se certificarem. Nick
deixou por minha conta o resto da história. Contei sobre os gregos
terem nos enganado para nos aprisionarmos ali, sobre Damon, seu
pen drive ultra secreto e sobre como Iolanda me coagiu a roubá-lo
noite passada.
— Por isso estava no quarto dele? — Nick perguntou, o peito
erguido, fez questão de ignorar todos os outros.
— Sim. E foi totalmente em vão. Iolanda me largou sozinha e
Damon me flagrou revirando tudo. Agora que ele sabe que eu sei da
existência do pen drive, será impossível pegarmos.
— Ceart gu leòr (ok). Interessante. Mas quando vão nos dizer
que desgraça é um pen drive? — Resmungou Gael.
Revirei os olhos, me sentindo a própria sabichona no assunto.
— É uma tecnologia pequena que aparentemente serve para
armazenar coisas. Damon me disse que Dionísio o usa de lista com
os nomes de todos que um dia contrataram os serviços de Érebos —
expliquei com detalhes e perguntei a Nick: — E sua filha, conseguiu
falar com ela?
Eu queria ter perguntado pela manhã, mas a sua língua estava
dentro da minha boca.
O movimento brusco com os ombros, era um sinal de que o
assunto o deixava desconfortável.
— Sim. As três estão bem. Apavoradas. Mas, bem.
— Será que uma das suas amigas tacará uma maçã em mim?
— Jailson quis saber.
O sorriso de Nick foi de lamentação.
— Elas são casadas. Sinto muito — respondeu, em uma
melancolia tácita e serena.
— Nada é impossível no amor, meu amigo. — Jailson disse,
com uma dor oculta nos olhos.
— Então agora ele é seu amigo? — Gael questionou, ofendido e
deu um empurrão no ombro do outro.
Massageei as têmporas. Aquele assunto estava me causando
com dor de cabeça.
— Então é verdade — A voz tenebrosa foi acompanhada pela
sombra dos seus passos adentrando ao quarto. — A Escócia se
aliou à Grécia.
Damon...
Todos notaram à medida que a figura que transformava minha
vida num constante derruir se aproximava sem pedir licença. Os
cabelos molhados e despenteados de quem acabara de se lavar, a
camisa e calça escura seguindo a gama de cor dos seus olhos. O
que Damon tinha de lindo, tinha de apavorante.
— O que foi, o gato comeu a língua de vocês? — Ele brincou e
deu uma dentada no morango que trazia na mão. — Quer uma
mordida, cabelo de fogo? — Me perguntou, malicioso.
— Não! — Respondi em surdina fina.
— Tem certeza? — O endiabrado me estendeu a fruta vermelha,
molhada e mordida, com um raio no seu olhar de alma condenada.
Em questão de instantes, o morango foi parar no chão e as
mãos agressivas de Nick avançaram no pescoço do sujeito antes de
qualquer um de nós ter a chance de reagir.
— Eu te alertei para ficar longe dela. Mas já que você não é
capaz de seguir o meu conselho, acho que terei de fazê-lo entender
de uma forma mais sublime — rosnou, numa fúria febril. Os grandes
olhos absortos nos do corvo e enchendo-se de trevas
profundíssimas.
— Calma, macho alfa, sua fêmea dominante está intacta. —
Damon com seu coração mesquinho fez graça.
Todos ouvimos o ritmo e o som da gargalhada de Nick. Uma
gargalhada grosseira de dobrar as orelhas e vergar a lâmina das
espadas. Num gesto desatino, com a força de uma maré a encher o
peito, Nick o socou no rosto.
O murro destruidor de piadas, fez o corvo cambalear. Mas,
assim que recuperou o equilíbrio, ele revidou. Nick conseguiu desviar
do primeiro soco, já o segundo...atingiu em cheio seu maxilar. O meu
quarto de repente se transformou em um espaço de luta. Uma arena
trágica onde dois machos robustos se atacavam feito canibais
sedentos por sangue.
Corri para o lado oposto. Os punhos fugiram dos meus olhos.
Gael que até então estava mudo, veio me perguntar:
— Quem devemos defender?
— Sério, Gael?
Acabou não sendo preciso intervir, pois Nick imobilizou os
braços do corvo por trás com enorme esforço muscular e chutou sua
perna para deixá-lo de joelhos. Aquilo sem dúvida era uma prática
adquirida na polícia.
— Está bem. Eu me rendo — disse Damon. Seu rosto era nada
mais que uma pálida sombra que sangrava.
— Vai se render no inferno. — A voz de Nick flutuou no ar. Ele
passou a língua pelo lábio ferido.
— Você sabe que não pode me matar, Alastor. A não ser que
não se importe com a sua filha.
Nick se curvou, puxando com força os braços de Damon como
se fossem duas asas a quebrar. Ele ganiu. Fomos todos indiferentes
a seus gritos.
— Eu não seria idiota de matá-lo sabendo que você pode ser
mais útil vivo — disse pitoresco e audaz.
Nick colocou reflexões novas na minha mente. De repente a
desgraça me incitou e um mísero sorriso surgiu nos meus lábios.
— Acho que agora você não tem outra opção que não a de nos
dar o pen drive — eu disse.
As órbitas dissimuladas se viraram para mim.
— Aproxime-se, cabelo de fogo. Quero ter o prazer de olhar em
seu rosto e dizer que está enganada.
O olhei em uma persistência rubra com a pouca dignidade que
me restava. Não tive tempo de dar uma resposta.
— Quer procurar em meu quarto? Vá em frente. Eu posso ficar
aqui enquanto se matam em vão — falou Damon.
Então, algo incrível aconteceu e uma luz fascinante me iluminou.
Foi como uma planta que floresce no muro. Eu até podia chorar de
felicidade e beber as lágrimas, mas me contive para não entregar
que eu desvendara um grande mistério.
O brio saltitava feito uma bailarina dentro de mim.
— Deixe-o ir. — Peguei a todos de supetão, inclusive o “refém”.
— Ele não nos serve de nada. Só o deixe ir.
Transferi um olhar firme para Nick e foi por Odin que ele o
compreendeu. Ou melhor, até o momento eu achava que ele tinha o
interpretado, mas nada me garantia que ele não iria me balançar
pelos ombros assim que Damon saísse do quarto.
O corvo se levantou, passou o polegar para limpar o sangue que
escorria pelo nariz e tentou desamassar a roupa com as mãos.
— Estou ansioso para transformar a vida de todos vocês em um
completo inferno — ele declarou.
E Nick retrucou:
— Sabemos que esse é o único trabalho que você executa
melhor que qualquer um. Agora saia antes que eu me arrependa de
deixá-lo vivo.
Para o bem da minha aflição e da bailarina em mim, o homem
foi embora.
— Agora me explique que desgraça tá pensando, ruivinha? — O
questionamento partiu de Gael, ele me conhecia mesmo melhor que
todos.
Jailson que se mantinha mais distante, se enturmou.
Encarei de um escocês a outro. Esfreguei as mãos suadas nas
pernas.
— O pen drive está bem aqui, nesse quarto. — Dessa vez falei
especialmente para Nick: — É por isso que Damon não sai daqui.
Ele está com medo de que eu o encontre.
Brotou um excesso de orgulho no rosto dos três.
— Alguém traga um tapete vermelho para essa mulher? — falou
Jailson.
— Prefiro chá e biscoitos — brinquei, com uma pitada de
veracidade.
Assim que nossas risadas sonoras e trêmulas cessaram, Gael
fechou a porta e se pronunciou com as mãos nos quadris:
— Então que comece a longa busca.
Fitei cada objeto. Nick por sua vez, se aproximou por trás para
me sussurrar:
— Eu a agarraria agora mesmo se ninguém estivesse aqui, ou,
melhor — ele afastou meu cabelo da nuca, me fazendo voar junto
das borboletas que geralmente se abrigavam em meu estômago —,
acho que encomendarei milhares de maçã para lançar em você.
Me sacodi em uma gargalhada desvairada, daquelas que
arrancam olhares críticos.
Eu tinha mesmo chamado aqueles dois ali, mas não para que
me ajudassem com os gregos. Minha razão era clara como o dia: eu
queria que eles salvassem Maisie. A levassem da Grécia. Eu sabia
que a Sociedade não permitiria que ela saísse viva. Assim que eu
localizasse minha filha, a deixasse em segurança, eu me vingaria de
Érebos e só Deus sabe como tudo acabaria para mim. Uma coisa
era matar um por vez, quando meu rosto ainda era uma figura
desconhecida, mas, agora que todos me conheciam, conheciam
Alastor, seria arriscado. Assim que um membro fosse morto, todos
me condenariam.
— Nick, me ajude aqui — pediu Maisie, desamparada e
ofegante. As veias saltadas na testa sardenta enquanto erguia o
colchão da sua cama.
Foram quase trinta minutos de busca fracassada.
Eu concordava com ela, acreditava fielmente que o pen drive do
corvo estava escondido em seu quarto. A garota era astuta, uma das
qualidades que me levou a amá-la à medida que o verdadeiro caos
me ondulava, rastejando feito um animal asqueroso.
A ajudei erguer o colchão já que os outros dois verificavam as
gavetas.
Mais uma vez, nada foi encontrado, em lugar algum.
— Vamos fazer uma pausa — sugeri.
Os três exaustos concordaram sem discussão.

Gael e Jailson sentaram-se juntos à mesa do desjejum. Eu não


disse, porque certas coisas não podiam ser ditas em qualquer lugar e
qualquer hora, mas pensei que os dois escoceses pareciam dois
cavalos tentando ajeitarem-se à enorme mesa. Eram
desengonçados. Ficou evidente que ambiente requintado não fazia
parte da sua rotina. E quando viram a variedade de comida, faltou
pouco fazerem uma reverência.
Foi arriscado convoca-los até lá, só que me faltaram opções. Era
confiar neles ou deixar Maisie ser devorada por lobos. Por
Damon...Eu provavelmente arrancaria seus braços da próxima vez
que ele chegasse perto dela.
— Então você os chamou aqui, Alastor? — Dionísio questionou.
— Foi o que eu disse — respondi, poupando-lhe um gesto
vulgar. — Achei que o senhor não veria problema em termos uma
ajuda extra para encontrar sua filha.
Notei Maisie se encolher na cadeira, em Damon engolir em
seco, na empregada de mãos tremelicosas servir café gelado a Gael.
Todos reagiram de alguma forma diante àquela farsa.
Iolanda infelizmente estava certa sobre o que contara a Maisie,
não existia filha de Dionísio desaparecida. O que existia eram
criminosos desesperados para que eu parasse de matá-los.
— Toda ajuda será bem-vinda — garantiu. — E deve ser do
conhecimento de todos que nós, gregos, nunca negamos abrigo à
convidados, mas seria de grande estima se o senhor comunicasse a
mim sobre suas próximas intenções.
Eu ri com desprezo.
— Perdoe-me pelo descuido. — Fui cínico e enfiei um pedaço
de pão na goela antes que falasse demais.
O velho bebeu do seu café antes de dar um novo rumo à
conversa.
— Meus empregados disseram ouvir gritos hoje pela manhã. —
Ele olhou do corvo para mim com aqueles olhos brilhantes. Para
nossos ferimentos acusatórios.
— Alastor estava me ensinando novos golpes, meu senhor. Não
há com o que se aborrecer. — Damon mentiu com um sorriso de
escárnio para mim.
Uma faca lançada no seu pescoço não faria muito escândalo.
— Peço que me procure sempre que quiser aprender. Garanto
que não pegarei tão pesado da próxima vez — compactuei e devolvi
o sorriso forçado.
— Alastor, creio que da próxima vez eu quem lhe ensine algo,
afinal. — Ele soou ameaçador.
— Eu lhe asseguro que esperarei ansioso por isso — devolvi.
Sua réplica parecia estar pronta, mas Gael o interrompeu antes.
— Algo está queimando?
Dionísio soltou o ar.
— Uma cortina pegou fogo noite passada. Já fizemos de tudo
para amenizar o cheiro, mas nada resolve — respondeu e levou uma
torrada à boca.
Mastiguei lentamente outro pedaço de pão, calculando o
impacto das minhas palavras a seguir:
— Preciso de uma arma.
Talheres foram soltos nos pratos. Quem pretendia comer, parou;
quem mastigava, tossiu. Olhares desertos me alcançaram.
— Por que a estranheza? — Perguntei a qualquer um. — Não
estamos em uma igreja.
— Por que quer uma arma? — A indagação veio do corvo e em
um timbre desconfiado.
Dei de ombros. Cogitei não o responder, mas reconsiderei.
— Sairei para procurar pela filha de Dionísio, não sei o que pode
me aguardar durante a busca.
— Meus homens irão com você, Alastor. — Dionísio
desconversou.
— Tenho meus próprios homens — retruquei e no mesmo
instante senti que fui examinado por Gael e Jailson. — Me obriga a
trabalhar para você, o mínimo que espero é que me forneça tudo o
que eu pedir.
O superior apoiou os cotovelos na mesa.
— Não quer bombas também? — Damon foi mais ligeiro.
— Claro. E a primeira será lançada em você — revidei, ríspido,
rasgando o riso que o cercava.
Dionísio interrompeu o próximo comentário do corvo e disse:
— O que me pede é inadmissível, Alastor. Não confio em você e
estou certo de que não se faz necessário uma justificativa para
minha falta de confiança.
Apoiei os cotovelos na mesa.
— Ter uma arma facilitaria meu trabalho em matá-los. Seria
tentador, admito. Mas não é por isso que ainda estão vivos. Na falta
de um revólver, há objetos afiados. Não digo que conseguiria
eliminar todos, mas que eu faria um enorme estrago... disso não
tenho dúvidas. — Fui objetivo. — Agora, pare de ser um covarde e
me dê a porra de uma arma!
Fez-se dois minutos de silêncio absoluto. Na verdade, Jailson
preencheu o som do ambiente com sua mastigada em um biscoito
crocante.
— Não lhe darei uma arma porque você não procurará por
minha filha. — Foi a resposta final de Dionísio. — Ela já está morta.
Eu o enganei porque essa foi a única forma de eu trazê-lo aqui.
Fiquei imóvel. Eu não esperava por sua revelação tão facilmente
e tampouco sabia se gostava dela.
— Você já sabia — concluiu, diante minha reação inalterável.
— Iolanda deve ter contado. — Damon fofocou.
O rosto desgastado pelos anos ficou abrasado.
— Mate-a! — Ordenou Dionísio com um golpe violento na mesa
a fazer saltar copos e pratos. Todos nos assustamos. — MATE-A
AGORA MESMO.
Não foi uma expressão, algo dito no calor do momento e o
corvo, o mensageiro da morte, se levantou no mesmo segundo para
cumprir a ordem.
Eu não dava a mínima para o que acontecia a Iolanda, se ela
morresse naquela noite ou na manhã seguinte, era irrelevante para
mim. E se fosse Damon a matá-la...uma a menos na minha lista. No
entanto, a bendita ruiva resolveu se pronunciar em um tom diáfano:
— Não. Não a mate. — Pediu com delicadeza, disfarçando a
urgência de um pedido mais grave. — Por favor.
Das duas, uma: ou Maisie enlouquecera ou ela se esquecera de
me contar algo poderoso o bastante para fazê-la implorar pela vida
de alguém que jurou matar com as próprias mãos.
Seus olhos me comeram inteira.
As palavras embrulharam-se na minha língua, asfixiadas em
saliva. Fiquei roxa de silêncio.
Não me olhe como se eu fosse uma doida, Nick. Estou fazendo
isso por você. Voltei devagar o olhar para o corvo que eu agarrava
pelo braço. Foi muito inusitado desde o meu pedido ao meu levantar
da mesa para segurar aquele monstro que eu jurei não tocar. Deixar
minhas promessas e meu receio em segundo plano era mais
importante que tudo.
Era simples, Iolanda e eu tínhamos um acordo importante
demais para ser quebrado por uma maldita ordem do superior. Eu
não diria que a dita cuja era nossa aliada, só que quando tudo foi
revelado pelos lábios envelhecidos e ressecados de Dionísio e todos
os pingos nos “i” foram colocados, vi que Iolanda se tornara nosso
bem mais valioso.
Nossa única saída.
Ainda que eu a odiasse profundamente, tinha de salvá-la para
nos salvar. Só ela sabia onde a filha de Nick estava escondida e
estava disposta a nos dizer.
Ela não podia morrer. Ainda não.
Damon baixou o olhar para meus cinco dedos frios como um
anel de inverno machucando seu braço. Se o homem não me
lançasse contra a parede nos próximos três minutos já seria uma
grande sorte.
— Se esqueceu de onde você está, sua sardenta!? — Dioniso
me alertou, ouvi suas cadências crescerem. — Não é você quem
ordena quem morre e quem vive.
— Não é uma ordem. É apenas... — gaguejei — um pedido.
— Não permito traidores entre os meus. Se não quer se tornar a
janta dos meus cães, solte o braço de Damon agora mesmo! — Seu
tom de voz era a única coisa forte dentro de sua carcaça de ossos
frágeis.
Algo se quebrou em algum lugar naquela sala, minha atenção,
no entanto, foi aprisionada por Nick. Seus olhos se iluminaram numa
forma comparada à lâmpada. Um brilho de trevas.
— Janta dos seus cães? — Ele se aproximou do superior,
criando brisa pelo movimento dos passos. Sutil como um sopro, mas
a cólera tremia entre seus cílios. — Por que não me mostra de que
forma você fará isso?
Segurei Damon com mais força ao perceber que ele pretendia
cumprir seu dever de proteger o seu superior. Ele não tentou se
soltar, se tivesse tentado, conseguiria. Continuou ao meu lado,
gelado como terra.
Gael e Jailson observava tudo ao mesmo tempo, apenas
esperando o momento certo de agir, caso fosse necessário.
— Você pensa que me amedronta, Alastor? Estou vivo a tempo
suficiente para me deixar ser desafiado por um rapaz feito você.
Acha que é o primeiro valentão a ser um problema para Érebos? —
Perguntou Dionísio, cruzando a fronteira da ira. — Eu já matei oito
como você.
— Como eu? — Debochou Nick, numa vibrante ressonância. —
Tenho minhas dúvidas.
Os ombros do superior elevaram-se.
— Iolanda morrerá, e quem tentar impedir, será morto também.
Fui claro o bastante? — Ele fitou Alastor num ardor soberano, mas o
comentário, eu soube, foi para mim.
— Me deixe ser claro também. — Nick declarou palavras ácidas.
— Se algum dos seus cães tocar na minha garota, eu acabo com
você. Não é um pedido e também não é uma ameaça. Entenda isso
como um aviso.
— Não quero feri-la. Só que não posso permitir que ela desafie
minhas ordens.
— O que acontecer a Maisie, acontecerá a você. — Nick se
aproximou até que menos de vinte centímetros de piso ornamentado
restasse entre os dois. — E agora sim estou ameaçando-o.
— Quer que eu quebre a cara dele, meu superior? — Damon se
intrometeu.
Nick o encarou.
— Estou louco para que ele diga sim. Pelo visto as porradas que
dei em você só o deixou mais burro.
Dessa vez o corvo me obrigou a largá-lo. Suas testosteronas
não suportaram as provocações de Nicholas.
— Por mim, vocês dois podem se matar. Só não estraguem meu
desjejum novamente — disse o superior.
As ameaças ou, como nas palavras de Nick, avisos, finalizaram
assim que um empregado entrou ofegante e tanto Dionísio quanto
Damon precisaram se retirar.

Eu não tinha muito tempo e o pouco que eu tinha, era calculado


pelo relógio de Damon. Eu precisava encontrar aquele pen drive.
Tudo que estava no chão do meu quarto foi jogado na cama
para que eu pudesse pular a procura de uma madeira solta, um som
oco, qualquer indício de um esconderijo secreto.
— O que ela está fazendo? — Ouvi Gael cochichar para Jailson.
— Deve estar com dor de barriga. — O outro respondeu.
Cravei os olhos em ambos, enraivecida.
— Não estou com dor de barriga!
Nesse momento Nick e sua indelicadeza de mão veio a meu
enlaço.
— Vai me dizer por que agora protegemos Iolanda? O que
esqueceu de me contar!?
Molhei a garganta.
— Não planejei não te dizer. Só aconteceu. — Era importante
que ele soubesse disso antes de mais nada. — Iolanda me disse que
se eu encontrasse o pen drive para ela, ela me diria onde sua filha
está escondida.
Nick não piscou. Nem uma vez.
— O quê? Como pode não ter me contado uma coisa dessas?
Você...
— Eu não queria te dar falsas esperanças. — Eu também não
planejei usar suas próprias palavras contra ele mesmo. Os
comentários só escorregaram por minha língua amanteigada.
Eu vi que ele ficou decepcionado, magoado até, mas Nick era
um homem maduro demais para prolongar uma discussão em meio a
emergências.
— Tudo bem. Eu sabia que cedo ou tarde precisaríamos desses
dois. — Ele virou seu tronco para Gael e Jailson. — Ajudem Maisie a
procurar o pen drive. Eu procurarei por Iolanda antes que Damon se
livre dela.
— E se não encontrarmos o pen drive? — Perguntei, aflita.
— Ainda teremos Iolanda e eu garantirei que ela diga tudo o que
sabe. — Nick foi maldoso.
Em seguida, atravessou a porta do meu quarto como se tivesse
asas. Rápido como o vento.
Eu observei os dois escoceses que me restaram.
— Então, como é mesmo o tal do negócio? — Gael perguntou
pelo que devia ser a quarta vez desde que eu nomeara o objeto.
Revirei os olhos com força e tornei a pular no chão feito uma
doida.
— Apenas me mostre tudo de estranho que encontrar.
— Isso pode ser muita coisa, ruivinha. Metade dos pertences
desse quarto são esquisitos para mim.
— Tenha santa paciência, Gael. Não entendeu que todos nós
estaremos ferrados se não encontrarmos esse troço? — Jailson
resmungou. Eu nunca o vira tão irritado.
— Apenas faça o que mandei. Tudo que você achar parecido
com as características que mencionei, coloque na cama.
Uma hora mais tarde com suor escorrendo pela testa, eu disse:
— Desisto. Não está aqui.
Gael e Jailson deitados de bruços no chão, ergueram os olhos
para mim.
— Mas...você disse...ter certeza de que estava. — Gael falou
entre respiradas profundas.
Cruzei os braços, brava. Eu não admitiria ser derrotada por
Damon, então sai pisando firme até seu quarto. Eu sabia que ele
estava lá porque ouvi quando trancou sua porta. Jailson e Gael me
espionavam agarrados ao batente enquanto eu batia à porta de
Damon. Bater, não era bem a palavra, eu estava esmurrando a
madeira como se ela fosse uma velha inimiga.
A maçaneta girou e o corvo surgiu.
— Duas aparições em menos de dois dias. Estou surpreso,
cabelo de fogo.
Apertei os dentes como se fossem inquebráveis.
— Me dê o pen drive — exigi.
— Assim você parte o meu coração. Por um momento pensei
que viera fazer as pazes — zombou.
Respire fundo.
E não surte.
— Não brinque, uma vez na vida. — O encarei, séria.
Ele assentiu.
— Estou inclinado a ouvi-la, mas — tamborilou os dedos na
porta —, não minta para mim outra vez.
Mordi o lábio inferior.
Os olhos pretos como carvão percorreram pelo longo corredor
até os dois escoceses que observavam o espetáculo feito uma
plateia.
— Entre. — Damon abriu espaço para que eu passasse.
Não me movi.
— Jure que não tentará me agarrar.
O pedido tinha sua coerência. Damon era o maior canalha que
eu tive o desprazer de conhecer.
— Se acha tão irresistível assim?
— Não. Mas meus instintos não me enganam.
Passei por ele e entrei em seu quarto.
— E o que seus instintos dizem sobre mim? — Ele encostou a
porta.
— Que você não sabe ouvir um “não”. Que não está
acostumado a ouvir.
Logo veio o som de uma risada grosseira.
— Eu posso prometer não a agarrar, mas não posso prometer
que não farei com que você deseje que eu faça isso.
Fechei a cara, ainda que soubesse que Damon só estava
brincando com a minha paciência.
— Esqueça. Eu não preciso da sua ajuda.
— Você devia me agradecer, cabelo de fogo. — Chamou minha
atenção. — Se eu contar ao meu superior que você e seu bando
estão procurando desesperadamente pela lista, ele ordenará para
que eu dê um jeito em vocês.
— E você recebe as ordens feito um animal adestrado —
critiquei.
Seus olhos incendiaram-se.
— Eu só sou esperto o bastante para saber que é suicídio
enfrentar essa gente.
— Essa gente? Você não devia incluir a si próprio? — Sondei
suas expressões.
— Eu sou obrigado a estar aqui! — Deu com a língua nos
dentes. Estava transtornado. — Meus irmãos contrataram os
serviços de Érebos há anos, mas não tiveram dinheiro para pagar.
Como eu era tudo que tinham, me mandaram para quitar a dívida. É
isso que faço desde então: pago por dívidas que não me pertencem.
Franzi o cenho.
— Que tipo de serviço seus irmãos pediram? — Perguntei,
curiosa.
— Eles tinham se envolvido com gente perigosa, para se livrar,
se meteram com gente pior ainda — explicou sem dar detalhes.
Molhei a garganta.
— Então você ficará aqui para sempre? — Ergui os olhos. Eu
queria entender tudo aquilo para tirar vantagem de algo.
De repente Damon sorriu, gélido como o clima da Escócia.
— É aí que você entra, cabelo de fogo. Eu entrego o pen drive a
vocês e vocês me ajudam a fugir daqui. Sei que Alastor chamou
aqueles dois escoceses para levá-la.
O chão tremeu sob meus pés.
— Como assim?
— Eu li a carta que ele escreveu. Na verdade, fui eu quem
cuidou para que ela chegasse ao destinatário sem ser vista por
algum grego.
Recuei.
— O que tinha no conteúdo dela?
— Alastor pediu que eles viessem aqui para levar você embora
— confessou sem filtro algum. — Isso não importa. Vamos direto ao
ponto.
Levei um tempo, mas assenti em concordância.
— Quer a nossa ajuda para destruir Érebos? — Questionei.
— Mais ou menos.
— Se você tem a lista, por que não o faz sozinho?
Ele andou pelo quarto.
— Porque é só uma lista, não um míssil. Não sei o dano que
isso causará. Se não acontecer o esperado, muitos virão atrás de
mim.
Talvez Damon estivesse dizendo a verdade. Talvez não. Só
havia uma forma de descobrir de que lado ele de fato estava.
— Diga onde está a filha de Alastor.
— Eu diria se soubesse. — Foi rápido na resposta. — Tudo o
que posso oferecer a você, é o maldito pen drive. Aceita trabalhar
comigo ou não?
Era uma proposta a se pensar. Eu não podia tomar aquela
decisão sozinha, sem consultar os outros três escoceses que
estavam no mesmo barco que eu.
— Alastor nunca aceitará tê-lo como aliado. — Foi o que eu
disse.
— E você?
— O que tem eu? — Estremeci.
Me olhou dos pés à cabeça. Não era possível. Devia existir em
algum inferno um diabo que se chamava Damon.
— Me aceita? — A pergunta me arrepiou como se sua língua
percorresse meu corpo todo.
— Não sei se confio em você — falei, enfim.
Ele me deu as costas e para a minha surpresa, ele saiu. Fiquei
parada até entender que eu devia segui-lo. Foi o que fiz.
Pensei que Gael e Jailson fossem pular no pescoço de Damon
quando viram ele entrar no meu quarto. E Nick. Nick já tinha voltado,
só que sem Iolanda. Mais um fracasso para o nosso dia.
Damon cruzou os braços e olhou ao redor.
— Vocês fizeram uma baita bagunça aqui, não?
Nick que estava sentado, se levantou.
— O que quer?
— Sua garota foi atrás de mim. — Damon falou, fazendo
questão de não dar mais detalhes.
— Por que não para de tentar provocá-lo e diz a todos o que me
disse. — O pressionei.
Damon me olhou de relance.
— Entrego o pen drive com uma condição. — Todos se calaram
para ouvi-lo. — Me levarão com vocês. Quero sair daqui com vida.
— Nem que me obrigue! — Nick disse sem demora.
— Nick, vejo que você não encontrou Iolanda, assim como nós
não encontramos o pen drive. Não temos absolutamente nada. —
Entrei em defesa do corvo. Coisa que nem em mil anos imaginei
fazer.
— Ele sabe onde minha filha está? — Nick perguntou a mim,
pois se recusava interagir com Damon.
— Não...
— Não sei onde sua criança está, mas sei onde encontrar
Iolanda. Pelo que noto, ela pediu o pen drive em troca da menina.
Me corrija se eu estiver errado. — Damon disse.
Ninguém o corrigiu.
— Não me agrada me aliar aos gregos — comentou Gael.
— Não sou grego. — Damon retrucou.
— Que raios é, então? — Jailson indagou.
Damon só sorriu e se voltou para Nick.
— E então, Alastor. Seu orgulho é mais importante que salvar a
vida daqueles que ama?
Nick eliminou a pouca distância que restava entre os dois até
estarem próximos o bastante para trocarem murros novamente.
— Não espere que eu vá matar por você, que eu vá levantá-lo
se estiver sangrando no chão. Se eu aceitar me aliar a você, não lhe
darei nada além da minha ajuda para fugir daqui.
O corvo sorriu.
— Seria deprimente se eu pudesse esperar outra coisa de você,
Alastor. É por isso que me mantenho ao lado de Maisie.
Gael e Jailson soltaram gargalhadas.
— Eu até poderia te alertar sobre a ruivinha não ser a flor que
você pensa que ela é. Mas será divertido ver você descobrindo
sozinho. — Jailson falou.
Dei meu maior sorriso faceiro para Damon e tomei meu lugar ao
lado de Nick.
— Eu sou a garota de Alastor. Está enganado se pensa que foi
minha beleza que ganhou seu coração.
Damon limitou-se em erguer uma sobrancelha e nos obrigou a
abrir espaço para ele passar. Ergueu as mãos e tirou o Olho do
Oriente da parede. Fiquei sem entender, até que ele nos mostrou
aquilo que tanto procurávamos. O pen drive.
Era menor do que eu imaginava.
— Eu procurarei por Iolanda. Imagino onde ela possa estar. Mas
assim que ela aparecer no palácio, Dionísio me obrigará a matá-la.
Temos que fugir hoje. — O corvo disse.
— Entregará isso a ela? — Perguntei.
— Em troca da informação de onde a filha de Alastor está.
— Então ficaremos na sua mão — rebati.
— Acredite, cabelo de fogo. Você vai preferir estar na minha que
na dela.
Não soube interpretar seu comentário.
— Deixe-me adivinhar, você só nos contará onde a criança está
quando o ajudarmos a sair daqui? — Concluiu Gael.
— Exato. — Foi sucinto. — Me encontrem no jardim Leste ao
anoitecer.
— Tenho uma ideia melhor, você entrega o pen drive a Iolanda
em troca do paradeiro da minha filha, compartilha isso comigo de
boa vontade e eu reconsidero não o espancar até a morte. — Expôs
Nick. Delicado como sempre.
Damon no seu modo tranquilo, guardou o pequeno objeto de
valor inestimável no bolso da sua calça.
— Não, Alastor. Nós seguiremos o meu plano.
— O que nos garante que dirá a verdade sobre a filha dele? —
Questionou Gael.
— Receio que nada — disse Damon. — Terão que confiar em
mim.

Nick estava mudo. Absolutamente, mudo. O braço encostado no


vidro da janela e a testa sobre o braço. Desde que os outros nos
deixaram a sós, ele não trocara uma única palavra comigo.
— Não acho que ele esteja mentindo — comentei pra puxar
assunto. — Na verdade, confiar nele é nossa única saída.
— Não seria se você tivesse me dito que Iolanda sabe onde
minha filha está! — Retrucou, insensível.
Foi como levar um tapa na cara.
— Não fui a única a esconder informações pertinentes! —
Devolvi na mesma arrogância.
Ele se virou, selvagem. Cabelo bagunçado e olhar frio.
— Eu não sabia que a carta chegaria. Já lhe disse isso.
— Não importa. São os meus amigos. Você tinha a obrigação de
me consultar — gritei. Eu não me dera conta de que aquela mágoa
estava tão intensa dentro de mim.
— E é a minha filha. Você tinha a mesma obrigação — revidou
no mesmíssimo tom.
Suspirei, impaciente.
— Talvez eu não tenha contado porque você chegou enfiando a
língua na minha boca — acusei.
Ele riu em um tom que usava especialmente com Damon. Eu
detestei.
— Não me lembro de você ter tentado me impedir.
Eu não discutia. Odiava brigar. Mas se Odin não me ajudasse,
eu iria lançar a cabeça de Nick contra aquela janela.
— Você estava tão desesperado em tentar me convencer a não
transar com Damon, que duvido que tenha ouvido qualquer coisa
que eu disse.
Um golpe baixo. Feroz.
— Se quiser transar com ele, vá em frente. Não sou eu quem
ficarei no seu caminho! — Disse, ríspido.
— Talvez eu queira sim! — A necessidade de não o deixar ter a
última palavra foi tão grande, que eu apenas me deixei levar.
Nick fechou o punho. Pensei que ele fosse socar as paredes e
quebrar objetos. Mas...ele riu. Não uma risada maligna e
delinquente. Uma risada divertida e misteriosa.
— Está rindo de mim? — Me senti uma idiota por precisar
perguntar.
— Estou — confessou e eu fiquei ainda mais zangada. —
Acabei de descobrir como você pode ser deliciosamente cruel.
— Delici...Estamos no meio de uma briga e você...Ah, por favor.
Está rindo de quê agora?
— Acha que isso é uma briga?
Eu me afastei quando ele se aproximou.
— Sim. É. E eu sei que você chamou Gael e Jailson aqui para
eles me levarem embora em segurança. Quando pretendia me
contar?
— Como sabe sobre isso? — Franziu o cenho.
— Damon me contou. Aparentemente ele encontrou sua carta e
a leu antes de enviar — expliquei.
— Então foi ele...— Pensou e se aproximou mais um pouco. —
Não importa. Fiz o que era preciso para protegê-la. Sabia que se lhe
contasse, você me convenceria de que é forte o bastante para ficar
ao meu lado, aqui. E eu acredito que seja. Só não pode esperar que
eu fique de braços cruzados enquanto coloco meus alvos em suas
costas.
— Damon me...
Levou um dedo em meus lábios para me calar.
— Shhh, não mencione o nome de outro enquanto planejo
comê-la.
— Estamos no meio de uma discussão, Nicholas. Não pode
estar com pensamentos depravados logo agora.
Ele sorriu, para a minha ruína.
— Sim, eu posso.
— Você está usando o prazer como desculpa para fugir do que
está acontecendo.
— Não estou. Eu apenas sei como dividir bem o meu tempo. Se
não há nada que eu possa fazer em relação às coisas ruins que
estão acontecendo, por que não enfiar minha língua na sua boca?
Ou onde mais você ordenar.
Prendi o ar. Ele não me tocou. Além daquele dedo que usou
para me silenciar, ele não me tocou. Estava me torturando
propositalmente.
— Estou zangada com você. — Foi tudo o que consegui
responder.
— Me diga, como eu posso reverter isso?
Pensamentos perversos me sondaram.
Não pedirei para que me toque.
— Quero que prometa que me contará tudo, a partir de agora —
exigi.
— Tudo? — Ergueu a sobrancelha loura. — Sabe que carrego
uma bagagem grande demais na minha cabeça, não?
— Não me importo. Estamos juntos nisso. Eu quero saber de
tudo.
Abriu um sorriso descarado.
— Tudo — reforçou — Então devo compartilhar meus
pensamentos nesse exato instante?
Meu desejo por seu toque já avançava a linha da obstinação.
— Se os considerar relevantes...
— Estou agora pensando no quão adorável foi ouvi-la dizer que
é a garota de Alastor.
— Não devia levar tão a sério algo que foi dito no calor do
momento. — Agarrei-me à maldade e deixe-me possuir.
— Lembrar-me-ei disso da próxima vez para não agir feito um
tolo feliz.
Ergui o rosto na sua direção.
— Você me deve um pedido de desculpas.
— Devo? E exatamente o que de errado fiz? — Contestou.
— Como pode não saber?
Me fitou, pensativo.
— Já expliquei o porquê de ter omitido informações — falou. —
Se alguém deve um pedido de desculpa aqui, é você.
Ri com sarcasmo.
— Se você se acha com razão. Ótimo.
— Ótimo, então — concordou.
Retesei os lábios.
— Eu não faria esse jogo comigo se fosse você — alertei.
Nick apoiou um braço na parede na altura da minha cabeça e se
inclinou, roçando a ponta do seu nariz no meu. O ar quente que
exalou dos seus lábios em minha pele foi uma perdição.
— É uma boa adversária, garota?
— A melhor.
— Não acho que me vença — instigou.
Molhei a garganta para conseguir dizer no melhor tom:
— Esteja pronto para me ter novamente apenas em seus
sonhos, Nicholas Coleman.
Deu uma risada grave que me rasgou, aceitando o castigo com
a mesma normalidade que aceitava o delicioso pecado.
— Espero que seus dedos a satisfaça. Mas, se quiser — ergueu
uma mão à altura dos meus olhos —, posso lhe emprestar os meus
se pedir com carinho.
Trinquei os dentes e desferi um tabefe na sua mão atrevida. Se
ele queria testar meu orgulho, pois bem, ele teria isso.
— Você não sabe com quem está lidando — falei, para mostrar
que não era sangue de cordeiro que corria nas minhas veias.
— Acho que agora estamos falando a mesma língua, doce
garota. — O miserável respondeu.
— Me pedirá desculpas de joelhos.
Ele me deu uma piscadela e caminhou em direção ao banheiro
do meu quarto.
— De joelhos só fico se for para lamber você, docinho.
Nick e eu nos encontramos com os outros assim que a Lua
eclodiu no céu. Como nos esbarramos com Gael e Jailson no
corredor dos dormitórios, fomos todos juntos encontrar com Damon
como era o combinado. A tentativa de sermos discretos foi ignorada
assim que um dos cachorros nanicos de Dionísio começou a latir
para nós. Então quando Nick disse: “corre”, corremos, cientes de que
os empregados nos observavam com um olhar questionador.
Seguimos pelo Leste a plenos pulmões.
Aquela era uma área de Érebos que eu não conhecia. Quero
dizer, duvidava que eu conhecesse dez por cento dela. De solo
rochoso, muita topiaria, o jardim Leste era cercado por altos muros.
O vento forte permeava por entre as folhas de cores variadas e
quando chegava em meus ouvidos, era quase musical. Também ouvi
o som das ondas, um indício de que o mar não estava longe dali.
Atravessamos árvores e arbustos de flores perfumadas,
espelhos d´água em meio às alamedas, colunas adornadas por
espécies como rosa trepadeira. Eu podia não entender de tecnologia
e todo o resto, mas quando se tratava de natureza, eu era tirava de
letra.
Embaixo de um caramanchão, estava Damon. A expressão era
bem menos animada que eu esperava encontrar. Culpei o medo, ele
só podia estar com medo.
— Ela está morta. — Ele disse.
— Como assim, morta? Você a matou? — Questionei.
— É claro que não fui eu — falou, incontestável. — Encontrei o
corpo boiando na piscina. Estão agora mesmo a retirando de lá.
— Por isso estava tudo tão silencioso — reparou Gael.
Nick arfou ao meu lado.
— Então você não descobriu onde minha filha está?
Damon balançou a cabeça em negativa.
Ficamos todos desolados, cada qual a sua maneira, mas
Nick...Nick precisava culpar alguém e nada mais justo que culpar o
único entre nós que tinha alguma ligação com Érebos.
Ele partiu para cima de Damon com sua ira e o segurou pelo
colarinho.
— Eu devia ter matado você na primeira vez que o vi —
sobressaltou.
Damon também estava furioso e empurrou Nick pelo peito. Ele
cambaleou em cima de Jailson, mas logo recuperou o equilíbrio das
pernas.
— Eu disse que não matei Iolanda. Quando eu cheguei, ela já
estava boiando. Na verdade, tudo indica que você foi o último a vê-la
com vida.
— Está me acusando? — Nick grunhiu. Os olhos eram venosos.
— Pela situação do corpo, faz poucas horas que ela está morta.
Eu estava com Maisie, esses dois estavam juntos porque eu os vi. —
Apontou com o dedo para Gael e Jailson. — Mas você...Você saiu
para procurá-la, não foi?
Olhamos para Nick.
— Por que diabos eu mataria a única pessoa que sabe onde
minha filha está?
Meu coração doeu como se tivesse levado uma mordida. Eu me
lembrei de quando ele jurou que faria Iolanda pagar por ter tentado
me assassinar, de como sua voz soou nublada e vingativa. Nick tinha
razões para matá-la, mas Damon também tinha, recebera ordem de
Dionísio para fazê-lo e até então ele tinha se mostrado muito
obediente. Ele podia estar mentindo sobre a real situação do corpo
de Iolanda na piscina, afinal, entre nós, ele foi o único a vê-la.
Mas, se o corvo a matou, por que parecia tão incontrolável?
— Talvez não tenha sido nenhum de nós — expôs Jailson, na
tentativa de acalmar os ânimos.
— Não seja idiota. Ela não caiu e se afogou — debochou
Damon em péssima hora e Jailson deu um passo em sua direção.
Tudo que eu não precisava era ter que lidar com uma nova briga,
então me coloquei entre os dois alfas.
— Não serei hipócrita em dizer que lamento a morte daquela
mulher, mas ela morrer justo hoje nos fez voltar alguns passos —
resolvi falar. — Estamos com um problema maior aqui para
bancarmos detetives. — Me exaltei no final: — Precisamos de um
novo plano. Será que poderiam pensar?!
A ventania concordou comigo, pois ricocheteou o rosto de todos.
Por favor, não chova. Os olhos de Nick deixaram claro que ele
pedira o mesmo que eu.
— Não posso sair daqui antes de saber onde Luiza está —
declarou Nick.
— Ainda temos o pen drive. — Os lembrei.
— O que planeja? Ameaçar Dionísio? — O tom de voz do corvo
foi de escárnio. — Ele me ordenará para degolá-la assim que vir isso
na sua mão.
— Para o seu bem, tenha cuidado em como fala com ela —
alertou Nick, e lá no fundo eu sabia que ele só não tinha acabado
com Damon porque precisávamos dele vivo.
— Ou o quê? — Implicou.
— Não me darei ao trabalho de respondê-lo. — Nick revidou.
— Ou vocês dois não se matam de uma vez ou aceitam viver
em harmonia. Não deve ser tão difícil assim — amolou Gael. —
Todos já entendemos que vocês se odeiam, mas temos o desejo de
sair daqui e encontrar a filha do policial...
Damon riu baixinho.
— Não há saídas. Aceitem o destino de vocês, eu já aceitei o
meu. Tenham uma boa noite.
Nick foi para um lado e o corvo, para o outro, me deixando com
Gael e Jailson.
Não. Aquilo não podia acabar assim. Eu nunca aceitaria viver
entre aqueles criminosos, tampouco iria embora sem Nick. Eu não
aceitaria que ele e Damon desistissem logo no primeiro contratempo.
Eu agirei, nem que seja sozinha.
Corri de encontro a Damon com o vento agitando meus cabelos
e puxando o vestido.
— Espere. — O chamei em um grito.
Ele me olhou por cima do ombro.
— Não correu atrás do macho errado, meu bem? — Soou
ameno e parou em frente a um arbusto.
Desconsiderei sua insolência.
— Me dê o pen drive. — O pedido saiu em tom de exigência
despropositalmente.
Pendeu a cabeça para um lado e me encarou como se eu fosse
um animal fofinho.
— Me dê um beijo.
— O quê? — Perguntei, ultrajada.
— É assim que me sinto quando me pede algo tão valioso. Seus
lábios são importantes para você, assim como esse objeto é para
mim.
— Não...Não é a mesma coisa. — Titubeei.
— Então me daria um beijo? — Insistiu para se deleitar com
meu desconforto. Era um demônio!
— Me daria o pen drive?
Sua surpresa foi tão grande quanto a minha. Mas eu estava
desesperada. Nick estava desesperado. E uma criança estava em
perigo. O que seria um beijo perto de tudo que estávamos
enfrentando?
Como uma sombra que se aproxima, Damon diminuiu a nossa
distância, até que seus dedos pudessem entranhar em meus
cabelos. Eu fiquei feito uma pedra fria e solitária. Eu queria matar
aquele sorriso crescendo em seus lábios, queria reduzi-lo às
lágrimas de sangue.
Seu rosto se aproximou dos meus, os lábios, a respiração, ele
nunca estivera tão perto que eu pudesse sentir o aroma masculino
do seu perfume. O sorriso ainda alinhado no rosto, se divertindo com
a drástica situação. Era o poder e Damon adorava tê-lo para si.
Passei as mãos por suas costas largas assim que ele inclinou a
cabeça para me beijar, e antes que nossos lábios pudessem se
encontrar para um pecado irreversível do qual eu me arrependeria
profundamente, eu me afastei de supetão e corri.
Corri muito, ofegante.
—VIGARISTA! — Ouvi Damon urrar ao se dar conta que eu o
roubara e o enganara.
Apertei o pen drive em minha mão e corri a toda velocidade pelo
jardim.
— Uma ladra, querido corvo, sempre rouba — falei de volta, mas
não sabia se ele ainda podia me ouvir.
Ainda correndo a todo vapor, atravessei a porta do saguão
principal. Meu riso vitorioso morreu quando trombei em algo rígido e
caí de bunda no chão lançando o pen drive para longe do meu
alcance.
— Onde conseguiu isso? — Perguntou o velho que eu sequer
sabia o nome e chutou o objeto na minha direção para que eu o
visse.
Senti meus lábios gélidos tremerem enquanto eu procurava uma
mentira boa o bastante para contar.
— Eu te fiz uma pergunta, menina! — Ele pressionou,
impaciente. Apesar dos cabelos brancos como neve e a postura
curvada de quem carregava pecados demais, aquele homem me
amedrontava.
Diga algo. Vamos, diga.
— Isso é meu. — Ouvi a voz de Damon às minhas costas.
Aproveitei que a atenção do velho fora desviada e me levantei. — Eu
o deixei cair durante um passeio pelo jardim. Obrigado por encontrá-
lo para mim, Maisie.
As sobrancelhas grisalhas se juntaram.
— Por que estava com isso no bolso? — Perguntou ao corvo.
Damon se abaixou para pegar o pen drive no chão,
aproveitando-se do tempo para providenciar uma desculpa
esfarrapada. Ao menos era o que eu faria.
— Tive que mudá-lo de esconderijo. Para que tantas perguntas,
Sr. Tales? Estou certo de que o senhor tem assuntos mais
pertinentes para tratar. — Entrou na defensiva, mas tanto o corvo
quanto eu, sabíamos que o velho não compraria aquela desculpa
sem verificar de alguma forma.
Tales, ainda que carrancudo, assentiu e arrastou os pés pelo
corredor. Damon esperou até que a silhueta do sujeito
desaparecesse para me prensar contra a parede com seu corpo
musculoso. Prendeu meus braços sobre a cabeça com uma mão, e
com a outra, ergueu meu rosto pelo queixo.
— Acha que é tão fácil assim me passar a perna? — rosnou. —
Você me roubou algo importante, agora chegou minha vez de cobrar
minha parte.
Me remexi contra a parede, tentando me libertar.
— Prefiro ser morta a beijá-lo!
— Bem, então estamos em um impasse, pois não faz parte dos
meus planos matá-la essa noite.
— Eu o morderei com toda minha força se você se aproximar. —
Ameacei aos berros.
As covinhas surgiram nas bochechas de pele branca e lisa.
— Isso é verdadeiramente excitante — brincou. — Eu fui um
cavalheiro e lhe pedi um beijo, mas vejo que você prefere roubar...
Seus lábios fervorosos encontraram os meus antes que eu
pudesse virar o rosto. Rilhei os dentes para não permitir que sua
língua atravessasse minha boca, mas Damon era exigente, não tive
outra alternativa que não ceder. Nossas línguas se tocaram e o ar
me faltou.
Não. Não. Eu teria engolido minha própria língua se
conseguisse, apenas para mantê-lo longe.
De repente, tudo parou. Não senti o peso do seu corpo sobre o
meu, nem o calor da sua pele, apenas ouvi o baque de quando seu
corpo foi lançado para longe e Damon esbarrou com as costas num
vaso de porcelana que se estilhaçou no chão.
— Os avisos acabaram. — Nick dobrou a manga da sua camisa
no braço e se aproximou do corvo entre os cacos. — Se você não é
capaz de entender o que eu digo, então o farei sentir. Maisie, saia!
— Não sairei! — A certeza de poucas palavras teve mais força
que um imenso discurso vazio. E, mesmo que assustada pelo que
acabara de acontecer, reconhecia que ficar de braços cruzados
enquanto Nicholas espancava Damon até a morte, não era de longe
uma opção.
— Ruivinha, se o policial não matar esse desgraçado, eu mesmo
o farei. Saia já! — Gael reforçou o pedido de Nick, tão enraivecido
quanto.
Pensei em tudo e ao mesmo tempo. Eu estava com muita raiva
por Damon ter me agarrado, havia feito algo contra a minha vontade
e merecia punição por isso. Mas, entrávamos naquele inconveniente
de que ele não podia morrer. Se tudo já estava tão difícil com a ajuda
dele...
— Esse babaca não merece o crime — sentenciei. — Foi só um
beijo. Por favor!!!
Linhas de expressão se formaram na testa de Nick. No entanto,
ele me ignorou completamente. Se abaixou e pegou um dos cacos
espalhados pelo chão.
— Podia ter sido só um aperto de mão, eu ainda desejaria matá-
lo — declarou Nick, fleumático.
— O que o incomoda tanto, Alastor. Eu tê-la beijado ou Maisie
ter gostado? — Damon provocou em um nascer de sorriso nos
lábios.
— Se você não calar essa boca eu matarei você com suas
próprias mãos. — O ameacei, encolerizada.
— Não. Eu posso respondê-lo — disse Nick, não pareceu
menos irritado, mas demonstrara mais contre. Os poucos metros de
assoalho que separava um homem do outro, fora reduzido por Nick.
Depois de dois passos, ele ficou de cócoras e ergueu o pedaço de
porcelana à altura dos olhos do corvo. — Sabe o que realmente me
incomoda? O fato de tê-la beijado contra a vontade dela. Você é
mesmo tão repugnante a ponto de considerar isso normal?
— Engula seu orgulho e aceite que foi trocado por uma mulher
pela segunda vez. — Sorriu, sentindo-se grande. — O que foi?
Achou que eu não soubesse? — Damon tinha o dom do deboche. —
Talvez haja algo de errado nas suas partes inferiores, afinal.
Antes que Nick pudesse partir para cima do corvo e rasgar sua
garganta com um ódio que cegava até meus olhos, Dionísio chegou.
— Vocês dois...de novo!? — O inconformismo na sua voz era
quase tangível. — E ainda quebraram o meu vaso!
— Era um vaso feio, meu senhor. Se colocássemos a cabeça de
um deles no lugar, ficaria mais harmônico — recomendou Damon,
vivaz.
Trinquei os dentes e encarei o tirano com um olhar fatal, porém,
foi Nick quem tentou atacá-lo fisicamente, Dionísio o impediu mais
uma vez, ficando entre os dois.
— Parem ou eu mesmo acabarei com os dois. Preciso que se
resolvam para que possam trabalhar juntos.
— Eu não trabalho para você — retrucou Nick, com uma voz
ardida que me transformou em cinzas.
— Sim, você trabalha e fará tudo o que eu ordenar. A não ser
que tenha deixado de se importar com sua criança.
Reparei quando Nick cortou a própria mão com o caco de
porcelana e sangue gotejou no chão.
— Eu sempre soube que jogava baixo, só não imaginei que iria
tão longe. — Nick disse, com um relâmpago de lágrimas nos olhos.
— Não jogo baixo. Faço o que é preciso para conseguir o que
quero. Prefiro chamar de obstinação.
Nick se aproximou feito uma tempestade sem ventos.
— Chame do que quiser. Há apenas uma certeza em tudo isso.
A certeza de que eu nunca servirei a Érebos. — A voz soou
tranquila.
O olhar do superior resplandeceu sobre mim, transformando
minha coragem em nada mais que uma sombra.
— Talvez você esteja precisando de um incentivo, Alastor. — A
voz soou como a aridez de um deserto.
Mais gotas de sangue pingaram da mão de Nick. O sangue era
de um vermelho que sufocava.
O azul arrogante dos seus olhos empregou-se nos de Dionísio.
— Não chegue perto dela. — Ele alertou mais rápido que toda
reflexão e em um timbre que podia erguer cadáveres.
O velho soltou o ar pela boca de modo indiscreto e longo.
— Tenho sido educado pedindo para que trabalhe para mim,
Alastor. Mas você tem se mostrado resistente. Eu preciso te dar um
incentivo e como eu, honestamente, prefiro não machucar sua filha,
só me resta outra opção.
Minha saliva amargou e minhas mãos sempre inquietas, abriram
e fecharam-se.
— O que quer que eu faça? — Nick questionou, à deriva.
O superior sorriu, vitorioso.
— Fico feliz que estejamos entrando em um acordo, só que eu
prefiro conversar com você e o corvo a sós. Por que não me
encontra no meu escritório depois de limpar essa bagunça que fez?
E você — se virou para Damon —, me acompanhe. Quero saber
porque achou pertinente jogar o corpo de Iolanda na minha piscina!
O rosto de Damon empalideceu, mas ele acompanhou seu
superior mesmo assim. Quando os dois se foram, Nick finalmente
largou o caco que ainda segurava em agonia. Corri para ver o
estrago que causara em si mesmo, mas ele puxou o braço antes que
eu pudesse alcançá-lo.
— Gael, por que não vamos procurar um pano para limpar o
chão? — Propôs Jailson, como desculpa para dar privacidade a Nick
e eu.
— Por que raios faríamos isso com esse tanto de empregados
pela casa? — O outro rejeitou a proposta. Jailson o puxou pelo braço
mesmo assim e o carregou para fora do palácio.
Nick se escorou na parede e escorregou até o chão para se
sentar. O olhar fixo na palma da mão ferida, mas a expressão não
era de dor.
— Por que foi atrás dele, Maisie? — Ele perguntou sem erguer o
rosto em um tom estranho, singular.
Fui pega de surpresa.
— Eu...pensei...não sei.
— Quantas vezes preciso te dizer que essa gente é perigosa?
— Cravou seu olhar mais cruel em mim. Senti como se muros
tivessem se erguido à minha volta. — Damon está usando você para
me atacar e você tem facilitado muito para ele.
— Facilitado!? — Tentei não descer da minha torre de orgulho e
desdém. — Eu só fui atrás dele porque você deu as costas para
mim. Fui atrás dele porque você desistiu de...
— Desisti? — Me interrompeu com amargura. Atravessei pelo
gelo invernoso dos seus olhos. — Está insinuando que eu desisti
exatamente de quê? De encontrar a minha filha?
— Não era o que eu ia dizer. — Engoli as bruscas frases que
aos meus lábios vieram. — Eu roubei o pen drive, por isso Damon
me atacou. Tentei fazer com que não precisássemos mais da ajuda
dele e nem da de ninguém.
— Apenas pare de tentar. — Voltou a encarar a palma da mão.
— O quê?
— Quero que você e seus amigos saiam daqui. E eu os ajudarei
a fugir.
— Já disse que não o deixarei sozinho!
— Se possível, não entenda isso como um conselho. — Teve
um amoroso cuidado com as palavras.
— Uma ordem?
Ele só assentiu e eu quis socá-lo. Por Odin, como quis.
— Está cogitando aceitar ser um membro de Érebos? —
Perguntei em uma doce inquietação.
Nick se levantou. Os gloriosos olhos azuis que eu tanto amava e
que eu transformara na minha cor da sorte, nunca os vira tão
opacos.
— Um homem precisa aceitar quando está encurralado. Já
permiti que Luiza e as garotas ficassem desaparecidas por tempo
demais. Eu estraguei a vida delas. Não estragarei a sua, nem a dos
seus amigos.
— Não pode se culpar pelo que Dionísio fez. Ele o chantageou,
você não teve escolha.
— Maisie... — Exigiria um estudo profundo para compreender a
brandura daquela voz. Um timbre que sequestrava todas as minhas
forças.
— Não. Se quer se culpar por algo, se culpe por não se esforçar
mais.
— Não me esforçar mais?
— Damon só me roubou aquele beijo porque eu roubei o pen
drive dele. Eu aceitei correr um risco, Nicholas, está na hora de você
aceitar também.
— O que está tentando dizer, garota?
O encarei friamente e não ponderei sequer pensar.
— Faça com que esses filhos da puta conheçam Alastor e não
somente boatos. Ataque o alfa e toda alcateia recuará.
Seus olhos ficaram perdidos na névoa dos meus.
— Se eu resolver agir, colocarei você em perigo.
— Você só tem uma filha, Nicholas. E não sou eu. — Desejei
que a conversa fluísse como um verdadeiro rio. — Nós temos o
corvo do nosso lado. Saiba usá-lo a seu favor.
— Eu quase o matei apenas por ele tê-la beijado. Eu revivi o
meu trauma de infância quando o vi forçá-la a ceder algo que não
queria. Como pode achar que tenho sangue frio o suficiente para
trabalhar com ele?!
Senti um lúgubre arrepio passar por minhas costas.
— Se quiser que tudo acabe bem, fará o que estou dizendo. —
Fui firme na resposta.
— Eu não posso fazer isso — exprimiu em um timbre
misterioso.
— Sim, você pode e você me tem para lembrá-lo disso.
Ele tentou mascarar um sorrisinho ladrão de corações ao
perguntar:
— Então você é minha outra vez?
Seu joguinho terrível fez minhas pupilas sensíveis tremerem
— Você me tem como aliada, Nicholas Coleman. Não confunda
as coisas.
Seus olhos pairaram sobre mim. O solo esquentou sob meus
pés.
— Nada é mais grande, nobre e doloroso. Então, como minha
aliada, poderia me ajudar a limpar minha ferida? — Perguntou, com
a graça de um menino. Mas ele tinha intenções maldosas, eu podia
sentir.
— Você não precisou da minha ajuda para se cortar. Se vire com
seus próprios ferimentos, Alastor. — Me fiz de durona.
— Eu posso cuidar dos meus próprios ferimentos, mas eu prefiro
que você cuide.
Cruzei os braços e quis que Gael e Jailson irrompessem pela
porta antes que eu cedesse aos cortejos indecentes de Nick.
— Não devia estar se preparando para nos salvar? — Dei um
banho de água fria nele.
Ele suspirou. O acompanhei com os olhos enquanto ele seguia
pelo caminho que Dionísio e Damon seguiram há poucos minutos.
— Farei o que me pediu. Mas depois, espero que possa me
recompensar.
Faça o que tiver que ser feito. Se essas não eram as palavras
mais adoráveis, eu não sabia quais eram. Durante todos os dias em
que passamos aprisionados no palácio, eu estive contendo a
impetuosidade dentro de mim. Mas aquele discurso de Maisie me fez
abrir o baú da maldade.
Se ela estava disposta a sangrar, eu não contestaria sua
decisão.
Pé ante pé, rumo à sala de Dionísio. Levei uma mão à maçaneta
e respirei fundo.
— Demorou! — Ele resmungou assim que entrei.
O corvo estava sentado numa poltrona, enquanto o seu superior
bebericava seu conhaque.
Tentei ser discreto enquanto avaliava minhas possibilidades. O
que eu ia fazer com Dionísio ainda era uma questão que eu
precisava refletir com cautela. A priori, era importante mantê-lo vivo.
— Antes que diga o que quer de mim, gostaria de mover
algumas peças no tabuleiro do seu jogo — respondi, ignorando seu
comentário.
Ele tomou sua bebida antes de me responder.
— Quais peças?
— As três que você mantém refém...Quero que as liberte.
Ele riu com zombaria.
— Você me mataria no primeiro minuto se eu fizesse isso.
Era algo que eu não me atreveria negar.
— Você tem Maisie aqui. Ela é tão importante para mim quanto
as outras.
— Será mesmo?
— Claro que sim. — Fui rápido. — É por ela significar tanto que
eu desejo arrancar as penas do seu corvo sempre que ele se
aproxima dela.
Damon praguejou e me insultou baixinho, mas não fiz questão
de responder.
— Admiro sua tentativa, Alastor. Mas seu poder de persuasão
está muito enfraquecido hoje. Não lhe darei o que me pede. Não
quando estou com todas as cartas na manga.
Fechei a mão que estava ferida apenas para me lembrar de
como era sentir qualquer coisa além de ira extrema.
— Acha que está com todas as cartas? — O encarei de cima
apenas para ter o deleite de vê-lo menor. — Eu estou com sua
listinha tola e estou oferecendo apenas uma opção a você. Solte-as
ou eu ligarei para cada nome que há na lista e todos saberão que
Érebos não é uma sociedade confiável e organizada.
— Não minta para mim! — O superior desacreditou em um grito
e transferiu o olhar para seu corvo em busca de respostas.
Eu estava fazendo uma jogada arriscada e precipitada. Maisie
pediu para eu usar Damon e era isso que eu estava fazendo. Mas se
o desgraçado me desmentisse, então eu não teria absolutamente
nada e ainda me passaria por tolo.
Por Deus. Quanta hipocrisia da minha parte não admitir que
adorei ferrar com Damon.
— Responda, seu moleque! — Dionísio o pressionou.
Damon trincou o maxilar e eu vi veias saltarem em sua testa.
— Ele está dizendo a verdade. É por isso que o senhor nos
encontrou brigando. — O corvo disse compactuando comigo e se
levantou. Fechou o botão do seu blazer preto, enfiou as mãos nos
bolsos da calça e me falou de modo ríspido: — Quando cogita
devolver o que me pertence?
Me contive para não soltar um suspiro de alívio.
— Devolverei assim que seu mestre der a ordem para que
libertem minha filha. — Fui sarcástico.
O sangue de Dionísio subiu para sua cabeça. O rosto ficou
vermelho de raiva, os lábios por sua vez, ficaram brancos.
— Eu vou acabar com você, seu imprestável. — Rosnou para
Damon. — E depois, vou atrás de cada um da sua família!
Acompanhei com os olhos quando o corvo prontamente puxou
uma arma, estendeu os braços e deu um disparo contra seu superior.
O tiro só não exerceu um estrondo maior devido ao silenciador, mas
o sonido oco ainda podia ser facilmente reconhecido por qualquer
um que passasse por aquele corredor. Era questão de minutos até
que alguém atravessasse a porta.
Antes de me questionar o porquê de Damon ter feito aquilo, me
ocorreu que, se aquela arma estava o tempo inteiro à sua
disposição, ele podia ter me matado em um piscar de olhos enquanto
eu o ameaçava com um tosco pedaço de porcelana. Meu ego não
queria dar o braço a torcer, mas a incerteza de sair vivo daquela sala
começou a ser meu principal pensamento.
Dionísio foi levado ao chão pela perna atingida. Qualquer outro
homem teria ficado em pé, ainda que machucado, só não um
covarde como ele.
— Dê o que Alastor está pedindo para que eu possa acabar com
o sofrimento da sua vida miserável de uma vez! — O corvo rosnou.
— Malditos. Estão...trabalhando...juntos? — Ganiu Dionísio,
traçando um caminho de sangue ao passo em que se afastava com
os calcanhares, até trombar com as costas na própria escrivaninha.
Havia medo em seus olhos. Um medo que certamente devia estar
também nos meus.
Damon e eu trocamos olhares e nenhuma resposta verbal saiu
de mim. Eu não o odiava menos por ele estar me ajudando, mas eu
o respeitava um pouco mais.
— Eu o matarei hoje, meu superior. A questão é: eu lhe darei
uma morte rápida ou a mais lenta e dolorosa? Tudo dependerá de
quanto tempo levará para nos dar o que queremos.
Dionísio cuspiu no chão, como de praxe.
— Se eu morrer, aquelas três morrerão! — Ele alertou.
Nesse momento a lembrança da voz de Maisie reverberou em
meus ouvidos: "Ataque o alfa e toda alcateia recuará." Ela estava
certa, mas Dionísio não me daria a resposta que eu precisava, sua
honra não cederia. Por Deus, ele era líder de um bando de
criminosos. Se ele se mostrasse fraco e nos desse o que pedíamos,
perderia todo respeito que conquistou. Dionísio preferiria morrer a se
entregar.
Não era do líder que eu conseguiria respostas e sim dos
membros mais fracos.
— Ele não nos dirá — falei para Damon.
Ele nem sequer me perguntou se eu concordava com sua
decisão, apenas o fez. O segundo disparo foi na cabeça de Dionísio
e eu vi miolos se espalharem pelo chão.
— Você é lo...
Não tive tempo de concluir a frase, pois Damon veio na minha
direção e me prendeu contra a parede com um braço no meu
pescoço.
— Da próxima vez que for usar meu nome, espero estar ciente
disso — rosnou para mim.
— Da próxima vez que for dar um disparo, me avise!
— Ficou assustado, Alastor? — Perguntou, rindo. — Ou está se
perguntando porque não matei você quando tive tantas
oportunidades?
O empurrei para me libertar. Que eu era mais forte, não havia
dúvida, mas o corvo estava em total vantagem de posicionamento.
Ele não recuou.
— Não perco meu tempo me questionando suas tomadas de
decisões — retruquei.
O sorriso nascia em seu rosto com a mesma pontualidade que o
sol nascia pela manhã.
— Agora acredita de que lado estou? — Ele perguntou e
apontou com a cabeça para o corpo de Dionísio estirado no chão.
Segui o movimento com os olhos.
— Você conseguiu ser bem convincente.
— Isso me deixa feliz, Alastor. Agora que estamos de fato no
mesmo time, quero que me dê a sua palavra de que me ajudará a
sair vivo daqui.
Trinquei os dentes.
— Se quer trabalhar comigo, corvo, aprenda a manter suas
mãos longe de mim e da minha garota.
— Tem certeza de que é isso que quer? Digamos que eu não
me importaria em cuidar da parte traseira dela enquanto você se
beneficia com a parte frontal.
Foi a gota d'água. O lancei longe e com força o suficiente para
fazê-lo tropeçar no defunto. Damon se apoiou na escrivaninha com a
mão desarmada e me apontou sua pistola apenas por diversão.
— Regra número um. — Pisei em sangue que não era meu
enquanto me aproximava de Damon outra vez. — Nunca mais
aponte uma arma para mim se não tiver intenção de dispará-la.
— Talvez eu a dispare — ameaçou.
Não acreditei nele.
— Regra número dois — continuei. — Não brinque sobre
relação a três novamente.
— É tão possessivo assim?
— Não. Apenas acredito que não preciso de ajuda para
satisfazer uma mulher.
Ele só ergueu uma sobrancelha.
— E qual a regra número 3?
— Ainda não tenho uma, mas algo me diz que em menos de
uma hora com você e eu já terei infinitas opções.
Não acreditava no que estava vendo. Qual era a chance de Nick
Coleman estar ao lado de Damon sem tentar agredi-lo? Pisquei
algumas vezes para ter certeza de que minha visão não estava me
traindo.
— Vocês...Juntos? — Perguntei, meus olhos se moviam de Nick
para Damon.
— Eu ainda tentarei matá-lo, mas agora estou cansado — disse
Nick, numa graciosidade severa.
O outro riu e eu me perguntei se estava tentando irritar Nick.
— Pode apostar que eu também — disse Damon.
Me voltei para Nick, sem conseguir disfarçar a expressão de
curiosidade. Eu sabia o que ouvira alguns minutos atrás. O som de
tiro era inconfundível.
— Eu...O q-ue...O que vocês fizeram?
O olhar de Nick recaiu sobre os meus e eu não confundi a
sombra daqueles azuis com qualquer outra coisa que não raiva letal.
Ele deu o mais breve aceno de cabeça para que seguíssemos
pelo corredor repleto de ornamentos em dourado. Esperei as batidas
irregulares do meu coração para então seguir ambos.
Assim que meus passos alcançaram os de Nick e colocamos
uma distância considerável de Damon, eu tornei a perguntar o que
eles tinham feito, ainda que a garota nenhum pouco ingênua dentro
de mim já soubesse que a resposta seria a das piores.
— Eliminamos o líder — respondeu com uma calma
desesperadora.
— Vocês o quê? Mas e...
— Dionísio demonstrou não ter a menor intenção de revelar o
paradeiro da minha filha, então fiz o que você me aconselhou —
retrucou com o temperamento esquentado e olhou por cima do
ombro. — Na verdade, foi Damon quem o matou, no final.
Fitei o corvo de esguelha, mas minha atenção ainda estava
concentrada inteiramente em Nick.
— Não imaginava que você fosse tão obediente! — murmurei,
arrancando uma risada vulgar de Damon e uma expressão de ódio
de Nick.
Nick deu dois passos na minha direção e me segurou pelos
ombros, ciente de cada centímetro entre nós. Por mais que eu o
amasse, sabia que as coisas entre nós não iam nada bem.
Ele não falou nada, só me encarou.
— Nós temos um problema. — A voz de Gael encerrou qualquer
tensão entre Nick e eu. Nos viramos para o outro escocês que arfava
e tinha a mais clara expressão de medo no rosto. — Eles estão com
Jailson.
Me libertei de Nick imediatamente.
— O que foi que você disse?!
Gael não poupou fôlego para explicar.
— Estávamos lá fora fazendo uma aposta sobre quem tinha
matado a outra lá e aí...Não sei o que aconteceu, se eles ouviram. —
Passou a mão pela testa que escorria suor. — Só sei que quando vi,
já estavam com uma arma apontada para o pançudo e exigindo falar
com ele. — Apontou com o dedo para Damon. — Disseram que se
eu não passasse o recado, iriam matar o Jailson.
O corvo se aproximou e não camuflou a expressão de ódio e a
calma fria.
— Por que é que vocês estavam apostando sobre quem
assassinara Iolanda? — Ele perguntou em um timbre único, obscuro
e inalcançável para meros mortais.
— Porque nós sempre apostamos. Não seria diferente por se
tratar de você — retrucou Gael, sem demonstrar qualquer receio.
— Precisa ser muito idiota para...
— Isso não é relevante. — Interrompi a ofensa de Damon e o
encarei, com o rosto vagamente aborrecido. — Por que iriam querer
falar com você? Será que Tales...
— A exigência não veio de Tales. Veio dos amigos de Iolanda,
provavelmente. — Foi sua vez de cortar a minha frase.
Os que nos ajudaram a fugir da delegacia? Só pode ser.
— Então não perca tempo. Vá lá de uma vez! — Exasperei.
Os olhos pretos me fitaram.
— Não é tão simples assim, cabelo de fogo. Eles devem estar
pensando que eu matei Iolanda. O que acha que acontecerá comigo
assim que eu aparecer?
— Não me importo. Entre sua vida e a de Jailson, eu não
preciso nem pensar — respondi, ácida e honesta.
Ele exibiu um sorriso arrogante para mim.
— Que você não aprova a minha existência já ficou mais que
claro para todos — seu tom foi de tédio —, mas, eu e seu amado
Alastor fizemos um acordo e eu não acho que ele já tenha se
esquecido disso. — Sua resposta me acertou cruelmente.
O rosto sombrio e tenso de Nick acompanhou suas palavras
trôpegas:
— Eu te dei a minha palavra, contudo, se vamos trabalhar no
mesmo time eu preciso que seja sincero comigo. Você matou
Iolanda?
— Já disse que não e recomendo que você não questione isso
novamente.
— Questionarei quantas vezes julgar necessário — revidou Nick
com um sorriso hesitante.
— Será que as moças podem parar de conversa fiada e
começar a pensar em como salvaremos meu amigo!? — Gael se
intrometeu, furioso.
Concordei com ele.
— Se Jailson fosse nosso único problema eu já estaria lá para
salvá-lo. Mas Damon e eu nos metemos em algo ainda pior — disse
Nick. — Nós matamos o superior.
O ruivo ficou boquiaberto antes de dizer o que pensava.
— Vocês ficaram doidos? O que acham que acontecerá quando
os gregos souberem disso?
Engoli em seco e precisei reagir.
— O que está feito, está feito. Estamos em quatro, com dois
problemas que precisam de atenção rápida. Vamos nos dividir — eu
disse, guardando um súbito grito nos dentes apertados.
Nenhum dos homens contestou. Damon por sua vez, resolveu
zombar:
— Você é mesmo a garota de Alastor.
— Prefiro pensar que Alastor que é o meu garoto — retruquei,
sem papas na língua.
Os olhos de Nick foram parar na minha boca com a
concentração de um beijo demorado. Seu rosto quase se iluminou
com um sorriso gracioso, mas ele se conteve. Aquele não era o
momento apropriado para sorrisos exibicionistas.
— Vocês dois — apontou para Gael e para mim —, tentem
descobrir o que os amigos de Iolanda querem com Damon, enquanto
nós vamos terminar o que começamos.
— Eles foram bastante específicos quando disseram que
queriam falar com o corvo. — O ruivo cerrou os punhos e tomou a
frente. — Me perdoe se não quero arriscar a vida do meu amigo!
Nick eliminou a distância entre eles.
— Eu o chamei aqui porque Maisie me disse que vocês eram
corajosos. Começo a pensar que ela estava errada a seu respeito.
Gael trincou o maxilar diante a provocação. Mas Nick não estava
tentando irritá-lo, na verdade, ele queria que o ruivo resolvesse
mostrar sua força.
— Preciso de uma arma!
Sem desviar o olhar, Nick respondeu:
— Damon lhe dará a dele.
— Como é? — O corvo desaprovou.
Nick não precisou se virar para encará-lo, já que à essa altura
Damon estava perto o bastante para trombarem os ombros.
— Se você precisa de uma arma para se defender, então você
não é quem eu achei que fosse.
Damon entregou sua arma para Gael sem queixar-se, porque
provar sua masculinidade era uma questão de honra. Então era
assim que Alastor conseguia o que queria? Sendo insuportavelmente
provocador.
Enlacei o ruivo pelo braço e o puxei. Eu jamais me perdoaria se
algo acontecesse a Jailson por minha culpa. Não me importava se eu
estava completamente em desvantagem, eu o salvaria. Devia isso a
ele.
— Maisie? — Ouvi Nick chamar por meu nome antes que o
corredor me engolisse. Me virei de súbito e podia jurar que uma
longínqua estrela valsava nos seus olhos. — Tenha cuidado.
Tenha cuidado era a forma mais linda de dizer "eu te amo". Foi
por isso que eu mordi o lábio ao sorrir, comprimindo as pulsações do
meu inquieto coração.
— Você também.
Ele sorriu de volta, causando um alarde em mim.
Olhei uma última vez para o longo corredor que me distanciava
de Nick e não o vi mais. Me arrependi no mesmo segundo de não ter
dito o quanto eu o amava. Ele precisava saber, mas a culpa que eu
sentia por ter colocado Jailson em perigo me fez esquecer de todo o
resto. Me fez esquecer que eu não era a única que estava indo para
uma guerra. Nick também estava.
E se não existisse um amanhã para nós?
E se eu nunca mais o visse?
E se...
Uma lágrima salgada e estúpida escorreu por meu rosto.
Era hora de começar a orar.
— Eu podia ter ido com a ruiva — comentou Damon assim que
atravessamos a porta rumo onde ele dissera que Tales estaria. — Só
que você não confia em me deixar a sós com ela.
— E descobriu isso sozinho? — Debochei sem perder a
seriedade.
— Eu preciso da sua ajuda. Não arriscaria perder sua confiança
por um mísero beijo.
— Para perder a minha confiança, você precisaria tê-la. Sendo
sincero, eu só me aliei a você porque Maisie me pediu. Ela abriu
meus olhos e eu vi que ela estava certa. Mas eu ainda não me
esqueci de que tudo o que você fez.
— Pois é melhor você começar a esquecer, porque assim que
entrarmos naquela sala ali, um ao outro será tudo o que teremos.
Inspirei profundamente e soltei todo o ar.
— Esse que é o meu medo.
Damon me segurou pelo braço.
— Por que não paramos de nos odiar por um tempo apenas
para garantir que sairemos vivos dessa droga?
— Pode apostar que estou tentando, mas a facilidade que você
tem em me tirar do sério é forte demais para que eu possa suportar.
— Meus olhos recaíram sobre seus dedos e ele entendeu o recado.
— Tem certeza de que Tales está nessa sala!?
— É claro que tenho. Veja você mesmo — ele disse e abriu a
porta do cômodo escuro e pequeno. O velho homem estava
roncando sobre o sofá com as pernas levemente separadas e uma
taça de vinho branco na mão mole. — Ele sempre repousa aqui.
Ao ouvir a grossa voz de Damon, Tales sobressaltou e arregalou
os olhos para nós.
— O que estão fazendo aqui? — Tales questionou ao arrumar a
postura desleixada.
— Viemos te fazer uma pergunta bem simples. — O corvo o
respondeu. — Sabe onde a filha de Alastor está?
— Esse assunto não é da minha alçada! — Foi objetivo na
resposta.
Me infiltrei mais um pouco na sala, tornando minha presença a
mais notável de todas.
— Então o farei desejar que seja. Me diz, Tales, como está sua
esposa?
Ele se levantou.
— Como sabe que tenho esposa?
Dei um sorriso de canto.
— Acabei de descobrir.
Ele tomou o resto do seu vinho em um gole só. A mão que levou
a taça à boca não podia estar mais trêmula.
— Eu sabia que você nos trairia. — Ele se voltou para o corvo.
— Sempre soube e tentei alertar Dionísio, mas ele nunca me ouviu,
essa não seria a primeira vez.
— Eu realmente não quero falar sobre sua incompetência, Tales.
Apenas responda à pergunta. Sabe onde minha filha está? — Insisti.
— Eu não diria mesmo se soubesse. Dionísio me acolheu. Eu
nunca o trairia.
Damon riu com desprezo.
— Acho que mortos não se importam muito com lealdade.
A taça caiu da mão de Tales. Sua tolerância também foi para o
chão.
— O que você disse!?
— Eu o matei. Fiz o que esperei por anos, roubei sua vida de
forma tão dolorosa quanto ele roubou a minha.
Tales levou as mãos ao rosto em total estado de perturbação.
Ficou claro que ele não sabia se avançava em Damon ou se corria
para descobrir se o que contávamos era verdade.
— Eu não sei o que vocês acham que vai acontecer, mas posso
dizer o que não irá. Não os ajudarei. Ameaças não me assustam! —
Ele disse, procurando se manter neutro.
Eu, no entanto, avancei alguns passos até estar perto o bastante
para feri-lo, se assim desejasse.
— Prefere mesmo morrer a salvar a vida de uma criança
inocente?
Ele engoliu em seco.
— Eu não sei onde ela está — disse, por fim.
— E quer que eu acredite nisso?
Seu olhar se moveu de mim para Damon muito rapidamente.
— Se vão me matar, façam logo ou saiam do meu caminho. Já
disse tudo o que tinha para dizer.
O empurrei pelo ombro, o fazendo cambalear na sua primeira
tentativa de deixar a sala.
— Acha que não vou acabar com você? — Rosnei para ele. —
Olha a merda de situação que me colocaram.
Seus olhos tremeram, o que me fez captar sua mentira. Ele
estava sim assustado, tinha sim medo de morrer. E eu me
aproveitaria disso.
— Não irá nos ajudar? — Perguntei.
— Não. Já disse que... — Ele engasgou. Eu demorei a entender
o que estava acontecendo, até notar um fio de telefone em volta do
seu pescoço e Damon o puxando com extrema força.
Tales não cedeu facilmente. Tentou arrancar o fio que o
asfixiava, mas ao ver que não conseguiria, procurou o rosto de
Damon para arranhá-lo ou conseguir algo mais doloroso. Mas suas
pernas vacilaram, o que tornou o enforcamento um processo ainda
mais rápido.
— Jesus Cristo, será que conseguirei finalizar uma conversa
com alguém sem você matá-lo antes? — Critiquei, após alguns
minutos.
O corvo abriu espaço para que o corpo morto caísse no chão.
Descansou os braços ao lado do corpo e respirou fundo.
— Nosso tempo é curto. Precisamos entrar em um acordo, se a
pessoa não quiser colaborar nos primeiros cinco minutos, nós nos
livramos dela.
— Então seu plano é matar todo mundo?
Ele expôs um sorriso sujo e o prolongou na face.
— Quer dizer que tem um melhor?
Exasperei.
— Não, Damon. Não tenho.
— Certo. Minha cota de mortes já deu por hoje. Agora é por sua
conta.
— Está me dizendo que se livrou de dois velhos e que agora
todos os outros criminosos são de responsabilidade minha? —
Questionei, amargo.
— É uma forma de ver as coisas. — O cinismo foi forte como um
espirro.
— Eu sabia que era uma péssima ideia confiar em você.
Como parte do seu atrevimento, Damon passou o braço por
meus ombros e me induziu a deixar a sala com ele.
— Não seja tão radical. Seremos ótimos juntos, você vai ver.
— Não conversamos sobre aquilo ainda — comentou Gael, em
um timbre mais retraído que o habitual.
O interroguei com um olhar.
— A que se refere? — Não vamos falar sobre isso. Não agora.
Por favor.
Ele se perdeu em pensamentos, imaginei que estivesse
analisando todas as letras do que tinha para me dizer. Então foi
objetivo:
— Sobre...eu amá-la. — Seus olhos eram um ardente verão e
tinham um sentimento tão real, que até meu peito o sentiu.
— Ah, por Odin, Gael.
— Me ouça, piuthar. Não quero que as coisas mudem entre nós.
Eu a amo e a amarei até tudo virar pó. Mas isso não significa que eu
desejo sua infelicidade com o sujeito que escolher para si.
— Somos irmãos, Gael. Fomos criados como irmãos e eu o amo
profundamente assim. — Fui cuidadosa com as palavras para não
transformar seus adoráveis olhos de orquídeas azuis em uma
desnecessária tempestade.
Me deu um sorriso embrasado e que ele se esforçou em tentar
fazer parecer natural.
— Apenas me prometa que se as coisas ficarem ruins entre
você e o outro lá, você não pensará duas vezes em me pedir para
quebrar a cara dele!? — As grossas veias pareciam querer rasgar
sua testa.
— Por favor, bràthair, Nick o derrubaria com um sopro.
Ele me deu um beliscão no braço como uma forma de
demonstrar que tudo voltara a ser como antigamente, e riu.
— Mas além de nós dois, ninguém sabe disso. — Seus olhos
cintilaram sem rumor.
Nossas risadas vibrando fluidamente no ar cessaram um tempo
depois e eu me distraí pensando em Nick e em tudo que podia ter
acontecido com ele. Que o pai de todos os deuses o proteja.
O vento, nada menos que uma gargalhada áspera, ricocheteou
meu rosto ao deixar o palácio. Eu era uma pequena folha rodando no
ar. Tentei pisar leve nos cascalhos, porém nem toda delicadeza fazia
com que eu deixasse de ser uma loba barulhenta em uma selva
silenciosa.
— Tem certeza de que os viu aqui? — Perguntei, incomodada
com a pouca claridade do lugar. Meu cansaço fazia parecer que
subíamos uma cordilheira, mas devido a densidade de coqueiros, era
quase impossível afirmar.
Gael afastou um cipó do rosto.
— Sim. Eu vi quando trouxeram meu pançudo para cá.
Ao longe, era possível ver uma pequena estrutura que a olho nu
se assemelhava a uma caixa d'água abandonada. A construção, no
entanto, eu tinha certeza que guardava uma vista de 360 graus de
mar azul-turquesa.
Segui Gael pela trilha que nos levaria até as ruínas do farol de
luz branca que tornava a ilha menos assombrada. Após um longo e
gélido tempo de caminhada, em uma rede amarrada de um coqueiro
a outro próximo ao farol — mas não tanto —, um homem
desemaranhava as cordas de um sino. Seu olhar se fixou em mim no
exato instante em que Gael e eu nos tornamos visíveis.
A brisa ondeou por meus cabelos.
— Olá — falei, tentando competir com os ruídos dos ventos, mar
e sino.
Gael e eu tínhamos entrado em um acordo, uma espécie de
tática para conseguirmos salvar Jailson e nos salvar sem perdas. A
ideia era tentar conversar com os amigos de Iolanda e mostrar que
também estávamos contra Damon. Era uma grande mentira, mas se
era a saída menos desastrosa, então mentir não era a pior das
alternativas.
— Não foi ela que pedimos para você trazer. — O sujeito
rosnou para Gael e obrigou sua rede a parar de balançar.
Dei um passo em sua direção. Depois, outro. Devagar para não
passar uma impressão errada.
— Sei que não era a mim que vocês esperavam. — O plural se
fez necessário quando a loira surgiu por entre a mata. — Mas talvez
possamos nos ajudar.
Ela. Eu me lembrava dela. A obriguei se trancar na cabine do
barco.
— Eu não preciso da sua ajuda. — Foi ríspida.
— Sei que pensa que o corvo assassinou Iolanda...
Os dois riram, me causando perturbação.
— Por que eu pensaria isso sendo que fui eu quem a matei? —
A loira respondeu.
— O quê!?
O sino badalou na mão do sujeito.
— Não que seja da sua conta, mas Iolanda era uma
desgraçada. Teve o que mereceu. — O rapaz disse.
Gael, que estava logo atrás de mim, se aproximou em pisadas
firmes e indagou:
— Permita-me perguntar, o que queria com Damon, então?
— O corvo carrega algo valioso consigo. Algo que preciso. — A
loira respondeu.
— O pen drive — concluí. Ela assentiu. — E por que achou que
ameaçar o meu amigo faria Damon vir até você?
— Tenho observado vocês. Sei que estão trabalhando juntos.
Gael e eu nos entreolhamos; nosso plano acabara de ruir.
— Por favor, não machuque Jailson. — Supliquei e fora meu
primeiro indício de desespero total.
— Me dê o que eu quero e prometo que não arrancarei mais que
os dois braços dele. — Ela brincou, maléfica.
Gael pragou enfurecido e um insulto escapou dos seus lábios.
A ventania chacoalhou as folhas das árvores e fez areia entrar
em meus olhos. Pisquei várias vezes, até conseguir focalizar outra
vez.
O homem saltou da rede e eu notei que estava armado.
Pelo canto dos olhos, vi que Gael pretendia sacar sua arma. Era
uma péssima ideia. Seu tempo de reação seria fatalmente mais lento
que o da loira ou do homem. Uma pequena falha e estaríamos os
dois ferrados.
Tomei a frente.
— É o pen drive que quer? O conseguirei para você. — Uma
promessa vazia. Eu não trairia Damon, não depois de ter exigido que
Nick se entendesse com ele. Tempo era tudo o que eu esperava
conseguir. — Só que antes quero ver o meu amigo e garantir que ele
está bem.
— Tenho uma contraproposta. O pen drive e o corvo, em troca
do seu amigo e da menina africana — disse o rapaz.
Meu coração subiu pela garganta. Qual era o interesse deles por
Damon? Eu tinha duas perguntas a fazer, porém, sabia que eles me
responderiam apenas uma delas. Me agarrei a que era mais
importante.
— Vocês sabem onde a filha de Alastor está?
— Sabemos tudo o que Iolanda sabia — garantiu a loira, tirando
a franja dos olhos. — Isso é o que temos a oferecer e saberemos se
nos trair. Uma única falha sua e eu arrebento o seu amigo.
Entendeu?
Prendi a respiração sem saber que o fazia, só me dei conta
quando meu peito começou a doer.
— Temos um acordo. — Gael consentiu em meu nome, como se
compreendesse que eu não conseguiria falar. Eu o fitei, sentindo um
calafrio subir pelas costas.
Seria fácil dar o que aqueles dois me pediam. O corvo andava
com o pen drive no bolso desde que eu o roubara. Tudo o que eu
precisava fazer, era arrastá-lo até o farol.
A loira cumprimentou Gael, selando o acordo.
— Você tem até o raiar do dia para cumprir sua parte. E, antes
que eu me esqueça, tragam o corvo desacordado.
Franzi o cenho.
— Desacordado?
— Se você está tendo que me perguntar o porquê disso, é sinal
que nunca precisou lidar com a fúria dele.
— Bem, talvez eu a conheça hoje — murmurei. — E quanto a
Jailson? Quero vê-lo.
A loira se virou e deu um assovio forte e alto. No topo da torre, vi
uma silhueta surgir na janela. Levei uma mão à testa para proteger
os olhos do lampejo branco. Jailson acenou para mim. Eu só tive
certeza de que era mesmo o pançudo, quando ele tirou a camiseta e
a sacudiu ao vento. Era um costume que ele e Gael partilhavam
durante os desafios mais perigosos, um sinal de bandeira branca. Se
um dos dois tirasse a camiseta e a sacudisse ao vento, o outro
imediatamente tinha que acabar com a brincadeira. Só que naquele
momento, tanto Gael quanto eu, sabíamos que Jailson o fizera para
que o reconhecêssemos.
— Como pode ver. Seu amigo ainda tem os dois braços, mas
para continuar assim, dependerá exclusivamente de você.

— O que nós vamos fazer? Por que está andando tão rápido?
Não virei o rosto para Gael ao responder:
— Estou tentando pensar.
— Não há nada para se pensar. Só precisamos fazer o que nos
foi ordenado. — A voz carregava um resto de medo e fúria.
Olhei por cima do ombro para a luz brilhante que pouco a pouco
desfalecia, entre o luar e a folhagem. O vento frio e brando, agitou
novamente as folhas em uma orquestra. O ar úmido nos preparava
para uma chuva que não tardaria.
Fechei os olhos para me concentrar no odor do ar que respirava.
— O problema será afastar Damon de Nick. Se ele souber o que
temos em mente, ele fará de tudo para nos impedir e encontrar outra
solução, mas você ouviu o que a loira disse. Não posso falhar.
Quanto mais gente souber, maiores são as chances de dar merda! —
Soei esganiçada, dando a impressão de que correntes me
sufocavam pelo pescoço.
Gael correu e barrou meu caminho com seu corpo. Eu não tive
outra alternativa que não encarar o ruivo cuja cabeça parecia se
formar uma coroa de névoa.
— Estamos juntos nessa, piuthar. Diga-me o que quer que eu
faça, e eu farei — disse, cheio de brio.
— Pra isso dar certo precisamos trair não apenas Damon.
— Alastor?
Uma ventania carregada de gotas me envolveu.
— Sim. — Foi tudo o que eu disse.
Bisbilhotando pela porta entreaberta, vi quando dois
empregados passaram correndo. Nesse instante, Damon e eu
soubemos que nosso tempo havia se esgotado. Naquele momento,
era certo que todos já sabiam da morte de Dionísio e de Tales.
— Quanto tempo levará para descobrirem que fomos nós? —
Perguntei, baixinho.
— Eu arrisco dizer que todos já desconfiam de você. O que não
sabem é que eu o ajudei. — Refletiu. — Não dou mais que dez
minutos para nós.
— Mas ainda não sabemos onde minha filha está.
— Isso é um problema, mas não podemos mais ficar aqui.
Comecei a sentir fortes palpitações. Se eu não descobrisse onde
Luli e as garotas estavam, os gregos as mataria. Eu tinha que pensar
em algo e logo.
— Além do superior e de Tales, há outro poderoso que podemos
interrogar?
— Interrogar? — Zombou. — Matar, você quis dizer. — O
repreendi com um olhar. — Até onde sei, éramos em três, como já
eliminamos dois, restou apenas eu para você interrogar.
— Você é inútil para mim. A não ser que...Você já deu uma
olhada no que há nesse pen drive?
Damon estreitou os olhos, em desconfiança.
— É só uma lista.
— Limite-se em responder a minha pergunta! — Retruquei,
impaciente. Essa era uma das razões que me fazia odiar trabalhar
em equipe.
— Disse e repito, é só uma lista com os nomes de todos que já
contrataram os serviços de Érebos e dos membros que trabalharam
para eles. Se está pensando que Dionísio deixou o endereço do
cativeiro da sua filha nesse negócio aqui, esqueça. Não pensei que
você fosse tão burro assim.
— Não é esse tipo de coisa que eu esperava encontrar. Quero,
na verdade, o endereço de um ou dois membros que trabalham aqui.
— E por que infernos iria querer isso?
— Quem está sendo burro agora? — Não pude me conter. —
Quero descobrir quais desses clientes pagaram por serviço de
sequestro e qual dos membros da Sociedade Dionísio designou para
a função.
— Descobrindo quem atua como sequestrador em Érebos, você
saberá quem foi o responsável por levar sua filha da Escócia. —
Concluiu e assoviou. — Você é menos idiota do que eu pensava,
afinal.
Mostrei os dentes para ele em uma espécie de sorriso duro.
— Suponho que você tenha um computador.
Assim que o corvo e eu demos nosso primeiro passo para fora
da biblioteca, trombamos com Gael que tinha no rosto o mais
absoluto terror. Procurei pela ruiva à sua volta.
— Onde Maisie está? — O segurei pelos cotovelos sem calcular
força.
— Precisamos conversar — sussurrou para mim e direcionou
seu olhar para Damon em seguida. — A sós.
— O que foi que aconteceu? Diga de uma vez onde Maisie está.
Se algo aconteceu com ela eu juro que você não sairá vivo dessa
ilha!
— Ela está bem — assegurou. — Eu preciso falar com você.
A entonação usada naquela palavra me fez compreender que
algo terrível estava acontecendo. Uma espécie de gelo tocou meu
coração e fez meu corpo todo tremer.
— Lá fora. Vamos conversar lá fora.
Esperei precisamente três minutos para ter certeza de que Nick
e Gael não retornariam. Assim que sumiram na penumbra da noite,
eu sai do meu esconderijo. Eu seria incapaz de descrever o quão
temerosa estava. Era péssima em orquestrar planos e aquilo tinha
que dar certo. Seria mortal se não desse.
Meu coração e meu cérebro enfrentavam a mais árdua das
batalhas. Enquanto um ordenava que eu fosse sincera com Damon e
Nick, o outro dizia claramente que os trair era a única opção.
Escondida atrás de uma estátua grega, não pude ouvir o que
Gael precisou dizer a Nick para que ele aceitasse deixar Damon para
trás, mas eu confiava cegamente no meu amigo escocês. Ele foi
verdadeiro quando me assegurou de que não revelaria nada da
situação para Nicholas.
Damon ficou confuso ao me ver e cerrou a testa.
— Por que vieram de lados opostos? — Questionou.
— Não estávamos juntos. Tivemos que nos separar. — Fui
sucinta para não me embolar. — Sabem de algo sobre a filha de
Nick?
— Nada ainda. Como foi com os amigos de Iolanda? O que
queriam? — Foi direto.
Cravei as unhas na palma das mãos.
— Eles acham que Nick a matou e agora querem se vingar.
Disseram que queriam se encontrar com você para oferecerem uma
boa quantia em troca da cabeça de Alastor e que se você não
aceitasse, a cabeça decepada seria de Jailson. Me obrigaram a lhe
dizer isso.
Pecadora.
— E o que você respondeu?
Mentirosa.
— Não...não me deram tempo de responder. Mas acho que eu
não responderia mesmo se permitissem. O que eu diria? — As
lágrimas que derramei foram sinceras.
Mealltach (trapaceira).
Damon passou as mãos pela barba, aflito. Quando cravou seus
olhos em mim, foi como se soubesse que eu o enganava. Como se
soubesse que eu era uma farsante, uma desonra para todos os
escoceses. Alguém que merecia ser lançada à fogueira em vida.
— Por que não está dizendo nada disso para o próprio Alastor?
— Questionou.
Contive um suspiro de alívio digno de pena. Dei mais um passo
no precipício da mentira.
— Porque ele é inconsequente. Ele os enfrentaria sem pensar e
isso poderia matar Jailson de uma vez.
Ele aceitou a minha mentira sem fazer objeções. Talvez eu fosse
boa em enganar, ou talvez o corvo não achasse que eu era do tipo
que traía depois de fazê-lo se sentir parte do time.
— Se você me procurou é porque acha que eu posso fazer algo
a respeito. Diga de uma vez.
Aquilo foi o estopim para me fazer querer vomitar. O chão sumiu
sobre meus pés. Eu estive brincando na beirada do precipício, até
que caí.
— Eu preciso que venha comigo e que confie em mim.

Damon me acompanhou mata adentro em meio à garoa que se


avivava. As folhas das árvores, apesar de servirem muito bem como
guarda-chuva, não impediam que gotas mais insistentes chegassem
até a minha pele.
Nick devia estar enraivecido com a chuva ou, quem sabe, ela já
não o assustava mais.
— Estão no farol? — Ele perguntou assim que a luz branca
tomou forma.
— Sim.
O cheiro da chuva entrou em cheio nos meus pulmões.
— Quando compartilhará a sua ideia comigo?
— Você tem que aprender a ficar no escuro às vezes.
Ele quebrou um galho com o pé. Foi como quebrar um biscoito
crocante.
— Se for para ficar no escuro, que seja fodendo uma mulher.
Revirei os olhos. Não seria tão ruim desmaiá-lo, afinal.
— Geralmente quando estou na sua companhia eu percebo o
quanto aprecio o silêncio absoluto.
— Às vezes você consegue ser muito má.
Eu não queria olhar, tentei não olhar, mas o pedaço de tronco
que Gael cuidadosamente havia escolhido para que eu fizesse o que
prometera fazer, chamou minha atenção.
Encostado à uma árvore atrás de Damon, a arma do crime
parecia inofensiva, contudo, Gael garantira que seu peso seria o
suficiente para desmaiar um homem. Por outro lado, ele alertara que
o tronco não faria o trabalho sozinho, que a pancada tinha que ser
com força.
— Se está planejando matar alguém, eu preciso que me diga —
ele comentou.
Eu quase gaguejei. Só quase.
— Está desarmado?
À essa altura já tínhamos parado de andar.
— O que tanto olha? — Perguntou, desconfiado e seguiu a
direção dos meus olhos. — O que é isso? Corda... O que está
planejando fazer?
Damon então me encarou de novo e afirmou sem que eu tivesse
tempo de inventar uma desculpa:
— Não é Alastor que os amigos de Iolanda querem. É a mim.
— Espere, Damon. — Tentei segurá-lo pelo braço quando vi que
ele tinha como intenção me deixar.
— Você me trouxe para uma emboscada! — Grunhiu entre os
dentes.
— Eu preciso fazer isso. VOCÊ NÃO ENTENDE.
Ele me empurrou com tanta força, que eu caí e bati a cabeça no
chão.
Ergui os olhos para a fera indomada à minha frente.
A ira de Damon. Era a isso que a loira se referia? Porque um
cervo nas garras de um tigre não sentia o medo que eu estava
sentindo naquele momento.
— Vocês se arrependerão de ter me traído — ele disse e se
virou para ir.
Peguei o tronco e me levantei.
Uma chance. Eu teria apenas uma chance.
— Ele é meu amigo. A minha família. Sinto muito. — Girei o
tronco e desferi o golpe. — Apenas precisa ser feito.

Arrastei seu corpo para o mais distante que consegui, rumo ao


farol. A minha fraqueza, acompanhada de pernas bambas e mãos de
dedos finos, eram um lembrete de como eu me alimentara mal desde
que chegara à Grécia.
Larguei Damon numa rocha e amarrei suas mãos antes que ele
acordasse e arrebentasse a minha cara. Por Odin, eu merecia.
— Teria sido mais difícil traí-lo se você não fosse um completo
babaca.
Antes de deixá-lo, chequei o pen drive no seu bolso, o pequeno
objeto que aparentemente valia mais que vidas, e o peguei por
precaução.
Segui pela trilha que levava ao farol no segundo em que ouvi um
trovejar seco, como um estampido brutal. Não demorou para que eu
ficasse ensopada dos pés à cabeça.
Corri o mais rápido que pude.
A rede não estava mais no mesmo lugar, tampouco o homem
que outrora deitara nela, mas o sino de vento pendurado em galhos
tocava sua triste melodia.
Fui deixando pegadas na areia molhada até chegar ao enorme
farol; naquele ponto já era possível ter uma deslumbrante vista do
mar, das toneladas de ondas enraivecidas abraçando as rochas. Eu
namoraria aquela paisagem por horas, se os minutos não estivessem
competindo comigo.
A porta de ferro rangeu ao ser empurrada. Me envolvi aos
poucos quando compreendi que nem a loira e nem o homem
estavam à espreita.
Uma escada de espiral foi a primeira coisa que vi. O clarão da
Lua permeando as janelas seria a única iluminação que eu teria até
chegar lá em cima.
Ouvi vozes ao longe, como se vindas do céu e julguei
conveniente seguir. Talvez surpreendê-los me desse alguma
vantagem, afinal. Talvez fosse a mais idiota das ideias...
Em meio a indecisão descobri que, antes de mais nada, eu
precisava ter como me defender caso as coisas fugissem de
controle.
Revirei o chão com os olhos e encontrei correntes de ferro. Eu
não conseguiria levá-las comigo, mas elas não eram totalmente
inúteis e eu tinha alguma inteligência.
Prendi de uma extremidade à outra. Uma ponta na escada e a
outra na pilastra.
Se isso é tudo que tenho. Que seja.
Então subi o que devia ser uma escada de duzentos e poucos
andares. Um degrau por vez, e sentindo meus dedos dos pés
enrugados.
Depois dos cem primeiros, eu fui obrigada a descansar.
Respirei fundo e continuei.
Alguns minutos depois e eu estava onde queria. Onde o som
das vozes se intensificava e a luz escapando pela soleira da porta
era abundante. Tentei abri-la, mas estava trancada.
Eu devia ter adivinhado.
De repente, a truculência com que a porta foi aberta me fez
segurar no corrimão para não ser lançada escada abaixo.
— Maisie!
Eu fui devorada dez vezes só de olhar para aqueles dentes.
— Nick...como você...?
Fui puxada para dentro sem qualquer piedade. Meus olhos
rapidamente foram de Nick para Gael, onde um pedido de desculpas
gritava em seu olhar.
— Piuthar, ele me obrigou.
— Você me prometeu, Gael! — Rugi.
Com os cinco dedos ainda em meu braço, Nick falou em tom
acusatório:
— Não o culpe, eu apenas sei como conseguir o que quero.
— Ele ia mesmo me jogar do penhasco! — Gael disse,
desesperado. — É um louco!
— Nada disso importa mais, porque Jailson não está aqui —
retruquei, indo de irritada para chorosa.
— Não está porque eu o libertei e pedi que fosse atrás de você e
de Damon. — Nick disse.
— Você..., mas como? — Senti a boca ressecada.
Ele apontou o dedo na minha cara ao dizer:
— Fiz o que precisava ser feito e espero que você nunca mais
pense em trair a minha confiança outra vez porque eu desprezo isso.
Meus olhos encheram-se de lágrimas, mas não as deixei cair.
— Como pode exigir algo assim se nem mesmo você confia em
mim? Você me pediu para cuidar dos amigos de Iolanda, era o que
eu estava fazendo. Eu tinha um plano.
— Entregar Damon? O mesmo homem que você insistiu para
que eu me aliasse? Consegue entender em que situação me
colocou? — Foi duro comigo.
— É exatamente por isso que eu não quis te contar, para que
você não precisasse quebrar sua promessa a ele.
— Entendo suas razões, mas não as aprovo.
— Talvez eu não precise da sua aprovação — retruquei, ríspida
intencionalmente.
Gael que visivelmente não sabia onde enfiar a cara, perguntou:
— Será que eles já aceitam falar?
Franzi o cenho.
— Do que está falando?
Quatro olhos azuis me encararam, um mais lindo que o outro,
mas foi Gael quem resolveu abrir o bico:
— Nicholas pendurou os dois gregos no alto da torre e disse que
só ia tirá-los de lá, quando eles revelassem onde está a filha dele.
Meu rosto empalideceu.
— Você fez mesmo isso? — Perguntei a Nick.
— Só estão tomando um ar.
Ganidos acompanhados de incontáveis gritos foi o que me
recebeu. Me aproximei e me deparei com corpos suspensos, pernas
amarradas por cordas finas demais para suportarem o peso. Se a
ventania ousasse balançá-los como fazia com o sino de vento, nada
garantia que as cordas não romperiam para levá-los à uma queda
letal. O mais espantoso de toda cena, era eu gostar do que
encarava.
— Como conseguiu...Como...? — Tentei perguntar a Nick.
— Ódio. Mas Gael também foi fundamental.
Ódio. Eu tinha muito ódio acumulado dentro de mim, o suficiente
para avançar um passo e começar a desamarrar a corda que prendia
o homem, agindo feito uma sonâmbula.
— O que ela está fazendo? Mande-a parar! — O sujeito se
desesperou e ergueu o pescoço para acompanhar o movimento
rápido dos meus dedos.
Eu não parei.
Um único nó era o que restava para sua vida. Projetei o pescoço
para frente, afim de calcular a altura da queda que o aguardava.
Rochas seriam mais que o suficiente para partir seus ossos e
transformar um corpo, em dois. Talvez mais, dependendo de que
modo o solo o receberia.
Tudo o que eu mais desejava naquela noite fria na ilha grega,
era me vingar dos que me obrigaram a trair os meus. E como tanto
Gael quanto Nick não me detiveram e nem demonstraram qualquer
intenção de fazê-lo, eu o libertei e ele voou.
Um berro pavoroso rompeu na escuridão agitada, ao passo em
que o homem se debatia no vácuo e caía, quase que na mesma
velocidade que uma estrela cadente atravessava o céu. As
punhaladas da brisa em meus ouvidos me ensurdeceram. Eu tinha
razão ao supuser que do farol era possível ter uma visão clara de
todo o oceano, só nunca pensei que eu não seria capaz de
aproveitar todo o panorama, já que um assassinato acabara de
acontecer.
Fui arrastada de volta para a realidade.
— Tudo bem. Eu digo. Eu digo onde ela está. — A loira se
mostrou generosa ao ter que se despedir do seu amigo grego. — Me
suba, por favor. Apenas me suba.
Senti a presença robusta de Nick ao meu lado. Suas feições não
me diziam nada, por outro lado, quando ele agarrou a corda que
prendia a moça, não tive dúvida de que ele seria capaz de soltá-la
também.
— Não temos um acordo. Fale agora!
Ela esperneou como se estivesse sendo açoitada. Eu não tive
pena.
Ainda choramingando, ela disse:
— Há uma casa na ilha Vult, na Escócia...Argh. — Gemeu. —
Elas...estão lá.
— Quantos homens?
— Eu já disse o que quer saber. Por favor, me suba. E-u imploro.
Nick desfez um nó.
A mulher berrou.
— TRÊS...TRÊS HOMENS...POR FAVOR....
— Obrigado. — Não aconteceu o que fora combinado e eu não
soube como me sentir em relação a isso. Tudo que sabia por
absoluto, era que Gael e eu apenas assistimos Nick desamarrar a
corda e não estender o braço para puxar a loira.
Ela caiu.
A escuridão do abismo a engoliu com uma fome cruel e em
poucos minutos a grega deixou de existir.
— Acha que ela falou a verdade? — Gael perguntou logo
depois.
— Iremos descobrir. — Nick respondeu sem fitá-lo.
Nossa apreensão devido o que acabara de acontecer nos fez
ignorar as pegadas severas que vinham da escada e quando por fim
nos alcançaram, descobrimos seu dono.
— Onde ela está? — Ele disparou a pergunta como se ela fosse
sua única munição. Eu gelei quando Damon encontrou seu alvo, eu.
Descobri que não havia nada que separava sua determinação do
meu pavor. — Vou matá-la!
— Não vai, não. Encoste suas mãos sarnentas em Maisie e eu
termino o que ela começou — retrucou Nick.
Punhos foram cerrados por mim. Enquanto um lutava por minha
vida, o outro decididamente planejava minha morte.
— Essa desgraçada me usou de isca e ainda me atacou. Vou
fazê-la comer areia.
— Pelo amor de Odin, cadê meu pançudo? — Gael mudou
completamente de assunto.
— Ele tropeçou em umas correntes lá embaixo — explicou
Damon de má vontade e foi o bastante para Gael nos deixar.
— Não espere por um pedido de desculpas! — Rosnei para
Damon. — Você mereceu tudo o que teve.
— Pagarei o favor!
Nick o impediu de se aproximar colocando seu corpo no
caminho.
— Se não quiser ser o terceiro a ser jogado desse farol, sugiro
que fique onde está. — Seu timbre foi voraz. — Maisie só o traiu por
não ter escolhas.
— Eu podia estar morto.
— Se quiser se lamentar pelo que podia ter acontecido, você
pode. Só não espere que eu compactue com isso. — Nick revidou,
ácido. — A loira disse onde minha filha está, agora finalmente
podemos deixar a Grécia.
Damon me encarou mais um pouco sem baixar a guarda.
— Me devolva o que me pertence! — Exigiu e estendeu a mão
aberta para mim.
Eu não podia dizer que estava arrependida por tê-lo atacado,
tampouco me desculparia, mas se entregar o pen drive para ele era
sinônimo de paz, bem, isso eu podia fazer.
Nick abriu espaço para que eu alcançasse a mão do outro, onde
eu lentamente larguei o pequeno objeto valioso.
— Agora que voltaram a ser duas pessoas civilizadas, podemos
sair desse farol antes que mais gregos cheguem? — Questionou
Nick.
Só deixamos o farol após Nick se certificar de que era seguro.
Não sabíamos pelo que esperar, mas era certo que algo aconteceria.
E em breve.
Conforme a chuva ganhava força, eu olhava para Nick ao meu
lado afim de saber se ele estava bem com ela. Seus ombros rígidos
diziam que não, mas seu olhar era quase tranquilo.
E tinha meus próprios sentimentos em conflito também. Eu
matara uma pessoa que estava indefesa e esse não era o tipo de
coisa que se fazia sem sentir o estômago revirado.
Eu era Maisie, uma assassina e ladra aos 23 anos.
— Eu não lembro daquelas correntes lá. Tenho cem por cento
de certeza que não estavam ali quando saí da torre — resmungou
Jailson para Gael. Ele estava mancando devido o tombo.
—A armad ilha era minha — confessei, por fim. Os homens me
olharam sem entender. — Eu estava indo enfrentar assassinos sem
qualquer arma. Tive que providenciar algo.
— Tenho que lhe dar algum crédito, ruivinha. — Elogiou Jailson
e teve de zombar: — Para todos vocês, na verdade. Quando Gael e
Nicholas entraram para me resgatar eu quase me apaixonei. Meus
heróis.
— Eu fiz todo o serviço difícil, mas Alastor também ajudou —
debochou Gael.
— Ah, já que fez tudo sozinho, por que não nos diz como
pendurou aqueles dois no farol? — Provocou Nick, entrando na
brincadeira e eu sorri feito uma tola apaixonada.
— E eu que sei? Eu estava é me cagando nas calças, mas um
escocês de verdade nunca admitiria isso! — Respondeu Gael,
difamando sua honra.
Só percebi que eu estava gargalhando quando lágrimas
saltaram dos meus olhos e eu precisei parar de andar porque minha
barriga começara doer de tanto rir. Foi nesse momento que Damon
me alcançou e colocou uma mão em minhas costas molhadas.
— Eu teria feito o mesmo. — Observei seus lábios molhados se
movimentarem quando falou.
— Como disse?
Um sorriso de canto antes de me dizer:
— Se eu estivesse na sua posição, eu também a trairia.
Engoli em seco. Aquilo era real? Quero dizer, ele estava sendo
sincero? Pois era difícil imaginar que um dia ele concordaria comigo
em algo.
— Então por que ficou tão bravo?
Damon desviou os olhos até os outros que se afastavam sem se
darem conta de que ficávamos para trás.
— Porque eu me deixei enganar por você. Justamente por você.
Arqueei a sobrancelha, sentindo-me insultada.
— Estou certa de que isso não é bem um elogio. Então por que
não me esclarece o que é?
Sua mão que permanecia intacta em minhas costas, desceu um
pouco mais. Engoli um soluço para não entregar de bandeja o meu
desconforto diante aquele gesto.
— Você é só uma garota, cabelo de fogo.
— Você não devia menosprezar tanto uma garota que te
enganou e te bateu! — Respondi ao seu desdém com todo meu
descontentamento.
— Não menosprezo. Eu quero beijar essa garota e despi-la. — A
voz rouca feito a de uma fera no cio.
A tentativa de não entregar a minha fraqueza fora em vão, pois
até minhas pernas bambearam.
— Se quer algo desse tipo, então acho que não bati na sua
cabeça direito.
Damon soltou uma ardida risada.
— Essa é a minha forma de fazer as pazes com você, querida.
Agora que tenho certeza de que estamos bem, vamos alcançar seu
namorado que está garantindo sua segurança nos espionando atrás
daquela árvore ali.
O vento fazia o vestido destruído — de quem passou por uma
planta com espinhos descuidadamente — colar em meu corpo,
pontuando minhas curvas e meus seios enrijecidos de modo
sugestivo. Os homens que me acompanharam, pareceram não
reparar na minha quase nudez, estavam mais preocupados em
alcançarem o barco antes que os gregos declarassem guerra.
— Aquele ali é seu padrasto, não é? — Perguntei a Nick.
O ombro do macho alto e gentil como um pinheiro, roçou no
meu.
— Se for ele, então acho que minha recompensa veio um pouco
mais cedo — disse, com a mágoa retratada na voz.
Athos pareceu não nos ouvir ou ver. Mas a lanterna em sua mão
certamente estava sendo usada para procurar por algo.
— O que vai fazer? — Questionei, ao ver Nick se remexer atrás
da moita que usávamos de escudo. Havíamos ficado sozinhos
quando Damon requisitou a presença de Gael e Jailson para
procurarem outra forma de chegarmos até o barco aportado, já que
ele estava cercado pelos gregos. Se fosse qualquer outra pessoa, eu
diria que aquilo fora apenas uma desculpa para dar privacidade para
Nick e eu, mas por se tratar de Damon...estava fora de cogitação
essa bondade. Eu suspeitava que ele se meteria entre nós até
mesmo durante o coito.
— O que acha que vou fazer, Maisie?
Aproveitei o gorjeio das ondas e a ventania para retrucar em tom
audível:
— Se planeja matá-lo, alerto que não é uma boa ideia. Olhe ali,
tem mais deles chegando. — Apontei com o dedo para os
assassinos que chegavam ao Sul. — Você pode ser Alastor, mas
ainda é um só.
Nick insultou todos os reinos antes de aceitar que o melhor a ser
feito era esperar pelos outros escoceses e Damon.
— Meu Deus do céu, fale de uma vez! — Ele rosnou, após uns
minutos de silêncio absoluto.
— Como sabe que quero dizer algo? — Despertei, e tentei
acalmar os fios de cabelo que o vento sacudia.
— Você respira forte quando está impaciente. Só posso deduzir
que quer me dizer algo.
Engoli aquelas palavras até inflar minha garganta e pensei em
afirmar que Nick estava errado. Só que o que saiu da minha boca foi
algo totalmente diferente do previsto.
— Damon não está mais bravo comigo. E, bem, ele até disse
que teria feito o mesmo que eu se estivesse no meu lugar.
Seu riso sarcástico me partiu feito raio.
— Fico eufórico por vocês.
— É tudo que tem para me dizer?
— O que queria que eu dissesse?
— Esperei que visse que se Damon descobriu uma forma de me
perdoar, você também pudesse descobrir.
Ele se mexeu para ficarmos frente a frente.
— Está nos comparando? — Pareceu carregar um triste inverno
rigoroso na voz.
— Eu...Eu só pensei... — gaguejei.
— Quando descobrir como responder sem gaguejar,
retornaremos a esse assunto. Por hora, procure falar menos para
não sermos descobertos.
Disposta a não encerrar o assunto, me ajoelhei onde pequenas
pedrinhas se acumulavam e me feriam.
— Não estou comparando vocês dois. — Disse com uma
convicção que exalava o meu pavor. — Comparo a situação. Eu traí
a sua confiança, assim como fiz com Damon. E nele eu ainda bati.
Ele inclinou-se.
— Ou seja, devo agradecer por não ter me agredido? — O
maldito zombou. — Bom, agradeço sua benevolência para comigo,
doce Maisie. Minha cabeça também mandou lembranças.
O sorriso que dei não passara de um acidente mínimo. Por que
diabos fiz daquele homem, o mesmo que a rosa fazia da terra? O
chão que preciso para me sustentar em pé.
— Eu devia mandá-lo para o inferno por nunca me levar a sério.
A água continuava a cair do céu sem qualquer destino.
Ele inclinou-se mais um pouco, como se me dissesse alguma
confidência. Me umedeceu até às entranhas.
— Já falamos sobre o inferno, Maisie e concordamos que só
aceitarei ir para lá se você estiver.
— Acho que depois do que fizemos hoje, nosso lugar está
garantido — balbuciei. Meu coração ficou do tamanho de um punho
fechado.
— Então tudo bem se pecarmos mais um pouco. — A voz
ardente, reluzia na chama que ardia dentro de mim.
— Nunca pensei que diria isso, mas espero que esteja se
referindo à assassinatos, não a...
— Sexo? — Completou em um suave gorjeio. — Eu não estava
pensando nisso, mas se me disser que um dos seus fetiches é ser
comida numa moita eu lhe garanto que posso resolver.
Eu daria todas as minhas moedas para ver aquelas palavras
aflorando na espessura dos seus lábios.
— Por favor, Nick Coleman. — Dei um sorriso antigo. O mesmo
sorriso inocente que dei para seu primeiro olhar em mim.
— Seria uma excelente forma de nos reconciliarmos e,
convenhamos, molhada você já está. Seus seios, inclusive, devem
estar fantásticos nesse tecido transparente.
Minha cabeça rodou e a surpresa por uma parte de mim ter
aprovado a ideia entrou em mim como uma enchente. Não há mulher
que para ele não se debruce.
— Espero que não seja tarde demais para dar aquela paulada
na sua cabeça!
Eu não sabia ao certo quem Nick estava tentando distrair ele ou
eu. A pancada de chuva ainda lhe causava pavor e acontecera
coisas demais comigo para eu estar simplesmente bem.
Nós dois, decidi então. Nick tentava distrair a nós dois.
— Acho que eu nunca mais conseguirei olhar para uma loira
sem pensar no que fizemos — sussurrei, sendo governada pelas
emoções que apertavam meu peito como arames. Se fosse alguma
outra pessoa ali comigo eu teria feito o que sempre fiz e teria
escondido minha rachadura no coração. Mas era Nick, alguém em
quem eu podia confiar, ele não acharia meus receios um estorvo,
tampouco uma fraqueza desnecessária.
— Não eram inocentes, Maisie. E não pense que digo isso para
fazê-la se sentir bem por sua atitude, digo porque é a mais pura
verdade. Aquelas pessoas sabiam onde minha filha está e usaram
essa informação para chantagear você. Se eram capazes de fazer
algo assim, o que mais fariam se déssemos oportunidade? — Me
respondeu com uma voz excessivamente nítida.
Balancei a cabeça diversas vezes, em concordância. Se ele
podia ver ou não, não me importava.
— Você está certo. Tão certo que até me irrita. Eu sempre penso
no que fiz para os outros, mas nunca no que os outros fizeram
comigo — falei, com uma voz que arranhava a garganta.
— Você é doce por ver alma nas coisas, Maisie, apesar de ser
para mim, a imagem mais viva do inferno. Tudo em você, onde
ponho o meu olhar, me queima.
Um vulto rastejante se aproximou de nós e me distraiu.
— Doce? — disse Jailson ao chegar, fazendo eu me espremer
em Nick para que ele coubesse ao meu lado na moita.
— Cadê os outros dois? — Perguntei, ao tentear pelas
redondezas e não ver Gael e Damon.
— Estão escondidos naquela rocha ali. Ou naquela outra. Não
tenho certeza. Quando vimos que chegaram mais gregos, achamos
bom ficarmos em lugares separados, caso a gente precise de algum
elemento surpresa.
Nick aprovou a decisão com uma respirada profunda.
— Os gregos não estão com postura de quem vai embora. Está
claro que sabem que aquele barco é nossa única saída e como a
vida da minha filha está em risco, receio que seja nós que
declararemos guerra.
Reparei que meu padrasto não estava mais entre os homens, o
que, apesar de nos deixar em vantagem, me preocupava. Eu preferia
mil vezes ter meus olhos nele, a não saber onde estava.
Por sorte, Gael deixara a arma comigo. Agora tudo que eu
precisava era encontrar um graveto. Apalpei o chão molhado, já que
àquela hora da noite, a escuridão enganaria minha visão.
— O que está procurando? — Maisie perguntou, atenta.
— Algo afiado. — Fui sucinto.
Passou-se brumosos minutos, ouvindo apenas os murmúrios
que as árvores faziam como um grito de revolta, até que Jailson
dissesse:
— Isso aqui serve?
Peguei, fosse lá o que ele estivesse me entregando.
— Isso é um...colar de caduceu?
— Cadu quem? — Perguntou, aturdido.
— Um bastão de ouro, com duas serpentes defrontadas e
enroscadas. É o emblema de Hermes, deus grego. Onde conseguiu
isso?
— Eu roubei no palácio. Tinha me esquecido que ele estava no
meu bolso até ser espetado. Isso aí é um perigo! — Advertiu.
— Ora, o que são armas contra um maldito colar, não é mesmo?
— Maisie reagiu com sua ironia solene.
— Vai servir — atentei. Minhas pernas começavam a reclamar
pelos minutos que tiveram de me suportar agachado. O vento gélido
resvalando por meu dorso molhado também me deixava
incomodado.
— Por raios e pedras, pode me dizer como fará eles temerem
um colar? O que faremos?
Observei as nuvens azuis — com exceção dos trapos brancos
— no horizonte. Uma neblina parecia sentada no mar.
— Apenas observe garota. — E acrescentei para provocar: —
Quem sabe você não aprende algo.
Ela me ofendeu às minhas costas. Eu devia saber que não devia
brincar com uma garota arisca feito ela, só que foi mais forte que eu.
Me levantei e meu corpo caminhou com a chuva pela areia. A
noite vertia seu perfume e a ventania fazia ondular em mim as folhas
das árvores.
Dedos foram apontados na minha direção assim que fui visto.
Depois, armas, mas eu enfrentara situações semelhantes pelo
menos dez vezes para me permitir ser guiado pelo medo.
Levantei os braços para mostrar que não portava arma; o que
não era verdade. Além de armado, eu tinha como objetivo matá-los.
Um
Por
Um.
Só parei de andar quando fiquei perto o bastante de um deles.
— O que tem na mão!? — O grego mais distante me gritou.
— Isso? É só um colar. — A luz da lanterna acompanhou o
movimento da minha mão ao passo que eu erguia o objeto. Os
gregos se distraíram com o colar pontiagudo como eu suspeitara. —
Mas, isso. Bom, isso é uma arma. — Rapidamente a saquei e
disparei nos dois homens que estavam relativamente longe. Já no
que estava próximo a mim, cravei o caduceu no pescoço, mais ligeiro
que seus olhos podiam acompanhar.
Sangue jorrou, tal como uma mangueira, evidenciando que eu
perfurara alguma artéria. Ele tentou cobrir o ferimento com as mãos,
mas o ar já lhe faltava. Até que ele caiu deselegante na areia.
Quanto ao outro grego, eu nem precisava me certificar. Era só ser
enterrado.
Guardei tudo no seu devido lugar, quando vi que os escoceses e
Damon se aproximavam.
— Obrigado — comentei.
— Mas não fizemos nada — observou Gael.
— É exatamente por isso que agradeço.
Damon checou os corpos afim de garantir a morte de ambos e
tomou para si as armas e lanternas destes.
— Maisie, fique com uma das armas e lanternas para você —
recomendei e dei meio giro, buscando por seus olhos na noite
escura. — Maisie?
— Porra, ela não estava com você? — Gael questionou Jailson.
— Sim, estava — respondeu, confuso. — Ela estava bem atrás
de mim.
Minha garganta se fechou em um nó apertado. Poucos minutos
nunca acabaram tanto comigo.
— Não me espantaria se ela estivesse brincando com a gente.
Sabe como as garotas são... — Damon comentou, despreocupado e
sacudiu a barra da calça para tirar o excesso de areia.
Seus 32 dentes na boca eram questão de tempo.
— Você come merda, cara? — Gael retrucou, na imensidão dos
nervos perturbados.
— Vocês são muito estressados. A ruiva sabe se virar. Não
compreendo porque estão aflitos.
— Não me surpreende saber que pensa assim. Alguém como
você nunca deve ter sido amado — falei, indômito, afogado na minha
cólera.
— Repita se tiver coragem. — Damon me desafiou, enrijecendo
os músculos dos enormes braços.
Meus lábios alongaram-se em uma curva indefinida.
— Acha que não tenho? — A praia ficou banhada pela
penumbra que criamos. A paciência que eu armazenara para
suportar Damon, acabara de se esgotar.
Contudo, a briga fora interrompida por um grito de estilhaçar o
céu, partir meu coração até desfazê-lo em flocos e ocupou a vaga
mais importante da minha atenção.
Um exército de monstros ergueu-se dentro de mim e eu corri
cego.
Meu grito bramiu pelo ar quando meus cabelos foram puxados
por uma força demoníaca.
Eu fui jogada no chão, depois, meus seios foram esmagados na
terra áspera quando ele pisou nas minhas costas com sua bota dura.
Meus ossos estalaram e eu berrei mais um pouco antes de ser
obrigada a comer terra lambuzada por minhas lágrimas.
— Acharam que seria fácil assim? Que matariam e
simplesmente sairiam impunes?
Eu saí do estado de escrava da dor, para entrar no estado de:
eu preciso lutar.
Entreguei-me à fúria, com desvario.
— Eles nem gostavam de você. — Aproveite-me das labaredas
do meu temperamento impulsivo.
Em resposta, ele ergueu minha cabeça pelos cabelos e depois a
bateu no chão. Fiquei tão aturdida que até meus ouvidos
ensurdeceram.
O gosto metálico do meu sangue logo foi sentido por minha
língua recém adormecida. Eu não sabia que parte de mim sangrava
e uma dor que eu não sabia de onde vinha.
— Sabe o que é mais engraçado, menina? É que hoje também
está chovendo. Da mesma forma que choveu da última vez que fodi
uma garota com tanta força, que a despedacei.
A chuva continuava descendo para regar a minha cara. Se não
fosse por ela, talvez eu já não estivesse lúcida.
— Gu ifrinn (pro inferno)! — Com um fio de voz, lhe impus
interina outra linguagem.
Ele puxou novamente minha cabeça e depois bateu minha cara
no chão pela segunda vez, a esfregou, apenas para ter o deleite de
me fazer comer sujeira.
Eu devia ter apagado por alguns minutos, porque não me
lembrava de ter minhas pernas tão separadas e à sua disposição.
Ouvi o barulho de fivela. Mas algo na mata o distraiu, sua pisada
nas minhas costas se tornou vulnerável e todos seus movimentos
cessaram. Então, impelida pelas forças dos deuses, aproveitei a
oportunidade, me pus em pé e corri desenfreada em liberdade, com
cipós e espinhos cortando meus braços e com os sentidos confusos.
Apenas segui um broto de luz que surgia por entre troncos.
Acima de mim, folhas esvoaçavam, as palmeiras me abanavam
feito leque, nuvens bailavam como um anjo negro imenso vindo me
buscar.
Minha respiração tropeçava tanto quanto meus pés tropeçaram
quando eu notei que já não enxergava com um dos meus olhos.
Meu grito queimou na garganta, incendiando-me por dentro,
enquanto eu derramava minha seiva de sangue. Minhas botas
molhadas roubaram a força dos meus passos e uma dor intensa na
cabeça escorregava nas minhas pálpebras pesadas.
Mas eu não podia parar, ainda que me sentisse despedaçada
por um terremoto.
Continuei seguindo a luz branca até por fim chegar nele. Sim, o
farol. Eu finalmente consegui definir de onde vinha aquela luz, antes
de ser lançada novamente ao chão.
— Pode correr o quanto quiser, menina. Ele não conseguirá
chegar antes de eu acabar com você — Athos disse.
Uma nova parte do meu rosto fora preenchida por feridas
ocasionadas por pedras. Mais sangue. Mais dor. Mais lamúrias.
Athos foi com suas garras em meu braço na tentativa de me
erguer. E foi com um resquício de valentia que eu o chutei. Ele
desequilibrou um pouco.
Sem voz, sem força, exausta e esfarrapada, pus-me de joelhos
e dosei a respiração.
Graças a claridade provida do farol, eu pude fitá-lo para dizer:
— Covarde. Você não me assusta.
Em resposta, Athos foi com as duas mãos em meu pescoço, me
prendendo como uma coleira. Eu solucei, engasguei e caí de costas.
Me debati, tentando me libertar e como não adiantou, afundei meus
dedos em seus olhos. Ele afastou sua cabeça para ficar longe do
meu alcance.
A cada busca por oxigênio, mais meus pulmões queimavam pela
ausência dele.
Lembrava de ter ouvido o tilintar do sino preso à uma árvore que
parecia tão em chamas e sangrenta quanto eu, a imaginei
desgrenhada pelas ventanias e movendo-se feito um espantalho,
antes de em um ímpeto feroz, Athos ser arrancado de cima de mim e
lançado há uma distância que minha vista não alcançaria.
— Maisie? Maisie? — Belos olhos azuis como um mar agitado
buscavam os meus em desespero, aflição e dor. Muita dor.
Ele me ergueu em seus braços e eu apaguei antes de conseguir
pronunciar seu nome.
O caos já estava formado quando despertei com dois homens
me encarando. Suspiros e agradecimentos a Odin foram dados, cada
qual à sua maneira.
— Pensamos que não voltaria mais para nós, piuthar. — Gael
murmurou com olhos vermelhos e inchados.
— Pensamos que...que... estivesse morta — completou Jailson.
— Não...tão...fácil...rapazes — balbuciei num fio de voz que me
custou longas tossidas.
— Não fale e não se mova. Você está...muito ferida —
recomendou Jailson.
Bastou ele dizer, para que cada parte em mim latejasse e me
fizesse desejar estar morta. Mas o rugido impiedoso que ouvi, abafou
tudo:
— EU VOU ARRANCAR SUAS VÍSCERAS COM MEUS
DENTES!
E então o som de algo se partindo.
Gael me ajudou a erguer a cabeça ao perceber que eu não
conseguiria fazê-lo sozinha e tampouco deixaria de tentar.
Nick marchava na direção de Athos soltando seus demônios. Ele
se movia, silencioso quanto uma sombra. O gemido que chegava ao
longe deixou de ser anônimo quando notei que o padrasto já
sangrava por todo rosto e Damon o segurava pelos braços.
Nick lhe desferiu um murro no estômago. E depois, outro.
A tosse veio tão veloz quanto um trem e eu a deixei escapar,
alto o bastante para fazer Damon e Nick me olharem.
Nick? Não. Aquele não era Nick. Era Alastor, e ele parecia estar
esperando para acabar com a raça daquele verme.
Se ele precisava de alguma aprovação para fazê-lo na minha
frente, algo no modo como o fitei, devia ter sido o bastante.
Uma sequência de murros foi desferida em Athos. Foram tantos,
que em certo momento Damon não precisou mais segurá-lo. Armas
também foram descartadas.
Nick parecia enorme, com uma feracidade excepcional.
Era belo, invencível, agressivo. Ele era um guerreiro onde a
espada era as próprias mãos.
— Vou matá-lo! — Nick rosnou.
O balançar era como ser ninada em colo de mãe. Não que eu
soubesse o que era isso, não fazia parte das minhas lembranças um
carinho tão doce quanto aquele. Minha imaginação apenas deduzia.
A mão quente percorrendo por minha bochecha, era fresca
como orvalho — escorrendo gota a gota — e me aquecia por dentro.
Eu sabia que era mão de um homem trêmulo, a sua tristeza era tanta
que chegava a penetrar na minha pele. Era lento, numa calmaria
falsa e densa.
Ergui minhas pálpebras para olhos contidos, mas macios, e que
derreteram como vela ao me virem despertar.
— Me perdoe.
Quando olhei ao redor, descobri que estava em um barco, mas
foi também, justamente nesse momento, que descobri que meu olho
esquerdo não estava funcionando como deveria. Me desesperar era
uma possibilidade, só que o grito apodreceu na boca ao me recordar
dos últimos episódios.
— O que aconteceu? — Minha voz saiu entrecortada, só que
Nick compreendeu.
Ele se levantou da cama. Cama? Se o barco possuía até cama,
então eu estava em um lugar melhor que esperava. Um lugar onde
nem meus sonhos humildes de roupas baratas ousaram ir.
O suspiro de Nick fora um prelúdio da tragédia. Seus olhos
desviaram-se até o punho avermelhado e inchado.
— Pense o pior e permita que sua criatividade ultrapasse os
limites mais medonhos e sangrentos. — Soou como quis que
soasse, seco e bárbaro.
— O matou por mim...
Deu um sorriso torto que me fez sentir-se tola.
— Mataria qualquer um por você. Ainda que isso não é algo que
deva ser dito a uma dama...
— Me chamou de dama? Fez mesmo isso? — Gargalhei e
chorei com dor nas costelas, seios, cabeça. Todos meus ossos
pareciam partidos, estilhaçados.
— Maisie, seu deboche é uma gracinha. Porém, entenda que o
que aconteceu com você... — Ele se calou. A obscuridade de Alastor
ainda brilhava nos olhos de Nick. — Nunca me perdoarei. Nunca.
Nunca. Nunca.
Ele fungou.
— Não foi culpa sua. — Procurei tranquilizá-lo. Mas ele já estava
envolvido na culpa como se ela fosse seu manto.
— Nós dois sabemos o que a trouxe aqui.
— Sim. A minha liberdade em tomar minhas próprias decisões.
Respirou profundamente e foi até uma janelinha redonda que
devia dar uma bela vista do oceano azul.
— Por quanto tempo dormi? — Mudei de assunto.
— Algumas horas — disse sem se virar.
Pisquei várias e várias vezes, na esperança de voltar a enxergar
normalmente. Mas, para minha infelicidade, Nick ainda era apenas
um vulto para meu olho esquerdo.
— Sente-se melhor? — Questionei e dessa vez ele se virou para
mim. — Agora que descontou a raiva acumulada por seu padrasto?
Isso o faz sentir-se melhor?
Ele juntou as sobrancelhas e tornou a se aproximar de mim.
Perfeito como nenhum outro ser humano era capaz de ser. Dono dos
lábios que eu incansavelmente desejava beijar.
— Se me sinto melhor? Me considero a pior desgraça que já
aconteceu na sua vida. Veja o que ele fez com você para me atingir,
garota. Eu pensei que nada pudesse ser mais traumatizante do que
o que ele me fez passa há anos. Mas Athos conseguiu se superar.
— Você não é uma desgraça, Nicholas Coleman. Eu entrei
nessa selva sabendo que podia me tornar o alimento dos lobos.
Ele socou a parede de madeira encolerizado. Numa segunda
vez, ele seria capaz até mesmo de formar um buraco ali.
— Se você não se acalmar, eu juro que me levantarei dessa
cama e o jogarei desse barco!
— Atreva-se e eu a algemarei! — Retrucou ainda mais puto.
Trinquei os dentes e cerrei os punhos. Se Nick estava tão
irritado por deduzir o que Athos fizera comigo, como ele reagiria ao
descobrir que eu estava cega de um olho? Não. Ele não saberia. Eu
nunca poderia contar. Não superaríamos algo desse tipo.
— Se forem brincar de algema, podem me incluir? Não há nada
que me excite mais que um sexo selvagem. — Damon infiltrou-se no
quarto com toda delicadeza que ele definitivamente não possuía.
Soltei o ar pelo nariz.
— Pensei que havíamos nos livrado dessa praga! — Falei para
Nick.
— Algumas perduram por mais tempo.
O corvo simplesmente sorriu com descaramento. O típico sorriso
que muitas mulheres deviam pagar com o coração. Eu certamente
teria pagado com o meu, caso ele já não pertencesse a outro tão
libertino quanto.
— Não era a minha intenção interromper seus planos. Mas
estou farto daqueles dois lá em cima disputando coisas
indisputáveis.
— Não seja tão duro com eles. — O respondi.
— Por vezes a rigidez me acomete sem que eu tenha controle.
— Me deu uma piscadela desavergonhada.
Revirei os olhos com uma força dolorosa.
— O convido a se retirar. — Nick se virou para ele. — E entenda
que com convite quero dizer que se você não sair de boa vontade,
saíra em pedaços.
— Por favor, Alastor. A ruiva passou por difíceis situações. Não
acha de devíamos recompensá-la dando o nosso melhor?
Meu coração subiu na garganta e eu podia jurar que Nick
pegaria a garrafa de uísque ao lado para dar na cabeça dele.
— Acho que a decisão ficará por conta da garota em questão. —
Para a minha surpresa, ele olhou de Damon para mim e um lampejo
de maldade cintilou lá dentro. Nick podia ser possessivo, mas
Alastor...Alastor demonstrou que sabia dividir.
Prendi a respiração e molhei meus lábios numa ressaca sem
controle.
— Ela está um pouco ferida — comentou Damon, ao me avaliar
encolhida no colchão. — Mas nada que um pouco de cautela não
resolva.
— Eu sei ser cuidadoso e você?
— Eu posso aprender ser. — Damon encarou a garrafa que a
pouco me chamara atenção, a pegou e se foi com um semblante de
quem conseguiu o que queria.
Eu fiquei ali. Totalmente em choque com o que acabara de ouvir.
Talvez a pancada na minha cabeça tivesse sido mais forte que eu
suspeitara. Eu só podia ter alucinado toda aquela conversa.
Devia estar louca. Tinha de estar!
— O que foi isso? — Indaguei quando criei coragem.
Nick fez cara de confuso. O que me deixou ainda mais
atordoada e crente que minha imaginação promiscua fora longe
demais.
— Você e Damon... — Balbuciei, bastante tímida.
Ele deu de ombros, fazendo pouco caso.
— Eu vejo a forma que você olha para ele e como ele retribui o
olhar.
Fiz careta como se minha mente tivesse sido invadida.
— Damon é bonito. Só isso. — Confessei. Era inútil tentar
disfarçar que sua beleza era motivo de me fazer molhar os lábios. —
Eu não sinto nada por ele.
Nick riu baixinho e pendeu a cabeça para o lado.
— Maisie, não estou condenando-a. Não há motivo para ficar na
defensiva.
— Você está falando sobre me dividir com o homem que
odiávamos! — Me sentei na cama sem nem sentir dor. Estava tão
espantada, que apenas meu inconformismo ditava os gestos.
— Disse certo, odiávamos. Eu confio nele quando se trata de
você. Damon ficou tão enfurecido quanto eu fiquei ao ver Athos em
cima de você. — Fez uma pausa. — Não pense sobre isso agora,
saiba que não faremos nada que não queira.
— Então você gosta de homem? — A pergunta foi arrancada de
mim. Ora, se Nick aceitara compactuar com isso então ele devia
gostar mesmo de ambos os sexos.
Ele gargalhou tão alto, que precisou levar uma mão à boca para
se conter.
— Não. Por Deus, não. A pessoa a ser dividida durante o coito,
será você. Se isso vier acontecer, pretendo ficar numa extremidade
longe o bastante de Damon. Nos dedicaremos apenas ao seu prazer
sem nos tocarmos.
Senti como se um cavalo tivesse acabado de me atropelar.
— Você...você já fez isso? — Perguntei, com receio da resposta.
— Já. — Foi sucinto e piscou-me os olhos de quem nunca teve
santidade.
Meus dentes bateram de terror. O olhei dos pés à cabeça.
— Não imagino como dois homens possam entrar em uma
mulher ao mesmo tempo. Mal coube você aqui.
Nick sorriu largo e com ternura, embora, também arrogante.
— Maisie, como lhe direi isso. — Ele fixou os olhos na janela
antes de volta-los para mim. — Damon e eu não compartilharemos o
mesmo espaço ao mesmo tempo. Há mais de uma forma de se fazer
isso.
— Seja claro — exigi.
— Tem certeza? — Me encarou com bruteza. Assenti, sem
imaginar onde diabos estava me metendo. — Certo. Enquanto um
homem a penetra na boceta, o outro pode acariciá-la com a boca ou,
se permitido, a penetrará por trás.
Engasguei com o ar e fiquei horrorizada.
— Por que isso agora? Você...você quis matá-lo diversas vezes
apenas por ele trocar palavras comigo. O que o fez mudar de ideia?
Ele passou a mão de dedos esguios pela barba relativamente
grande. O pensamento parecia solto.
— Você era virgem quando nos conhecemos, não quero privá-la
de desfrutar o melhor do prazer. Eu já fodi mais mulheres que posso
contar em uma mão e quero que você tenha outras experiências
assim como eu tive para ter convicção ao dizer que sou melhor nisso
que ele. Da mesma forma que posso afirmar veementemente que
você me enlouquece como nenhuma outra enlouqueceu.
Abri bem os olhos e ergui o queixo.
— Então isso é para enaltecer seu ego?
Estufou o peito como um rei muito poderoso.
— Não, chick. Isso é para você não passar o resto da vida se
perguntando como seria ter Damon dentro de você. Se durante esse
processo você descobrir que ele não é tão bom quanto eu, ótimo.
Esfreguei minhas têmporas e deixei meu corpo afundar no
colchão deveras macio. Aquilo era demais para a minha cabeça.
— Não quero fazer isso! — Afirmei, por fim e me contentei com
o silêncio. O silêncio espantoso de quem devia estar gritando
desesperadamente.
Nick se aproximou vagarosamente. A cada passo, mais quente
eu me sentia. Quase pegando fogo.
Então, pôs-se na minha frente e em um sussurro, ele começou a
alimentar a chama recentemente acesa dentro de mim:
— Está me dizendo que não gostaria de ter minha língua entre
suas pernas enquanto Damon a lambe pelo pescoço e desce até
seus seios?
Meu coração disparou e eu não pude negar que a ideia me
pareceu monstruosamente deliciosa.
— Viu? Você quer isso, só está com medo de admitir por achar
que me magoaria. — Ele afirmou, me envergonhando, como se
pudesse ver além do que eu mostrava.
— Não magoa? — Perguntei, com medo. Tudo aquilo era novo
demais para mim. Cerca de um mês atrás eu nunca sequer havia
sido beijada na boca e agora dois homens lindos feito deuses
queriam possuir meu corpo. É claro que eu me sentia pisando em
ovos.
Nick não respondeu de imediato.
— Quando decidi me envolver com uma garota como você,
sempre soube que não seria fácil.
O barco balançou um pouco mais forte e Nick precisou se apoiar
na parede para não cair.
— Está dizendo que não dá conta de mim sozinho? — Aticei
para descontrair e também porque eu estava ridiculamente excitada.
Aquele papo todo de ter dois homens me chupando, teve uma
enorme facilidade em espantar a dor que outrora sentia e toda a
carga emocional que aqueles roxos em minha pele carregavam.
— Não me provoque, Maisie. Não se não puder aguentar.
Me remexi e passei uma perna por vez, para descer da cama.
Eu estava mais enfraquecia do que imaginava, mas isso eu podia
suportar. Já os joguinhos de Nick...
— Quem disse que não aguento? — Arrastei os pés até ele.
Nick me estendeu as mãos para me ajudar a ficar em pé sem
tombar. — Sou mais forte do que pensa, Alastor. Não será um
homenzinho feito você que me derrubará.
— Homenzinho feito eu? — Repetiu em tom de sarcasmo e me
puxou pela cintura com cuidado. — Esse homenzinho aqui mataria
um batalhão por você.
— Ele mata um exército, mas não é capaz de domar uma
pequena fera.
Ele ergueu meu queixo, enquanto me mantinha em pé com a
outra mão. Mergulhei no mar quente dos seus olhos.
— Não estou acostumado com uma fera que gosta de ser
mordida. Mas, se ela exige que eu o faça, então que ela esteja
pronta para ter minha boca por todo seu corpo sem dó ou piedade.
Depois de Nick ter me deixado sozinha no quarto devido um
chamado de Jailson, eu dormi por mais algumas horas e tive um
sonho desenfreado e muito, muito devasso. Quando resolvi sair da
cama, reparei que já anoitecera e que me sentia melhor fisicamente.
A cortina preta que se fechara em meu olho esquerdo, dera uma leve
melhorada. Leve. Quase ínfima. Uma melhora tão insignificante que
cheguei a tropeçar na escadinha de madeira ao tentar subi-la.
Olhei pela porta aberta. A noite que se aproximava suave como
uma brisa, não era a mesma que pareceu pronta para me destruir na
noite passada. As ondas toavam em meus ouvidos como uma
cantiga de embalar.
Calmamente, saboreei as carícias da brisa e a plenitude da
noite. O mar estava tão sereno, que conseguia tocar os meus
sonhos.
— Maisie? O que está fazendo aqui? — Damon perguntou e me
estendeu a mão para me ajudar a subir os últimos degraus. Eu
aceitei.
O barco tinha por volta de dois andares, incontáveis janelas e
muitas cabines. Era branco, enorme e maravilhoso.
Me segurei no mastro assim que larguei a mão de Damon.
— Onde estão os outros? — Perguntei sem fitá-lo. Eu descobri
que não conseguiria mais olhar para ele sem me lembrar da
conversa absurda que tivemos.
— Jailson está cuidando do timão e Gael está com ele. Alastor
foi descansar, se me lembro bem.
— Espero que Jailson saiba o que está fazendo. Ele nunca foi
um bom marinheiro.
— Está com torcicolo? — Ele perguntou, como um santo.
— O quê? Não. Por que?
— Você não tira os olhos dos pés.
Ergui as pálpebras para ele.
— Faço isso porque não quero encará-lo. Não depois do que
sugeriu que fizéssemos — retruquei, num ímpeto delirante.
As esferas dos olhos escuros como a noite estavam carregadas
de suspense e rajadas raivosas.
— Suspeito que a proposta tem atormentado você, cabelo de
fogo.
O frio que o sangue levou ao meu coração o congelou e o
transformou em pedra.
— Não faremos isso, Damon. Nunca.
Ele se inclinou e foi com os lábios em meu ouvido. Eu parei de
respirar na mesma hora.
— Quando eu colocar as mãos em você, ruivinha, você
implorará para que eu nunca mais as tire.
O empurrei.
— Encoste em mim e eu quebro todos seus dedos — ameacei.
O deixei antes que pudesse rebater meu comentário e procurei
por Nick em cada quarto que empurrei a porta. Suor me escorria
pelas costas e foi um alívio quando encontrei o loiro esparramado em
uma cama, em um sono profundo e tranquilo.
A minha demasiada loucura de repente pareceu o meu mais
puro juízo.
Entrei em passos leves, com a coragem rompendo em minhas
veias. Embriagada pela luxúria, me despi sem titubeios e montei
sobre o corpo quente de Nick. A diversão brilhava na escura
confusão do meu pensamento.
Ele despertou em um susto e me agarrou pelos braços em uma
ferocidade que nunca dormia, até se acalmar e perceber que era eu.
— Maisie? — Seus olhos magnetizadores erguidos em
vagalhões, solenes, enraivecidos, turbulentos.
Me inclinei sobre ele para um beijo impulsivo e subitamente
melancólico. Sua língua de fogo não pensou duas vezes em
corresponder à minha e se formaram uma só num ritmo rebelde e
sedento. As unhas impiedosas que antes estavam em meus braços,
foram para as minhas coxas nuas e me apertaram em pressa vã.
— Eu quero você, Nick. — Inspirei o frescor do sabonete no
momento em que roçou sua barba em minha face e repeti: — Eu o
quero agora mesmo e com força.
— Droga, Maisie. Não temos...
— Não me importo. Eu quero senti-lo, vá fundo dentro de mim e
entenda isso como quiser.
Com um desejo de quem não se importaria em me possuir por
trás ou pela frente, consentiu.
Meu coração estourou como uma bomba. Não havia dor, nem
medo. Não havia nada, apenas nós e um amor que agia feito
antídoto. Com um suspiro atirado ao vento, ele me empurrou para o
lado e baixou calça e cueca. Seu pau estava duro e esperando por
mim.
— Sente — ele olhou para a minha boca e falou em tom
autoritário sendo conduzido pelo instinto de macho — e não seja
delicada.
Me posicionei com uma perna em cada lado do seu corpo e
montei, faminta. Joguei a cabeça para trás quando ele foi fundo e um
gemido me atravessou a garganta. Dei tudo o que tinha para dar e se
me exigisse mais, ainda que eu não soubesse do que se tratava, eu
cederia.
Ele me tocou cabelos, seios, boca, pescoço com total devoção e
me encarou com olhos coruscantes.
Lancei gemidos ao ar, sendo levada a delírio extremo, sem me
importar em ser ouvida. Eu me abri para ele e deixei que fizesse o
que quisesse comigo. Se sua intenção era me devorar, que
devorasse. Dentro de mim era o seu lugar. Era a única certeza que
eu tinha.
— Ahhh, isso é tão bom. — Me brotou à boca.
Deslizou uma mão por entre minhas coxas e massageou minha
boceta molhada com o polegar como se fosse uma fruta fresca.
— Então não saia daí nunca mais, minha fêmea favorita.
Meu instinto indomável gostou daquilo, de estar no controle,
sobre ele. De ser quem ditava os movimentos e sua velocidade.
Ora lenta, ora rápida e arranquei arfadas da sua boca.
— Você é perfeita, Maisie. Perfeita.
De todas mulheres no mundo, me senti a mais desejada.
— E sua. Apenas sua.
Sua mão percorreu lentamente por minhas costas arrepiadas até
meus cabelos e o puxou em um gesto possessivo.
— Minha. Inteiramente minha.
Molhados. Perversos. Como se o Universo fosse nosso, como
se o caos nunca tivesse estado entre nós. Não existia nada além
daquele laço indestrutível que criávamos.
Ao abrir os olhos, vi que Nick já me fitava, explorando cada traço
em mim, e que tentava controlar algo dentro dele que estava prestes
a possuí-lo.
— Pare de me encarar. — Pedi, tropeçando na timidez.
— Nunca. Tenho procurado imperfeições em você, mas elas não
existem. É incrível como não há nada nesse rosto que não me
deslumbre.
Eu sorri nervosa e tive seus dedos tocando meus lábios. Os
tomei em minha boca com vontade e Nick se contorceu embaixo de
mim quando os chupei, o fazendo queimar em meu fogo.
— Ahhh, desgraçada!
Cada pelo.
Cada poro.
Cada milímetro dele, se arrepiou.
Seus olhos já não estavam em mim, estavam fechados,
apreciando meu toque lambuzar e abusar de tudo.
Em um gesto único e inesperado, feito um leão que dá o bote,
Nick me virou. Em questão de minutos eu perdi todo o controle que
tinha e passei a ser um bicho domado.
— Não é justo — reclamei, desaprovando sua postura.
Ele agarrou na cabeceira da cama e me olhou de cima,
selvageria caminhava naquelas órbitas e transparecia vislumbres de
uma alma fria e calma, fadada ao crime. Havia uma esfinge
misteriosa e que possuía minhas entranhas dentro daquele homem.
— Justo? Você invade meu quarto com seu corpo
escandalosamente nu e espera que eu não a puna por isso? —
Disse, libertando o monstro nascido da solidão.
— Não gosta de surpresas em plena noite, Alastor?
— Se a surpresa vier acompanhada de uma boceta molhada, eu
agradecerei de joelhos.
Mordi o lábio inferior para conter um risinho indecente.
— Quando foi que se tornou um libertino descarado?
— Minha chick, eu ainda a surpreenderei muito. Mas, agora —
penetrou mais fundo —, abra essas pernas para mim e deixe-me
deleitar desse banquete que me trouxe.
Meu gemido subiu um degrau na minha garganta e desabrochou
no ar.
Levou os dentes até meu mamilo para uma mordida de me fazer
gritar. Uma mordida que o marcava em mim.
— Você é bom nisso — balbuciei, mais clara que o sol.
Ele deu uma risada contra minha nuca e passou a língua por ali,
a direcionando até minha orelha. A respiração cálida fora um
tormento.
— Que nobre elogio — gracejou. — Você também não é nada
ruim.
Dei um tapa ardido em suas costas e desci com as mãos até
sua bunda de pelos ásperos, que se movimentava vagarosamente,
me penetrando fundo.
— Quem sabe quando eu tiver todas as experiências sexuais
que você teve, eu não aprenda algo — comentei para deixá-lo
maluco.
Agarrou meus pulsos com uma mão e ergueu meus braços
sobre minha cabeça. Nicholas Coleman definitivamente não
precisava de algemas.
— Má. Muito má, Maisie.
— Gosto de ouvi-lo dizer que eu pertenço a você. — Nos
observamos por longos minutos.
— É isso que deseja? — Desceu com a língua para minha boca
e a invadiu em seguida. Seu beijo se intensificou e ele descontou seu
ciúme. Foi rude, em uma paixão violenta. Me bebeu como um puro e
sagrado licor. — Quer ser minha até o fim dos seus dias e dos
meus?
— Até o fim de tudo.
— Só minha? — Me deu tudo o que tinha em uma estocada
forte e indolor, tal como um audaz cavaleiro.
Anuí brevemente com a cabeça. Calei minha respiração para
ouvir o som da sua rouca voz. Eu silenciaria qualquer ruído apenas
para ouvi-lo.
— Talvez você não esteja em perfeito juízo porque a estou
fazendo gozar. Que cafajeste eu seria se lhe cobrasse uma
promessa dessas justo agora, não é mesmo?
Se mexeu em movimento medido e perfeito.
Senti como se minha alma estivesse sendo arrancada. O que
havia em mim, era sobretudo, amor. Eu pulsava em torno dele, em
sua grandeza que me castigava, que enlouquecidamente me
idolatrava. Empertiguei-me, renovada e me preparei para lambuzar
Nick com todo meu prazer.
Uma pequena linha de expressão surgiu na minha face.
Contive um soluço abafado ao gozar.
— O mais perfeito dos cafajestes — suspirei. O azul obliterante
dos seus olhos despertava em mim a mais consciente submissão.
— Você é uma desonra para meu autocontrole, garota. — Seu
ofegar ardeu sobre minha testa. O senti ficar mais rígido dentro de
mim e pulsar impetuoso como um coração. — Eu a amo muito por
isso. Mas agora preciso sair de você.
— Você precisa... — Antes de concluir minha frase, eu entendi o
que ele queria dizer. E tinha razão, tudo que não precisávamos em
nossas vidas, era de um filho.
— Maisie. — Ele gemeu, eu gemi, e meteu uma. Duas. Três
vezes, antes de sair e despejar o gozo dos deuses no lençol. Ele
caiu por cima de mim, me sufocando, unindo nosso suor pegajoso.
Seu tórax em peso, comprimindo meus seios. — Nunca mais me
provoque dessa forma. Quase não me contive.
Me deu um beijo na clavícula antes de se levantar e vestir-se.
— Você não pode entrevir em meus sonhos e achar que não
farei nada a respeito. — Me defendi, permitindo-me soar tola.
— Está me dizendo que nossa conversa foi a responsável dessa
sua pouca-vergonha? — Perguntou, indo até o banheiro. Ouvi
quando abriu a torneira e vi pelo reflexo do espelho ele lavar o rosto.
— A conversa e o fato de eu não querer deixar a Grécia com
uma péssima lembrança para atormentar meus dias. — Senti um
calafrio ao me recordar do gosto da terra.
Nick deixou o banheiro assim que me viu fraquejar. Uma lágrima
deixou meus olhos. Depois, outra.
Ele me encarou, vibrante, profundo, mudo e inerte. Uma raiva
oculta se alastrava dentro dele, ardentemente. Eu sentia isso
consumi-lo, subindo e descendo por sua garganta. Nem minhas
lágrimas quebraram sua marra. Ignorada e pisada como uma pedra
no chão.
— Eu devia deixá-la. — Jogou a informação como papel que se
atira ao cesto e em um timbre grotesco que me feriu. Não era aquilo
que meus ouvidos queriam ouvir. Tampouco o que meu coração
precisava.
— Me deixar?
— Sim. E seus amigos concordam em absoluto com isso. Não
há quem não concorde, na verdade. Meu passado a deixou à beira
da morte duas vezes. É a verdade. Aceite você ou não.
Fiz força na mandíbula para falar.
— É isso que vai fazer? — Engoli em seco. — Depois de tudo
que passamos?
Sua intensidade sombria se dispersou feito fumaça, como se
minha pergunta tivesse feito renascer o gosto de luta e de combate.
Nick ficou perto demais e fui obrigada a erguer o rosto para ele.
— Estou fatigado tentando me convencer a fazer o certo, mas o
meu egoísmo se recusa deixá-la. — Se prolongou, ainda que aquilo
me bastasse: — Minha fraqueza diante sua presença deve ser uma
vergonha para os homens, mas eu não me importo. Se eu tiver que
viver em constante humilhação nesse universo provinciano para tê-
la, eu vivo e morro sem pensar duas vezes. Mas, ao mesmo tempo,
quando olho para você, vejo uma inocência da qual não posso me
aproveitar.
Não houve um só ar em meus pulmões. E meus lábios que
pareciam costurados se puseram a falar:
— Há muito não existe inocência em mim. E deixe que as
pessoas falem. Elas não podem entender porque não te conhecem
como eu. Eu aceito todas suas versões, Nick, e as amo igualmente.
— Maisie, sabe que nos metemos em algo que não pode ser
resolvido com palavras.
— Athos deixou isso bastante claro.
Nick esticou a mão até meu joelho ralado. Eu me retraí, com dor.
— Ninguém chegará perto de você novamente, eu lhe prometo
isso. Farei o que tiver que ser feito para garantir sua segurança. —
Pude ver cor e peso em suas palavras.
— Eu não preciso que me vigie vinte e quatro horas, preciso que
me dê uma arma.
— Providenciarei isso. Só que antes, quero que você tome um
banho quente e coma algo.
— Há o que comer aqui? — Me levantei e recolhi a roupa do
chão para esconder minha nudez.
— Convenci duas empregadas gregas a virem conosco. Para
falar a verdade, elas não podiam ficar mais feliz pelo convite. Pedirei
para que preparem algo para você.
Ergui a sobrancelha.
— Tem certeza de que dormi apenas horas? Sinto que perdi
muita coisa — comentei.
— Você sabe o essencial.
— Não pode afirmar isso.
Ele soltou um suspiro impaciente.
— Terei de levá-la para o banho pelos cabelos?
— Não seria a primeira vez que você os puxaria — respondi,
maliciosa.
Nick colocou as mãos nos quadris.
— Que infernos eu fiz com você?
— Menos do que eu desejo. — Dei uma piscadela antes de fugir
para o banheiro.
Subi as escadas até a cabine onde os outros homens estavam.
Damon se deliciava com uma garrafa de uísque, enquanto Gael
passava páginas de uma revista e Jailson tentava se adaptar à
tecnologia do barco.
Os três me encararam assim que entrei.
— Tudo certo? — Gael me perguntou, ainda mais
esbranquiçado que o de costume.
— Sim. Ela não desconfia de nada — respondi em timbre azedo.
— Precisa garantir que ela não vasculhe os outros quartos. Você
não conhece a curiosidade daquela ruivinha. Se ela desconfiar do
que estamos prestes a fazer, estamos mortos — atentou Jailson.
Encostei a porta e cruzei os braços.
— Só precisamos mentir por mais algumas horas. — Suspirei e
me virei para Damon. — Espero não me arrepender de ter
concordado com seu plano.
Ele virou um gole da bebida e me estendeu a garrafa depois. A
peguei à contragosto.
— Provavelmente se arrependerá, mas agora é um pouco tarde
para mudar de ideia.
Trinquei os dentes e contive um avanço.
— Quer saber de uma coisa, corvo despenado? Quando tudo
isso acabar, eu mesmo quebrarei sua cara — rosnou Gael,
enfuriado.
— E por que? Pelo que eu me lembre, vocês não contestaram a
minha ideia quando a expus. Outra coisa, se acham melhores que
eu, quando, na verdade, só me aceitam porque precisam de mim.
— Você não nos mata pela mesma razão — contestei.
Damon sorriu, indecente.
— Sim. É verdade. Então assim que eu estiver em terra segura,
eu apontarei uma arma para a cabeça de cada um de vocês,
inclusive da ruiva, e não hesitarei em puxar o gatilho.
Larguei a garrafa no chão para não a jogar na cabeça dele. Eu
precisava da ajuda do desgraçado.
— Se algo acontecer a ela, eu prometo que minha mão na sua
cara será a última coisa que você verá antes de morrer — ameacei.
Sem se intimidar, ele aproximou-se e chutou um caco de vidro.
— Ah, Alastor, olha a bagunça que você fez por uma simples
brincadeira. Achei que estivéssemos nos entendendo, já que
concordamos em foder uma garota juntos.
Soube que os escoceses me fitaram, incrédulos, mas não
sustentei os olhares.
Ergui Damon pelo colarinho, alheio de tudo e todos.
— Está tentando ser engraçado?
Me abriu um sorriso, adorando ser o centro das atenções.
— Sabe, Alastor, eu a desejava apenas porque a achei uma
garota estonteante, mas então eu vi o quão fácil é atingi-lo através
dela.
— Cansei de fingir que o suporto.
— Estava fingindo? Saiba que é péssimo nisso.
O arrastei para fora da cabine. Ele não fez o menor esforço para
me impedir.
— Por que está testando a minha paciência? — Questionei, em
uma passividade estúpida.
— Você disse algo sobre mim. — Era como se aquelas palavras
o rasgassem por dentro. — Você disse que...eu nunca fui amado. E
eu nunca fui, por ser quem sou: egoísta, bárbaro, cruel. E você é
exatamente como eu, porém, ao contrário de mim, encontrou alguém
que o aceita.
Eu tinha o veneno das serpentes em minhas veias, mas aquela
foi a primeira vez que Damon expôs sua alma ensanguentada sem
baixar a cabeça e eu respeitava isso.
Meu instinto de luz rompeu-se na treva.
— Se o consola, sei que não sou merecedor do amor de Maisie.
— Não consola.
— Então, foda-se você e seus lamentos — respondi, com uma
grosseria irreparável. No fim, acabou que gargalhamos em meio ao
terror de descobrirmos que tínhamos algo em comum. — Eu lhe
ofereceria uma bebida, se não tivesse quebrado a garrafa.
Ele se inclinou para observar o mar num interesse ávido e
apoiou os braços no ferro.
— Você é uma bomba que explode na mão de qualquer um.
— Está falando de si mesmo ou de mim? Pois se me recordo,
você não poupa a vida daqueles que odeia.
— Não faço teatro para matar — respondeu. — Ah, e eu não
falei sério sobre acabar com vocês quando eu estiver seguro.
— Bem, mas meu aviso sobre ferir Maisie ainda é verdadeiro.
— Esse seria o momento em que eu ergueria meu copo de
uísque e diria a você que não há razão para eu ferir uma garota que
planejamos dividir — disse no seu timbre mais profano.
— E eu ergueria meu copo de volta, depois o espancaria seis
vezes.
— Você só disse aquilo para saber se ela sentia algo por mim,
não foi?
O olhei de esguelha e me escorei ao seu lado.
— Eu não a testei. Testei a mim mesmo.
— Como assim?
Voltei meu rosto para a lua e deixei que o vento refrescasse meu
rosto.
— Aproveitei muito bem a minha vida desde que fui traído, eu
dividi mulheres sem que isso me afetasse. No entanto, pensar em ter
outro homem tocando Maisie.... Isso tira o brilho de tudo à minha
volta.
— Imagino o que aconteceria caso ela tivesse aceitado. —
Jogou ao vento.
Só suspirei.
O mar estava calmo, mas a agitação dentro de mim era
desesperadora, nauseante.
— Fez o que precisava ser feito? Estamos cada vez mais perto
da ilha. — Damon me perguntou com cautela, um tempo depois. —
Em poucas horas precisaremos ir...
Soquei a madeira do barco e tive como consequência uma dor
desnecessária nos vãos dos dedos. Uma dor que eu devia ter
sentido ao socar Athos, caso o delírio não tivesse adormecido tudo
em mim.
— Eu sei das minhas obrigações, não preciso que me recorde.
Ainda mais por se tratar da segurança de Maisie.
Damon só me olhou.
— Não queria interromper o confronto de masculinidade entre
vocês, mas quero saber como raios se pede pão doce em grego? —
Maisie surgiu como um tufo de vento. Os cabelos ruivos e molhados,
espargiam pelos ombros. Estava com o mesmíssimo vestido
rasgado, mas ela tinha o dom de fazer qualquer espécie de roupa lhe
cair bem.
— Por que não me acompanha para descobrirmos isso juntos?
— Sugeri, simulando cavalheirismo apenas para vê-la sorrir.
Me voltei para Damon assim que Maisie se agarrou ao meu
braço.
— Se me der licença, preciso alimentar esse monstrinho antes
que ela pegue apreço pela carne humana.
Ambos gargalharam.
— Coma devagar para não engasgar. Prometo que a comida
continuará aí — reclamou, me vendo morder uma rosquinha, ao
passo em que segurava um waffles de aveia, também mordido, na
outra mão.
— Não seja grosseiro. Xou uma da...ma — falei de boca cheia.
— Que Deus proteja os homens — respondeu, se esticando na
cadeira como os homens gostavam de fazer. As pernas
arreganhadas como se o que houvesse entre elas fosse grande
demais para caber ali. — Eu conheço esse olhar.
— Que olhar? — Levei a xícara de café gelado à boca.
Apoiou os cotovelos na mesa e me olhou diretamente nos olhos,
como se eu fosse um belo quadro a se venerar.
— O olhar de quem está com pensamentos depravados.
O café ferveu na minha boca. O engoli devagar.
— Nada disso — menti rápido e brinquei com a rosquinha. —
Estou pensando em quantos dias levaremos para chegarmos à
Escócia de barco.
— Acredite, isso tem perturbado a mim mais que a você. Queria
ao menos saber se minha filha está bem. — Baixou o olhar.
— Não acho que farão algo a ela. Não sem receber uma ordem
direta.
Seus olhos penetraram profundamente nos meus e eu senti que
Nick tentava esconder alguma coisa dentro deles.
— Damon me disse a mesma coisa. Parece que há um
protocolo sobre assassinar prisioneiros. Os sequestradores só
podem agir se receberem ordem de algum dos três.
— Três? Pensei que Dionísio e o outro fossem os líderes de
Érebos.
Continuou com um olhar enigmático.
— Damon disse que quando um dos membros compactua ou
organiza direta ou indiretamente um crime, ainda que não seja o
responsável por executá-lo, ele ganha poder para eliminar ou libertar
as vítimas, se a ordem do seu superior não for contrária, claro. No
meu caso, como os líderes estão mortos, o ajudante quem decidirá o
que acontecerá com as garotas. Basta comparecer ao cativeiro.
Larguei a rosquinha imediatamente. Senti como se uma roseira
cheia de espinhos tivesse subido por mim e se enrolado ligeira.
— E quem foi o organizador do sequestro da sua filha? — Minha
boca secou.
Nick franziu o cenho e retesou os lábios. Senti que ele pensara
em mil motivos para se levantar da mesa.
— Meu padrasto.
O alimento virou concreto no meu estômago quando Nick me fez
lembrar um rosto o qual meu cérebro não queria enxergar.
— Mas...Athos também está morto — atentei. — Damon disse o
que acontece quando os sequestradores não recebem qualquer
ordem?
Nick batucou com os dedos na mesa.
— Não sabemos. Isso é algo que nunca aconteceu antes.
Prendi a respiração e a soltei lentamente em seguida.
— Dará tudo certo. — Voltei a comer despreocupadamente.
Não me olhou.
— Dará. — Ele concordou, vazio de emoções e voz
enfraquecida.

Fui acordada na madrugada seguinte pelo ranger do chão de


madeira. Os passos eram pesados e parecia serem mais de uma
pessoa.
Provavelmente Gael e Jailson encontraram alguma diversão.
Ajeitei os travesseiros na cabeça e tornei a fechar os olhos.
— ...devagar. Não, seu idiota. Assim você vai derrubar! —
Reclamou Gael, procurando falar baixinho.
De que estão falando?
Me sentei na cama e encarei o teto na penumbra, como se em
um passe de mágica um buraco fosse se abrir para eu espionar.
— Estão tentando acordá-la!? — Repreendeu Nick. — Andem
logo com esse bote.
Bote? Vamos abandonar o barco?
Calcei minhas botas e subi alguns degraus na escada de modo
sorrateiro; se aqueles escoceses estavam aprontando algo sem me
dizer...
Empurrei a porta só um pouco. Uma brecha era mais que o
suficiente para espionar.
Gael e Jailson desciam um bote inflável com Nick dentro dele e
ao seu lado havia alguém, só que uma maldita pilastra se tornara
uma inimiga e ficara justamente entre a pessoa misteriosa e eu.
Espionar com apenas um olho, em pleno céu noturno, demonstrara
ser uma tarefa mais difícil que eu imaginara.
Abri mais a porta, torcendo para que a madeira não rangesse.
Até que ouvi Nick dizer algo que me fez mandar o silêncio para os
ares.
— Me prometa que ela chegará em casa em segurança!?
Fiz um escarcéu ao subir os últimos degraus. E pareceu que o
Mundo girou em câmera lenta enquanto eu passava pela pilastra e
eliminava o único obstáculo que me impedia de ver o rosto da
segunda pessoa dentro daquele bote.
Eu preferia nunca ter visto.
— Athos... — Fiquei tão zonza que um simples vento me
desequilibrou. Bastou nossos olhos se trombarem para eu sentir o
sabor da terra úmida em minha boca, o inquestionável gosto da
morte, ao mesmo tempo em que meu crânio era esmagado no chão.
Seu rosto estava medonho, deformado, sujo de sangue seco.
Por outro lado, seu coração continuava batendo. Batidas que
Nicholas Coleman me jurara ter eliminado!
A força por ter sobrevivido àquele pesadelo me abandonou e
toda valentia eu empurrei para debaixo do tapete. Eu senti quando
os pelos da minha nuca eriçaram e minhas unhas quebradas
cortaram a palma das minhas mãos, tão potentes quanto vidros, ao
passo em que a raiva me fechava os punhos.
Eu sabia que era Nick agarrando meus ombros antes mesmo de
olhar para ele. Perdi o momento em que ele saltou do bote e correu
até mim. Para ser sincera, não me importei em ver.
— Maisie? Olhe para mim. Você está fria...
Eu entrara em estado de choque.
— Você mentiu para mim — murmurei com o olhar ainda fixo em
Athos. — Vo-cê mentiu.
Nick me puxou em um abraço e me apertou com força. Meus
braços caídos não se ergueram para retribuir.
— Eu sinto muito. Eu precisei fazer isso.
A primeira coisa que fiz ao recobrar o controle, foi empurrá-lo.
Eu não queria alguém que mente sobre algo tão grave olhando em
meus olhos e me consolando.
Eu o encarei e entendi tudo. O papo que tivemos durante a
noite. Nick não estava compartilhando informações comigo, ele
estava me alertando sobre as razões de não ter matado Athos.
Tentando diminuir o impacto do que fez.
— Eu imagino que esteja me odiando agora, mas manter Athos
vivo foi a única forma que encontrei de garantir a segurança das
meninas. — Me segurou pelos ombros uma segunda vez. — Me
ouça, Maisie. Assim que eu conseguir o que quero, eu prometo que
trarei a cabeça dele para você. Tem a minha palavra.
Engoli em seco algumas vezes, até recuperar a voz.
— Como posso acreditar na palavra de alguém que mentiu
sobre tantas coisas em um único dia? Você me salvou da morte para
depois me matar aos poucos!?
Seu rosto petrificou. De súbito, recuou. O fitei atormentada.
Antes que eu pudesse acrescentar algo além do meu semblante que
dizia muito, Damon o apressou. Eu não tinha me dado conta da sua
presença até aquele momento. O diabo vestido de preto, fez menção
de se aproximar, e então parou. Me avaliou de cima à baixo.
— Ela me parece aborrecida — comentou para Nick e mordeu a
maçã que tinha em mão. — Outra mulher teria ficado lisonjeada por
seu parceiro estar garantindo sua segurança.
— Agora vejo de quem foi essa ideia estúpida — rebati.
— O que há de estúpido em usar do método mais fácil para
salvar as pessoas? — Ele devolveu.
Fiquei sem resposta. Meu eu orgulhoso não queria dar o braço a
torcer e ter de concordar com Damon. Ainda mais quando sua
intenção era me deixar fora de campo e longe de Nick.
— Maisie, nós vamos usar Athos para salvar as meninas e
depois voltarei para você. Só tenha paciência e confie em mim —
pediu Nick, indulgente.
— Se você for sem mim, prefiro que me esqueça. — Não medi
as palavras que proferi. Deixei que a mágoa falasse em meu nome.
Não ver Nicholas Coleman nunca mais de modo algum fazia parte
dos meus planos, mas eu não aceitaria ficar de braços cruzados
enquanto era traída, deixada para trás por ser considerada frágil.
— Piuthar...
— Não se meta nisso, Gael — rosnei e apontei o dedo para
cada um de modo acusador. — Vocês também me traíram. Todos
vocês. Era para confiarmos um nos outros, sermos uma equipe. Fui
apedrejada quando traí Damon e o que acha disso que estão
fazendo agora, hã? Pretendiam fugir como ratos!
Olhares reprovadores se voltaram para mim. Os de Nick
conseguiram ser mais impiedosos que qualquer outro.
— Quer me odiar por mantê-la a salvo? Odeie. A sua segurança
ainda será minha prioridade. Não permitirei que sua vida fique por
um fio por minha irresponsabilidade uma terceira vez.
Dito isso, Nick me deu as costas e embarcou no bote. Damon foi
logo em seguida.
Meus olhos se tornaram uma constelação de lágrimas. Eu
chorava de raiva e de imensa tristeza.
— Não me deixem aqui. — Eu disse, entre dentes.
— Se eu tiver que partir seu coração para fazê-la ficar nesse
barco, eu partirei. Por favor, poupe nós dois dessa angústia — disse
Nick.
O bote começou a descer rumo ao mar. Reparei que era Jailson
quem tomava conta da manivela.
— Você me deve isso! — Gritei uma última vez. Claro que devia.
Depois de tudo que fiz por ele, como ousava me obrigar a voltar para
casa como se eu não servisse de nada?
Era culpa do maldito corvo. Para Damon, mulheres só serviam
para abrir as coxas. Eu ficaria mais que satisfeita em provar como
ele estava redondamente enganado.
Corri até a borda do barco e passei uma perna. Eu ia embarcar
naquele bote nem que fosse à força.
— Maisie, o que acha que está fazendo? DESÇA JÁ! — Nick
gritou, temeroso.
Calculei a altura. O bote se distanciava rapidamente. Jailson
passou a descê-lo depressa ao desvendar minha intenção.
Se eu cair no bote, corro o risco de naufragar todos nós. Tenho
que saltar na água.
O mar não me parecia agitado, as ondas estavam mansas.
Porém, todo cuidado em mergulhar em águas desconhecidas era
pouco.
Passei outra perna e me sentei. Quando me preparei para saltar,
alguém me agarrou por trás.
— Me solte! — Me debati com uma coragem já falecida.
— Não a deixe pular. — Nick pediu a Gael antes de seu rosto
sumir de vista. Sequer havia sentimento em sua ordem suja. —
Amarre-a se for preciso.
O som do bote de encontro à água foi ornado por sinfonias de
adeus.
Tomei posse do remo ao som dos gritos de Maisie. Engoli cada
gota de lágrima que me subiu à garganta. Era minha culpa cada
escoriação na pele da garota que eu amava. Minha culpa a falta de
brilho nos olhos de obsidiana verde.
— Quando tudo acabar, você manda um buquê de flores para
ela e pronto — recomendou Damon, descansando suas costas nas
minhas.
— Um buquê não apagará o que fiz. — Me remexi para fazê-lo
desencostar.
— Mande uma árvore então. Ela não o odiará para sempre.
Revirei os olhos com impaciência.
— Dispenso qualquer conselho que tenha para me dar sobre
relacionamentos. Apenas se concentre e não tire os olhos desse
desgraçado — falei. Mesmo que Athos estivesse destruído demais
para cogitar fugir à nado, eu sabia que a mera possibilidade existia.
Remei com mais urgência, sem coragem de olhar por cima do ombro
e ver como um oceano me afastava de Maisie.
O que eu precisava fazer não podia ser adiado. Minha filha não
passaria mais um único dia em mãos gregas. Quando tudo estivesse
sob controle, eu pediria perdão de joelhos a Maisie, se fosse o caso.
Mas, por hora, congelar meus sentimentos era a única opção
aceitável.
Entreguei os remos para Damon um tempo depois. Folguei meu
corpo cansado no bote e fechei os olhos.

Raios de um sol agradável em meus cabelos e a claridade da


luz cintilando me despertaram. Meus ossos estalaram quando
espreguicei. Apesar do desconforto do pequeno bote, o rápido
cochilo me agasalhou de novas esperanças.
Respirei o perfume marítimo trazido pelo vento. Tinha cheiro de
primavera em fim de tarde.
Fitei o horizonte de água cristalina, o mar ondulava brilhos
prateados, e não vi qualquer vestígio do enorme barco em que eu
deixara a ruiva. Por outro lado, a ilha que Damon dissera ter um
helicóptero nos aguardando, se aproximava.
— Posso perguntar o porquê de você ter um helicóptero em uma
ilha tão distante?
Seu modo deselegante de remar estava nos custando tempo,
mas não ousei reclamar.
— Eu sabia que quando eu resolvesse fugir de Érebos, eu
precisaria dele. Amber é minha arma secreta.
Arqueei a sobrancelha e uma brisa incomparável me fez passar
os dedos nos cabelos para tirar os fios da testa.
— Amber? Você deu um nome para ele?
— É claro.
Optei por não dizer mais nada.
Tornei a encarar a ilha que nos aproximávamos. O verde vivo
dos coqueiros e a fina areia branca ia ganhando forma. A água ficava
mais transparente, os peixes passavam por nós com movimentos de
causar inveja. As lindas conchas que entapetavam o fundo do mar
certamente teriam arrancado um gorjeio doce e colorido de Maisie se
ela pudesse ver.
— O que está fazendo? Aonde vai? — Damon perguntou em um
susto, ao me ver saltar na água.
Mergulhei fundo e de olhos abertos, mesmo que o sal me
fizesse desejar arrancá-los fora. Bati os pés mais rápido e com a
ajuda do comprimento do braço, consegui alcançar a concha.
Respirei fundo ao voltar à superfície e me deparei com Damon
me aguardando com um semblante questionador de sanidade.
Me aproximei do bote e mostrei a concha para Damon, como se
ela pudesse explicar tudo.
— É laranja — falei, então, demonstrando por momentos a
minha bela fraqueza. — A mesma cor de Maisie. Eu nunca vi uma
tão bela quanto essa.
Os olhos pretos e indiferentes encurralaram os meus.
— Você saltou do barco por uma concha?
— Não é uma concha qualquer. É uma concha...
— Laranja. Sim, eu posso ver. Mas, olhe ali. — Apontou para
onde as ondas se quebravam. Segui a direção do seu dedo para a
areia pontilhada de conchas. — Deve ter uma dúzia dessas.
Trinquei o maxilar e encarei a maldita que me fizera molhar a
roupa.
— Bem, ao menos essa terá uma boa história para acompanhar.
— Você pode dizer que a tirou da boca de um tubarão.
— Era o que eu tinha em mente. Espero que você esteja lá para
confirmar os fatos.
— Eu não perderia isso por nada e, para que os olhos da ruiva
não percam brilho diante glorioso presente, prometo não confessar
que o tubarão era banguelo.
Entoamos em risos e ele continuou a remar. Athos estava de
olhos fechados e eu esperava que estivesse em um sono turbulento
e doloroso.
— Já que está na água, complete o percurso nadando. Nos
encontramos na areia — avisou Damon.
Não resmunguei. Primeiro porque a orla não estava distante,
segundo, eu tinha de admitir, a temperatura da água estava divina.
Prendi a respiração e dei um novo mergulho numa perfeita
osmose com a natureza, braçadas inquietas de paixão. Dessa vez
garanti que minhas pálpebras não se abrissem.
Quando senti a areia sob meus pés e retornei à superfície, vi
que Damon já estava fora do bote há pelo menos dois minutos, o
tempo fora calculado por sua expressão impaciente. Athos ao seu
lado, gemia algo inteligível. A mordaça me impedia de compreendê-
lo.
— Ainda bem que temos tempo de sobra. — Damon ironizou.
Só lancei um olhar. Em fadiga, me joguei na areia quente e
depois me sentei, tirei as botas para sacudir.
— Eu sei que devia ter perguntado antes, mas, você sabe pilotar
um helicóptero?
Me olhou de esguelha e ergueu Athos pelos braços com
indelicadeza.
— Amber e eu nos damos muito bem, se quer saber. — Se
esquivou da resposta e empurrou o refém para que ele começasse a
andar. Damon concordara em ficar responsável por Athos, pois sabia
que assim que eu colocasse minhas mãos no sujeito, eu o mataria.
Nosso plano só daria certo se Athos e eu ficássemos longe um do
outro.
Calcei as botas novamente e os segui ilha adentro.
Assim como toda a Grécia, aquela ilha tinha suas ruínas e era
no alto de uma delas que a tal Amber estava. Era preto, como tudo
de Damon, mas os detalhes em vermelho-sangue destacavam.
— Vai negar que é a coisa mais linda que já viu? — Ele me
perguntou. Eu nunca o vira tão encantado.
— Só espero que funcione. Há quanto tempo não liga isso?
Ele chutou os joelhos de Athos para colocá-lo no chão e poder
se aproximar de Amber sem corrermos o risco de o sujeito fugir. Ele
tirou as folhas que estavam caídas sobre Amber e depois a
acariciou, como se ela fosse um gato.
— Vai funcionar. Esteja preparado para a maior aventura da sua
vida, cavalheiro — disse para mim. — Vamos, suba.
Dei uma boa olhada nas lâminas rotatórias e na cauda antes de
aceitar seu convite. Um medo doloroso sobiu em mim como uma
náusea.
— Que Deus me ajude — balbuciei.
Esperavam que se passado horas desde a partida de Nick, eu
estivesse mais calma, mas não foi bem o que aconteceu. Não passei
o tempo todo em plena histeria, meu desiquilíbrio emocional não se
rebaixaria tanto. Contudo, o gosto da traição e o canto alegre dos
pássaros na alvorada, azedava a minha boca e me deixava arisca.
Eu não conseguia aceitar o que meus melhores amigos fizeram
comigo. O que o homem da minha vida fizera.
Até amarrada como um animal eu fui.
— Nos odiamos por tratá-la assim, piuthar, mas você não nos
deu alternativa. — A lamentação viera de Jailson.
— Não se odeiam mais do que eu estou os odiando. Acredite! —
Rugi.
— O que fizemos foi pro seu bem. Se olhe no espelho. Não
consegue ver o que amar aquele homem fez com você!? — Gael
disse aos berros. A sua frustração estava estampada no rosto. Ele
nunca usara um timbre tão alto para falar comigo. Fui pega de
surpresa, mas não recuei.
— E quem eu devia amar? — Perguntei cheia de sarcasmo. —
Você?
Ele engoliu em seco, só que continuou obstinado.
— Você é a menina que se lambuza até os cotovelos comendo
doce. E o que aquele homem é? O que de bom ele tem a oferecer?
Jailson puxou Gael pelo braço e tomou à frente.
— O que Gael está tentando dizer, é que o amor a cegou,
Maisie. Sabemos que o policial foi o primeiro homem na sua vida,
mas isso não significa que ele será o único — falou, cheio de
delicadeza.
Dei um impulso para frente e como recompensa, a corda
apertou meus braços amarrados.
— Essa é a minha vida. Eu decido com quem quero dividi-la.
Não vocês. — Acrescentei, um pouco mais calma: — Aquela menina
inocente que mencionaram não existe mais e não foi por culpa de
Nicholas, foi porque ela percebeu que precisava crescer e aprender
a cuidar de si mesma.
— Não precisa cuidar de si mesma. Você tem a nós — disse
Jailson, com afeto.
O olhei com ternura.
— Bràthair, vocês não podem me proteger para sempre.
— Quem disse que não? Você é a nossa caçulinha, não importa
de que distância você grite, estaremos lá para protegê-la — falou
Gael, voltando ao temperamento de sempre.
— E quando tiverem a esposa de vocês. Os filhos? Os deixarão
para me salvar? Deixarão a família de vocês por mim? — Os fiz se
encarar. — Não. E eu não exigirei isso.
Os suspiros de quem voltara a ter juízo me bastaram. Mas eu
sabia que a briga estava longe de acabar.
— Entendemos seu ponto de vista, contudo, juramos com
solenidade ao céu que seguiríamos com o plano inicial e a
levaríamos para casa — disse Gael.
Trinquei os dentes. Em mim brotou uma inesgotável fúria.
— Eu não me importo com o que prometeram. ME
DESAMARRE. NÃO SOU UM ANIMAL PARA FICAR PRESA!
Jailson cruzou os braços. Ele era a ponta fraca de tudo aquilo,
eu conseguiria convencê-lo. Só tinha que me livrar de Gael.
— Por favor — choraminguei, em verso perfumado, para
qualquer um que tivesse um coração batendo ali.
— Sabemos que assim que for solta você pulará no oceano e só
Odin sabe para aonde irá — respondeu Jailson, com uma trágica voz
rouca.
Fechei a cara para ele, enquanto o vento me abanava.
— O que aconteceu com seu coração? Ele foi parar na sua
barriga!?
Me respondeu em um bramido, queixume e nada mais, e me
deram as costas. Ambos sabiam que eu suportaria ficar amarrada
por dias, se preciso. Aquilo não era nada perto do que eu enfrentara
quando criança. Graças aos meus pais, eu aprendera a suportar o
pior lado da vida.
Afivelei o cinto assim que Damon assumiu o controle do
helicóptero. Fui obrigado a ir atrás com Athos, mas só após prometer
a Damon que eu não jogaria o sujeito pela janela.
— Tá vendo isso aqui? — Ergui a concha na altura dos seus
olhos inchados. — Você ficará responsável por essa concha. Se algo
acontecer a ela, um trincadinho sequer, eu acabo com você.
Entendeu? Concorde com a cabeça.
Ele o fez. Estiquei o braço e guardei a concha no bolso do seu
casaco.
— Se a perder, você morre — ameacei mais uma vez.
— Não acredito que ainda não jogou isso fora — gritou Damon,
lá da frente.
— E por que eu jogaria? Esse será meu pedido de desculpas
para Maisie.
Ele virou o rosto para me olhar.
— Acha que algo roubado do mar a fará esquecer que você
pediu para os amigos dela amarrarem-na?
— Eu mandarei pães doce junto.
Ouvi sua gargalhada antes de colocar os tampões de ouvido. A
aeronave começou a subir e ganhar velocidade. Fiz uma pequena
prece e fechei os olhos. Quando tornei abri-los, nuvens cercavam as
janelas e, inclinando o pescoço para olhar através dos vidros, vi os
coqueiros diminuírem até se tornarem pontinhos verdes na
imensidão da ilha azul.
Prendi a respiração, depois a soltei devagar.

O crepúsculo brincava no céu quando pousamos sãos e salvos


em terras escocesas. Eu devia estar esbranquiçado como neve e tão
gelado quanto, pois Damon começou a rir ao olhar para mim assim
que desembarquei.
— Alastor, Alastor, muito bom saber que tem medo de altura.
Controlei a tremulação dos lábios.
— Medo de altura? Não. Meu pavor é por ter deixado minha vida
em suas mãos.
— Acabou de descobrir que pilotar é uma das minhas
especialidades. Se eu soubesse que estava apavorado, eu teria me
empenhado em manobras perigosas.
— Fale baixo. Estamos em solo inimigo — acautelei,
averiguando o espaço. A ilha de Vult nada de singular carregava.
Claro que existia sua diferença das ilhas gregas repletas de ruínas,
magia retumbante e de um mar transbordante e azul como nunca
antes visto. As ilhas escocesas, por sua vez, eram carregadas de
montanhas verdes, águas escuras e ventos de agitar roupas e erguer
cabelos.
— Eu tinha me esquecido de como a Escócia pode ser grosseira
com sua ventania — comentou o corvo, observando o mesmo que
eu.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça. Minha pele, outrora
aquecida pelo sol quente, não estava preparada para ser chicoteada
por lufadas.
— Já esteve na Escócia?
— Há quem nunca esteve? — Devolveu a pergunta.
Os gemidos vindos do helicóptero nos interromperam.
— Como saber se podemos confiar nele? — perguntou Damon,
se referindo a Athos.
Puxei meu padrasto para fora do helicóptero. Ele caiu no chão
feito bosta, dando com a cara na terra.
Me agachei à sua frente e ergui sua cabeça com um puxão nos
cabelos.
— Ele sabe que se tentar alguma gracinha eu boto fogo nele.
Athos me fitou com a única parte desinchada dos seus olhos.
Tirei a mordaça da sua boca para que pudesse ouvi-lo.
— Você me matará de qualquer forma. — Se expressou com
dificuldade.
— Tem razão. Então vamos logo acabar com isso. — O ergui
pelo pescoço, sentindo seus engasgos.
— Precisamos dele vivo — lembrou-me Damon, segurando meu
pulso.
— Eu desejo tanto matá-lo. — As palavras voaram.
— Eu sei. Também quero. Mas não podemos colocar tudo a
perder logo agora.
Meus dedos queriam muito enforcá-lo, espremer sem dó.
A saliva desceu ardida na minha garganta assim que o soltei.
Athos tossiu seco e disse em seguida:
— Se acham que vou libertar a menina africana depois de tudo
que fizeram comigo, então são dois idiotas.
Fui com o punho fechado e violento no seu maxilar. Ele cuspiu
sangue. Alguns dentes saíram junto com a saliva.
— Você vai libertá-la e fará isso de boa vontade. Se não fizer, eu
arrancarei suas unhas, seus cílios, dentes, língua. Quebrarei suas
clavículas, costelas, pernas. O deixarei à beira da morte e então o
salvarei, apenas para ter o gosto de repetir o processo de tortura
várias e várias vezes — expliquei detalhadamente e em tom brando.
— Eu honestamente espero que ele não contribua. Sempre tive
curiosidade em ver como Alastor trabalha. Há boatos de que ele age
como um açougueiro — compactuou Damon.
— Açougueiros gostam das carnes. Eu particularmente prefiro
lidar com os ossos; o som perturbante deles se quebrando. Ah, é
crocante como um biscoito...principalmente esse daqui. Ouvi dizer
que a dor é agonizante — falei, tocando a clavícula de Athos.
— Tudo bem. E-u ajudo. Eu ajudo. — O covarde se desesperou
e se rendeu.
— Aposto vinte libras que ele mijou nas calças — zombou o
corvo.
O fitei.
— Se me der mais cinco minutos eu o faço defecar também.
Avançamos alguns metros e pairamos sobre uma montanha que
dava um panorama do casebre...Na verdade, a casa estava longe de
ser pequena e modesta. As paredes de vidro nos permitiam uma
vista generosa do interior. As luzes acesas também colaboravam do
seu modo.
Para a minha surpresa, Damon trazia um binóculo em seu bolso
e o estendeu para mim.
— Tá com isso aí desde que horas?
— Trouxe de Amber. Estou sempre preparado.
— Com um binóculo?
Deu de ombros e se rastejou até o meu lado esquerdo.
— Nunca se sabe quando uma mulher se trocará em frente à
uma janela. Nunca ouviu dizer que um homem prevenido vale por
dois?
Ciciei.
— Não imagino o que de mais útil podia ter trazido — debochei.
— Bem, talvez você queira usar sua concha super útil —
retrucou no mesmíssimo tom.
Usei os cotovelos para rastejar mais um pouco, até estar bem
próximo do abismo suicida, na altura das presumidas quedas. Alguns
montes e água fluindo por toda parte separavam minha filha de mim;
eu vi o sol se esconder por trás das montanhas, a noite com suas
cores prismáticas surgir e a manhã que brilhava proeminente se
perder em tons frios.
A erosão progressiva dos dias que passei longe da minha
pequena, de repente criou um buraco ainda maior em meu peito. Eu
ia tirá-la de lá, nem que fosse a última coisa que eu fizesse na vida.
Desviei o olhar da casa até a nobre descida.
— Faremos no raiar do dia. Quero que vejam bem a cor dos
meus olhos enquanto os mato.
O moreno ergueu a sobrancelha em um arco definido.
— Os mata? Não foi para evitar combate que trouxemos Athos
vivo?
— Entenda algo sobre Alastor, corvo, ninguém que o desafia
sobrevive. Eu usarei meu padrasto, mas assim que as meninas
saírem de lá, eu me vingarei — respondi, em uma persistência
confusa.
— Estão em três — acautelou.
O olhei sem piscar e esqueci até o fluir do tempo.
— Minha raiva vale por dez.

Na manhã seguinte, nos primeiros raios de luz, descemos a


colina rumo à praia, pois consideramos o caminho mais fácil.
— Se quer chamar atenção, por que não grita!? — Critiquei, com
os olhos postos por cima do ombro.
Damon parou de assoviar, com má vontade.
— Acha mesmo que eles não ouviram quando pousamos?
Amber é mais escandalosa que uma mulher dando o traseiro.
Dei um empurrão em Athos quando ele subitamente parou de
andar. Era importante que ele fosse o primeiro da fila para não
corrermos o risco de recebermos uma bala na cabeça assim que os
gregos nos vissem.
— De toda forma, não se chega em território inimigo assoviando.
Pelo amor de Deus, como é que ainda está vivo se não sabe as
regras básicas?
— Regras foram feitas para serem quebradas — retrucou, com
sua ironia podre.
— Isso é adorável durante o sexo, Damon. Em situação de risco,
quebrar regras pode matá-lo — devolvi, intercalando o olhar entre ele
e a paisagem deslizando na distância. — Cale a porra da boca e faça
o que mando.
E, após fitar-me um pouco, o desgraçado assoviou ainda mais
alto.
— Damon, estou avisando. Se você...
Uma trombada me levou para o chão.
— Claro que ele ia ser idiota e tentar algo, afinal, ele criou você
— Damon comentou, se referindo a Athos que corria rumo à casa, e
me estendeu a mão para me ajudar a levantar. — Você está bem?
— Estou. Só meu orgulho que está ferido.
Ele me avaliou dos pés à cabeça, antes de partir em
perseguição, agitando as gaivotas na areia.
Fui em seguida. Não precisei me apressar, pois Damon com
suas pernas longas facilmente capturou o fugitivo.
O murro no estômago do imbecil, chegou antes das minhas
pernas. Um soco mais forte que o coice de três cavalos. Não havia
uma parte em seu corpo sem um roxo deixado por mim.
Meu senso foi furtado e meu tamanho duplicado.
O puxei pela corda até o mar displicentemente. Quando a água
alcançou uma altura adequada, cobrindo nossos joelhos, eu chutei a
parte detrás das suas pernas, assim como costumava fazer com os
bandidos para derrubá-los.
Fui com a mão em sua nuca e forcei sua cabeça na água fria da
Escócia.
— Eu devia ter matado você há anos, mas nada me impede de
fazê-lo agora.
Athos chacoalhou a cabeça para tentar se libertar no desespero
ao perceber a vida prestes a ser roubada. Tentou se erguer, mas
minha determinação em matá-lo naquele instante o impediu de
respirar. Ele estava afogando. Bolhas de ar se formavam em torno
dele. E seu engasgo quebrava o som morto das ondas mansas.
Aproveitei o prazer do momento.
— Cacete, Alastor. Já não falamos sobre isso? — Damon me
gritou ao longe, buscando uma vaga consciência em mim. Se
recusava molhar sua calça de grife. — Ele só precisa viver por mais
alguns minutos, depois prometo que faremos picadinho dele.
Podemos até amarrá-lo nu em uma árvore para que congele até a
morte.
Sua promessa perfurou minha memória e esfriou minha alma.
Ele tinha razão, precisávamos de Athos vivo.
— Você é muito bom em me fazer mudar de ideia — falei de
volta e soltei Athos. Tirei sua mordaça para que respirasse melhor.
O sujeito tossiu, cuspiu e cambaleou para se levantar.
— Ele está medonho. Os gregos saberão que o forçamos a
libertar as meninas assim que o virem — exprimiu Damon quando
nos juntamos a ele.
— Ele saberá ser convincente com a história que criar. — Dei
dois tapinhas nas costas de Athos.
Me encarou pelo canto dos olhos.
— Se eu os ajudar, quero que seja com uma condição. — Olhou
de um para o outro. — Farão parecer que eu lutei antes de morrer;
quero que me deem alguma honra.
— Tá de sacanagem? — Me exaltei.
— Tudo bem. Tem a nossa palavra — concordou Damon,
destinado a me contrariar. Eu devia ter reparado numa sombra
mentirosa dentro dos seus olhos.
Meu sangue esquentou, estava pronto para extrapolar, mas a
conversa passou a ser entre os dois e eu fui colocado de fora.
— Eu irei com Athos para garantir que ele não faça qualquer
gracinha. — Damon se virou para me explicar: — Eu era membro de
Érebos, os gregos não desconfiarão de mim.
Assenti, pois compactuar com ele era tudo o que me restava.
— E o que eu faço? — Perguntei a ele.
Deu de ombros e esticou o braço para enfiar a mão dentro do
bolso de Athos.
— Converse com sua concha laranja. Ela me parece com tédio.
Peguei a concha estendida e o alertei assim que meu padrasto
se afastou um pouco de nós:
— Não darei qualquer honra àquele sujeito.
— Claro que não. Assim que as meninas atravessarem aquela
porta, nós enfiamos um cabo de vassoura na bunda dele e o faremos
correr pelado pela praia.
Um traço mais que expressivo de deleite preencheu o vazio do
meu rosto.
Aproximei e afastei. E de novo. Repetidas vezes e tentei não me
desesperar. Já se passara dias desde a minha cegueira. E o fato de
eu estar com a mão alva estendida muito próxima dos olhos sem
conseguir enxergá-la, deixou-me amortalhada pelo desespero.
— Não é possível — murmurei para mim mesma. — Não pode
ser.
— O que não é possível? — perguntou Gael ao se aproximar.
Apesar de eu já ter aceitado que fora traída e amarrada, não
consegui compartilhar sobre minha situação. Nem com ele, nem com
Jailson. Eles já desaprovavam meu relacionamento com Nick antes
mesmo de saberem. Nem Odin os seguraria se eu dissesse que
corria o risco de nunca voltar enxergar com o olho esquerdo. Mas, na
verdade, nada disso importava. O frio dentro de mim era ainda pior,
porque eu estava decidida a não procurar por Nick. Não podia dizer
que não esperaria por ele, talvez eternamente esperasse, mas, a
minha vida, eu não arriscaria novamente em nome desse amor.
— Nada. Sabe que as vezes penso alto — menti.
Ele engoliu a mentira facilmente e voltou o rosto para o horizonte
azul, debruçado no barco.
— Tor-ta. Torrrtaa.
Nossa atenção se voltou para Jailson tentando se comunicar
com a empregada.
— Ela é grega, não retardada — falei, indo para a popa do
barco, onde ele estava.
Suas narinas se abriram.
— Estou faz vinte minutos pedindo uma torta, mas ela não me
entende.
— Já tentou gesticular? — Perguntei a ele. — Ele quer comer —
falei para ela e passei a mão na minha barriga, para auxiliar o
entendimento. Algo naquela mulher me chamou atenção, seu rosto
magro, o agudo olhar de miséria.
A grega levou uma mão ao peito, ingênua, comedida, afável, e a
outra, inusitadamente, foi em minha direção.
— O que ela está fazendo? — Perguntei aos ventos, tendo meu
ventre tocado com afeto por ela.
— Parabéns, agora ela acha que você está grávida — zombou
Jailson.
Dei um pulo para trás. A moça ficou confusa, sem entender o
que fizera de errado
— Jailson, acho que morreremos de fome se não conseguirmos
nos expressar.
— Piuthar, eu tenho cara de quem passa fome? — Ele
perguntou, em meio a risos.
— Não sei como responder a isso — brinquei de volta.
Gargalhamos, antes do grito gutural de Gael irromper no ar.
— ABAIXEM-SE.
Meu reflexo rápido não pensou duas vezes antes de me jogar no
chão. Algo pequeno passou rasgando o ar e deixou um buraco
pequeno no barco. Um buraco que certamente teve como intenção
ser na minha cabeça.
— São os gregos — elucidou Gael, usando os braços para se
rastejar.
A empregada ao nosso lado usou as mãos para tapar os
ouvidos. Eu não podia imaginar quantas vezes ela já enfrentara algo
assim, um atormentado inferno vivendo entre criminosos de todos
graus.
— Estamos sendo atacados. Onde estão as armas que
roubamos? — Jailson perguntou ao outro escocês. Sua expressão
era determinada.
— Lá embaixo. Não temos tempo para buscar. Há ilhas
próximas, podemos nadar até elas — ponderou Gael, com temor
remanescente.
Volteei o rosto para a grega que me implorava algo com seus
olhos arrasados. Um pedido de socorro que fora ignorado por muitos
insensíveis, exceto por Nicholas Coleman.
— E essas mulheres? Não podemos deixá-las aqui. Elas
confiaram em nós — protestei.
Não tivemos tempo de reação, nosso barco foi invadido por
homens armados que acinzentaram nosso dia. Gael foi o primeiro a
levar uma coronhada na cabeça e cair apagado no chão. Eu gritei e
na tentativa de alcança-lo para socorrê-lo, levei uma pisada no
tornozelo que me levou a derramar lágrimas.
— Alastor!? — Um sujeito alto e de lábios carnudos perguntou a
Jailson com uma calma mortal. — Corvo?
— Nãao sabemos. Não sabemos — repetiu Jailson, apavorado.
Mas os gregos não falavam nosso idioma.
A empregada, cuja eu sentira pena, se comunicou com os
agressores algo incompreensível para mim e apontou para o Sul. A
mesma direção em que Nick e Damon remaram o bote inflável. Em
troca, a coitada levou um tabefe. Aquilo quase me destruiu.
Os outros gregos se aproximaram e ergueram-nos com
brutalidade. Os olhos eram sólidos, frios, sem humor.
— O que farão conosco? — Perguntei, perdida, ainda que não
fossem compreender a pergunta. O frio do dia que se agarrava ao
meu vestido me fez tremer os lábios. — Por favor.
Os dedos do homem em meu braço agarram-me com mais ódio
e desdém. Era difícil manter o espanto longe da minha expressão.
— Morrer — entoou. A palavra que o grego proferiu, eu
infelizmente pude entender.
Meus olhos inutilmente andaram imersos, buscando os de Nick
por toda parte. Minha garganta queria gritar por seu nome. Mas
dessa vez eu sabia que ele não surgiria por entre árvores para me
salvar. Dessa vez, apenas dois destinos eram certos para mim:
Lutar
Ou morrer.
Escondido por detrás das árvores e com ajuda do binóculo, vi
Damon e Athos se aproximarem da casa. Dei minha palavra que só
interferiria se as coisas saíssem de controle, se algum som de
disparo fosse ouvido. Ou gritos.
O resgate devia acontecer de forma amigável. Athos pediria a
soltura das meninas dizendo que eu, Alastor, concordara em servir
Érebos e que se tornara desnecessário mantê-las em cativeiro.
Sobre os ferimentos que eu causara nele, ele inventaria um acidente
qualquer com a ajuda de Damon.
Eu não podia ser visto de modo algum. Colocaria tudo a perder.
Mas, assim que todos estivessem em seu devido lugar, eu faria
sangue jorrar.
Ah, se faria.
Um dos gregos abriu a porta para que Damon e Athos
entrassem, daí em diante perdi todo contato.
Reprimi uma ânsia louca de avançar. Meus pés coçavam,
querendo entrar na maldita casa também. Impacientemente aguardei
tormentosos minutos, indo de um lado para o outro. Meu coração
faltava sair pela boca, minhas mãos suavam frio, tremiam. As pernas
eram as partes mais teimosas em mim.
Então, o primeiro movimento aconteceu. As tias de Luli
atravessaram a porta, a julgar pelo andar, pareciam intactas. Soltei
um suspiro pesado e de alívio. Em seguida, Damon saiu segurando a
mão da minha filha. Me contive para não correr até minha garotinha
e erguê-la no colo, abraça-la, beijá-la, e dizer como ficar longe
estava me matando. Só que a missão ainda não tinha terminado, os
gregos observavam tudo ao redor, desconfiados. Me ver daria crédito
à suspeita e só Deus sabe como reagiriam.
Aguardei, trocando a perna de apoio e com as unhas cravadas
no tronco da árvore como se ela fosse minha inimiga.
Não sabia o que eu perdera, o que os gregos disseram para que
todos começassem a correr.
Athos...
O filho da puta que ficara para trás com certeza revelara tudo. O
caos fora armado. Júlia e Tainara vieram na minha direção, como se
soubessem que eu estava ali. Eu me tornei visível quando não vi
mais sentido em me esconder.
Disparos foram dados em nossa direção e eu devolvi para dar
cobertura para as meninas e Damon.
— Aqui. Rápido — acenei para elas.
— Nicholas, você está vivo. Graças a deus. — Júlia se jogou em
meus braços rapidamente, despejando seu total pavor.
Dei mais alguns disparos.
A essa altura o corvo já carregava minha filha no colo sem
qualquer esforço muscular. E fazia bom uso das pernas longas,
correndo a toda velocidade.
— Para o helicóptero. Vamos, corram — apressou-nos ao se
aproximar.
— Vão na frente. Eu ainda preciso fazer algo — ordenei.
A atenção de Luiza passou pra mim, os olhos escuros cheios de
pavor me estilhaçaram em mil pedaços.
— Papai. — Ela se esticou todinha para que eu a pegasse e eu
não pude negar. Aquilo me partiu em dois.
Entreguei a arma para Damon e nós trocamos de posição.
Minha vingança contra Érebos teria de esperar. Fazer com que todos
os meus saíssem em segurança era prioridade. Passei a mão pelos
cabelos da criança e beijei o topo da sua cabeça. O tempo curto não
me permitiu prolongar o gesto, apenas uma rápida avaliação em seu
estado físico.
No meio do caminho, dei uma olhada urgente para trás e vi que
os gregos não estavam muito longe. Eu sabia que a munição da
arma do corvo era bem menos do que precisávamos e a julgar pela
ira dos inimigos, eles dariam tudo de si para nos pegar.
Damon fez alguns disparos ao vento apenas para distraí-los e
logo se juntou a nós na corrida. Vez ou outra ele diminuía a
velocidade para verificar se ainda estávamos sendo perseguidos. Os
tiros que passaram próximos das suas orelhas diziam que sim.
Deitei a cabeça de Luli em meu ombro para protegê-la da
ventania, dos galhos e de tudo no Mundo que quisesse feri-la.
Quando por fim chegamos em Amber, detonados, porém, vivos,
meu fôlego era nada mais que uma lembrança.
— O que...foi...isso? — Tainara perguntou, entre respiradas
profundas e necessárias.
— Vocês conversam depois. Agora precisam entrar. — Damon
entoou.
— Suporta 5? — Perguntei a ele, ofegante. Apesar da sua
aeronave ser de grande porte, eu reconhecia os riscos de ultrapassar
o limite recomendado.
Lançou-me um olhar hostil. O sustentei.
— Como pode ofender Amber dessa forma e na presença de
damas?
— Não custa perguntar — rebati, lutando contra o sorriso em
meus lábios.
Fez cara feia e deu a volta na aeronave para assumir seu posto.
— Entrem logo. — Não teve cautela alguma em mandar.
Nos alocamos imediatamente e assim que Amber saiu do chão,
os questionamentos vieram de todos os cantos, como balas
perdidas: “Como? Por que? O que você fez? Por que fomos
sequestradas?”
Tive que detalhar cada passagem da minha vida, desde Nick a
Alastor — da maneira mais honesta e desagradável possível. As
partes sujas tiveram que ser expostas, além delas mereceram uma
explicação sincera, eu sabia que seria impossível esconder
informações de Júlia e Tainara. Para falar sobre atos cruéis, de
mortes às torturas na presença de uma criança, tivemos de criar um
código. Então, basicamente: os homens malvados foram postos de
castigo.
— Como você pôde esconder isso da gente por tantos anos? —
O tom acusatório viera de Júlia. A expressão de indignação
embrulhou meu estômago.
— Você basicamente levava duas vidas: o mocinho e o vilão. —
Concluiu a outra.
— Alastor estava morto — falei baixinho, mas Luli estava
encantada demais com a vista da janela para se atentar à conversa
—, até Athos aparecer. Eu não sei de que forma posso pedir perdão
para as duas.
Trocaram olhares antes de proferir algo.
— Não fomos maltratadas. Nenhuma de nós — tranquilizou
Júlia. — Tivemos medo por estarmos com pessoas desconhecidas
que não falavam a nossa língua. Apenas um deles conseguia dizer
poucas frases em nosso idioma, mas ele não se deu ao trabalho de
dizer o porquê fomos levadas.
— Foi só umas férias — comentou Damon, sendo invasivo.
— Quem é esse cara? — Cochichou Tainara.
— Ninguém importante — respondi. — Apenas o ignore.
Em resposta por minha insensibilidade, Damon fez uma
manobra ousada que nos ergueu do banco. Um calafrio subiu por
minhas costas. Luli se pôs a chorar. Tive que desafivelar meu cinto e
pegá-la no meu colo para acalmá-la. Disse palavras doces e fiz
carícias em seus cabelos que cheiravam a lavanda.
— Regra número um, Alastor: nunca provoque um homem que
adora viver perigosamente — falou o corvo, com um risinho de quem
adorou comandar a situação. — Agora, por que não ficamos todos
calmos e decidimos onde diabos iremos pousar?
— Vamos deixá-las o mais perto possível de casa — eu disse
para ele.
— Compreendido. — Me respondeu.
Um pouco mais tarde naquele mesmo dia, Damon fez um pouso
perfeito.
— E você? Não irá para casa? — Tai me perguntou ao
desembarcar.
— Ainda tenho coisas para resolver. — Fui claro. E olhei de uma
para a outra. — Não se preocupem comigo e por favor, não me
odeiem.
— Nunca. Você é o único homem que nos permitimos suportar
— brincou Júlia.
— Isso é porque não passaram tempo o bastante comigo —
devolveu Damon.
As meninas reviraram os olhos, mas ficara evidente que
sentiram um carinho singular pelo corvo. Eu não podia entender
como.
— O que diremos à polícia? — Júlia perguntou.
— Eles têm perguntado por mim?
— Sua colega de trabalho esbarrou com a gente na cidade
antes de sermos raptadas e disse que estava preocupada com você,
que achou sua saída de férias muito repentina. Ela ficou de passar
na sua casa. Não sabemos o que aconteceu depois disso.
Massageei as têmporas.
— Eu me preocupo com isso quando voltar — respondi, por fim.
— E Luli? — Tai perguntou baixinho, já que a criança caíra no
sono há poucos minutos.
— A levarei comigo. — Fui claro e dei uma nova olhada nas
duas, atento até em suas respirações. — Estão bem, mesmo?
— É como ele disse. — Júlia gesticulou com a cabeça: — Foi
quase umas férias.
Após a despedida calorosa e cheia de pedidos de desculpa
através de abraços, voltei a ocupar meu lugar no helicóptero.
Quando já estávamos nas alturas, eu não pude mais conter a
língua:
— Você deixou Athos escapar. Você sabia que prometi a cabeça
dele para Maisie, e mesmo assim o deixou escapar!
— Talvez você não tenha percebido, mas eu estava segurando a
mão de uma criança. — Se defendeu. — Da sua criança.
— Não finja que estava preocupado com ela. Eu o conheço o
bastante para saber que teria dado um jeito se quisesse — protestei,
banhado em ira.
Ele finalmente baixou a guarda.
— Está certo. Eu sempre tenho um plano B. Talvez eu tenha dito
a Athos que o deixaria escapar com vida se nos ajudasse. Caso
contrário, estaríamos todos mortos a ess...Não. Não. Droga!
— O que foi? — Perguntei, ao notar pânico em sua voz. Os
músculos das minhas costas se moveram e retesaram.
— Estamos sendo seguidos.
— Pelos gregos?
— É o que parece.
Apertei os dentes, com raiva. Grande parte da minha energia
fora gasta tentando não avançar em seu pescoço e espremê-lo como
laranja.
— Meus parabéns. Olha só o que acontece quando deixamos
inimigos vivos!
— Porra, Alastor, não é hora de reclamar.
— Não fale palavrão, há uma criança conosco — reclamei.
Ele suspirou e eu podia jurar que revirou os olhos.
— Foi apenas um lapso da minha parte, além do mais, a
criança está dormindo — atentou. — Será que podemos nos
preocupar com a educação dela depois e nos atentarmos ao
problema maior?
De repente, Amber começou a apitar, insuportavelmente. Eu me
soltei e dei uma pescoçada por cima do ombro de Damon a tempo
de ver uma luz no painel piscar. Algo grave estava acontecendo.
Olhei pela janela, o Sol dourava o céu. Abaixo de nós, tudo era
água, mas parecia um inferno aberto, pronto para nos engolir.
Antes que eu pudesse perguntar o que aquela luz e os apitos
ensurdecedores significavam, começamos a rodar.
Caindo em parafuso.
— Papai? PAPAI! — Minha filha despertou aos gritos.
— Está tudo bem. Não solte o cinto. Está me ouvindo? — Tentei
manter uma voz indiferente para não a aterrorizar ainda mais.
— Estamos perdendo o rotor de cauda. Esses desgraçados
devem ter mexido em algo. — Damon rosnou diabólico. —
Precisamos pousar.
— O quê? No oceano? Ficou louco?
— Se prepare para o impacto. — Me ignorou completamente.
Eu queria perguntar como diabos ele conseguiria pousar um
helicóptero em estado decadente, mas tudo que fiz, foi me sentar ao
lado da minha filha e protegê-la com meu corpo, como uma ave
protege seus filhotes com as asas.
— Por que não cantamos aquela cantiga que você gosta, hã? —
Minha voz saiu trêmula devido ao chacoalhar da aeronave. Minha
cabeça parecia boba, sendo jogada de um lado para o outro, de
modo a me causar náusea. A pressão entupiu meus ouvidos.
Minha filha chorou ao invés de cantar a música que ligava por
um fio de memória suas origens.
Sua coragem foi uma névoa natural desfalecida e o pranto
encharcou seu pequeno rosto. O som dos seus gritos irados
cortando os zunidos fúnebres dos panes de Amber, eram
estarrecedores. Tentei controlá-la, assim como Damon tentou fazer o
mesmo com sua aeronave. Mas ambas estavam impossíveis. A
minha única esperança era que Damon conseguisse um pouso
menos desastroso para nós.
Até meu exército de esperanças sofreu derrota. Qual era a
chance de aquilo dar certo?
Era questão de sorte e fé e àquela altura eu não possuía
nenhum dos dois.
O impacto de quando atingimos o chão foi menos pior que eu
imaginava. Eu pulei no banco com força, senti como se meus ossos
tivessem saído do lugar. Mas estávamos vivos. Eu não sabia como,
mas estávamos vivos.
Toquei em cabeça, braços e pernas da minha filha, me
certificando se tudo estava no seu devido lugar, se sangue escorria
de algum corte. Nada. Mas, olhando-a, vi medo de cortar minha
garganta de ponta a ponta. Isso me comoveu até às lagrimas.
— Duma escala de um a dez, quão maravilhoso fui? — Damon
se vangloriou um pouco depois.
Desafivelei o cinto da minha filha e a peguei no colo. Damon
desembarcou e eu fiz o mesmo em seguida. Esperei ter água
subindo por minhas canelas, mas minhas botas se depararam com
areia de uma brancura de ferir a vista.
— Antes que me pergunte, não tenho menor ideia de onde
estamos. — Limpou o suor da testa com as costas da mão. —
Quando vi essa pequena ilha no radar, não pensei duas vezes...
Alastor? Tá vivo, cara? — Perguntou, julgando minha aparência
pálida.
Eu mal o ouvia, sua voz era como um chacoalhar longínquo dos
coqueiros.
— Estou...me recuperando. — Minhas pernas tremiam pela
viagem turbulenta, e eu tinha impressão de ter levado uma
apunhalada nas costas.
Seus olhos foram de mim para Luli, como quem examina a
anatomia do seu corpo.
— A corvinha está bem? — Perguntou.
— Corvi...
— Não posso acreditar. — Ele soltou, irritado. — Esses filhos da
mãe nos seguiram até aqui!
Empurrei meus olhos para o céu limpo como um algodão. Um
helicóptero se preparava para pousar. A ventania causada pela
aeronave agitava a areia seca e a lançava em minha boca.
— Eu vou mat...
— Damon! — O repreendi por conta de Luli.
O corvo fechou a cara para mim e depois sorriu com agrado.
Como quem sente ódio e compaixão ao mesmo tempo.
— Eu ia dizer que ia colocá-los de castigo — mentiu e disse
para minha filha: — É o que fazemos com homens malvados,
corvinha. O colocamos de castigo.
A pequena sorriu inocentemente em reposta. Apesar de ser uma
criança muito reprimida, Luli parecia ter se dado bem justamente
com Damon.
— Vamos sair daqui antes que resolvam pousar em cima de nós.
— O apressei.
Ele entrou em Amber uma última vez para pegar seus pertences
e se lamentou ao retornar:
— Eu gostava mesmo dessa porcaria.
— Não podemos nos prender a nada sendo quem somos. — Eu
disse para ele e corremos ilha adentro.
Subimos uma escada de mármore que dava para uma
hospedaria. Após o ressoar dos tamancos da moça que se
aproximava, Damon pediu por um quarto para três. Como todos os
outros estavam ocupados, teríamos de dividir espaço. Para a minha
sorte, ele tinha como pagar, pois eu não me recordava da última vez
que vira qualquer pertence meu.
— Papai, tô com fome — choramingou em meu ouvido assim
que entramos no quarto de paredes pintadas em tons pastéis.
— Qual o tamanho dela? Grande como eu ou pequena como
você?
E pendurando os seus bracinhos em meu pescoço, ela
respondeu com os olhos de azeitona, inchados de chorar e os lábios
de belas proporções:
— Como você, papai.
Damon se atirou em uma das camas e resmungou baixinho:
— “Não podemos nos prender a nada sendo quem somos.”
O respondi com uma careta de desdém. Coloquei Luli no chão,
mas ela se recusou a soltar minha mão.
— Quero fazer xixi. — Me disse do seu modo singelo.
— Ah, isso vai ser divertido — comentou Damon, apoiando a
cabeça nas mãos entrelaçadas.
— Por que ao invés de reclamar você não pede algo pra gente
comer? — O repreendi.
Seu peito se ergueu e ele suspirou.
— Não sei o que criança come — falou, envergonhado até.
— Como não sabe?
— Ela toma leite?
— Toma, mas já tem 6 anos. Ela come legumes e verduras,
carnes, ovos...
— Ovo, não. — Ela me cortou.
— Então a corvinha não gosta de ovos? — Damon perguntou
diretamente para ela ao se sentar na cama.
Ela balançou a cabeça negativamente e se escondeu atrás de
mim.
— Por que ela tem tanto medo? — Indagou Damon como se
falasse de um animalzinho.
Como eu ia dizer para ele, na presença dela, que a criança
havia sido abandonada pelos pais? Que passara fome, miséria. Que
além de não receber ajuda das pessoas à sua volta, ela também fora
maltratada por elas?
— Pessoas más — respondi, por fim e esperei que ele não
tentasse se aprofundar no assunto.
— Bem, corvinha, eu sou um cara bom. Tão bom, que vou lá
embaixo pedir para que tragam muita coisa boa pra gente comer. Até
um doce, se quiser.
— Papai não deixa comer doce quando é de noite.
Damon se levantou e colocou as mãos na cintura.
— Fiquei sabendo que hoje ele abrirá uma exceção.
— Tentando ganhar pontos com a garota, Damon? — Me fingi
de zangado.
Ele deu de ombros e sorriu.
— As garotas sempre serão minha prioridade, grande Alastor.
Principalmente quando elas possuírem olhos tão impressionantes.

Duas horas mais tarde, de barriga já cheia e banho tomado,


minha filha finalmente se rendeu ao cansaço e capotou na cama.
Damon e eu aproveitamos para botar os pingos nos “is”. Deixamos a
criança no quarto com a pretensão de voltarmos em menos de uma
hora e saímos porta afora.
— Puta merda, essa ventania só pode ser da Escócia —
comentei para Damon e me abracei para me proteger do vento. O
corvo ao meu lado pareceu não se importar com a ventania, como se
o frio fosse seu maior aconchego.
— Que diabo de ilha é essa? — Ele olhou ao redor, como que
em busca de alguma placa para que pudéssemos nos localizar. Ao
não achar nada, disse: — Venha, vamos tomar alguma coisa para
nos aquecermos.
O acompanhei até um pequeno barzinho de paredes escuras.
Parei ao lado de uma tocha acesa na entrada para me aquecer
brevemente, depois, entrei. Damon já tinha providenciado uma mesa
para dois. Puxei a cadeira e me sentei.
— Tá procurando o que? — Questionei, ao vê-lo esticar o
pescoço como se em busca de um rosto específico.
— Esqueceu que os gregos que tentaram nos matar também
estão aqui?
— Isso economiza o meu tempo de ir atrás deles — ponderei.
O olhar lançado a mim foi possesso e mortiço, mas palavra
alguma foi proferida, então me adiantei:
— Eu prometi a cabeça de Athos a Maisie. E é isso que farei.
Deitou os braços na mesa e esperou até a garçonete se afastar
para me responder:
— Pode me dizer como atravessaremos o oceano com uma
cabeça? Melhor ainda — se curvou na mesa. — Pode me dizer como
nós sairemos dessa droga de ilha sem helicóptero ou barco? Somos
eu, você e uma criança.
Assim que a garçonete voltou para perto de nós, pedimos
ambos por uísque.
— É mais uma razão para nos livrarmos dos gregos. Vamos
surpreendê-los e tomar seu helicóptero. Eles que saiam daqui em um
carro funerário.
— A ideia é realmente muito boa. Você fica com a corvinha e eu
faço o trabalho sujo — falou, sisudo.
Trinquei o maxilar, em um gesto evanescente.
— Tenho um plano melhor, você fica com Luli e eu vou atrás
deles — repliquei.
Nossas bebidas chegaram menos de cinco minutos depois.
Damon segurou seu copo sem levá-lo à boca. Estava possesso
comigo.
— Por que eu tenho que ficar de babá se a filha é sua?
— Porque eu quero me vingar desses filhos da puta. Você só
quer matá-los por mero capricho. — Molhei a garganta com o álcool.
Ele fermentou minha resposta e também bebericou sua cerveja.
— Eu não sei cuidar de criança — falou, grave e triste, com o
rosto duro. Os ombros inteiriçados.
— Quanto a isso não tenho a menor dúvida.
Bateu o copo na mesa e o líquido escuro respingou em meu
braço estendido. Sua pele ficou tão branca quanto uma lata de tinta.
Os dois grandes olhos fixos e pasmados em algo atrás de mim.
— Me deixou sozinha. — A bronca foi tanto para mim, quanto
para Damon. As mãozinhas firmes na cintura e o olhar flamejante
também foi dividido em duas partes.
— Filha...O que está fazendo aqui? Como me achou? —
Perguntei, abismado.
Em resposta, ganhei um bico. Seu temperamento estava
mudado, suas respostas mais formuladas e ríspidas. Sempre ouvi
dizer que crianças naquela idade se tornavam mini adultas.
— Me deixou sozinha — repetiu com olhos marejados. Eu
demorei a entender que ela se sentira abandonada, que aquilo não
era birra. Ela realmente achou que eu iria deixá-la para trás, como
todos da sua vida fizeram.
Levantei uma mão e prometi:
— Não a deixarei sozinha de novo. Tem a minha palavra, está
bem? Mas, agora me diga, como me encontrou? — A puxei para
meu colo e a sentei na minha perna.
— Te segui — confessou.
— Filha, se lembra o que papai te disse sobre os homens
malvados?
— Papai pega eles — respondeu.
— Então, tem alguns homens malvados aqui que o papai
precisa prender. Não quero você andando por aí sozinha.
Combinado?
Ela respondeu com um aceno de cabeça.
— E você quer que eu fique de babá? — Damon soltou em tom
de incredulidade minutos depois. — A menina seguiu nós dois sem a
gente perceber.
— Não preciso de babá — ela retrucou agressiva, como bem lhe
apetecia.
— Eu também acho que não precisa. — Damon a respondeu
como se respondesse a um adulto. — Você é uma corvinha esperta.
Luli virou o rosto para mim — voraz e inocente.
— Papai, o que é corvinha?
— Uma ave muito bonita, de plumagem escura.
— É a ave mais linda que existe em todo o Mundo —
acrescentou Damon. — Ela é astuta como você, criança.
— Ast...Astu... — Ela tentou repetir, mas a palavra já lhe fugira
da mente.
— Astuta. Alguém que consegue vantagens para si e que
raramente se deixa enganar. Alguém esperto. Alguém que segue
dois homens adultos sem que eles percebam. — Damon explicou.
Ela riu com doçura quando ele apertou seu nariz para fazer
graça.
— Por que não continuamos essa conversa no quarto, hã? Aqui
não é lugar para criança. — Declarei e me levantei com Luli ainda no
colo. — Damon, você cuida da conta?
Ele resmungou.
— Se continuar assim, daqui a pouco você me dá suas camisas
para passar.
— Não seria má ideia. Minhas roupas estão realmente
amarrotadas — debochei e saí do bar com Luli, deixando Damon à
mesa com todas suas ofensas impróprias para pessoas de meio
metro.
Logo após o desjejum, em um passeio cauteloso com a minha
filha, descobri através de um turista que ali era de fato uma ilha
escocesa e se chamava Fast.
Luli, na sua beleza pura e transparente me falou aleatoriamente:
— Aquele é o tio Damon, papai? — E apontou para um sujeito
que trocava carícias com uma moça de longos cabelos pretos,
escorados à uma árvore.
Usei as mãos para tapar os olhos de Luli, mesmo sabendo que
ela já tinha visto tamanha pouca vergonha.
— Eeei!? — O chamei, como quem dá bronca.
Ele paralisou a mão que tendia encontrar o seio da moça. Deu
um rápido beijo nela em forma de despedida e veio para perto de
mim. Dos olhos, levei as mãos para os ouvidos de Luli.
— Sério, Damon? Não podia ir para um quarto?
— Ontem foi no quarto. Hoje precisava ser em um lugar
diferente para nosso relacionamento não cair na mesmice. — Ele
tinha dom em falar estupidez em tom sério.
— Bom, quem sou eu pra reclamar do seu cortejo áspero.
— Vai me recriminar? O cortejo foi ontem.
— Isso explica você não ter retornado do bar.
— Sentiu minha falta?
— Na verdade, pensei que os gregos tinham se livrado de você.
Teria sido um trabalho a menos para mim — respondi em humor
sombrio.
— Papai, eu ainda posso ouvir vocês — atentou Luli, deixando
claro que minhas mãos em seus ouvidos eram totalmente inúteis. As
afastei.
— Viu só. Agora a criança vai saber como você me trata e vai
achar que sou seu capacho — acusou Damon.
— O que é capacho? — Luli ergueu o rosto para mim.
— Pergunte ao seu tio Damon.
— Tio? Que tio? — Ele pareceu desesperado. Como quem
houve que vai ser pai.
— Luli aparentemente adotou você. Ela ainda não sabe a
péssima decisão que tomou, mas não dou um dia para ela se
arrepender e o exonerar desse cargo.
Minha filha olhou para o corvo toda encabulada. A trança que eu
fizera há algumas horas, já estava se desmanchando por culpa do
vento denso.
— Olha, papai. O homem que me bateu.
Seu comentário caiu como concreto na minha cabeça.
Vagueei o olhar por entre as árvores até um homem que se
aproximava de nós em passos decididos - alto como uma árvore e
forte como um touro. Eu me lembrava dele, era um dos gregos que
raptara Luiza e nos perseguira em Vult.
Franzi a sobrancelha.
— Ele bateu em você? — Perguntei à criança, numa deriva de
quem só tem olhos e ouvidos para ela.
— Bateu. — Encontrei em sua voz, sinais de fraqueza e dor.
Escutei um som de rosnado na minha mente.
— Onde ele bateu? — Soltei um suspiro que dentro de mim
persistia.
Minhas pernas ficaram pesadas como se tivesse cimento em
ambos os bolsos.
— Aqui. — Ela me mostrou o local no seu bracinho.
Dei uma nova olhada no grego não muito distante e outra em
Damon, rente ao meu lado.
— Se controle. Tem muitos inocentes. — Me repreendeu.
— Vou quebrar as pernas dele — declarei.
— Não. Você vai colocá-lo de castigo, lembra? — Damon
ironizou e deu uma piscadela para minha filha. — Vamos sair daqui
antes que você faça uma burrada das grandes. — Me puxou pelo
braço ao perceber que o grego não estava distante. Eu me mantive
firme, pensando nas piores formas de tortura para o sujeito.
— Vamos, Alastor. Você não quer fazer isso na frente da sua
filha — continuou Damon, como se pudesse ler minha mente. Mas,
talvez o que eu pensava estivesse transparecendo cruamente em
minha face. Peguei Luli no colo e saímos apressados. Na minha
cabeça ficara a promessa de que eu dobraria aquele homem em três
partes.
Não demorou para que Damon e eu notássemos que as
pessoas naquela ilha estavam muito bem vestidas. Mulheres de
longo e homens de terno. Bancos e árvores decorados. Um
casamento aconteceria ali.
— Fiz merda — balbuciou Damon parado diante uma foto
exposta em um mural.
Olhei do retrato para ele. E o fiz novamente. Era uma indiana,
jovem e belíssima.
— Não era a moça que você estava beijando há poucos
minutos?
— Era.
— Por Deus, Damon. Você ficou mesmo com a noiva de
alguém?
— Em minha defesa, ela não me disse que estava noiva —
rebateu.
— Talvez se tivesse conversado com ela...Sabe pelo menos o
nome da moça!?
— Indiana.
— Tenho certeza de que não é assim que ela se chama.
Ele ficou sério.
— Esquece isso. Se ela não contar para o noivo, está tudo bem.
Abri e fechei a boca.
— Quero ficar, papai. — Disse Luli, encantada com a decoração.
— Não fomos convidados, docinho. É mal-educado assistir uma
celebração de penetras.
— Mais eu quero. — Ela pestanejou, sendo dengosa.
— Já disse que não, Luiza.
Damon pigarreou como forma de chamar minha atenção. Segui
a direção do seu olhar. O maldito grego se infiltrara no casamento
assim como nós. Empurrava os convidados para tirá-los do seu
caminho. Levantava e baixava a cabeça, à procura do nosso rosto.
— Acho que teremos de assistir à cerimônia sim, Alastorzinho —
cochichou Damon.
Eu podia facilmente acabar com aquele grego sem criar alarde.
Ele estava sozinho, perdido. Se Damon o distraísse para mim,
bastava eu chegar por trás com meu cinto e enforcá-lo até a morte.
Depois jogaríamos o seu corpo do penhasco e fim. Simples, sem
sujeira, sem barulho. No entanto, havia Luiza. De modo algum eu
cometeria tamanha atrocidade na sua presença.
Sem ter outra escapatória, indiquei um dos bancos para nos
sentarmos.
Fui empurrada para fora do barco com grosseria. Eu não estava
amarrada como se fosse prisioneira. Os gregos sabiam que eu não
fugiria, não depois do que fizeram com uma das empregadas. O pior
foi assistir as facadas que deram na coitada. Não foi preciso falar o
mesmo idioma que eles para que eu compreendesse o recado: se eu
tentasse escapar eles matariam. Um por um.
As coisas se acalmaram depois do telefonema que o grego de
lábios carnudos recebeu. Um deles assumiu o controle do barco e
mudou de direção, então aportamos naquela ilha.
— Que raios de ilha é essa? — Gael me perguntou em um
sussurro. Sua expressão era das piores. Ele não aceitava não poder
ir pra cima dos homens por causa da empregada.
Eu jurei para ele que se tentasse algo e arriscasse a vida da
pobre moça que restava, eu nunca mais trocaria palavras com ele e
ainda lhe daria um murro na fuça.
— Tem cheiro de Escócia — respondeu o pançudo no mesmo
timbre.
— Nos localizarmos é o menos importante no momento.
Precisamos saber o que esses sujeitos querem aqui — respondi
ambos.
— E quem entende o que dizem? O que esperar de gente que
quebra pratos quando estão felizes? — Perguntou Gael.
— Que quebrem nas próprias cabeças na próxima festividade!
— Rosnou Jailson.
Percorremos por uma falésia em trechos curvilíneos que dava
uma bela vista do mar. Mas eu não estava com cabeça para admirar
a beleza e pouco me importei para as pessoas que passavam por
nós com roupas de festa. Eu estava focada em desvendar a intensão
dos assassinos.
— Que ótimo. Fomos trazidos a um casamento — criticou Gael,
nervoso.
— O que esses babacas querem aqui? — Olhei rapidamente
para os gregos. Um deles passara por mim dando uma bela
trombada em meu ombro. — Damn! (maldito)
Ele não perdeu tempo me respondendo. Sequer me encarou.
— Quer ficar sem dentes, ruivinha? — Perguntou Jailson,
preocupado com os gregos que ainda estavam atrás de nós.
— Eles nem ao menos sabem que os ofendi.
Continuamos andando até o centro da festa onde bancos eram
decorados com arranjos de flores, árvores secas com luzes que
deviam se acender ao pôr do sol e um varal de fotos deslumbrante.
— Devíamos aproveitar que tá cheio de gente aqui e sair
correndo. Eles não tentarão nada... Eu creio. Só se forem malucos —
atentou Gael.
— E não são? — Retrucou Jailson. — Deram uma coronhada
em você do nada. Facadas na empregada que mal abrira a boca.
Os gregos que vinham atrás de nós nos apressaram. Eu não
entendi o que era para ser feito, aonde devia ir. Mais um passo e
invadiríamos a festa. Então, um grupo grande de convidados chegou,
causando baderna e acabou me separando de todos. Até que uma
mão agarrou meu braço e me puxou para o lado oposto, impaciente.
Eu resmunguei antes de ser espremida contra uma árvore por
um corpo quente como o Sol.
— Como infernos veio parar aqui!?
Nossos olhos se encontraram, absorvendo minha alma toda e
eu empedrei.
— Nicholas. — Meus nervos falaram por mim e esse mesmo
nervo, me fez dar-lhe um tapa na cara. Seus olhos ficaram de todas
as cores, verdes, vermelhos, brancos, pretos. Até se transformarem
em um ponto de interrogação. Eu rosnei, quase espumando: — Me
solte agora mesmo!
Nick não soltou, pelo contrário, me segurou com as duas mãos.
Cada qual, mais exigente em meu braço.
— Não a soltarei até que me diga como veio parar aqui. Era
para estar em sua casa, inferno! — Sua raiva tinha até cheiro.
— Se quer mesmo saber, o seu plano quase matou todos nós.
— O que está dizendo?
Fitei-o, firme como rocha. Estávamos tão próximos que
dividíamos o mesmo ar.
— Nosso barco foi invadido por gregos. Machucaram Gael e
assassinaram uma empregada bem na minha frente. — Uma bola
entalou na minha garganta. — Depois um deles recebeu uma ligação
que nos trouxe até aqui.
— Eu...lamento, Maisie — falou, sincero e preocupado. Mas não
me convenceu. — Você está bem? A feriram?
— Estou bem. — Fui seca. — Espero mesmo que se lamente.
Isso é tudo o que desejo para você — disse, impulsiva.
Seus malditos olhos azuis capazes de fazer meu coração
galopar, basicamente me devoraram viva.
— Damon e eu salvamos as meninas. Estão todas bem.
Engoli em seco.
— Uma notícia boa, finalmente.
— Maisie. — Um fogo queimava nos seus olhos. Ele parecia
engasgado, não conseguia encontrar as palavras.
— Enquanto não consegue encontrar um jeito certo de me pedir
perdão, me solte — exigi sem dar trégua. Eu não facilitaria para ele.
— O perdão pode esperar. O que preciso agora é mantê-la a
salvo — revidou, determinado. As mãos em mim eram cada vez mais
possessivas.
— Eu mandei me soltar. Não me faça gritar — disse em tom
ameaçador.
Seus olhos desafiaram os meus. Eu odiei perceber como os
seus eram firmes e inabaláveis. Já os meus...bem, chorariam na
primeira oportunidade.
De repente, uma mão foi parar em meu rosto. Era só uma forma
de me manter encarando-o.
— Eu odiei ter que deixá-la, se quer saber. Quis correr para seus
braços nos primeiros minutos — confessou, furioso. — Queria jogar
Damon daquele bote...
— Queria, mas não o fez. Você escolheu o corvo a mim e agora
eu o pagarei na mesma moeda.
Seus dedos esfriaram um pouco. Ele podia sentir minha
pulsação se acelerar e eu podia sentir seu temperamento
esquentando, como um beijo rubro e ardente.
— O que quer dizer?
Eu apenas sorri descaradamente, o deixando em um estado
ainda mais crítico. Eu estava queimando, não em fogo, em gelo.
— É assim que descontará sua mágoa? Cavalgando no pau de
outro?
— E gemerei como nunca — acrescentei, explosiva como
vulcão. Decidida a ver o escocês derrubar aquelas árvores com sua
cólera. A definhar no próprio arrependimento.
Suas narinas se abriram e veias surgiram na testa. Os lábios
ficaram brancos.
— Você criará uma guerra entre Damon e eu. É mesmo isso que
deseja? — Questionou, sem melhorar o humor obscuro.
Agarrei seu pulso, insubmissa, mas ele não cedeu.
— Sou uma garota livre, Nicholas Coleman. Onde desejo sentar,
não lhe diz respeito. E é a última vez que aviso, me solte ou eu grito!
— O alimentei com minha mágoa amarga.
— Se Damon colocar a mão em você... — Não completou o
pensamento. Lutei contra a vontade de incentivá-lo a continuar. O
olhar misterioso e lento guardava tempestades.
Nos encaramos por mais um tempinho, meus olhos desceram
até sua boca que prometia o melhor beijo da minha vida. Então Nick
resolveu me soltar.
— Aonde está indo!? — Perguntou quando me afastei, no seu
instinto protetor. Permanecia estático, com as veias saltadas e a fúria
contida como uma sombra. A raiva, assim como o sorriso no seu
rosto, o deixava lindo. Era um convite para minha rendição, porém,
ele merecia ser pisado e sofrer como sofri.
— Voltarei para Gael e Jailson. De onde venho, Nicholas, nunca
deixamos os amigos para trás — farpei e o deixei remoendo sozinho.
— Como vieram parar aqui? Logo aqui? — Perguntou Damon
assim que lhe contei sobre Maisie e os outros. Voltamos para o
quarto logo após minha péssima conversa com a ruiva.
— Os gregos que vieram atrás de nós devem ter dito aos outros
que libertamos as reféns e que viemos para essa ilha. Precisamos
descobrir o que querem antes que firam mais alguém.
— Eu sei o que querem. O pen drive.
— Então vamos entregar isso de uma vez.
O que eu disse fez com que ele se levantasse. Por muito pouco
não acordou Luli que dormia na cama ao lado.
— Ficou burro? Acha que deixarão a gente ir depois do caos
que causamos?
O segurei pelo colarinho como a tempos não fazia. Já não o
odiava como antes, mas, pensar naquele sujeito tocando em meu
cravo vermelho. Imaginá-la gemendo seu nome e se contorcendo ao
toque da sua boca... Não fazia meu estilo ser possessivo, contudo,
descobri um medo terrível de ser trocado por outro novamente.
— Você fala grego melhor que eu, então organizará uma reunião
entre nós.
— Estão brigando? — A vozinha chegou de mansinho. Larguei
Damon e volteei o olhar para minha filha que despertara assustada
diante tal cena.
— Os adultos brigam as vezes — respondi.
— Por que brigavam, papai?
— Seu pai as vezes toma péssimas decisões, corvinha. — Foi
Damon quem a respondeu.
O encarei de soslaio.
— Prefiro tomar péssimas decisões a ser um covarde — rebati.
Damon me insultou baixinho.
— Tio De é covarde? — Luli perguntou, inocentemente. Os
olhos de cílios espessos iam de um pro outro.
— É claro que não sou um covarde. Sou tão corajoso que até
faço isso. — O desgraçado me deu um peteleco na cabeça e
arrancou uma gargalhada gostosa da criança. — Quer ver de novo?
— Me dê outro tapa para você ver se continuará tendo dedos. —
O alerta foi verdadeiro, mas fiz parecer engraçado para Luiza.
— Tá vendo, corvinha. Seu pai não sabe brincar.
Cruzei os braços e soltei o ar pausadamente. Ficar acumulando
preocupações não me ajudaria em nada, além do mais, qualquer
outro problema me parecia minúsculo diante o sorriso singelo da
minha filha para Damon. Eu queria aqueles sorrisos destinados a
mim, eu queria ser o motivo das suas gargalhadas de doer a barriga,
do seu rubor após uma piscadela.
— Filha, o que acha de convidar para Damon brincar de
chazinho? Ele me disse que sempre teve vontade de brincar.
Damon pigarreou. Já Luli, seus olhos brilharam animados.
— Não podemos brincar de chazinho sem xícaras — atentou
Damon, procurando uma forma de escapar.
— Não seja por isso. Posso ligar na recepção e pedir para
trazerem chá — falei, dando um basta na sua desculpa.
— E biscoitos? Pede biscoitos também, papai. — A criança se
empolgou e saltou da cama.
Me agachei na sua frente e apertei suas bochechas, certo de
que ela reclamaria. Ela odiava ser apertada.
— Claro que pedirei por biscoitos. Quem negaria algo para uma
mocinha tão linda?
Não perdi tempo e fiz a ligação. Pedi por três xícaras de chá
com leite e uma caixa de biscoitos amanteigados. Aproveitei para me
informar se havia alguma loja por perto onde pudéssemos comprar
roupas, já fazia dias que usávamos os mesmos trajes sujos. Fiquei
sabendo que haveria uma feirinha pela tarde, próximo ao nosso
hotel.
Quinze minutos depois, o serviço de quarto chegou com tudo
que eu havia encomendado.
— Tenham uma boa tarde, senhores Coleman — disse o
servente ao sair.
— Senhores Coleman? Estão achando que somos um casal? —
Reclamou Damon. — Nunca fui tão insultado em toda vida.
O que fiz, foi rir do seu inconformismo.
— Venha, papai, o chá vai esfriar — apressou Luli sentada no
chão. Ela organizara os biscoitos na bandeja e as xícaras ao lado.
Também colocara travesseiros no chão para que Damon e eu nos
sentássemos.
Antes de atender ao pedido da criança, o corvo veio cochichar
em meu ouvido:
— Vamos mesmo brincar de chazinho sabendo que tem
assassinos nessa ilha querendo nossa cabeça?
Não tirei os olhos de Luiza ao responder:
— Se você consegue dizer não para aquela criança, então diga.
Porque eu não consigo.
Ele praguejou.
— Onde você foi me meter, Alastor — disse entre os dentes e
começou a ir em direção às xicaras separadas por minha filha. Deu o
aviso antes de sentar: — Eu fico com a rosa e não abro mão.
Me sentei na almofada ao lado de Damon. Luli ficou com a de
frente para nós dois.
— Papaaaai, eu não disse que já podia comer! — A criança me
repreendeu quando ameacei levar um biscoito goela abaixo.
— E o que estamos esperando, afinal? — Questionei.
— Você sabe — falou baixinho, receosa.
Me virei para Damon que estava todo confuso com a situação;
ser pai de menina acabava com qualquer masculinidade e ele não
tinha como saber disso.
— Ela quer trançar nossos cabelos — expliquei para ele. — É o
que fazemos quando tomamos chazinho com as bonecas dela e
como não há bonecas aqui, bem...seremos suas cobaias.
— O que é cobaia, papai?
— É o que está fazendo conosco, corvinha. Nos tornamos
súditos de uma garota de seis anos — disse o corvo, embaralhando
ainda mais a mente da minha filha.
O cheiro bom do chá quente aguçou a minha fome, só que Luli
não nos deixaria tocar na comida antes dela brincar com nossos
cabelos do modo que desejasse.
— Vamos, filha. Faça um penteado moderno em nós.

Duas horas depois, Luli finalmente tinha dormido. Dormido


mesmo, Damon e eu fingimos três vezes que estávamos saindo do
quarto só para ter certeza de que ela não nos seguiria. A criança não
fez nem menção de acordar. O sono estava pesadíssimo.
— Esse foi o chá mais demorado da minha vida — reclamou
Damon assim que saímos do quarto, tomando todo cuidado para não
acordar a menina.
— Quando estamos em casa ela me faz tomar uns quatro
desses por dia e ela nem mesmo gosta de chá — revelei, sem me
importar em parecer um pai bobo.
— Por que resolveu adotá-la? — Ele me perguntou, após
descermos os dois lances de escadas, já no térreo. — Sabe, essa
vida que você tem, não é uma vida que eu encaixaria uma criança se
estivesse no seu lugar.
— Foi ela quem me escolheu. Luiza capturou meu coração de
uma forma que ele não voltaria a ser inteiro se eu não a levasse
comigo.
— Os pais biológicos nunca quiseram saber dela? — Perguntou,
querendo ir mais afundo.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça e neguei com um balançar
de cabeça.
— Não deram nem nome para a menina — compartilhei. Ele
demonstrou choque. — Prefiro pensar que eles sabem que ela é
mais feliz comigo.
O céu estava com aquele tom alaranjado de fim de tarde. A ilha
parecia mais vazia, eu sabia que grande parte dos turistas estavam
reunidos no casamento. Era a ocasião perfeita para Damon e eu nos
encontrarmos com os gregos e encerrar de uma vez por toda aquela
perseguição.
— Onde você disse ter visto Maisie e os outros entrarem? — O
corvo me perguntou ao chegarmos na pequena vilinha da ilha, onde
acontecia a feirinha que a moça da recepção comentara e também
onde grande parte dos turistas preferiam se hospedar, já que do lado
de lá a vista dadivada pelas janelas era bem mais abundante.
Apontei para o chalezinho de telhados cinza. Era pequeno, mas
também ideal por não ter outros hóspedes.
— Vamos acabar com isso, então.
Não precisamos bater à porta, um dos gregos foi logo nos
receber na entrada. A ideia de estarem nos esperando chegar não
me pareceu absurda.
— Pensei que teríamos que mandar os olhos da ruiva de
presente para trazê-los até mim.
Não gostei da brincadeira.
— Seria satisfatório vê-lo tentar. Tenho certeza de que ela
acabaria com você na sua primeira tentativa — rebati.
O grego não baixou a cabeça. Mas não foi a mim que
respondeu.
— Eu sempre soube que você era um traidor, Corvo. É uma
pena que Dionísio tenha percebido tarde demais. — E semicerrou os
olhos. — Vocês estão de trancinha?
Passei os dedos pelos cabelos; não me lembrara de procurar
por um espelho antes de sair apressado do quarto, queria aproveitar
as horas de sono de Luli e tirar Maisie das garras daqueles homens.
— Por que não vamos direto aos negócios, hã? O meu tempo é
curto — retrucou Damon, debochado até os dentes.
O grego riu e nos deu espaço para entrar. Meu corpo inteiro
estremeceu assim que passei por ele. Estávamos em território
inimigo apenas com a porra de um pen drive. Se eu estivesse
enganado e não fosse isso que eles quisessem, então eu havia
levado Damon e eu para a boca do leão.
A primeira coisa que vi ao entrar, como se estivesse sendo
puxado por uma corda, foi Maisie sentada no sofá da sala e de boca
cheia. Ela se deliciava com alguma coisa e engasgou ao nos ver. Um
sorriso repuxou meus lábios. Seus olhos verdes eram túneis para
meus pensamentos depravados e os lábios, um poço para saciar
minha sede. O rosto dela, coberto de sardas, era como um céu
noturno carregado de estrelas.
— Se deixar, essa daí come o dia inteiro — comentou um dos
gregos ao meu lado. Não me lembrava do rosto dele, devia ter vindo
no barco com os escoceses.
— Deixe-a comer o quanto quiser. — Ele estremeceu ao meu
comando. — Onde estão os outros? — Até o momento, nenhum
tinha erguido armas. Bom sinal.
— O mais pançudinho está dormindo, já o outro, tivemos que
amarrá-lo separado. Já tentou me enforcar com um cadarço umas
duas vezes desde que chegamos.
Gael...Sempre tentando bancar o herói.
— Não vamos enrolar. Diga o que querem. — Damon cortou o
assunto com sua impaciência asquerosa e se voltou para os homens
que atacaram Amber: — Nos seguiram até aqui por alguma razão e
sei que não foi para se vingar por Dionísio. Vocês o odiavam tanto
quanto eu.
Eu o conhecia o suficiente para saber que blefara. No seu lugar,
eu teria feito o mesmo.
Dei uma rápida olhada em Maisie, ela engolia com dificuldade.
As sobrancelhas ruivas estavam tão unidas que era quase uma
monocelha. Não havia dúvida de que ela estava se mordendo por
não entender a conversa.
— Está certo, Corvo. Não nos chateamos pela morte do meu
superior. — O de lábios mais proeminentes falou. Aquele homem
tinha os traços mais gregos que eu já vira na vida.
— Então por que vieram atrás de nós? — Me envolvi no
assunto, áspero. — Vocês derrubaram o helicóptero. Quase nos
mataram.
Os homens riram. O ruído indicava pelo menos cinco timbres
diferentes. Talvez mais.
— Foi um jogo perigoso. Estávamos seguindo as ordens de
Athos. Mas, pensamos em todas possibilidades, e, na verdade,
achamos melhor propor uma parceria — disse o que falara sobre a
gula de Maisie minutos atrás.
— Uma parceria? — Damon se adiantou. O semblante era de
um interesse agudo.
— Não queremos que denunciem Érebos. Sabemos que estão
com o pen drive que incrimina todos nós. Queremos continuar com a
sociedade, mas precisamos de um líder. Alguém jovem e que tenha
coragem. — O grego que se dispôs a explicar olhou de Damon para
mim. — Queremos que vocês dois assumam o lugar de Dionísio e
Tales.
Eu fiquei atônito. Me juntar aos homens que sequestraram
minha filha e quase me mataram?
Eu devia ter transparecido meus pensamentos, já que um dos
gregos achou conveniente acrescentar:
— Sabemos que não começamos do jeito certo, mas entenda
que acatávamos as ordens de nosso superior.
— Não começamos do jeito certo!? Vocês agrediram a minha
filha! — Me aproximei até fazê-lo ter de erguer os olhos pra mim.
— Não fomos nós. Foi Esnarriaga. Ele não está aqui agora. Viu
só? Se fosse nosso superior, Alastor, podíamos matá-lo por você. —
Respondeu o grego que eu enfrentava.
— Não preciso que matem por mim — rebati.
Damon que observava tudo calado, me tocou no ombro, como
um sinal de: “cala a boca, porra.” Quase torci seu pulso para afastá-
lo.
— Caso Alastor e eu concordemos com a proposta, os membros
não presentes nesse momento aceitariam receber ordens de dois
homens que mataram seus antigos líderes? Que os traíram!?
— Cuidaremos disso. Mas é certo que todos concordam que
Érebos já precisava de um novo líder muito antes de Dionísio morrer.
As coisas não iam bem, a organização tão bem conhecida já não era
a mesma.
— Por que você mesmo não assume Érebos? — Questionei
para o de lábios grossos. O sujeito pareceu gostar de liderar.
— Eu não tenho a coragem que vocês têm. Não digo que sou
um covarde, mas há limites que ainda não posso ultrapassar. Limites
que vocês ultrapassam sem medo.
Abri a boca, mas Damon me cortou.
— Nós precisamos pensar, está bem? Nos dê um tempo e faça
o favor de pedir para Esnarriaga deixar de nos seguir ou eu juro que
não seguro Alastor na próxima vez que ele quiser matá-lo.
— Vocês têm 24 horas.
— O que acontece se a resposta for negativa? — Resolvi
perguntar. Era importante ter tudo às claras.
— Continuaremos a guerra que começaram.
— Isso é um absurdo. Como podem esperar que você aceite ser
líder de Érebos depois de tudo que fizeram!? — Maisie se exaltou,
indo da direita para a esquerda. E de novo.
Eles não me deixaram levá-la, não antes de darmos uma
resposta, no entanto permitiram que conversássemos a sós ao lado
de fora do chalé.
— Será que pode parar de andar de um lado para o outro? Isso
tá atacando minha labirintite — disse Damon, descontente.
— Por mim, que vomite até suas tripas. — Ela rebateu, sem
parar o ritual que criara em ir de um coqueiro a outro,
sucessivamente.
— Ela ainda não nos perdoou? — Damon me perguntou,
ignorando a presença de Maisie.
— Não! — A ruiva rosnou antes que eu pudesse abrir a boca. —
O que vocês fizeram é imperdoável, mas uma parte burra em mim
não consegue deixar de se preocupar com os dois.
— Maisie...
Quando tentei contato físico casual, ela recuou.
— Não toque em mim. Ainda quero quebrar um coco na sua
cabeça!
— Tudo bem, pode quebrar até três, mas deixe de nos odiar.
Precisamos de você — falei, chegando na superfície do meu
arrependimento.
Ela passou a língua pelos lábios para umedecê-los, mas o vento
tornou a secá-los em seguida, e cruzou os braços, finalmente
interrompendo seus movimentos com as pernas. As unhas expostas
nos braços brancos e sardentos, teriam o poder de matar. Fazê-la
me perdoar seria uma manobra difícil. Possivelmente a mais difícil da
minha vida.
— Agora precisam de mim? Pensei que dependiam apenas um
do outro.
— Você já deu a concha pra ela? — Damon tentou cochichar no
meu ouvido, mas o idiota não entendia muito bem o conceito de falar
baixo. Maisie acabou ouvindo tudo.
— Concha? Que concha?
Dei uma cotovelada em Damon no intuito de machucá-lo.
— Por que não vai comprar nossas roupas, hã? Nos
encontramos mais tarde.
— Eu. Não. Sou. Sua. Puta! — Ele grunhiu, mas não o levei a
sério.
— Faça isso, Damon. — Lancei um olhar letal para ele. Se
aquilo não o fizesse compreender o risco que corria...
Ele deixou o chalé rogando inúmeras maldições. Eu devolveria
cada centavo a ele quando tudo tivesse se acalmado.
Assim que sua silhueta desapareceu na mata densa - só Deus
sabia porque ele escolhera aquele caminho - eu peguei a mão de
Maisie com exigência.
Os adoráveis olhos verdes não estavam tão amigáveis como de
praxe, mas não me importei. Lidar com bichos selvagens era minha
especialidade.
— Você vem comigo!
Fui carregada contra a minha vontade. Nicholas me segurava de
um modo que se tornara impossível me soltar. Ele me arrastou até os
fundos do chalé e me prensou com seu corpo contra a parede. Era
uma barreira de músculos me espremendo. Eu não tentei escapar
naquele momento, não queria que Nicholas percebesse que ele era
meu ponto fraco. Que bastava sua jogada de corpo para que eu
fosse destruída como um morango.
— Vai fazer o que? Me atacar? — Perguntei, rude. Toda minha
força fora consumida tentando não me importar com a sensação do
seu corpo pressionando o meu.
Me segurou pelo queixo. Sustentei seu olhar.
— Vai fugir?
Senti o calor excessivo da sua pele através de nossas roupas
surradas. Não queria pensar naquilo...no volume dentro da sua
calça. Na força que ele tanto me desejava. Como seria tê-lo dentro
de mim quando tudo que queríamos era descontar a raiva que
sentíamos um do outro?
— É o que acontecerá assim que me soltar — garanti,
mandando pro inferno meu “eu” canalha que o queria
desesperadamente.
O homem ser lindo de morrer não me ajudava a manter-me
indiferente. E aquela proximidade insustentável...
— Sendo assim, fique, por favor — pediu e aproximou seus
lábios dos meus, sem me beijar. O hálito quente do homem foi parar
na minha orelha: — Acha que pode me perdoar, Maisie?
Trinquei os dentes. Meu coração com certo ar virginal deu
solavancos, mas meu cérebro esperto sabia o que Nick estava
tentando fazer.
— Você não quer meu perdão. Quer enfiar sua língua na minha
boca.
O maldito teve a coragem de sorrir diabolicamente e me
presentear com suas colinas azuis em formato de olhos — límpidos e
sãos.
Está brincando com meu juízo, Nicholas Coleman?
— Vai me morder se eu tentar?
— É o que farei — prometi, sem falhar a voz, ainda que meus
lábios quisessem receber a dádiva dos seus.
Sua respiração passeou por minha maçã, arrepiando cada
pelinho do lado esquerdo do meu rosto. Ele aproveitou o ensejo.
— Que mal pode fazer um beijo? Quero correr o risco. — Deu
um beijo molhado na minha bochecha. — Quero provar seu sabor
quando está zangada. — Um beijo no queixo. — Quero me enfiar
entre suas pernas enquanto sussurro pedidos de desculpa.
O convite era muito promissor e eu até tirava o chapéu para o
desgraçado.
Contenha-se, Maisie!
— Não se pode usar sexo para se desculpar! — O alertei, firme,
contrariando minha real vontade de lambê-lo todo.
Ele se afastou um pouco para me fitar, lentamente. O cheiro de
indecência estava por toda parte. O vento levava as folhas do chão,
mas não levava a sem-vergonhice de mim.
— E quem criou essa regra estúpida? — Perguntou em um
timbre extraordinário e cheio de estrelas.
— Eu.
— Então, dona moça, me diz, de que forma espera que eu te
peça perdão? — Seus lábios se moveram sensuais e bastante
dissolutos.
Empinei o nariz e não medi a voz:
— Ajoelhe-se!
— Prefiro que grave seu nome em minhas costas à navalha —
contrapropôs, navegando os olhos por meu rosto. Ele só podia ser o
melhor amigo do diabo para emanar tanto calor.
Eu tinha consciência de que colocar Nicholas de joelhos era algo
impossível, seu orgulho era uma das coisas mais importantes para
ele. Não era certo exigir que fizesse algo que o deixasse de
estômago revirado, contudo, a forma que ele me traíra também fora
pior que levar alguns murros.
— Você mentiu para mim. Traiu a minha confiança. Se não sabe
como consertar isso, então receio que não haja mais chances para
nós.
Seu rosto ficou feito mármore. A respiração era baixa e
sobrecarregada. Os olhos em fogo.
— Eu já encontrei o caminho para o seu coração uma vez,
menina. Posso encontrá-lo de novo.
Minha alma subiu aos céus. Nick sabia semear o romantismo e
o erotismo como ninguém.
— As muralhas escocesas sempre foram fortes. — Recorri à
metáfora.
Ele afagou meu rosto com as pontas dos dedos, com a
delicadeza de um beijo.
— E por que eu as derrubaria se posso escalá-las? — Devolveu,
com a candura intacta.
Me vi sem resposta.
Suspendi a raiva por um instante porque eu realmente queria
entender aquela trancinha em seus cabelos.
Estiquei o braço e toquei aquela coisa malfeita e o motivo da
minha curiosidade escandalosa.
— Luiza encurralou Damon e eu. — Ele explicou antes que eu
precisasse indagar.
A felicidade tomou-me toda assim que imaginei a cena.
— Quero conhecê-la melhor — confessei, amargurada.
Me retribuiu um sorriso doce e cansado, os olhos brilhantes se
esmaltaram do mais sereno azul.
— Quero saber o que pensa sobre a proposta dos gregos. —
Mudou de assunto em um movimento abrupto.
— Por que?
— Sua opinião é importante para mim.
Eu podia dar uma de birrenta e mandá-lo pedir a opinião do
corvo? Podia, tinha esse direito. Contudo, seria infantil demais da
minha parte.
— No seu lugar, eu jamais lideraria uma organização tão podre
quanto essa. Você está longe de ser um homem de coração puro, fez
muitas coisas questionáveis, mas esses caras...Eles sequestraram
uma criança e não posso imaginar o tanto de barbaridade que já
cometeram.
— Fico satisfeito por saber que pensa como eu. Cogito entregar
o...
— ONDE ELE ESTÁ!? — O grito me alarmou. — Nicholas?
Você é o Nicholas?
Quem perguntava era um homem de trajes indianos, braços
pintados e colares pelo pescoço. Uma multidão se aglomerava em
volta dele. O sujeito parecia ter lá para os seus sessenta anos, mas a
barba cerrada estava em dia.
— Sim, sou eu — disse Nick, na inocência, ao se virar.
A resposta do indiano veio através de um soco no maxilar de
Nick. Ele foi tão pego de surpresa que não teve tempo de se
esquivar.
— Quem diabos é você? — Nick perguntou, massageando o
rosto ferido.
O homem carrancudo retesou os lábios.
— A minha filha. Você dormiu com a minha filha — acusou.
— Como é? — A voz de Nick foi lá em cima.
— Minha menina ia se casar. O que a grande mãe vai pensar da
minha menina agora. O que todos vão pensar...
— Não. Isso é um tremendo mal-entendido.
Nick não parecia estar mentindo, tampouco aquele homem
visivelmente aflito. Quero dizer, Nicholas já mentira antes e me
enganara muitíssimo bem. Mas, dormir com outra garota, noiva de
alguém, enquanto se relacionava comigo... Ele não teria coragem.
Precisava não possuir escrúpulo algum para fazer algo desse nível.
— Quem é sua filha? — Nick perguntou, já que o indiano só
lamentava.
Todos os olhares se voltaram para uma morena encolhida, com
as mãos agarrando o vestido vermelho indiano. Seus cabelos eram
pretos e contornavam suas curvas, os olhos eram marcados por
maquiagem forte e uma pedra brilhava em sua testa. Ela tremia
como em uma convulsão, mas sua beleza beirava ao escândalo.
Olhando para indiana, eu só conseguia me perguntar como
alguém podia ter uma pele como aquela. Tão indescritivelmente bela
e sedosa.
— Se aproxime, garota, por favor. — Nick a chamou docemente.
Ela se aproximou. — Eu a toquei de alguma forma?
A indiana começou a chorar até ser levada aos soluços e então
saiu correndo sem responder à pergunta de Nick.
O pai da moça segurou o braço de Nicholas e disse furioso:
— Você desonrou a minha menina, agora se casará com ela!
Passei feito furacão pela feirinha e acabei encontrando Damon
na barraca de torta. Fui com a mão em seu ombro e o virei para mim
com a força de todo o meu ódio. Seu pedaço de torta foi do garfo
para o chão.
— Você disse para a indiana que seu nome era Nicholas? —
Perguntei em um rosnado venenoso.
O par de olhos pretos tremeram.
— Talvez eu tenha dito..., mas eu posso explicar.
— Damon! — Grunhi.
— Tudo bem, talvez eu não tenha explicação, mas se me der
tempo, eu posso pensar em alguma.
— Eu vou estrangular você — ameacei com frieza.
— A menina era virgem, eu fiquei assustado e disse o primeiro
nome que me veio à mente — Ele falou, usando a mão estendida
para me manter afastado.
— Me explique como pode ter lembrado do meu nome antes do
seu? Você acabou de me ferrar, seu desgraçado!
Ele largou o talher no prato e se levantou. Tinha ciência de que
estávamos atrapalhando as vendas das tortas, mas eu não
conseguia me preocupar com aquilo. Não antes de matá-lo.
— Do que está falando? Como te ferrei?
Me certifiquei de que estava mesmo me levando a sério antes
de explicar o ocorrido.
— A indiana contou para o noivo que dormiu com outro e ele
cancelou o casamento e então o pai da noiva foi falar com o sujeito
que desvirginou sua filinha!
— É por isso que seu rosto está vermelho? — Perguntou,
segurando uma maldita risada.
— Damon, o pai da menina quer que eu me case com ela, puta
merda!
Ele levou uma mão à boca.
— Por causa de uma transa?
— ELA É INDIANA, DAMON!
— Isso devia me dizer algo?
— A maioria das famílias na Índia ensinam as meninas a
aceitarem o que seus familiares lhes dizem e a respeitar
especialmente os homens. Se seu pai lhe escolhe um marido, ela se
casa com ele.
— Mas eu não estou tentando impedir. Pelo contrário, até dou
minha benção, se assim desejarem.
— Você transou com a menina e todos ficaram sabendo disso.
Acha que o noivo dela a aceitará agora?
— Por que não aceitaria? Eu preparei o terreno para ele.
Minha paciência se esgotou e eu o empurrei, o fazendo dar com
as costas na barraquinha.
— Damon, o pai da indiana quer que eu me case com ela. Se
não consertar isso, eu vou te socar até deixar sua cara como uma
uva passa.
— Se eu disser para ele que fui eu, ele vai exigir que eu me
case. E eu não posso me casar.
— E eu posso? — Cerrei o cenho.
O canalha deu de ombros, fazendo pouco caso.
— Você já tem uma filha, uma casa...Calma, só estou brincando.
Eu vou esclarecer tudo pela manhã.
Algo em sua fala não me pareceu verdadeiro.
— Vai fugir né, desgraçado?
Ele deu um sorriso de canto.
— Claro que sim. Vamos entregar o pen drive aos gregos e dar
o fora daqui. A indiana que se resolva com o noivo. Não mandei dar
com a língua nos dentes!
Me sentei no banco ao seu lado e pedi por uma fatia de torta à
atendente.
— Você é podre, Damon.
— Se tem pena, se case com ela você.
Dei um tabefe na sua cabeça, bem nas trancinhas pouco a
pouco se desfazendo. Ele me olhou feio.
— Eu já tenho meus problemas com Maisie e você piorou tudo,
só pra constar.
Dei uma garfada na torta assim que foi entregue.
— Eu não sei porque se preocupa. É tão evidente que vocês
ficarão juntos. Ela o ama de modo ardente e você a olha da mesma
maneira.
Mastiguei devagar. Na verdade, o que dissolvia na minha boca
eram suas palavras.
— Isso é problema para outra hora. Vamos primeiro nos decidir
sobre o que fazer em relação aos gregos — falei, afinal.
Ele se ajeitou no banco ao meu lado e pediu por chá com leite.
Desistira de tentar comer qualquer coisa.
— Não tem nada para resolver. O que nos propuseram é muito
bom, se pensar com a parte racional do cérebro.
— Me desculpe se a parte racional do meu cérebro foi gasta
com um pai furioso — falei de boca cheia. — Ixxo aq-ui tá muito bom.
— Apontei para a torta. — Espere um pouco, você disse que o que
nos propuseram é muito bom?
Ele suspirou e destinou um risinho malicioso à atendente. O cão
no cio não tinha hora para atacar.
— Pense um pouco, Alas...Você tá com uma sujeirinha no dente.
Não nesse, no outro. Me deixe ver se saiu, dá um sorriso.
Não esbocei o menor sorriso.
— Como eu ia dizendo... — Ele tomou seu chá em uma golada
só. Já devia ter esfriado, devido ao ar gélido da noite que se
adiantava. — Érebos seria gigante em nossas mãos. Não
precisaríamos mais cometer crimes, mandaríamos cometerem por
nós. Teríamos dinheiro o suficiente para comprar até mesmo essa
ilha.
— Damon, ouça com clareza o que irei lhe dizer — falei em tom
calmo e audível. — Eu não me aliarei a Athos e a Esnarriaga. Esses
são os dois nomes no topo da minha lista. Athos me torturou tanto
quando criança, que me fez fantasiar com o dia que eu o mataria.
Ele se virou no banco para ficar de frente para mim. Uma música
era tocada na gaita de fole e pessoas se reuniam em torno do
homem branco de kilt azul que gastava seu fôlego no instrumento.
— Sei disso. Mas podemos impor a condição de que só
aceitaríamos se ambos fossem eliminados.
— Sabe como Alastor nasceu, Damon? — Perguntei como
perguntaria a uma criança sobre a existência do papai Noel. —
Alastor nasceu quando alguns membros de Érebos que maltratavam
crianças foram assassinados misteriosamente. Alguns o descreviam
como o vingador de maus atos, especificamente, derramamento de
sangue familiar. Eu cheguei à Grécia matando pessoas, sendo
odiado por todos. Acha mesmo que os membros da Sociedade me
aceitarão como líder? Se acha, então você é tão ingênuo quanto os
sujeitos que nos propuseram isso.
Ele engoliu em seco.
— Você está certo. — Apontou um dedo na minha cara. — E
nunca mais me chame de ingênuo.
Voltamos para o quarto mesmo sem ter decidido sobre o que
fazer com os gregos. Nosso tempo estava passando e a ideia de ter
de deixar Maisie com inimigos, me perturbava. Por outro lado, sabia
que teria que dançar a música daqueles homens se quisesse que
tudo terminasse bem.
Luiza ainda estava dormindo serenamente, nem percebeu
quando entramos.
— Eu não sei comprar roupas de criança. Então o que escolhi
terá de servir — Damon cochichou.
Tirei as botas para não fazer barulho e fui na sua direção.
Revirei as sacolas que ele jogara sobre a cama.
— Por que só tem peças pretas aqui? — Cochichei em resposta.
— Tem verde também — atentou, erguendo uma camisa
masculina.
Apertei os olhos para enxergar, eu só tinha um abajur aceso
como aliado.
— É verde escuro. Quase preto!
— Não deixa de ser verde — retrucou em um sussurro.
Deixei pra lá. Era inútil discutir qualquer coisa com ele. Me enfiei
dentro do banheiro e aproveitei para encher a banheira de água
quente.
Furtei a chave da porta assim que o grego beiçudo dormiu. Eu
não esperaria até o dia seguinte para saber o que Damon e Nick
decidiram sobre a parceria oferecida. Não só isso. Quanta hipocrisia
fingir que eu não queria saber sobre a tal da indiana. Depois que
Nick saíra apressado dizendo que mataria Damon, eu não soube de
mais nada. Nenhum mexerico sequer.
Já era noite quando pisei fora do chalezinho. Respirei o ar puro
profundamente antes de seguir o fluxo de pessoas e acabar numa
feirinha que vendia de tudo, desde roupa à...
Pães doces.
Enfiei as mãos nos bolsos do vestido, mas não senti uma
moedinha sequer.
Eles têm tantos. Não sentirão falta de um.
— Não. De novo, não!
Contive meu lado criminoso e esfomeado.
— Falando sozinha, cabelo de fogo? — Senti o hálito quente em
meu ouvido.
Dei um pulinho nada discreto.
— Damon... O que faz aqui?
Seu cabelo estava molhado e a roupa não era a mesma de mais
cedo. Olhei à sua volta e não vi qualquer rastro de Nick.
— Estava entediado e você?
Dei de ombros feito uma menininha inocente.
— Igualmente.
Ele tirou sua carteira e apontou para a cestinha de pães.
— Alastor me disse que você é louca por isso. Quer quantos?
— Me pagar pãezinhos não me fará perdoá-lo!
— Não quero seu perdão. Quero apenas alimentá-la. Garotas
com fome me assustam como homens com canhões.
A risada foi inevitável.
— Quero cinco.
Um minuto depois, os pãezinhos já estavam sendo entregues.
Comi um, em seguida, outro. No terceiro, Damon já estava me
encarando com um olhar condenador.
— Onde está Nick? — Resolvi perguntar, já que o corvo não me
pareceu disposto a acabar com a minha angústia por vontade
própria.
— Deve chegar logo. A última vez que o vi, estava dando
comida para a filha.
Fomos em direção à música, mas não paramos. Seguimos por
uma estrada que nos levou até a praia.
Dei uma mordida no quarto pão antes de iniciar um novo
assunto.
— O que aconteceu com Athos? — O nome tinha a textura de
barro na minha boca.
Os olhos negros me fitaram. Eram como uma ilha misteriosa e
repleta de ruínas.
— Ele morrerá, Maisie. Alastor nunca o deixaria viver, não
depois do que fez a você. Ele tentou matá-lo inúmeras vezes durante
a viagem, mas eu o impedi.
Ergui as sobrancelhas, não convencida.
— Você parece exercer um grande poder sobre ele.
Um riso grosseiro foi solto ao vento.
— Bem, não foi por mim que ele saltou em alto mar por uma
concha.
— Qual é a história dessa concha que você tanto menciona? —
Perguntei, sem entender.
Damon se sentou na areia seca e tirou as botas desgastadas.
— Quer que eu morra, gracinha? Se eu contar a você não
viverei essa noite. Já basta a confusão que causei por conta da
indiana.
— Então foi você? Agora tudo se explica — falei, aliviada.
Ele jogou as botas de qualquer jeito e enterrou os dedos dos pés
na areia.
— Não acha que Alastor é careta demais para dormir com a
noiva de alguém? Ainda mais uma indiana. Por favor, cabelo de fogo,
aquele homem é louco por você.
Meu coração subiu na garganta.
Me sentei ao lado de Damon.
— Ele lhe disse isso? — Perguntei, ansiosa por mais.
Tola apaixonada.
— É visível. Dentre todos os nomes, o seu foi o mais dito
durante nossa aventura...se é que posso nomear assim aquele
terrível momento.
Trombei nossos ombros só para trazê-lo de volta à realidade.
— Por que está me dizendo essas coisas? Você sempre foi um
estorvo entre Nick e eu.
— Alastor é o mais próximo que já tive de um amigo. — Pareceu
honesto.
— Então desistiu da ideia idiota de sexo à três?
Ele pendeu a cabeça para um lado. Foi com os olhos no mar de
ondas mansas e os voltou para mim com a força de um vendaval.
Perdi o fôlego.
— Estar dentro de você ainda faz parte dos meus planos.
Dei uma risada nervosa e mordi o quinto pão para me ajudar a
engolir a saliva.
— Um amigo nunca cobiça a mulher do outro — falei ao
mastigar.
— Eu não a quero apenas para mim. Alastor se divertirá
conosco — falou casualmente e abraçou os joelhos com as pernas
levemente separadas.
Pigarreei. Era hora de mudar de assunto.
— Há um problema na sua frase, Damon. — A voz veio detrás.
— É você quem se divertirá conosco.
Nick...Não. Não era Nick. Era Alastor. A postura ereta e as
roupas em tons escuros eram sombrias como a alma de um
assassino.
— Vamos, Maisie. Desconte sua raiva do modo que disse que
faria. — Ele me incentivou.
O pãozinho foi parar no chão.
— O que ela disse que faria? — Damon quis saber.
Meus lábios secaram. O doce do pão se tornou amargo, mas eu
não recuaria. Se Nicholas queria ir por aquele caminho, eu estava
pronta para pisar em brasas.
— Eu disse que montaria em você e — pigarreei — gemeria.
— ...como nunca. — Nick acrescentou, arisco.
O sorriso de Damon emanou luz, o olhar por sua vez, era de um
animal.
— Que pensamentos depravados, cabelo de fogo. — O diabo
atiçou.
— Ela tende a ser cruel quando está magoada — comentou
Nick, como se eu não estivesse bem na sua frente.
— Ele tende a não saber se desculpar quando faz merda, o que
me leva a ser cruel — retruquei.
— Algumas garotas se tornam estúpidas quando são deixadas
para trás. — Me revidou em um ranger de dentes.
— Alguns homens possessivos até tentam não ser possessivos,
mas ameaçam de arrancar os dedos de outros que ousarem tocar na
garota que acha que lhe pertence.
Ele não teve uma recíproca de imediato, mas eu cantei vitória
cedo demais.
— Quer se divertir, Maisie? Tudo bem, então Damon e eu a
faremos gemer. — E para a minha desgraça, desafiou: — A não ser
que a dama seja recatada demais.
Uma mão me foi estendida de modo cavalheiro, só que minha
ojeriza não quis aceitá-la. Eu não seria a primeira a dar o braço a
torcer; se Nicholas não recuasse, então, nessa noite Damon botaria
a boca em mim.
Ora, não era o pior dos castigos, eu tinha de admitir.
— Se vão me despir, por favor, não o façam em público —
comuniquei.
Eu tinha cem por cento de certeza de que Maisie não superaria
minha traição sem se vingar, sem rasgar meu coração do mesmo
modo que rasguei o dela. Ela não era como nenhuma outra garota
que eu conhecera, ela queria sentir o meu desespero ao ver Damon
a tocando. Eu não podia esperar outra coisa de alguém que tinha a
mais pura cor do sadismo por todo o corpo.
— O que essa maldição está fazendo aqui? — Damon
esbravejou ao se levantar.
Segui seu olhar e vi a indiana escondida em um coqueiro, nos
espionando.
— Essa é a chance de dizer seu verdadeiro nome a ela e largar
de covardia. — Rosnei para ele.
— Eu vou afogá-la; isso que farei. — Irritou-se e foi em direção à
moça, deixando Maisie e eu com uma privacidade que há muito nos
importunava.
A ruiva se levantou, batendo as mãos no traseiro para tirar a
areia do vestido.
— Acha que não tenho coragem? — Perguntou-me com olhos
faiscantes.
— Acho que devia procurar outra forma de se vingar.
— Essa o incomoda? — Quis saber, empolgada para me ver
confessar.
Simulei um sorriso.
— Não. Essa incomoda a você. Está claro para mim que esse
tipo de coisa não a deixa confortável.
Cerrou o cenho.
— O que o leva a pensar que não quero saber como Damon é?
Eliminei a distância de dois passos que estava entre nós e ergui
seu rosto pelo queixo, como de costume.
— Porque você ainda é minha, Maisie, de corpo e alma.
O fato de seu semblante ter ficado inteiramente perturbado foi a
garantia de que eu estava certo.
— Se acha que sou sua, Nicholas, então sentirá como é me
perder.
Demorei a entender sua insinuação, até vê-la se afastar e ir
embora. Maisie não ameaçaria em vão. Ela cumpriria sua promessa
e eu precisava me preparar para ela.
Tudo bem, garota, então vamos pisar em meu coração com suas
botas. Vamos me torturar até eu dizer chega.
Assim que Damon se livrou da indiana, ele retornou para perto
de mim.
— Ela acabou com o nosso sexo, não foi? — Me perguntou, se
referindo a indiana.
Semicerrei os olhos para ele.
— Disse seu nome verdadeiro?
Ele se abaixou para calçar as botas.
— Disse, Alastor. Disse.
— Disse porra nenhuma. Eu conheço você. Todo mundo tem um
preço, Damon, você por exemplo, não vale nada.
Ele passou a mão na parte frontal da bota para tirar a areia.
— Se eu não valesse nada, querido Alastor, eu já teria comido
sua garota.
— Claro. Não o fez por mim — ironizei.
Se levantou.
— Isso mesmo.
— Chega de mentiras por hoje. Me ajude a colher conchas
laranja. Acabei de ter uma ideia.
Ele levou as mãos na cintura.
— Diga que você está brincando!? Ficou obcecado nessa merda
agora?
Revirei os olhos e dei as costas para ele.
— Verei se Luiza acordou e espero que quando eu voltar, você
já esteja com as mãos cheias.
— Quer saber de uma coisa, Alastor? Na próxima vez que eu
me encontrar com a ruiva, eu vou enfiar minha língua na boca dela e
tirarei fotos para te enviar no cartão de Natal! — Ele gritou, cheio de
raiva por receber outra ordem minha.
O que fiz, foi cair na gargalhada.
No caminho para o quarto de hotel trombei com Maisie na
feirinha. Os olhos fixos no chão, as mãos segurando o cabelo atrás
das orelhas. As pessoas passavam por ela e a olhavam com
estranheza. Não era de se espantar, a garota agia de forma suspeita.
— Maisie?
— Não estou com tempo para discutir, Nicholas! — Rebateu
sem se virar para mim.
— Estou de acordo. Mas será que pode me dizer o que está
procurando? — A segui.
— Diabhal.
— Está procurando o diabo?
Fez cara feia para mim.
— Eu perdi a droga da chave que roubei do grego — explicou,
sem paciência.
— Roubando outra vez?
Mais uma careta.
— Por culpa sua. Escapei para falar com você.
— Se escapou para falar comigo, por que a encontrei com
Damon?
Ela endireitou os ombros que estavam curvados e ergueu o
queixo. Eu adorava seu jeitinho atrevido.
— Acabei trombando com ele na barraquinha de pães, ele me
comprou alguns e quando vi já o acompanhava numa caminhad...
Por que estou perdendo tempo lhe dando satisfações? Eu preciso
encontrar a droga da chave antes que os gregos sintam a minha
falta.
Engoli meu sorriso de satisfação. Quanto mais Maisie tentava
disfarçar que ainda sentia algo por mim, mais ela se entregava.
— Esqueça a chave. Venha, eu dou um jeito de colocá-la lá
dentro.
— Eu posso entrar sem sua ajuda. Obrigada. — Ficou na
defensiva.
— Vai procurar a chave até amanhã? Maisie, você está
atrapalhando a passagem das pessoas. Saia daí.
Ela não me deu ouvidos, nem ao receber um xingo de uma
transeunte.
— Como quiser. — A joguei em meus ombros como se pesasse
gramas. Recebi inúmeros tapas nas costas enquanto a carregava.
— Me ponha no chão. — Reclamou e me deu uma mordida no
pescoço. Tão forte que me arrancou um grito.
— Se quer se comportar como uma menina birrenta, então a
tratarei feito uma!
— Todos que recusam sua ajuda são birrentos, então?
— Apenas quando não aceitam a minha ajuda por estarem
zangados comigo. Aii. Canalha. Você me mordeu mesmo.
Minha veia do pescoço pulsou e o local que recebera sua
dentada doía e ardia.
— Farei pior se não me largar! — Atentou, sedenta.
Dei um tapa na sua bunda, a levando a um berro de ceticismo.
— Quer ganhar outro tapa? Garanto que também sei ser
maldoso.
As pessoas à nossa volta nos olhavam em choque. Não dei
créditos a elas porque meu real problema eu carregava em meus
braços naquele momento.
A desgraçada me deu outra mordida, mais intensa que a anterior
e me arrancou lágrimas. Aqueles dentinhos de morcego certamente
haviam marcado a minha pele.
Não revidei.
Apressei os passos até o chalezinho e ao chegar, olhei pela
redondeza para ter certeza de que nenhum grego dera sua falta e só
a coloquei no chão quando considerei seguro.
A peguei pelos cabelos.
— Me morda agora, se tiver coragem, canalha — reptei.
— O estrago que deixei já foi grande — respondeu, destemida.
— Tem sorte por eu amá-la.
Ela sorriu.
A soltei assim que meus nervos se acalmaram.
— Jailson está dormindo naquele quarto. Se me ajudar a subir
nos telhados, eu consigo entrar. — Maisie falou e apontou para a
janela fechada. As luzes estavam apagadas.
Pensei que não precisasse da minha ajuda.
— Tem certeza de que é o quarto em que seu amigo está? —
Acautelei.
Assentiu.
— Menos perguntas e mais ação, Nicholas. Vamos, me erga! —
Apressou-me.
— Você devia ter vergonha de ser tão mandona, principalmente
depois de me deixar todo babado.
Abriu a boca em um “o” grande, explicitamente ultrajada.
— Você despeja algo muito mais denso dentro de mim e eu não
reclamo — disse, sem pudor algum.
— Eu me lembrava de você menos indecente — murmurei e me
agachei para que ela montasse em meus ombros.
Me deu um sorrisinho e tirou os calçados antes de subir em
mim. A levantei sem exigir absolutamente nada dos músculos, era
leve como uma folha. Ouvi quando agarrou nas telhas.
— Tenha cuidado — falei, preocupado, mas a garota era uma
maluca, subiu no telhado como um macaco sobe numa árvore.
Minha preocupação se mostrou totalmente sem fundamento.
— Me dê as botas — pediu, se equilibrando nas telhas.
Tive medo que um vento a derrubasse, era miúda demais.
Peguei suas botas e as entreguei.
— Tenha uma boa noite, Nicholas Coleman — sussurrou.
— É tudo o que tem para me dizer?
— É bem mais do que você merece depois de dar um tapa na
minha bunda — retrucou, igualmente baixo, e eu podia jurar pela
minha vida que ela engoliu uma risada.
— Qual dessas é sua janela? — Perguntei a ela.
Franziu o cenho, mas me respondeu apontando o dedo para a
janela ao lado da do quarto de Jailson.
— Deixe-a aberta. — Eu disse, sem dar qualquer explicação.
— Por que raios eu faria uma coisa dessas?
— Porque estou pedindo educadamente. — Dei um sorriso. —
Chame por Jailson. Eu ficarei aqui esperando — apressei-a,
gesticulando com a mão.
Ela foi até a janela e deu batidinhas delicadas para acordar o
homem. Levou um tempinho até o escocês surgir na penumbra do
quarto e deslizar o vidro. Seus olhos foram de Maisie para mim.
— Fugindo pra namorar, piuthar? — Perguntou, nada sutil.
— Claro que não. Não seja idiota! — Objetou, bruta.
— Admita, querida. — Joguei mais lenha na fogueira.
Eu podia apostar que ela rosnou para mim.
— Se não for embora agora eu juro que taco essa bota em você
— ameaçou sem se importar dos gregos nos ouvir.
Como eu queria evitar confusão, eu fui.
Abri a porta devagar para não acordar Luiza; nem me dera conta
no feixe de luz atravessando a soleira.
Com um bico que era possível ser medido com uma régua,
minha filha me aguardava sentada na cama. Ao seu lado, de braços
cruzados, Damon também parecia pronto para me atacar.
— Eu posso explicar. — Comecei a me defender. Eu realmente
deixara Damon colhendo conchas na praia com a promessa de que
voltaria. Luiza, no entanto, ficara dormindo após assistir televisão.
Procurei pelo relógio no quarto, já se passava das onze da noite. —
O que está fazendo acordada?
— É você quem nos deve satisfação aqui. — Damon respondeu
por ela.
— É, papai. — A danada concordou.
Nenhum dos dois parecia pronto para facilitar a situação para
mim.
— Eu precisei ajudar uma...amiga. — Fui breve. Se minha filha
não estivesse presente na conversa eu teria dado mais detalhes a
Damon.
O corvo se levantou.
— Por que você está parecendo um chocalho ambulante? —
Questionei, espantado com os sons que ele fazia a cada passo que
dava em direção ao banheiro.
Ele se virou, as grossas sobrancelhas marcando sua face. Foi
com as mãos nos bolsos da calça e os esvaziou. Incontáveis
conchas laranja caíram de lá, direto no tapete cinza do quarto.
— Espero que isso pague pelo que fiz mais cedo. — Arqueei as
sobrancelhas. Ele teve que ser mais especifico: — Sobre a indiana.
— É um bom começo.
Depois disso ele entrou no banheiro e se trancou.
Cruzei os braços e encarei minha filha bravinha na cama.
— Agora que não tem mais seu tio para defendê-la, vai me dizer
o que estava fazendo acordada até agora ou — me aproximei como
um leão que vai dar o bote — terei que torturá-la fazendo cócegas?
— AAAAAh, cócegas não, papai. Cócegas não — gritou,
desesperada e rindo, assim que avancei.
A brincadeira começou embaixo dos braços, depois, parti para
os pés. Ali sua sensibilidade era mais forte, eu sabia.
Luiza estava entre rir e fugir.
Aquela gargalhada. Por aquela gargalhada eu matava e morria.
Me tornava um Santo, ou o pior dos assassinos.
— Por fa...papaiiiii.
Fiz uma pausa para que se recuperasse. Seus olhos
lacrimejavam, mas os lábios deixavam à mostra os dentinhos
brancos de felicidade.
— O que estava fazendo acordada às onze horas da noite, Luiza
Coleman? A doninha só tem direito a uma tentativa de se explicar ou
será algemada e levada à delegacia. — Incorporei o policial
autoritário apenas porque ela gostava.
— Ouvi um barulho. — Esfregou os olhos para limpar as
lágrimas recém caídas.
— E de onde veio o barulho?
Deu de ombros.
— É possível que tenha sido o vento?
Ela confirmou com a cabeça, para o meu alívio. Caso contrário,
eu já teria ido bater na porta dos gregos.
— Quero ir pra casa. — Ela choramingou.
A puxei para meus braços e deitei sua cabeça em meu peito.
— Iremos logo, meu bem. Eu prometo.
Era madrugada quando fui despertada pelas rajadas de vento
atravessando a brechinha da janela que eu deixara aberta. Me virei
na cama, em busca de uma posição confortável, uma posição que
me fizesse esquecer que havia inimigos por toda parte naquela
droga de chalé.
Por sorte, os gregos não se deram conta da minha fuga, então
consegui deixar o quarto de Jailson e ir para o meu sem qualquer
problema. Eu quis visitar Gael e saber se estava bem, mas meu
outro amigo escocês me fez mudar de ideia ao dizer que eu também
seria amarrada se tentasse algo. Em todo caso, Gael merecia uma
punição por me trair e me prender no barco. Pensar que ele estava
sofrendo um terço do que sofri me ajudou a encontrar algum conforto
no colchão duro.
Uma nova volta na cama e minha atenção foi fisgada pelo corpo
másculo parado próximo à janela como um bandido. Meu coração
quase saiu pela boca. Me sentei, tateando no escuro em busca do
abajur.
A claridade me fez ver o obscuro. Um homem feito de gelo que
queimava e ardia.
— Está tentando me matar do coração? — Reclamei em um
cochicho.
Seu sorriso fez carícias no meu interior.
— Você deixou a janela aberta como eu pedi. Não diga que está
surpresa por me ver. — A voz de Nick exalava poder, dominação.
Era o timbre de alguém que adorava me ver sedenta por seu toque.
— A janela aberta é porque estou com calor — disse,
dissimulada e retraí assim que ele se aproximou em passos seguros.
— Impossível sentir calor na Escócia, chick. — Outro sorriso de
abrir um buraco no chão e me enterrar viva. Eu fracassei ao tentar
fingir que não fui atingida por ele, por seus olhos que me despiam
severamente.
— Pois eu sinto. — Agarrei o cobertor e recuperei a voz: — O
que está fazendo aqui?
Ele passou a mão por minha perna sob a coberta, percorreu até
o joelho e parou. Engoli em seco.
— E como eu poderia dormir sabendo que você não está
segura? — Me encarou, abatido.
— Eu estou segura, Nicholas. Na verdade, eu dormia feito um
bebê. — Menti descaradamente. Ele certamente presenciara o meu
virar de um lado para o outro como se dormisse em um formigueiro.
Me deu um sorriso covarde.
— Não me deixe interromper seus sonhos. Prometo que será
como se eu não estivesse aqui. — Deu outros dois passos, até me
permitir sentir o frescor da sua pele. Ele tinha cheiro de chuva, mas
não de uma chuva qualquer. Era daquelas que você jogava a cabeça
para trás e permitia-se ser molhada. Uma garoa agressiva e
refrescante.
— Se os gregos o pegarem aqui você não conseguirá sair —
falei, um pouco apavorada pela ideia. Como ele não disse nada e
não esboçou qualquer reação, resolvi perguntar: — O que você e
Damon decidiram sobre Érebos?
Ele deixou um suspiro tão baixo escapar, que cheguei a
acreditar que fora alucinação minha.
— Tentaremos uma contraproposta para ganhar tempo.
Ofereceremos o pen drive, já que ele não serve de nada para nós
agora.
Ele sentou-se na beirada da cama.
— Um dos homens bateu em Luíza, não acho que tenha sido
nada grave, mas não posso perdoá-lo, tampouco trabalhar com ele.
E há Athos também, eu prometi a cabeça dele para você. — Me
olhou severo. — Eu a entregarei nem que seja a última coisa que eu
faça.
Minha boca ficou seca.
— Ele me cegou — confessei em um sussurro mais baixo que o
vento golpeando a janela.
— O quê!?
A pergunta me fez erguer o queixo para ele. Por que eu
admitira? Queria magoá-lo? Queria fazê-lo sentir minha dor? Algo na
forma como falou sobre sua vingança em meu nome me fez querer
castigá-lo. Eu queria que Nicholas visse o porquê de sua mentira ter
me afetado tanto. Não era uma birra minha.
Apontei para o olho esquerdo, opaco e sem vida.
— Athos bateu minha cabeça no chão algumas vezes, com
força. Eu não entendo de medicina, pouco acredito nela, mas certa
vez li em um livro que coisas assim podem acontecer dependendo
da força da pancada. Eu pensei que seria passageira, só...
Ele se levantou, endiabrado e subiu no parapeito da janela,
— Nicholas, aonde está indo? — Perguntei, aflita. Joguei o
cobertor pro lado e saltei da cama.
— Matar Athos — retrucou, áspero. Sua respiração era
acelerada, os lábios brancos e os olhos refletiam o pior da sua alma,
o seu eu impiedoso e feroz.
— Ele...está aqui? — Segurei seu pulso.
Por estar em contato com ele, pude sentir seus batimentos
cardíacos velozes.
— Não, mas irei buscá-lo. O trarei em pedaços, Maisie! —
Rosnou. Sua raiva não era direcionada a mim, talvez fosse por isso
que eu me sentia tão calma.
— Você não pode ir. Não agora. Não com sua filha precisando
de você. Comigo...precisando de você.
Me senti ricocheteada pela forma que me fitou. Ele olhou para o
meu olho esquerdo, como se procurasse sinais da cegueira apenas
para sofrer um pouco mais. Se a culpa fosse um copo cheio, Nick o
beberia até último gole, todo de uma vez. Se afogaria nele.
— Você não precisa da minha proteção; nunca precisou,
tampouco quer minha ajuda depois do que fiz. Agora entendo a
razão de não me perdoar. Eu não mereço mesmo. — A tristeza
sobressaltou-o. — Na verdade, Maisie. Eu não mereço você.
Dito isso, ele atravessou aquela janela como se fosse um
pássaro noturno. Eu não tive tempo de reação. Tudo que senti, foi o
vazio frio deixado por ele.
Pela manhã, durante o café, Nick foi nos visitar. Assim que
bateram à porta, eu pulei da cadeira, desajeitada. Ele nunca teve
cara de muitos amigos, só que naquela manhã em especial, em traje
escuro, Nick estava particularmente contido. Ele conversou algo com
os gregos, na nossa presença mesmo, pois sabia que Jailson, Gael e
eu não compreenderíamos absolutamente nada. E a empregada que
demonstrara ser nossa aliada, também não podia nos ajudar.
Os olhos azuis de Nick momento algum se voltaram para mim,
me ignoraram, fizeram eu me sentir invisível. Quis lançar uma
rosquinha na sua cabeça, mas fui detida por Jailson ao meu lado.
Fiquei preocupada quando os machos apertaram as mãos.
Aquilo só podia significar uma coisa e ela me aterrorizava.
Não. Tinha de haver outra explicação, Nick não podia estar
selando um acordo.
Sem ao menos um sorriso, um olhar, qualquer mínimo gesto, ele
atravessou a porta e se foi.
Gael foi desamarrado alguns minutos após a partida de Nick, o
que concretizou o que eu já pressentia. Passamos de inimigos para
aliados...talvez a palavra aliados não fosse a correta, mas foi
estranho dividir a mesa com os gregos. Antes de Nick e o beiçudo
tocarem as mãos, éramos vigiados enquanto comíamos. Agora, o
sujeito sentava-se na cadeira à minha frente e me passava a geleia.
Algo tinha acontecido e eu precisava descobrir o quê.
Esperei por outra visita de Nick pela tarde e também pela noite;
ela não aconteceu. Também notei a ausência de um dos gregos; ele
saíra após o café e não retornara.
— Pare com isso — resmungou Gael, com a mão em meu
joelho. Eu chacoalhava a perna incansavelmente e não me dera
conta até àquele momento.
Estávamos na varandinha, os três dividindo um banquinho de
madeira. Jailson quebrava uma noz nos dentes, enquanto Gael
costurava sua meia. Eu realmente não sabia onde ele conseguira a
agulha e linha.
— Não posso acreditar na calmaria de vocês. Esses homens
não são nossos amigos. — Diminuí o tom de voz para não alarmar
os gregos. — Bastou eles darem comida e conforto para se
esquecerem do que nos fizeram?
Se entreolharam. Jailson cuspiu a casca de noz e disse em
seguida:
— Não podemos deixar um caminho de sangue por onde
formos, piuthar.
— Não estou pedindo para matarmos. Só...quero descobrir o
que Nick e o outro lá conversaram. Quero saber o que estamos
esperando para irmos embora.
— Cacete! — Gemeu Gael. — Me fez furar o dedo. Para de se
chacoalhar, em nome de Odin. Tá parecendo uma carroça velha.
Me levantei abruptamente. Aquela tranquilidade toda não estava
me fazendo bem. Não depois de repassar várias e várias vezes o
que Nicholas me dissera na madrugada, que não me merecia. Mas,
o culpado pelo meu desespero fora o timbre que escolheu para
aquelas palavras. Timbre que as pessoas costumavam usar em
despedidas.
— Aonde está indo? — Jailson quis saber quando desci os
degraus da escadinha. — Não sabemos se podemos sair.
— Só há uma forma de descobrir, bráthair. — Ergui a barra do
vestido esmeralda que aparecera misteriosamente na minha porta
pela tarde. Era a coisa mais quente que eu usara há dias. Ainda
estava com cheiro de novo quando o coloquei.
— Iremos com você — anunciou Jailson engolindo sua noz toda
de uma só vez. Gael largou a agulha e linha e quase caiu para calçar
a bota após vestir a meia.
Um desconforto no coração me pegou de jeito durante o
percurso até o hotel em que Nick e Damon estavam hospedados.
— Não nos seguiram até agora — reparou Gael, se referindo
aos gregos. Ainda não sabíamos até que ponto ia nossa liberdade.
Não tentaram nos impedir quando decidimos ir até a varanda ou
quando Jailson pegou uma faca para descascar sua laranja.
— Talvez não tenham visto — ponderou Jailson. — Devíamos
aproveitar e dar o fora da ilha.
Me abaixei para não ter o rosto ferido por um galho.
— Não adianta irmos embora sem saber o que está
acontecendo. Não percebem que esses caras irão atrás de nós em
qualquer lugar? Esqueça, fugir nunca é uma opção.
Os deixei mudo. Não. Não fui eu quem os calou.
Um festival acontecia naquela noite. Homens vestidos com os
trajes mais épicos possíveis marchavam com tochas e seguiam para
a direção oposta à nossa. Era uma multidão viking em um show de
luzes.
— Não acredito. Estou mesmo presenciando um up Helly Aa? —
Animou-se Gael.
A chama refletia em seus olhos. Era realmente lindo de ver
tantas pessoas celebrando a herança viking, contando em forma de
festival toda a história do nosso país.
Não demorou para que meus dois amigos escoceses se
envolvessem na marcha como cães alucinados por um osso. Eles
seguiram a fila que se dirigia para a praia. Eu não pude conter o
sorriso que nasceu em meus lábios. Aqueles dois ansiavam por uma
celebração daquelas desde que eu os conhecera por gente.
Ouvíamos muitos relatos sobre o up Helly Aa, mas jamais estivemos
tão perto de um.
O edifício em que Nick estava ficava do outro lado. A única
forma de chegar até lá, era por meio da multidão, no entanto, era fato
que eu seria carregada assim que botasse os pés na rua.
— VEEEEM, RUIVINHAAAA. — Gael me gritou de algum lugar.
Sem ter outra opção, peguei uma tocha que me foi entregue e
marchei rumo à orla da praia.
Além da tocha, também ganhei um escudo que mal conseguia
carregar. Era feito de madeira e ferro. Minha condição física não
estava nada pronta para aquilo e o vestido longo pouco colaborava.
Entreguei o escudo para outro escocês que passou por mim e me
contentei apenas em carregar a tocha acesa.
A fila se envolveu em torno de um navio aportado. Fizemos uma
roda e erguemos nossa chama o mais alto que conseguíamos.
Crianças no estilo vikings — de colete, capacete, botas e luvas
— ficavam na frente, segurando as bandeiras da Escócia. Foi nesse
momento que vi Luiza. A criança se destacava por sua roupa
comum, embora sua alegria iluminasse muito além daquele fogo.
Logo atrás dela estava Nick, com sorriso de orelha a orelha. E
meu coração atropelou a lógica do cérebro. Dei um passo à frente e
atraí a atenção de todos. Meus olhos e os de Nick se cruzaram, mas
ele não se moveu. Parecia empedrado. Recuei no mesmo minuto.
Os que sabiam como funcionava o festival cantaram uma
música. Os outros, assim como eu, apenas observavam em silêncio
com a tocha erguida. Vez ou outra eu olhava para Nick à minha
frente, do outro lado, mas ele não correspondia. Me perguntei
diversas vezes que diabos eu fizera, até chegar à conclusão de que
não fizera nada de errado para receber tamanha frieza.
De súbito, fui empurrada com violência. Não tinha me dado
conta de que todos se dirigiam ao navio e jogavam sua tocha dentro
dele. Não questionei a atitude, apenas copiei.
O navio com cabeça de dragão ficou em chamas e gritos de
comemoração foram disparados por todos. Aplausos, abraços e
sorrisos distribuídos.
— Queria poder gravar sua expressão nesse exato momento —
cochichou ao pé do meu ouvido.
Fechei o punho, controlando o impulso de me virar para ele.
— Pensei que estivesse me ignorando — respondi, atrevida.
Sem tirar os olhos do navio se deflagrando.
— Estava. Mas quando a vi tão linda, não pude me conter.
Meus olhos encontraram os seus. Eu não saberia dizer qual
cortava mais.
— Onde está sua filha? — Perguntei quando não vi a criança à
sua volta.
— Com Damon. Curiosamente ela se dá bem com ele e ele
parece gostar disso.
Me abracei e tornei a assistir a festividade. Não queria dar o
assunto por encerrado, como também não queria demonstrar
interesse demais.
— Você foi no chalé hoje. — Joguei no ar e esperei que
compreendesse onde eu queria chegar com aquilo.
— Não quero falar sobre isso. Não hoje. — Foi como se tivesse
implorado. — Olhe para essas pessoas, elas estão felizes. Quero me
sentir assim também.
Empurrei a curiosidade para um canto e a deixei juntar pó. Eu
podia esperar até a manhã seguinte. Assim como Nick: eu queria ser
feliz naquela noite.
— Bem, então por que não me diz como veio parar nessa
marcha? — Mudei de assunto.
Ele relaxou os ombros.
— Luiza gosta de multidão, de festas. Me deixei ser convencido
e a trouxe. E você?
Saí para procurá-lo.
— Gael e Jailson são como Luiza — brinquei e o fiz rir.
Foi a risada mais sincera e adorável que ele já me dera.
— Maisie...
— O vestido. — O cortei, não propositalmente — Foi você?
Ele me avaliou dos pés à cabeça. Foi como se me lambesse
com os olhos.
— Vejo que serviu. — A resposta me bastou.
— Não precisava.
— Você estava gelada noite passada. Se continuasse tão
malvestida ficaria doente.
— Estou acostumada com o vento da Escócia, Nick. — Gui
gentil. Por um instante foi como se a barreira que estava entre nós,
tivesse ruído. O apelido carinhoso fez seus olhos de deuses se
voltarem para mim.
As ondas quebravam atrás de nós.
— Preciso ir — desconversou, amargo.
— Fique. — O pedido escorregou por minhas rachaduras,
revelando o desejo da minha alma. — Quando terá outra
oportunidade de assistir a um Up Helly Aa?
— Então é assim que isso se chama? — Me olhou, interessado.
— Que escocês é você, Nicholas Coleman? — Perguntei,
descontraída e o cutuquei com o ombro.
— Alguém que só nasceu na Escócia — devolveu. — Aquilo ali
é seu amigo, não é?
Segui a direção do seu dedo até um ruivo dançando descalço na
areia ao som de uma música escocesa.
— Pelos deuses, já estão embriagados — falei, ao desviar o
olhar até o pançudo com uma garrafa na mão.
— Algumas pessoas sabem se divertir, querida. — Nick disse
com ar atrevido.
O olhei de esguelha e cruzei os braços com mais afinco.
— Está insinuando que não sei me divertir?
— Ah, não. Eu teria que ser um tolo para dizer algo assim
quando a senhorita se diverte muito às minhas custas.
— Agora vejo que o careta aqui é você. Olhe ali, até Damon está
se divertindo enquanto você está com o modo Alastor ativado.
Franziu a testa de modo engraçado.
— Estou com o quê ativado?
— Modo Alastor. — Esperou que eu continuasse. — É quando
você veste essa postura rígida. Tenho impressão que até seus olhos
ficam um tom mais escuros. É como se você estivesse esperando
algo ruim acontecer e estivesse preparado para isso.
— Algo ruim já aconteceu, Maisie — disse, áspero.
Engoli em seco e me retraí.
— Concordamos que hoje seria uma noite feliz.
— E é. Veja como estou sorridente — respondeu, sério. E me
estendeu a mão. — Venha, dance comigo.
Neguei com a cabeça.
— Você não vai querer fazer isso. Eu sou quadrada dançando.
Ele não recolheu a mão.
— Eu gosto de pessoas quadradas.
— É sério, Nicholas. Você não vai gostar de mim. — Me afastei
mais uma vez.
Me fitou. Eu nunca superaria a maneira que ele me olhava nos
olhos, estava muito longe da compreensão humana.
— Não, Maisie. Você eu amo. Permitir que pise em meus pés
será apenas uma prova disso.
Fitei-o em silêncio, desprovida de recusas, derretida como
sorvete. Peguei em sua mão gélida e deixei que Nick me levasse até
o centro da festa.
Não era uma dança muito estruturada, cada um se remexia à
sua maneira. Mas Damon, Luiza e meus amigos, se destacavam. Foi
uma surpresa quando viram Nick e eu nos aproximarmos.
Alguém pegou na minha outra mão e quando vi, já formávamos
uma ciranda. Gargalhamos até a barriga doer da performance de
Gael. Provavelmente ele nem se dera conta de que se sacodia mais
que as próprias moças ao redor.
Jailson foi o primeiro a ir pro chão, a embriaguez o fez desistir.
Em seguida, Gael também se foi. Sobrando Damon, Luiza, Nick e eu.
Em algum momento em meio a ciranda fui parar nos braços do
corvo, em uma aproximação perigosa.
— Não o deixe fazer isso. Ele vai se arrepender — disse, me
deixando confusa.
Damon me girou e puxou de novo em seguida.
— Do que está falando? — Aproveitei a oportunidade para
perguntar.
A música mudou, partindo para algo bem mais alegre que aquilo
que Damon e eu dançávamos. Se ele me puxasse para seu peito,
Nick certamente desconfiaria que o sujeito dera com a língua nos
dentes e o esmurraria até o amanhecer. O corvo provavelmente
pensara o mesmo que eu e me soltou.
Meu estado de júbilo foi embora com metade dos vikings. Não
achei por momento algum que aquelas pessoas estivessem indo
dormir, provavelmente continuariam a festa em algum bar. Gael e
Jailson aproveitaram a oportunidade e foram junto. Os traseiros
cheios de areia e os pés descalços repuxaram meus lábios em um
sorriso, até sumirem da minha vista.
Quando voltei a atenção para Damon, vi que ele colocara a filha
de Nick nas costas, e me lançou um olhar fulminante antes de correr
com a garota no cavalinho. Eu o compreendi. Ele queria que eu
tivesse privacidade com Nicholas para extrair informações. Pois bem,
eu o pressionaria até sair sangue dos seus olhos, se fosse preciso.
Me aproximei de Nick e o peguei pelo colarinho como o vira
fazer com Damon diversas vezes, certa de que minha musculatura
não botaria um fio de medo em alguém, mas não me importei.
Erguida na pontinha dos pés, o obriguei a me encarar.
— O que está tentando fazer, Maisie? — Nick perguntou,
incrédulo.
— Estou prestes a enforcá-lo se não me disser seus planos. —
Fui exigente.
Seu olhar era sólido. Lindo, porém, vazio.
— Já disse que não quero falar sobre isso hoje...
— Não me importo com o que quer. Você está com alguma ideia
estúpida...
— Como pode amar alguém como eu? — Ele explodiu,
rachando a minha alma.
Meus dedos perderam a força.
— O quê?
Seus olhos encheram-se de lágrimas, mas algo dentro de Nick
as impedia de cair.
— Perguntei — respirou fundo — como alguém como você pode
amar alguém tão falho como eu.
Fiquei mais quieta que o fundo do mar. Eu sabia porque o
amava, sempre esteve claro para mim, contudo, quando ele me
perguntou, não encontrei as palavras corretas. Fosse pela mágoa,
pelo momento inoportuno, só que a voz não saiu.
— Você mesma não sabe — balbuciou, embargado pelo choro.
Nick aproveitou meu momento de vulnerabilidade e afastou
minhas mãos. As gotas salgadas que antes ele aprisionava, caíram
todas de uma vez; e tentou disfarçar. Eu nunca, nunca, nunca o vira
chorar. Para mim, homens como Nicholas jamais choravam. Não era
do seu feitio despir a alma.
Me deu as costas e se preparou para ir.
O mais depressa possível, falei:
— Porque você pagou por meus pães. Porque me comparou à
alvorada, conversou com as minhas sardas e disse que elas eram
lindas. Você adotou uma criança que estava à beira da morte e
salvou empregadas gregas. Partindo do princípio, Nicholas Coleman,
o amo por ter coração E por ele ser tão lindo.
Ele não voltou para me erguer em seus braços e roubar todo
meu ar com um ardente beijo. Nada disso. O macho de olhos
brilhantes banhados em lágrimas, assentiu por cima do ombro e foi
embora em silêncio.
— Tome. — Fui despertada por uma voz masculina e por algo
que caiu no colchão.
Pisquei algumas vezes para me adaptar à luz do dia permeando
pelas janelas abertas. Nick revirava as gavetas do criado-mudo ao
lado da minha cama. Não questionei como entrara ali, pois ele já se
mostrara um ótimo invasor.
— Uma arma? Onde arrumou isso? — Questionei, pasmada ao
ver o objeto perigoso ao meu lado.
— Os gregos me deram. Acha que conseguirá usar, mesmo com
o... você sabe.
O olho cego.
— Por que os gregos lhe deram uma arma? — Retruquei, sem
me dar ao trabalho de respondê-lo. Na verdade, eu mesma não
sabia a resposta.
— Porque eu pedi.
Me levantei sem me importar com a camisola transparente ou
com meus seios enrijecidos. Por que raios estão enrijecidos?
Nick interrompeu sua busca nas gavetas e subiu com os olhos
por meu corpo sem ao menos disfarçar o quanto gostou do que viu.
Aí está o motivo dos arrepios.
— Me dirá o que está acontecendo ou terei de perguntar a
Damon como sempre?
Ele suspirou.
— Eu e você faremos uma viagem.
— Como é?
A parede de músculos bronzeados pelo sol da Grécia se ergueu.
— Irei atrás de Athos e quero que você venha comigo.
— Iremos caçá-lo? — Quis entender.
Me deu um quase sorriso.
— Não. Eu sei exatamente onde ele está. E entenderei se não
quiser vir.
— Eu quero — falei rápido. — Por que isso agora? Por que está
chamando a mim e não a Damon?
— Porque ele a feriu e todos que Athos toca, ficam marcados
para sempre. Não quero que o mesmo aconteça a você, quero que
decida o que faremos com ele para que ele nunca mais a faça se
sentir menos corajosa. — Amansou a voz. — E também porque você
é muito mais bonita que Damon.
Senti borboletas na barriga.
— Como iremos?
— Com o barco dos gregos.
Fiquei tão animada por ter sido incluída nos planos de Nick, que
quase deixei passar o ponto principal de tudo aquilo.
— O que ofereceu aos inimigos em troca?
Ele trincou o maxilar.
— Nicholas...Você não pode.
— Eles nunca nos deixarão em paz, Maisie. Uma vez na mira
deles, para sempre na mira deles. Não suportarei se outro ferir você
ou a Luli. — Estava desesperado, angustiado, perdido.
— É nossa única saída? — Me surpreendi com a minha
tranquilidade.
— Não é uma saída, é uma rendição.
Encarei meus pés descalços. Ele estava trocando sua liberdade
em nome da vingança que me prometera?
— Lidamos primeiro com Athos. Depois com os outros. — Ergui
as pálpebras para seus azul-celeste. — Você não será o bichinho
dos gregos por minha culpa, Nicholas.
— Não é só por você. Não se culpe. Eu sempre quis me vingar
de Athos. Ele feri-la foi só um lembrete do quanto anseio por isso.
Não era verdade. Que ele o odiava, não havia dúvidas. Mas o
que Athos fizera comigo apagou o policial que conheci há meses,
deixando apenas rastros do homem que ele costumava ser. O que
Athos fizera comigo trouxera Alastor para a liderança, colocando
Nicholas Coleman na sombra.
— Noite passada Damon me pediu para não o deixar fazer isso,
que você se arrependeria — comentei, querendo que completasse
as lacunas.
— Ele não queria que eu fosse atrás de Athos sem falar com
você. Mas não foi por causa dele que tomei a decisão de vir aqui, foi
porque percebi que alguém como eu, precisa desesperadamente de
alguém como você. Foi porque percebi que respirar sem você não
faz mais sentido.
Engoli com dificuldade. Meu coração bateu de outro jeito, numa
batida desritmada.
— Não quero que me perdoe, Maisie. Não tem perdão para o
que fiz. Eu mereço a cor e a força mais bruta do seu ódio. E se no
fim de tudo isso você quiser pegar suas coisas e ir embora, eu não
me atreverei em pedir para que fique.
Prendi o ar e soltei em seguida.
— Você é o único que sabe sobre minha cegueira. Eu não
compartilhei porque confio em você e sim porque queria vê-lo sofrer.
Eu queria que isso te atingisse com a mesma intensidade que sua
traição me atingiu.
Ele só me olhou, carregando trovões no peito, até alguém bater
à porta e Jailson entrar.
— Damon pediu pra dizer que um dos gregos disse que o barco
está pronto.
Nenhum de nós falou nada. Havia muito a ser dito, mas nossos
olhos disseram mais do que nossos lábios jamais conseguiriam.

Nick, eu e nosso amigo silêncio estávamos em alto mar quando


o céu se tornou laranja como eu ou vermelho como a ira de Alastor.
Abri e fechei a boca, sem saber como derreter aquele gelo entre nós.
Éramos duas rosas cheias de espinhos, mas desesperadas por
amor.
Era indubitável que ele me odiava por ter sido tão insensível
mais cedo, porém, o mais curioso de tudo, era que ele continuava
demonstrando seu amor. Ele me cobriu quando a ventania se tornou
mais rígida. Quando fez chá, me ofereceu uma xícara. Mas, ali,
sentado ao meu lado, enquanto a vela do barco nos levava ao nosso
destino, seus olhos não conseguiam me encarar.
Quando meu joelho, acidentalmente, encontrou o de Nick, eu
não tirei. Queria senti-lo por um pequeno instante. No entanto, para a
minha tragédia, a noite trouxe consigo a chuva e Nicholas se retirou.
Sozinha, ergui o rosto para o céu noturno e deixei que as gotas
intrusas me molhassem por alguns minutinhos, vivendo um faz de
conta, antes de entrar na cabine.
Eu não sabia que Nick entrara ali também, até me senti
envergonhada quando o vi. Eu parecia um pintinho com frio, os
cabelos grudados no rosto e água até pelos cílios.
Sem dizer uma única palavra, Nick eliminou toda distância
preexistente entre nós. Se inclinou e mais um pouco, até que o
primeiro milímetro do seu corpo tocasse no meu.
— Você tem cheiro de neve que cai — balbuciou. Fechei os
olhos quando senti sua língua em minha bochecha, em uma gota de
chuva que escorria. — Por que somos tão cruéis um com o outro? —
O ouvi dizer bem baixinho no meu ouvido, caçando gotas com a
língua. De baixo para cima. Fiquei imóvel e me deixei ser bebida pelo
macho cheio de sede. — Olhe para mim, garota e termine de me
matar.
Me faltou ar para sua ordem direta. Era uma covardia o que ele
fazia comigo, me obrigar a olhar para aquele rosto e esperar que eu
tivesse o mesmo autocontrole.
Ao erguer as pálpebras, vi que já me observava. Era tanto
desejo, que o senti em minhas veias e tentar contê-lo doeu como um
inferno.
— Porque não somos bons juntos, mas somos piores separados
— respondi à sua pergunta e sorri, mesmo com vontade de morrer.
— Porque nada me faz mais feliz ou me deixa mais triste, do que
você.
Fiz um voo noturno através dos seus olhos, dancei na sua
tempestade. Eu nunca estive tão alto, tão perto de me quebrar com
uma simples queda, mas nada me assustava quando eu estava em
chamas.
— Me desculpe por destruir seu coração — murmurou.
Respirei o seu cheiro fresco em doses homeopáticas. Seu corpo
era um abismo que eu queria me jogar.
— Me desculpe por destruir o seu também — respondi.
Recebi um olhar letal que me matou aos poucos.
— Me ensine a lidar com você...por favor, Maisie. Me ensine a
ser digno do seu amor. Se disser que não valho a pena, eu não
insistirei. Mas se achar que mereço outra chance, então sou capaz
de destruir o Mundo para tê-la.
— Não preciso que destrua o Universo, mas também não me
destrua — balbuciei e busquei uma distância segura para acalmar os
pássaros que voavam na minha barriga. — Antes de tudo, preciso
que seja sincero comigo. Por que...por que escolheu Damon e não a
mim?
Seus olhos se acenderam como fósforos, exóticos, e me
hipnotizaram.
— Porque eu queria salvá-la, acima de tudo, de mim. Porque me
amar é perigoso. Eu não sou eu mesmo quando os que amo estão
em perigo, eu tenho tendência de me tornar agressivo. Não a levei
comigo porque eu fui com a intenção de matar e tive medo de que
me visse em ação e que percebesse o quanto gosto disso...O quanto
gosto de derramar o sangue daqueles que machucam os que amo.
— Ele engasgou e não ergueu o olhar para mim novamente. Estava
fraco como eu nunca vira. — Tive medo de perdê-la, Maisie. De não
ter mais seus sorrisos para mim quando visse meu verdadeiro “eu”.
Achei que tivesse acabado, mas ele só estava tomando fôlego.
— Antes de você chegar eu não era um bom pai. Eu não podia
dar amor a outro se eu não amava nem a mim mesmo. E-eu não
sabia como amar minha filha. Mas, desde que a vi pela primeira vez,
comendo aqueles pães como se fossem os mais deliciosos do
Mundo, eu senti inveja da sua alegria por algo tão bobo, eu senti
toda a sua luz me queimar por dentro e por fora. Eu quis sentir isso
também..., mas tudo era vazio e sem graça dentro de mim. Você me
apresentou a luz, Maisie, e eu só pude retribuir com escuridão.
— Eu também matei pessoas — falei, em um fio de voz e tive
novamente seus olhos em mim. O que ele dizia estava bagunçando
a minha cabeça.
— E isso a consumiu. Muito diferente do que acontece comigo.
Eu gosto. Minto que não, mas só eu sei como gosto — enfatizou.
Foi minha vez de encarar os pés.
— Não sei mais viver sem você, eu posso aprender, mas não
quero. — Ele disse para completar, costurando meu coração. O
recriando, talvez.
— Eu...preciso...de um tempo. — Se Nick estava despindo a
alma sem receio algum, eu retribuiria. — Ridiculamente não consigo
pensar direito quando você está por perto.
Ele não tentou me segurar quando atravessei a porta.

Nick me estendeu a mão de modo cavalheiro para me ajudar a


desembarcar. Pensei muito antes de aceitar tocá-lo e sentir a
eletricidade de sempre.
Já tinha escurecido quando chegamos em Vult e já tinha parado
de chover. Não trocamos nenhuma palavra após a profunda
conversa que tivemos, como dois desconhecidos; ele ligeiramente
estava me dando o espaço que eu pedira. Eu não sabia se meu
coração o perdoava, minha cabeça estava cheia demais para que eu
pudesse separar cada sentimento e decidir por qual deles valia a
pena lutar.
A priori, eu só queria me vingar de Athos. O resto podia esperar.
— Está tensa. Tudo bem? — Nicholas não me fitou ao fazer a
indagação.
Eu ainda não entendia como ele fazia aquilo. Era como se
partilhássemos o mesmo corpo. Sabia que nossa ligação era forte,
beirando o imaginário, no entanto, não deixava de me surpreender.
— Não vejo a casa — falei, optando em não o responder. Não
estava ignorando a preocupação, só não sabia o que devia ser dito.
É claro que eu estava tensa e sem dúvida não estava nada bem,
mas confessar tudo isso nos tomaria muito tempo. Aquela era a
minha chance de provar que eu podia ser sua aliada tanto quanto
qualquer outro macho.
Ele guardou seu revólver no cós da calça. Por estar de vestido,
não pude fazer o mesmo. Mantive minha arma na mão.
— Fica do outro lado da montanha. Faremos o caminho
andando. O barco chamaria muita atenção — explicou. Seu tom de
voz deixava evidente que ele queria dizer muito além daquilo, mas se
conteve.
O segui mata adentro. Era a floresta mais fechada que eu já
botara meus pés. A Lua quase não brilhava naquele ponto, e mesmo
com lanternas, seria um desafio percorrer um caminho tão longo com
um olho só.
— Você e Damon fizeram esse caminho quando vieram?
— Não. Pousamos naquele pico ali. — Apontou com sua
lanterna para a direita. Eu não vi absolutamente nada. — Estávamos
em uma aeronave, qualquer um que olhasse pro céu nos veria
chegar. Não tínhamos um elemento surpresa.
Tropecei numa raiz, mas consegui recuperar o equilíbrio antes
de cair.
— Deixe-me adivinhar, somos um elemento surpresa agora?
— Meu elemento surpresa é você. Athos sabe que estou indo
até ele, eu ter prometido tantas vezes que o mataria certamente o
fizera acreditar. Até fiquei sabendo que ele contratou alguns
capangas.
Dei uma coçadinha no nariz.
— O que acontecerá depois que o matarmos? — Perguntei com
cuidado.
A pergunta roubou a velocidade das suas pernas.
— Dormirei em uma cama de dinheiro — brincou. Eu não ri. —
Em que sentido?
— Bem, você e Damon liderarão Érebos. Isso significa que
precisarão morar na Grécia. — Fingi que a ideia de ter oceanos nos
separando não me afetava. Só eu sabia como perguntar aquilo me
destruiu por dentro.
Ele andou alguns passos antes de responder.
— Ainda não pude me decidir sobre isso.
— Por que? — Me esquivei de um galho. Depois, outro.
— Porque preciso fazer coisas importantes antes. Aqui na
Escócia eu ainda sou um policial de férias. Tenho amigos, uma vida.
E eu.
— E você — acrescentou, me sobressaltando. Eu não dissera
em voz alta, tinha certeza que não.
— Não me deixe ser uma pedra no seu sapato — falei, modesta.
Engoli a satisfação de ter sido incluída em seus projetos. — Você fez
parecer que ficaria se eu pedisse.
Ele se virou, sua lanterna quase me deixou cega dos dois olhos.
— Então fiz parecer certo. — Deu novamente a impressão de
que tinha mais coisas para dizer, mas ficou quieto.
— Olhe, um vaga-lume — falei, empolgada, apontando para o
inseto iluminado. — Quando eu era criança sempre tinha um vidro
cheio deles. Passava horas contando histórias de aventura como se
pudessem me ouvir. Contava até vê-los se apagar.
Nick me seguiu até o bicho sobrevoando.
— Que criança maldosa você era — zombou.
Me ajoelhei diante o inseto e o capturei com delicadeza, sem me
importar em tudo que eu deixara cair durante o processo.
— Eu sei. Mas era minha única diversão — murmurei. De
repente, ele soube de toda minha história. — Eu não tinha
brinquedos e meu pai não me deixou brincar fora de casa até uma
certa idade. Ele dizia que as pessoas de Kerrera não gostavam de
mim, que me olhariam torto. Eu o obedecia pela manhã, mas
escapava de noite para caçar vaga-lumes.
— Como alguém poderia não gostar de você? — Demonstrou
indignação, cólera até.
Desviei o olhar do inseto luminoso para olhos que brilhavam
muito mais.
— Era mentira. Era só um jeito de me amedrontar para que eu o
obedecesse. Meus pais eram problemáticos. Eles queriam um filho
homem para ajudar nos serviços braçais, mas fui eu que os deuses
lhes deram. Um castigo sem tamanho, obviamente.
— Seus pais ainda são vivos?
— Sim.
— Então nunca os apresente a mim se quiser que continuem —
rangeu os dentes.
Deixei que o vaga-lume voasse e recolhi a arma e lanterna que
deixei cair.
— Eu não os odeio, sabe. Só não sinto nada. São como
desconhecidos para mim — confessei. Foi como descarregar uma
caixa cheia de sentimentos guardada em um esconderijo dentro de
mim. Eu nunca falara tão abertamente com alguém sobre minha
infância. — Eu não era maltratada, nada perto do que você passou.
Apenas me ignoravam. — Não era bem verdade. Antigamente eu
não entendia que a forma que me tratavam era sim maus-tratos. Mas
agora, já adulta, lembrar onde eu dormia, a comida que me davam,
as palavras estúpidas proferidas a uma criança...A coisa mais
saudável que fizeram por mim, foi me deixar ir.
Os demônios do desespero dançaram dentro de mim. Fiquei
parada, tentando digerir o que minha mente falava pro coração.
Havia dores demais nas lembranças.
— Maisie, seus pais são burros em não perceber a sorte que
deram em ter você. Você é muito. Você é tudo, não há incerteza
nisso... nenhuma. Eu me apaixonei por tudo que vi em você, por tudo
que ainda vejo. Por favor, veja e se apaixone também, você merece
isso. — Ele disse, trazendo leveza em uma situação profundamente
pesada e exaustiva, mesmo que contaminado de ódio.
Foi assim que eu soube que ainda o amava.
— Sabe de uma coisa? Os vaga-lumes que você sequestrou
quando criança deram uma baita sorte. Não imagino os tipos de
histórias que ouviam. Sem dúvida foram os insetos mais felizes e
aventureiros.
Soltei uma risada espontânea.
— Obrigada por salvar a minha infância. Eu também tenho algo
para você. — Apontei minha lanterna para a Lua que tentava uma
brechinha por entre os coqueiros. Nick seguiu com os olhos para a
direção apontada. — Alguns anos atrás a chuva regou uma criança
por dias e noites, e ela gostou tanto daquela criança que como
presente por sua companhia, deixou um pedaço do céu estrelado
dentro dos seus olhos.
Voltei a lanterna pro seu rosto a tempo de ver um sorriso singelo
nascer. Dois braços me envolveram em um abraço apertado, foi o
significado mais verdadeiro da palavra lar.
— Obrigado, Maisie. — Deu um beijo no topo da minha cabeça.
Dei um sorriso de canto.
— Acha que a família dos vaga-lumes me odeia?
Nick jogou a cabeça pra trás e caiu na gargalhada, foi como um
canto dos pássaros. Seu corpo chacoalhou convulsivamente.
— Não sei, mas, se eu fosse você tomaria cuidado. Vai que um
deles entre em seu ouvido para se vingar — debochou. — Não faça
essa cara.
Me desvencilhei. Aquela ligação, outra vez, aquela ligação
incompreendida por mim.
— Que cara? Você nem pode ver nada nessa posição em que
está.
— Eu posso senti-la. Você é uma parte de mim.
Meu coração tropeçou.
Um som suspeito dum galho se quebrando nos alarmou e fomos
obrigados a engolir qualquer sorriso, resposta, piada. Alguém se
aproximava.
— Desligue a lanterna. — Nick mandou, baixinho.
Quando as luzes se apagaram o breu total e sufocante nos
devorou. Ficamos ambos quietos, nem nossa respiração era audível.
Nem mesmo os mortos eram tão silenciosos quanto nós.
Outra vez o som curioso. Não parecia animalesco, descartei
completamente a suposição. Eu crescera em uma selva - ou quase
isso -, meus ouvidos conheciam perfeitamente os ruídos causados
por animais e aquele, definitivamente, não era um deles.
Era som de passos – pesados e firmes. Uma pessoa? Um
homem ou uma mulher muito, muito forte.
Então um baque violento e indistinto. Não fui atingida por nada,
mas, àquela altura, não só minha respiração ofegante como também
meus batimentos cardíacos se tornaram escandalosos.
Controle-se.
Novamente o silêncio.
Tateei o escuro, à procura da mão de Nick. Eu não estava
assustada, mas queria...Não, eu precisava, senti-lo perto de mim. O
seu calor aconchegante, sua segurança, coragem. A certeza de que
ele morreria por mim, se fosse necessário.
Só encontrei a solidão fria.
Após alguns minutos em estado de paralisia pura, soltei a voz e
ela teve o efeito de uma bomba.
— Nick?
Não houve respostas.
— Nick?
Nada.
E se ele tivesse sido atacado? E se o baque que ouvi fosse do
seu corpo sendo atingido por algo?
— Nicholas? — Tentei de novo. A dor de não ser respondida
esmagou meus ossos.
Acendi a lanterna. Minhas mãos tremiam, tinha medo do que
podia encontrar.
Em um movimento lento, clareei ao meu redor. Apontei a luz
para cada árvore próxima - da raiz às folhas. Não esperava que Nick
estivesse brincando comigo, se eu estivesse com Gael, esperaria
qualquer coisa. Até de Jailson. Mas, Nick... esse tipo de brincadeira
não era do seu feitio.
— NICK? — gritei. Se havia inimigo por perto, não importava
naquele momento. Eu podia lidar com eles desde que eu soubesse
onde o homem que eu amava estava.
Mas ele simplesmente desaparecera.
Me sentei na terra úmida e abracei os joelhos rente ao peito. Me
balancei para frente e para trás. Não fazia ideia de quanto tempo
estava assim, na mesma posição e esperando que Nicholas surgisse
por algum dos lados.
Me passou pela cabeça que talvez ele tivesse visto Athos nos
espionando e tivesse ido atrás dele. Dois minutos depois, a ideia me
pareceu absurda. Nick não me deixaria sozinha numa floresta em
território inimigo. Nunca.
Em seguida, me ocorreu que ele podia ter voltado ao barco.
Talvez me cochichara algo, mas minha apreensão me impediu de
ouvi-lo. Então escorei em uma árvore e esperei. Esperei até meu
vestido molhado começar a me congelar.
Até ver a lanterna de Nick caída no chão.
Fui até ela e a peguei. Nesse segundo senti todo sangue do
meu corpo ser drenado e um frio glacial me transformar em um
milhão de fragmentos.
— Eles levaram você — sussurrei, encarando a lanterna. Duas
gotas saltaram dos meus olhos, o vento as secou. — Mas irei
encontrá-lo.
Eu estava faminta, com sede, exausta, congelando e com os
dedos enrugados. Pensei em retornar ao barco para me recompor e
esperar até o raiar do dia, mas imediatamente vi que não seria uma
boa ideia. Se os homens que estavam com Athos tivessem mesmo
capturado Nick, eles me caçariam como selvagens e o barco seria o
primeiro lugar a vasculharem.
Disfarcei a sede bebendo a água da chuva obtida pelas folhas
das árvores. Não foi o bastante para me saciar, mas foi revigorante
poder molhar a garganta seca.
Fui cuidadosa ao andar pela floresta, escolhia cada galho e
pedra a ser pisado. Eu também me aproveitava quando a ventania
era abrupta e barulhenta para correr, sabia que ela camuflaria meu
som. Vez ou outra eu era enganada por um galho puxando meus
cabelos e me virava assustada, dando pontapés no ar. Mas nenhuma
dificuldade me fez querer recuar.
Andei por horas a fio após fazer um nó na barra do vestido para
não tropeçar. Parei quando tive o primeiro vislumbre da casa. Um
único monte me separava dela, mas eu estava exausta para
continuar; se não descansasse por alguns minutos não teria forças
para salvar Nick. Seria derrubada no primeiro confronto.
Me escorei numa rocha e quando acordei já tinha amanhecido.
Mas não foi a luz do sol que me despertou, foi o inseto subindo por
minhas pernas expostas. As patinhas até faziam cócegas, em
contrapartida, seu veneno me causaria a mais absoluta dor.
Espantei a aranha antes de ser picada e ao me levantar, vi um
homem vir na minha direção.
— Droga!
Me abaixei para usar a rocha como escudo. Não tinha certeza
se tinha sido vista, só que saquei a arma mesmo assim.
O grego apenas passou por mim.
Segure o dedo. Não atire.
Um disparo sem silenciador atrairia a atenção que eu tentava
evitar. Colocaria a minha vida e a de Nick em risco.
Se é que você está vivo...
Deixei que o grego seguisse viagem, mas sabia que voltaria.
Esperei até não ter mais visão dele e me levantei.
Me infiltrei na mata novamente, com toda cautela.
Peguei um pequeno tronco de árvore que estava no chão,
provavelmente cortado por algum caçador, e dei algumas pancadas
com ele para me certificar de que não estava muito seco por dentro.
Depois, quebrei um galho no joelho para que tivesse o comprimento
que eu desejava.
Por último, tirei minha calcinha. Escalei a árvore e a pendurei no
galho que eu quebrara para deixar na altura perfeita.
Agora é só aguardar.
Cerca de vinte minutos depois – tempo calculado por minha
ansiedade - o grego retornou pelo mesmo caminho que fizera na ida.
Era como os animais, agia como os animais. Fazia o mesmo
percurso por estar condicionado a ele.
O macho viu minha peça íntima pendurada, fiz com que fosse
impossível não ver – na exata altura do seu rosto -, e a pegou no
momento em que surgi por trás, atingindo sua cabeça confusa com
toda força.
— Distração, conhece? Alguns homens são facilmente
enganados — falei, mesmo que não me entendesse. O homem caiu
apagado no chão, só que aquilo não bastava. Eu tinha que garantir
que estivesse morto para não ter que lidar com ele depois.
Eu fui feita para me sentir estúpida, mas eu não era.
O revistei e acabei encontrando um canivete no bolso da calça,
um revólver no cós e seus documentos. Peguei o canivete e coloquei
minha coragem à cena.
No meu pior comportamento, com as vozes de vingança se
reunindo na minha cabeça, perfurei seu pescoço diversas vezes. A
raiva era o fluído em minhas veias.
Ele não apresentou muita reação, foi fácil. Uma mão na sua
boca e outra o esfaqueando como se não fosse nada além de um
animal pro jantar. O banho de sangue que tomei estava além do que
imaginara; apesar dos cortes profundos, foi seu sangue que acabou
o matando afogado.
Limpei minha mão ensanguentada na sua roupa, tentando não
vomitar durante o processo.
Para todos os efeitos, é só sangue.
O arrastei pelos braços para tirá-lo do caminho. A surpresa foi
perceber que fizera muito mais esforço o arrastando, que o matando.
Se eu já não estivesse acostumada a carregar peso nas brincadeiras
toscas quando mais jovem, provavelmente não teria conseguido
mover o cadáver.
Tudo bem, respire.
Suas botas sujas me chamaram atenção. Acabei furtando os
cadarços; eu sabia que podia acabar precisando deles futuramente.
Subi a colina, me aproveitando das árvores para me dar
cobertura. Tive sorte ao não trombar com nenhum outro grego.
Circundei a casa sorrateiramente. Decidi que usaria a porta dos
fundos para invadir. Dei uma nova olhada ao redor antes de segurar
na maçaneta fria.
Ofeguei, e suor me escorreu pelas costas e axilas. Eu estaria
mais confiante se pudesse enxergar igualmente com os dois olhos...
Não é hora de pensar em mim. É como diziam: “Quando você
chega no fundo do poço, o único lugar para ir, é pra cima.”
Me libertei do velho eu covarde.
A porta não rangeu ao ser aberta. Paredes e móveis brancos me
receberam, um ambiente suave, quase senti paz. Não era daquele
modo que eu imaginava aquele lugar por dentro. Esperava por
objetos sombrios, cabeças de cervos empalhadas, atiradores me
aguardando com um calibre .762. Uma resistência mais forte que
aquela, sem dúvida.
Logo na entrada da sala havia um vaso de planta, não que eu
não gostasse delas, mas juro pelos deuses que quis lançá-la pela
janela quando tropecei e fiz o vaso dançar, causando um eco
estarrecedor no cômodo.
Imediatamente saquei minha arma com os dedos ainda trêmulos
e enrugados. Tendo só um olho de aliado, foi necessário virar o rosto
para varrer todo o ambiente e ter cem por cento de certeza de que
não tinha inimigos por perto.
— Já disse, ele não veio sozinho... Torturar? Por favor, conheço
meu filho melhor que qualquer um, ele não vai admitir nem que
vocês lhe costurem os olhos! — A voz de Athos cortou a atmosfera
como um machado, o som de algo batendo no chão o acompanhava
no corredor. — Voltem na floresta e procurem direito!
Me joguei atrás da escrivaninha.
— Posso fazê-lo falar, senhor. — O grego que o seguia falava
razoavelmente meu idioma.
Inclinei-me para observar por cima dos livros empilhados. Athos
se apoiava em uma bengala, seu rosto estava coberto por curativos,
mas havia partes que nem mesmo as fitas brancas podiam esconder.
Ele sempre fora um monstro, a diferença era que agora de longe já
podia se ver isso.
Ele bateu com a bengala no pé do rapaz. O sujeito nem se
mexeu.
— Você está aqui para receber minhas ordens e eu o mandei
procurar pela floresta.
Athos saiu sem esperar pela resposta. Achei que o grego o
seguiria ou faria o que lhe foi ordenado. Para a minha tragédia, ele
entrou na sala e olhou exatamente na minha direção.
Me agachei com a respiração presa. Eu podia contar cada
batida lenta do meu coração.
Não venha aqui. Não venha aqui.
Ouvi o som dos seus sapatos no assoalho de madeira.
Um.
Dois.
Três.
Cada passo me matava mais um pouco, me dava mais suadeira.
Segurei a pistola rente ao meu peito. Se o grego me encontrasse, eu
teria de atirar, mesmo se isso significasse chamar muita atenção. Era
minha única escapatória.
O ouvi revirar os objetos na escrivaninha, alguns livros foram
jogados no chão. Em seguida, voltou a andar, mas sua intenção
estava longe de ir embora. Ele deu a volta, agora eu até podia ver a
cor marrom dos seus sapatos de couro.
A arma escorregava nas minhas mãos.
Não olhe para baixo. Não...
Seu corpo bloqueou a minha visão como as nuvens bloqueiam o
sol. Suas mãos foram na gaveta e a puxou. Se ele se abaixasse
mais um pouco, eu seria descoberta.
O medo me pegou subestimando.
Troquei a arma pelo canivete roubado e esperei.
Suas mãos foram na quarta gaveta e o que eu temia aconteceu.
Os olhos cor de avelã vazios encontraram os meus e a mais clara
expressão de espanto incorporou em seu rosto.
— O que está fazendo aqui? — Me perguntou com dificuldade,
como se traduzisse palavra por palavra para o inglês.
Fui arrastada por pensamentos sujos.
— Matando. — Não tive tempo de pensar onde enfiaria aquele
canivete. Quando o introduzi em seu olho direito, foi um choque bem
repulsivo para mim. O macho não podia gritar, eu não permitiria,
então, com a mesma agilidade em que enfiei a lâmina de 7 cm, eu a
retirei. Devia atingir uma região vital e silenciá-lo. Veia jugular
escolhida...ou algo assim.
Seu sangue jorrou em pulsos. A cada batida do seu coração,
mais sangue sobre mim era jorrado.
O empurrei para que não caísse por cima de mim, infelizmente
não pude evitar ter meu vestido manchado e respingos pelo rosto
que coloriam minhas sardas.
Nick dissera que gostava de matar inimigos e, pela primeira vez,
eu experienciei semelhante sensação.
Limpei o canivete na coxa sem pudor.
Rumo à próxima etapa.
Deixei de ser silenciosa, àquela altura todos já tinham
conhecimento da existência de uma assassina pela ilha. Corri pelo
estreito corredor, deixando pegadas de sangue por onde passava.
Esculturas gregas roubavam minha atenção por me confundirem
com pessoas reais.
Subi uma escada que me levou aos quartos. Eu descobri que a
sorte estava ao meu favor quando encontrei Nick amarrado em uma
cadeira logo na primeira porta que abri.
— Nick? — O chamei, extasiada e um pouco desvanecida.
Sangue escorria por suas mãos e maxilar. Ele estava ferido.
Quando ergueu as dolorosas pálpebras ao som da minha voz,
meu coração bateu de novo. Ele estava vivo. Todo o resto era
insignificante.
Me ajoelhei diante dele e segurei seu rosto para que me
olhasse.
— Encontr-aram v-ocê. — O arrastar de suas palavras saiu
incompreensível. Demorei a decifrar.
— Não, querido. Eu os encontrei. — Sem perder tempo, cortei
as cordas dos seus tornozelos e pulsos. Nick foi direto pro chão.
Estava enfraquecido, zonzo. Seu movimento se resumia em piscar
de olhos.
— O que deram para você? — Seria impossível sair com ele se
mal podia se aguentar em pé.
Meus olhos foram dele para a porta. Deixara a arma na sala,
tudo que eu tinha era o bendito canivete. Em um combate à distância
com os gregos armados, era evidente quem teria mais chance.
— Nick, olhe para mim. — Dei tapinhas em seu rosto assim que
fechou os olhos. — O que deram para você?
Ele até tentou, mas não conseguiu proferir nada.
— Droga, Nicholas! O que farei com você?
Pense. Pense. Pense.
Me levantei, parecia que não havia terra sob meus pés, como se
eu caísse na escuridão.
Olhei para Nick e depois para a janela. Fiz um breve cálculo
mental. Não era alto a ponto de matá-lo.
Fui até a cama e depois voltei a me ajoelhar perto de Nick; o
virei de lado para ter acesso às suas costas. Enfiei uma almofada por
dentro da sua camisa e outra amarrei à sua cabeça. Um rápido
remendo com os cadarços do grego e amarrei à sua testa em um nó
apertado.
— Sei que deve estar se perguntando que raios é isso que estou
fazendo, mas confie em mim, quando puder, me agradecerá por
proteger suas costas e cabeça do impacto. — Eu disse.
O puxei pelos braços para sentá-lo e tentei levantá-lo pelas
axilas. Aquele tanto de músculos que Nicholas tinha, dificultou tudo.
— Você precisa tentar me ajudar, diabo — pedi, em suspiros. Eu
estava tão acabada fisicamente.
Piscou duas vezes para mim.
— Entenderei isso como um “sim”.
A tentativa número dois foi ainda mais fracassada que a número
um. Eu gastara toda minha energia lidando com os gregos. O que
restara de mim não era suficiente para levantar um macho daquele
tamanho.
— Tive uma ideia. — Me sentei às suas costas, no conforto da
almofada que prendera a ele e apoiei as mãos no chão. — Já
fizemos isso antes, no barco de Iolanda, e deu certo. Não tenho as
mesmas pernas musculosas que você, mas posso ser seu alicerce
para ajudá-lo a se levantar.
Ele gemeu. Inspirei e expirei duas vezes.
— Temos que ser rápidos, ok? — Fui doce. Meu interior era só
agonia. — A janela está pertinho, você só precisa ir até ela.
Gemeu como antes, já que não podia compartilhar seus
pensamentos em voz alta.
— Vamos lá. — Apoiei os pés firmes no chão e senti Nick buscar
sua força do além. Me mantive, até senti-lo se levantar. — Isso.
Continue. — Incentivei, em um arfar. Minhas pernas tremiam, fartas.
Até que Nick finalmente se levantou. Fiz o mesmo. Ele estava
bambo, eu não estava diferente. Se segurou no parapeito da janela
quando sentiu que ia cair e me olhou como se perguntasse: “Tá, e
agora?”
— Confie em mim. Vai doer, mas você vai sobreviver — garanti.
Seus olhos se tornaram maiores.
— Vai ser uma quedinha de nada. As almofadas
amortecerão...um pouco. — Alertei. — Tente não gritar.
Não esperei por um olhar como o anterior. O empurrei pela
janela como se o odiasse, a ironia era que eu o amava. Não tive
coragem de assisti-lo cair.
É a minha vez.
Me sentei no parapeito e de olhos fechados, saltei.
Aterrissei com os joelhos flexionados e levemente alinhados
para frente para absorver o impacto do choque no chão e evitar
lesões. Na teoria, deu certo. Na prática, bem...
Olhei para os dois lados, como se estivesse no piloto automático
e corri até Nick quando vi que não tinha ninguém por perto.
Estávamos nos fundos da casa, a porta pela qual eu invadira estava
há poucos metros, mas estava fechada.
Eu ainda tinha algum tempo antes de ser caçada.
Tirei as almofadas de Nick e toquei em sua cabeça para saber
se estava sangrando.
— Viu. Falei que ia sobreviver — brinquei e recebi um olhar
recriminador. Se ele pudesse se mexer, eu teria mãos em meu
pescoço. — O que foi? Viver perigosamente é minha parte favorita.
Soltou o ar em forma de risada. Fez cara de dor, depois.
— Preciso de um tempo para arrastá-lo até ali. Aqui estamos
muito expostos. — Apontei para três árvores tão juntinhas, que até
pareciam uma só.
Fiquei de guarda enquanto descansávamos.
— Argh. — Nick gemeu, tocando a costela. Pouco a pouco ele
recuperava os movimentos. Minutos atrás, o deixara encostado às
três árvores e fui em busca de folhas grandes para nos proteger da
garoa que se intensificava a cada minuto. Improvisei um guarda-
chuva com uma delas e me sentei ao seu lado.
— Sinto muito — sussurrei.
Fitou-me de canto.
— Tem sangue...em você. — Reparou com um semblante
carrancudo, através dos olhos embaçados.
— Não é meu.
Minhas palavras concederam o seu alívio.
— O que deram para você? — Perguntei pelo que devia ser a
terceira vez.
— Anestesia. Enfiaram a porra de uma agulha em meu pescoço
e quando acordei, estava amarrado à uma cadeira com um homem
me esmurrando por diversão. A dor que não senti antes, estou
sentindo agora.
— Sinto muito — falei, de novo. Sua dor doía em mim muito
mais que doía nele. Sentia como se estivesse abraçando a ponta de
uma faca.
— Você não foi embora.
Ergui uma sobrancelha.
— É um insulto achar que eu iria!
— Você se arriscou por mim. Para me salvar.
Trocamos olhares com uma profundidade que só o oceano
alcançava.
— Você fez o mesmo — respondi, convicta. — Foi torturado por
não revelar onde eu estava.
— Eu não revelaria, nem se me arrancassem um membro por
vez. — Gemeu de dor. — Bem, se eu soubesse que mais tarde você
tentaria me matar me empurrando de uma janela, talvez eu tivesse
revelado.
Dei uma cotovelada nele, sabendo que doeria. Ele riu entre
ganidos.
— Acho que devíamos tirar sua camisa — aconselhei
seriamente.
— Quer me ver nu justo agora? — Zombou.
— Quero ver seus ferimentos — repliquei, colocando seus
demônios para dormir.
Ele assentiu. Joguei a folha num canto e desabotoei a camisa de
Nick...foi uma tortura auto infligida.
Podia senti-lo me analisando.
— Dá pra parar de me olhar!? — Resmunguei, incomodada com
aquela atenção de gavião em mim.
— Não posso. Você é uma vista tão bonita.
Roubou uma batida do meu coração. Paralisei no quinto botão.
Me senti tocada por aquelas palavras como se fossem as pontas dos
seus dedos.
— Então está feliz por ser eu aqui e não qualquer outro? —
Perguntei olhando diretamente para ele.
Agora eu podia sentir seu coração em meu punho.
— Nada me deixa mais feliz e nada me deixa mais triste. —
Repetiu minha frase e a fez se encaixar perfeitamente na situação.
— Fiquei desesperado quando acordei e não a vi... Pensei em
tantas...tantas coisas. — Engasgou. — Metade desses cortes em
meus pulsos foram causados porque eu me agitava quando diziam
seu nome.
As palavras entalaram entre meu coração e a garganta.
É incrível a forma como você me despedaça e me recompõe.
— Você está tremendo — reparei. Seus lábios esbranquiçados e
as bochechas sem cor também me preocupavam.
— Talvez devesse me aquecer com seu corpo — considerou,
plantando uma semente de prazer em mim. — Prefere que eu tenha
hipotermia a me emprestar um pouco do seu calor? Além do mais,
esse é o único jeito que conheço para tirar a dor. Quase como um
sedativo.
Pendi a cabeça pro lado e terminei de desabotoar sua camisa
ensanguentada. Fui surpreendida por ferimentos de facadas pelo
peito.
— Isso não está nada bom — titubeei. — Por isso está
delirando...
— Não estou...delirando. — Se defendeu, mas fechou as
pálpebras por mais tempo que o de costume ao piscar.
Eu precisava fazer alguma coisa ou o perderia. Arrastei os olhos
até a casa. Eu tinha que voltar lá.
— Aonde está indo? — Segurou meu pulso assim que fiz
menção de me levantar. A fala era mole.
— Preciso voltar na casa e pegar curativos para você.
— Não pode fazer isso — disse grave. Era desgastante ver
como até mesmo se manter acordado exigia muito dele.
— Então o que? Devo assisti-lo morrer!?
— A ideia não é ruim.
O segurei pelo queixo, irritada. Não era como se eu fosse perder
alguém, era como se eu fosse perder meus braços.
— Não matei dois homens para deixá-lo morrer bem na minha
frente. Você tem a obrigação de viver.
Ele mal conseguia falar através das dores.
— Não morrerei antes de cumprir minha promessa a você. —
Respirou fundo e tocou um dos ferimentos que sangrava. — Você
terá a cabeça de Athos.
— Deixe que eu mesma irei buscá-la.
Nick tentou sorrir, mas não conseguiu. Apenas me olhou
fascinado.
— Precisamos controlar o sangramento. Incline-se. — Ordenei e
deixei que apoiasse sua cabeça em meu ombro ao passo em que o
despia.
O encostei devagar no tronco de árvore e cobri o corte que
parecia mais profundo com sua peça de roupa.
— Pressione e não solte.
Ele assentiu. O cobri com folhas para aquecê-lo, nem que fosse
um pouco. Não me sentia confortável em deixá-lo sozinho naquele
estado decadente, mas reconhecia que não existia outra opção.
— Tive uma ideia — falei. — Não saia daqui.
— Vou tentar não correr. Não se preocupe — zombou. Não
precisei fazer careta ou rebater, ele já estava sofrendo o bastante
com os cortes.
Voltei poucos minutos depois com ferramentas o suficiente. Nick
estava dormindo quando furtei seus cadarços e quando cortei os
troncos, mas acordou com as pisadas que dei na madeira para
enterrá-la... bem, os insultos que deixei escapar que devia tê-lo
acordado.
— O que tá fazendo agora? — Grunhiu. Como se as palavras
saíssem de uma boca embriagada.
Não interrompi o nó que fazia para respondê-lo.
— Armadilha de tropeço. — Quebrei uma unha no processo. —
Não impedirá alguém de capturar você, mas te dará um tempo para
gritar por mim.
Passei o braço para limpar a água da chuva da testa.
Como não me respondeu, fui obrigada a interromper o que fazia
para encará-lo. Foi um alívio ver que ainda estava acordado.
Enfiei a outra madeira o mais rente possível do solo e liguei o
cadarço de um tronco a outro.
— Você roubou meus cadarços? — Questionou, abafado,
observando cada ato meu.
— Ainda são seus, só não estão mais em suas botas. — Voltei
para perto dele e toquei em sua bochecha com as costas da mão. —
Está com febre.
— Sobreviverei.
Curvei-me para um beijo em sua testa e o prolonguei o máximo
possível, senti algo tão familiar, que parecia até que eu já lhe dera
aquele mesmo beijo em outras vidas.
Eu pensei que conhecesse as batidas do meu coração, mas
naquele momento eu percebi como estive redondamente enganada.
Empunhei o canivete e abri a porta devagar. Não sabia se havia
outros homens na casa, Nick dormiu antes que eu pudesse
perguntar.
Entrei preparada para atacar por trás, surpreender era minha
única vantagem. Um chute na articulação do joelho para derrubar o
inimigo e facadas no pescoço eram meu dilema.
Dessa vez a surpreendida fui eu. Alguém que já esperava pela
minha visita me recebeu da forma mais cordial possível. Um vaso –
ou algo semelhante – se partiu na minha cabeça. O chão deixou de
receber meus pés para receber meus joelhos.
Atordoada, e por instinto de sobrevivência, engatinhei para longe
de quem me atacou. Tentei me manter acordada, mas até meus
reflexos tinham sido roubados pela constante vontade de fechar os
olhos.
Levei um chute na costela, outro, na coxa. Apesar da agonizante
dor, receber tais golpes me fizera saber que aquele não era Athos.
Nick deixara Athos dependente de bengala. Ele jamais conseguiria
me dar chutes tão fortes.
O homem me ergueu pelo vestido e me lançou contra a parede
como se eu pesasse menos que um travesseiro. A pancada nas
costas que me causou falta de ar, foi pior que a pancada na cabeça
que me fez ver a escuridão.
Restabeleci a consciência segundos depois, mas não consegui
me levantar.
Se eu não conseguia me levantar, então eu levaria a briga pro
chão. Me concentrei e apliquei muita força para chutar seu tornozelo
assim que se aproximou mais.
Quando ele caiu, isolei seu braço com minhas pernas e o torci
até ouvir o som dos ossos se quebrando. Ele gritou como um louco e
cobriu meu rosto com sua outra mão para tentar me ferir com as
unhas. Me esquivei.
De alguma forma, ele conseguiu me arrancar de cima dele e me
atirou na outra extremidade. Deslizei pelo chão como se tivesse óleo,
mas não colidi em nada.
O brutamonte ignorou seu braço quebrado e avançou sobre
mim, me dizendo coisas em grego; eram ofensas, sem dúvida.
Eu queria chorar. Correr. Gritar. Mas fiquei bem ali e lutei.
Ao meu lado direito, um aço reluzente me chamou atenção.
Eu só preciso... Levei um tabefe na cara. Ora, eu já recebera
mais fortes.
Tateei em busca do canivete, até senti-lo com as pontas dos
dedos. Me estiquei para tentar pegá-lo no mesmo instante em que
começava a ser estrangulada. A falta de ar me queimava como
papel, não sabia se era devido as mãos em torno do meu pescoço
ou seus quase 100kg sobre mim. Como a minha vontade de viver era
imbatível, alcancei a lâmina com um fio de consciência, e a enterrei
em seu pescoço.
Esfaqueei incontáveis vezes e com vontade, vendo seus olhos
ficarem opacos. O matei com mais ânsia que todos os outros.
Senti o gosto metálico do seu sangue em meus lábios e o
vestido grudava na minha pele sempre que ficava mais lambuzada.
O tecido se tornara um mapa de todas as minhas vítimas.
Eu me sujo para o Mundo permanecer limpo.
O morto caiu por cima de mim, e eu me rastejei para me libertar
antes que eu me tornasse nada menos que um bagaço de laranja.
Me levantei sem equilíbrio algum; sentia o peito esmagado...
— Estava me perguntando quem tinha matado meus homens. —
Sua voz veio detrás. Me virei. — Confesso que não esperava por
uma mulher.
Não tentei bancar a inocente.
— Chegou sua vez, Athos.
— Vejo que sim. — Estudou a bagunça no chão. — Como fez
isso? Ele sempre foi meu melhor homem. O mais forte e fiel.
Foi inevitável não levar aquilo como um elogio.
— Me deram a chance de uma luta justa.
Alguns eu peguei por trás, mas ele não precisa saber disso.
— Meu filho encontrou a garota perfeita para ele. — A
entonação foi de desdém.
— Ele não é seu filho! — O corrigi, afiada como uma lasca de
vidro.
— Eu o criei e o eduquei.
— Não. Você o destruiu. Mas — o olhei de cima para baixo com
desdém, como quem olha uma larva —, ele soube retribuir o favor.
Athos desceu os olhos até meu canivete como quem reconhece
que não tem para onde correr. Contudo, foi a súbita sombra atrás de
mim que mais o incomodou.
— Acho que não é seu dia de sorte — disse Nick, a voz
arrastada. — Porém, é o meu.
Athos olhou para os próprios pés e então ergueu seu revólver
para nós, e quando o fez, Nick entrou na minha frente como um
escudo humano.
— Eu nunca lhe darei esse gosto, garoto — disse e deu o
disparo.
Dei meu grito mais alto e cobri os olhos com as mãos feito uma
covarde. Eu não queria ver onde aquela bala acertara. Eu podia ter
matado pessoas naquela noite, mas eu nunca estaria pronta para ver
o amor da minha vida morrer.
— Desgraçado! — Rugiu Nick.
Ele está bem. Está bem...
Afastei as mãos e tive um vislumbre claro dos miolos de Athos.
Eu ia vomitar...só não antes de gritar de raiva pelo desgraçado ter
cometido suicídio. Eu me preparei para matá-lo e ele simplesmente
roubou isso de mim. Eu me doei psicologicamente para esse dia, eu
poup... Senti um peso em meus ombros, Nick se apoiara em mim na
esperança de não ir pro chão.
O olhar de quem pede desculpas e:
— Acho que irei desmaiar.

Peguei compressas, medicamentos, água, sabão e cobertores.


Nick estava esticado no sofá e mais branco que gesso.
— Eu devia deixá-lo sofrer. Quem mandou sair do lugar!? —
Reclamei e lavei seus ferimentos com cuidado.
Ele ganiu em resposta. Era só o que eu ganharia naquela noite,
eu tinha consciência disso.
— Eu estava indo bem, até você chegar. — Sequei com toalhas
limpas. — Você tem sorte por eu ter matado todos eles ou estaria
ferrado. Que ideia estúpida de vir atrás de mim nesse estado. Até
uma saliência no tapete o derrubaria!
Segurou meus braços com força. A intensidade arrogante dos
seus olhos aumentou. Ele tinha todas as características de homens
que brincam com garotas como eu.
— Está tentando me curar ou acabar comigo?
— Honestamente, Nicholas Coleman, eu não tenho ideia!
Puxei os braços e terminei os curativos após me certificar de
que não tinha nada estranho dentro das feridas.
Peguei os frascos de remédio e os segurei ao alcance dos seus
olhos.
— Tem certeza de que quer tomar esses comprimidos? De onde
venho, usamos plant...
Ele pegou as pílulas da minha mão antes que eu concluísse a
frase e as engoliu a seco.
— Claro que o macho alfa faria uma coisa dessas —
resmunguei mais um pouco antes de cobri-lo.
Me deu um olhar que me fez perceber que todos meus álibis que
me mandavam ficar longe dele, eram fracos.
— Quando eu me recuperar, você vai se ver comigo.

Eu não era péssima na cozinha, mas alguns alimentos estavam


com a descrição em grego, aquele monte de símbolos não me dizia
nada. Acabei preparando um caldo verde com os legumes que
encontrei na geladeira.
Quando retornei à sala, vi que o rosto de Nick já voltara a ter cor.
Ele estava acordado, os olhos fixos no cadáver.
— Me conte sobre esse — disse com um aceno de cabeça.
Lhe entreguei uma tigela e me sentei ao seu lado.
— Eu estava escondida ali embaixo. — Apontei para a
escrivaninha com a colher. — Ele teve a péssima ideia de ir fuçar nas
gavetas.
Ele deu uma colherada na sopa e assoprou antes de levá-la à
boca.
— Você é uma péssima influência para mim.
Nós dois gargalhamos. Ele, com dor.
— O primeiro que esfaqueei me fez arrancar a calcinha. — Ele
virou o rosto com espanto e deixou sopa cair no cobertor. — Não é o
que está pensando. Eu só a usei como distração para atacá-lo por
trás.
Ele desfez as linhas de expressão em um passe de mágica.
— Qual deles feriu você? — Deu uma colherada na sopa.
— O último. — Virei o braço para olhar o corte no cotovelo. —
Ele sofreu mais que eu, não se preocupe.
— Se eu não precisasse me rastejar como uma lesma, eu o teria
matado antes que alcançasse você. — O comentário se esgueirou
por entre seus dentes.
— Eu não teria conseguido me defender se tivesse de socorrê-
lo. Na próxima vez, Nick, faça o que ordenei e não me atrapalhe.
Ele mordeu o lábio inferior em busca de uma resposta tão boa
quanto a minha. O que ganhei, foi caldo verde na cara.
— Como você é adulto, Nicholas Coleman! — Me fiz de ultrajada
e limpei o líquido dos olhos.
O diabo caiu na risada.
— Você gosta tanto de vaga-lumes, querida, que quis deixá-la
verde como um.
— Bem — limpei a mão no meu roupão —, descobrirei do que
você gosta.
— Eu gosto de muitas coisas, mas a principal delas é arrancar
um sorriso irresistível desses seus lábios delicados. — Acendeu o
fogo para aquecer nossos ossos.
— Pare de me cortejar e termine de comer — disse, mandona.
— Você fica ainda mais adorável fingindo que não gostou —
provocou. Ele era uma dinamite.
Me levantei e peguei a tigela das suas mãos.
— Tá escandalizada? — Perguntou-me, apreciando meu
desconforto.
— Vejo que ainda está delirando — zombei, banhada por sopa.
— Estou lúcido. Bem lúcido — ressaltou. — Tão lúcido que
admitirei que você estava certa. Esteve certa o tempo todo.
Meus lábios se repuxaram em um sorriso magnificamente
vitorioso.
— Não existe palavras mais doces que essas.
— Sendo assim, não se faz mais necessário meus joelhos no
chão? — Perguntou, receoso.
Do que você tem medo?
— Pensei que preferisse ter meu nome marcado ao seu corpo
— o lembrei.
Cerrou o cenho.
— O que prefiro, é não perder a mulher que salvou a minha vida.
Pensei em cem coisas ao mesmo tempo, e antes que eu abrisse
a boca para proferir uma delas, uma manchinha de sangue no
curativo de Nick roubou minha atenção.
— Por que não cuidamos da sua saúde antes de falarmos sobre
isso, hã?
Ele seguiu a direção dos meus olhos.
— Isso não é um problema. Já tive ferimentos piores. — Fez
descaso.
— Esses machucados que você tanto menospreza quase
mataram você.
— Não os menosprezos. Por culpa desses desgraçados eu não
pude bater em Athos até criar bolhas nas mãos.
Respirei com dificuldade. Tinha pressentimento de que aquela
conversa terminaria mal.
— Você estava anestesiado, ferido — disse com calma. — Tinha
perdido muito sangue. Não havia nada que pudesse ter feito.
— Nunca me perdoarei por deixa-lo vencer! — Grunhiu.
— Ele não venceu. Está morto.
— Mas não por culpa minha.
Retesei os lábios, sem resposta.
A dor em seu rosto era bem mais do que eu podia suportar.
Acabei deixando-o sozinho na sala.

Sonhei com sangue. Com a voz de Nicholas gritando por mim. O


som vinha de todos os lados, mas eu sempre acabava correndo para
a direção errada. Eu nunca o alcançava e ele morria com meu nome
em seus lábios.

Era um baque atrás do outro.


Demorei para assimilar o lugar em que eu estava com o som
que ouvia. A sonolência foi embora no mesmo instante em que me
lembrei do sonho que tivera.
Nick...
Me levantei apressada e corri escada abaixo. Se estava
descabelada e com nada além de uma camiseta masculina que
encontrei, fiz questão de não me importar.
Nick não estava no sofá da sala, mas o rastro de sangue
deixado por ele me levou até um dos banheiros. Objetos
atravessavam pela porta e eram empilhados no corredor.
Esperei até o último ser lançado para conseguir me aproximar.
Andei sobre toalhas, rolos de papel higiênico, produtos de
higiene, até chegar ao macho de temperamento explosivo.
— Nick? — O chamei, vendo-o tirar mais coisas do armário.
Ele interrompeu sua busca ao som da minha voz. Suor escorria
pelo rosto, assim como sangue escorria de um dos ferimentos. Ele
adotara a palidez outra vez, estava péssimo, enfraquecido. Como se
todo seu vigor tivesse evaporado pelos poros.
— Devíamos voltar para a ilha — sugeri.
— Não. Não quero que minha filha me veja assim.
Praguejei, perturbada, vendo seu sangue manchar a gaze.
— Você precisa de um médico — falei, firme.
— Pensei que não acreditasse na medicina. — Se apoiou na
pia.
— Passei a ver as coisas com outros olhos — admiti e gesticulei
com a cabeça para o armário aberto. — O que está procurando?
— Agulha e linha. Pessoas como eu não procuram por médicos
para não terem de explicar esses tipos de cortes. — Apontou para o
peito. — E nessa casa tinha pessoas como eu.
— Você é um policial, devia ser normal o virem assim —
considerei.
Arfou.
— Também acho. Mas não é assim que funciona... Argh. —
Cambaleou, antes de me mostrar que encontrou o que procurava. —
Vai me ajudar ou terei de implorar?
— Irei ajudá-lo. Só que antes deve me prometer que ficará de
repouso. Não quero perder meu tempo costurando você para vê-lo
abrir tudo de novo em cinco minutos.
— Não sei se isso é algo que eu possa prometer.
Cruzei os braços.
— Sendo assim, espero que se saia bem furando a si mesmo.
Me deu um sorriso cansado que não deixava de ser lindo de
morrer.
— Adora me ter em suas mãos para me castigar, não adora? É
só minha moral que está em jogo.
— É um tremendo prazer.
Me analisou por mais um tempo, até decidir me entregar as
coisas.
— Espero que saiba costurar.
Claro que me provocaria antes de dar o braço a torcer.
— Posso tentar não deixar a agulha dentro de você — retruquei,
impiedosa.
Nossos dedos se tocaram brevemente assim que peguei o que
me entregava. Ficou transparente no semblante de Nicholas como
aquilo mexeu com ele. Foi um choque de felicidade ver que nós dois
sentimos a mesma eletricidade percorrer pelo corpo. Nos tocávamos
o tempo inteiro, acidentalmente ou não, mas algo havia mudado.
Parecia que já não sabíamos respirar sem a presença do outro.
Pedi para que Nick me esperasse na varanda enquanto eu
lavava as mãos e o rosto. Achei que a luz do dia para fazer algo tão
delicado com apenas um olho, facilitaria para mim.
— Obrigado. — Ele disse assim que viu a garrafa de uísque na
minha mão quando me aproximei.
— Eu não disse que é para você. — Brinquei. Eu tinha pego
gosto em torturá-lo.
Soltou uma risada grave assim que lhe entreguei a garrafa.
Puxei uma cadeira e me sentei de frente para ele. Esperei que
desse um gole na bebida antes de tirar a gaze do ferimento que
insistia em sangrar. O outro corte comportava-se bem.
— É a sua primeira vez? — Ele perguntou, me perscrutando.
— Já fiz antes — afirmei. Era verdade, Gael, Jailson e Charlie
se machucavam o tempo todo em Kerrera. Algumas brincadeiras não
terminavam bem. Tiro ao alvo, arremessos de troncos ou cabo de
guerra deixaram eternas cicatrizes nos escoceses.
— Pressuponho que sim.
Nick estava tenso, os músculos retesados, então achei
apropriado descontrair:
— Você foi o meu primeiro duas vezes, Alastor. A maioria dos
homens não podem se vangloriar por isso.
Despertei um olhar ferino no macho.
— O que a fez me pedir por um beijo?
Tomei a garrafa da sua mão. Eu não podia ser tão sincera
estando sóbria. Virei no gargalo.
— Você parecia saber beijar — brinquei, despretensiosa. — E
também porque o acho charmoso. O que o fez ceder?
Ao contrário de mim, o cafajeste adorava falar sacanagem
sobriamente.
— Que sujeito não cederia? Se você não é o sonho de todo
homem, então esse homem não tem sonhado direito.
Enrubesci.
— Não é verdade. Os homens nunca olharam para mim dessa
forma. Está sendo gentil e não precisa.
— Ou você viveu a vida toda rodeada de homens que nunca a
conheceram de verdade. Olhe para mim. — Ergueu meu queixo com
a ponta do dedo. — Você é magnifica. Suas pintas formam a
constelação mais linda que eu já vi.
Suas palavras caíram em meus ouvidos como meteoros caem
do céu. Toda minha insegurança foi abaixo. Nick me via. Ele me
enxergava não somente com os olhos, com o seu coração.
O espetei com a agulha. E de novo.
— Aiii! Por que fez isso? — Resmungou.
— Preciso que fique parado ou é isso que acontecerá. Irei matá-
lo e farei com que sua morte pareça um acidente.
Me deu um sorriso insolente.
— Você é agressiva. É bonitinho — observou, feito um tolo.
Me afastei e percorri os olhos por seu tórax, amaldiçoando cada
gominho suado. As cicatrizes pareciam pedir por meu toque e os
músculos, ahhh... Era como se me dissessem: venha, querida, eu a
manterei aquecida.
Pigarreei para desfazer um nó que se formou na garganta.
Após controlar a tremulação das mãos, atravessei a linha no
buraquinho da agulha curvada depois de quatro tentativas. O álcool,
recém ingerido, me ajudara com o nervosismo, mas ferrara com meu
manuseio.
Nick deu outro gole no uísque e se esticou na poltrona em que
estava, me dando livre acesso ao corte.
Prendi a respiração e soltei lentamente. Limpei a ferida, esperei
até que parasse de sangrar e depois comecei o trabalho.
— Você até que não chorou muito. Estou surpresa. —
Provoquei, ao cortar a linha após o último ponto. Só quando acabei
que me dei conta de como estava tensa.
— Espero que não tenha feito um M em mim — implicou.
Olhei para os pontos. Não eram os mais profissionais que eu já
fizera, no entanto, até que me saíra bem levando em conta a minha
condição física.
— Ora, eu devia ter feito; assim ficaria menos horrorizada por ter
sangue seco em minhas mãos.
O som da sua risada fez meus ossos doerem.
— Vou me limpar e já volto. Não. Se. Mexa — falei, entre
pausas.
Aceitei seu olhar como resposta e quando voltei cerca de dez
minutos depois, Nick continuava na mesma posição. Os olhos
perdidos no horizonte de montanhas frias e folhagens molhadas.
— Eu odiava metade dessas coisas — disse, sem se virar para
mim. — A chuva, as árvores, as montanhas, o mar, o calor, os
pássaros, o frio. Eu não queria me sentir assim. Queria poder olhar
para tudo isso e admirar, mas nem mesmo o cheiro de café fresco
pela manhã me animava. Eu nunca contei para ninguém o quanto
ser traído me destruiu. Acho que foi essa ferida no peito que me fez
começar a odiar tantas coisas a ponto de desejar vê-las mortas. Eu
achava que se permiti que uma mulher fosse capaz de colocar minha
humanidade em um escuro tão grande, então eu devia amá-la. —
Volteou o olhar na minha direção. — Mas não é verdade. O amor não
te coloca no escuro, ele te faz ver cores. — Deu duas piscadas
rápidas, como se tentasse ver através de uma cortina de Voal e
então finalmente encontrou as palavras para dizer como se sentia: —
Você, garota, entrou na minha vida como um dia ensolarado entra
pela janela e fez toda escuridão se tornar irrelevante.
Fui de encontro ao céu e pude tocar estrelas.
— Eu a amo, Maisie, e de jeito nenhum desistirei de você —
falou ao pegar em minhas mãos.
— O que disse?! — Meu coração parou por alguns milésimos de
segundos.
— Disse que a amo. Não é a primeira vez que digo —
estranhou. O rosto sombreado pela luz.
— Mas é a primeira vez que parece sincero.
— Nunca menti sobre isso — falou, ofendido.
— Não é o que quis dizer. Das outras vezes em que disse, era
como se odiasse sentir. Como se me amar fosse uma luta amarga,
palavras duras que temia em dizer.
— E o que parece agora? — Juntou as sobrancelhas, ouvindo
cada mínimo detalhe.
— Como se pudesse morrer de fome, mas não pudesse viver
sem isso.
Seus olhos começaram a piscar, o sorriso começou a crescer,
estimulando as batidas do meu coração e revivendo tudo que estava
morto dentro de mim.
Seu polegar correu inocente em meu pulso. O deixei me
acariciar. Até que, num gesto inesperado, levou a palma da minha
mão para um beijo quente que me tirou de eixo.
— Obrigado, Maisie. Por tudo. Se algum dia a subestimei, eu
peço desculpas.
Eu tinha um sorriso largo no rosto que não saía. Nick exercia
uma pressão dos diabos em mim.
Nossos dedos se entrelaçaram.
— Não me agradeça. Eu adorei vê-lo sentir dor — brinquei,
sádica.
— E eu pensei que estivesse salvando a minha vida.
O riso me chacoalhou inteira; seus olhos brilhavam, me vendo.
Eu o adorava. Adorava por me causar sorrisos involuntários, por me
fazer sentir-se linda e invencível. Não que eu não me achasse digna
de cada elogio, mas era especial saber que outra pessoa tinha uma
beleza de alma tão profunda, que me via exatamente da mesma
forma que eu.
— Eu fico deslumbrado com o som da sua risada. Sente-se aqui
comigo. Vamos falar bobagens a tarde inteira e rir juntos.
— Por mais tentador que seja, não posso aceitar. Você precisa
descansar para irmos embora.
Ele me soltou e não insistiu no pedido.
— Os cadáveres vão começar a feder. Preciso me livrar deles.
— Você sempre sabe o que dizer a uma dama — zombei.
Fitou-me, irônico.
— Você não é uma dama. É a definição de destruição. —
Olhou-me de baixo pra cima, em uma aviação silenciosa.
— Ora, alguém tem que fazer os inimigos temerem o escuro.
Vou preparar um chá para nós. Como gosta do seu?
— Com leite.
— Tão inglês!
— Não é assim que toma o seu? Certa vez até pediu que eu lhe
servisse com açúcar — lembrou-me.
Quase não pude acreditar que em algum lugar na sua mente
havia espaço para memórias deixadas por mim.
— Por que está me olhando como se de repente eu fosse um
cavalo com asas? — Indagou, atônito pela forma que eu o encarava.
— Por nada.
Só estou inexoravelmente fascinada.
E um pouco aterrorizada também. Eu ainda não sei o que
esperar do amor.
Corri para dentro de casa quando, de modo terrível, comecei a
pensar em Nick, eu e Luli assistindo ao pôr do sol na varanda, com
uma manta sobre nossos ombros e xícaras de chá quente em
nossas mãos.

O som do helicóptero rompeu o silêncio que se esticava pela


sala de jantar. Largamos os talheres com o peixe que pretendíamos
levar à boca e o vinho na taça continuou intocado. Foi quase um
alívio quando aquele sonido intrigante nos obrigou a interagir.
Nick sacou sua arma. Eu sequer sabia que ele andava com uma
pela casa. Certamente pegara de um dos gregos que assassinei.
Eu, por outro lado, agarrei uma faca.
— Fique atrás de mim — falei, tomando à frente da situação.
— Não acha que já correu risco suficiente por um ano? —
Queixou-se, no intuito de assumir o controle.
— Você não pode fazer força.
— Não há esforço algum em dar um disparo — grunhiu de volta.
O maldito odiava ficar indefeso e não poder me proteger.
À medida que discutíamos, dois sujeitos invadiram a casa sem
apresentar qualquer perigo.
— Que raios fazem aqui? — Questionei a Gael e a Jailson.
Depois eu perguntaria sobre as toucas. Não era comum ver aqueles
dois com algo na cabeça além dos fios ruivos.
— Por Odin, pensamos que tivessem morrido! — Disse Jailson,
alvoroçado. — Vocês simplesmente desapareceram.
— O plano era matarem Athos e voltarem para Fast. Isso já faz
o que, três noites? — Completou Gael.
Nick e eu trocamos olhares.
— As coisas se complicaram...
— Eu fui pego e ferido. Maisie acabou lidando com tudo sozinha.
— Ele me cortou. Gostei por ter me dado todo o mérito. — Devo
minha vida a ela.
Minhas bochechas esquentaram quando vários olhos se
voltaram para mim. Ninguém disse nada.
— Onde está minha filha? — Nick questionou. Tinha planos de
se levantar. O empurrei de volta para a cadeira.
— Damon e ela estão na aeronave. Agora que você e ele são
líderes de Érebos, aquela coisinha ali fora — apontou pela janela —
de lindas hélices, é de vocês. Os gregos nos deixaram com ela, mas
mandaram avisá-lo que você e Damon devem voltar para a Grécia o
quanto antes — explicou Gael.
Nick praguejou baixinho. Minha mente deu um estalo. Eu
esquecera completamente que as coisas não acabavam com a morte
de Athos. A promessa que Nick fizera aos gregos ainda estava de
pé. Ele faria parte daquilo...seria um deles.
— Devo chamar Damon e sua filha para entrar? — Perguntou
Jailson, em dúvida.
— Não — respondi mais rápido que Nick. — Há corpos e
sangue pela casa. Precisamos limpar tudo antes.
Todos concordaram sem pestanejar.

Mesmo em três, a limpeza levou horas. Gael e Jailson jogaram


dois corpos no mar; já o que estava na floresta, não mexemos,
estava longe. Luiza não pisaria para aqueles lados. E quanto a
Athos, Nick fizera questão de amarrá-lo à uma árvore distante. Pediu
que meus amigos o ajudassem a carregar o defunto, mas quando
encontrou a árvore que julgou perfeita, insistiu para que todos o
deixassem sozinho. Não interferi, mesmo desaprovando a ideia por
conta das suas feridas. Era um momento delicado. Athos privou Nick
da sua vingança, acabou com todas as fantasias sangrentas que o
macho reservara para ele. Aquele corpo morto era tudo o que restara
para Nick. Se quisesse rasgar sua pele, desmembrá-lo e servir de
janta para os urubus, era um direito seu. Eu nunca diria o contrário.
Eu cuidei da sujeira. Enquanto limpava o sangue, me ocorreu
que minha alma se tornara mais suja que aquele chão. Queria me
sentir culpada, tentei chorar, sentir remorso, mas tudo dentro de mim
era um poço vazio. Só o que senti, foi repulsa em ter de ficar
ajoelhada para esfregar o líquido já seco.
Quando acabei, disse a Gael que já podia trazer a criança para
dentro da casa. Ela entrou com Damon segurando em sua mão e se
escondeu atrás dele assim que me viu.
Luiza estava diferente de quando a vi pela primeira vez,
crescera alguns centímetros e tinha um olhar mais esperto, atento
em tudo à sua volta.
— Olá. — A cumprimentei. Se até Damon conquistara aquele
coraçãozinho inocente...eu tinha como obrigação conquistar também.
— Então você é a mocinha que faz lindas tranças?
Ela só sorriu e assentiu.
— Cadê o papai? — Ela perguntou a Damon.
— Ele foi dar uma volta. Deve retornar logo. — A respondi, já
que todos ficaram calados.
Os olhos de jabuticaba me analisaram com minúcia.
— Você é laranja — ela disse, por fim.
Ri com agrado.
— E tem pintinhas. — A criança continuou a análise por meu
corpo. Não me importei. Eu me lembrava de ser curiosa assim como
ela e de dizer tudo que me vinha à mente.
— Sim, eu tenho. Quer vê-las de perto? — Perguntei e me
agachei.
Luli balançou a cabeça em negativa e agarrou a perna de
Damon como se ele fosse sua salvação. Como alguém podia confiar
mais naquele sujeito que em mim? Eu não era capaz de entender.
Talvez fosse seus olhos profundos ou aquele maldito sorriso exibido.
— Maisie, preciso da sua ajuda — falou Damon. Desde que
entrara, ele não dissera uma única palavra. A voz demonstrava
pânico. Ele ergueu Luli no colo e tirou a touca da cabeça da menina.
A criança estava careca. — Dei um chiclete para ela...Não sei como
foi parar nos cabelos.
Arregalei os olhos, pasmada.
— O que foi que você fez, Damon!?
Então me virei para Gael e Jailson, eles também estavam de
touca. Retiraram-na.
— Raspamos por solidariedade a ela — disse Gael. Nunca
imaginei vê-lo sem os longos cabelos que tanto se vangloriava.
— E deixaram eu desenhar. — Animou-se a menina, apontando
com o dedo para Gael e depois para Jailson.
— Ah, sim. Ela desenhou pássaros na minha cabeça — disse
Jailson, se virando para que eu pudesse ver. Era só um rabisco feito
a caneta.
Cruzei os braços para Damon. Ele era o único entre os três que
continuava com as madeixas escuras, intactas.
— Eu depilei as pernas. Isso já basta. — Ele me respondeu,
como se tivesse lido minha mente. — Preciso que impeça Alastor de
me matar.
— E por que eu faria isso? — Retruquei.
— A criança gosta de mim. Ela sentirá minha falta se eu partir.
Não é mesmo, corvinha?
Ela sorriu com doçura para ele. Ele era um desgraçado. Estava
usando a criança para me convencer.
A porta dos fundos se fechou com um baque. Nick retornara.
O som dos seus passos se aproximando podia ser contado por
todos nós.
— PAPAAAAI. — Luiza praticamente saltou do colo de um para
o colo do outro.
Nick a pegou nos braços e deu um abraço apertado, antes de
passar a mão por sua cabeça e...
— O que fizeram com a minha filha!?
O silêncio não era sepulcral. Os pensamentos eram barulhentos.
Os olhares gritavam. Mas dos nossos lábios, apenas ar escapava.
— Ouvi dizer que cabeça raspada é tendência em Paris — disse
Gael, procurando amenizar o conflito que estava prestes a acontecer.
— Ouvi dizer que a perda do membro inferior também é. — Nick
rosnou.
— Não diga essas coisas na presença da corvinha —
resmungou Damon e recuou dois passos quando Nick desviou os
olhos para ele.
— Luli estava mascando chiclete. É normal essas coisas
acontecerem com as crianças — falei, na esperança de apaziguar
seus nervos.
Sua expressão foi de dor. De início achei que estivesse
chateado pelos cabelos da menina, mas quando ele colocou a filha
no chão, eu soube que aquela cara relação alguma tinha com a
garota.
— Você precisa descansar — atentei, com os olhos presos na
sua ferida.
Você me prometeu!
— Tio Gal desenhou na minha cabeça, papai — disse Luli,
baixando a cabeça para o pai.
Ele tocou no ombro da criança.
— Ual; como foi que você conseguiu ficar ainda mais linda? —
Perguntou Nick em êxtase. Seu amor pela filha chegava ser
palpável.
— Era para ser um unicórnio, mas ela ficava se mexendo por
causa de cócegas — explicou Gael.
Eu acabei gargalhando. Como ele, não era ele mesmo sem seus
fios alaranjados. Por mais estranho que meus amigos estivessem
carecas, eu não podia deixar de admirar o que fizeram pelo bem da
criança.
Me senti sortuda por ter homens com caráter tão extraordinário
ao meu lado.
— Posso desenhar em você? — Perguntou-me Luli, me
pegando de surpresa. Era sua primeira tentativa de interação
comigo.
— Não acha que ela já tem muitas estrelas, filha? — Nick tentou
contornar a situação, se referindo às minhas sardas. Decerto pensou
que eu me incomodaria em ser rabiscada e tentou me socorrer. O
que ele não sabia, era que eu queria me tornar a melhor amiga da
sua filha. Não por ele ou por nossa relação, mas porque Luli tinha
algo de especial, algo que fazia as pessoas quererem ter um espaço
no seu coração e na sua vida.
— Eu não me importaria em ter algumas a mais — falei e Nick
me olhou com nada além de um enorme sorriso no rosto.
Fiquei admirado com a tranquilidade de Maisie ao deixar minha
filha passar a caneta pelos braços sardentos. Luli não fizera um
desenho, não aos olhos adultos. Mas, à olhos apaixonados como os
meus, cada risco que ligava uma pinta à outra, dava a impressão de
um mapa estelar. Não seria exagero dizer que eu nunca vira um céu
tão de perto e tão lindo.
— Fiquei sabendo que a cabelo de fogo salvou sua vida. —
Damon disse como quem não quer nada.
— Seria estupidez esperar algo diferente de uma garota como
ela.
Ele ficou quieto por minutos e então disse:
— Sinto muito pelos cabelos de Luiza. — Foi sincero.
— O importante é que ela está bem e feliz. — Olhei mais um
pouco para a criança sorridente, largada no tapete e alucinada.
Depois para Maisie, e então o amor por ela me atingiu como um soco
no nariz. Eu nunca tinha recebido um sentimento com golpes tão
duros. —Já faz um tempo que eu amo aquela garota, mas só agora
posso sentir os sintomas desse amor sem achar que é uma péssima
ideia deixar isso me consumir. Algo naquela garota, iluminou o céu
para mim. Entende o que estou dizendo?
Ele soltou uma risadinha sem graça.
— Não.
Suspirei.
— Vamos falar sobre algo que você entende, então. Esnarriaga,
onde ele está?
— Todos foram para Érebos. Inclusive esse daí.
Fitei-o de esguelha.
— Certo. Arrume tudo. Partiremos pela manhã.
— Quando decidimos que você me daria ordens? — Perguntou,
em um ranger de dentes severo.
Ergui uma sobrancelha de modo irônico.
— A primeira vez que você tomou à frente eu me separei de
Maisie. Se tem algo que aprendi com aqueles ruivos, é que trabalhar
em equipe sempre traz resultados melhores.
— Não deve estar tão bom quanto o de Kate, mas ficou gostoso
— disse Maisie, ao arrumar a mesa de jantar.
— Quem é Kate e o que é isso aqui? — Perguntou Damon.
— Kate é nossa amiga, esposa de Hamish. Ninguém faz Haggis
melhor que ela — explicou Gael.
— Suponho que isso seja o tal Haggis — interrompi-os.
— Estou surpresa por você nunca ter comigo Haggis, Nicholas.
Você devia ser expulso da Escócia imediatamente — grunhiu a ruiva.
— Você é uma afronta para a nossa espécie — completou
Jailson.
Eu devia ter previsto que meu comentário os insultaria. Aqueles
ruivos levavam o legado do sangue escocês muito a sério.
— Tem ovo. — Para a graça dos céus, minha filha cortou o
assunto antes que garfos fossem enfiados na minha garganta.
— Você não precisa comer o ovo, se não quiser. — A respondi e
retirei o ovo de gema mole do seu prato. Uma careta me
acompanhou durante o processo.
— Vocês, escoceses, possuem um gosto um tanto quanto
peculiar. — O corvo comentou ao levar a comida à boca. Então
mastigou, apreciando o sabor demoradamente.
A ruiva deitou os braços na mesa e entrelaçou os dedos.
— Por que não nos diz de onde você é, assim fará mais sentido
suas ofensas — incitou.
— Um mensageiro da morte nunca revela suas origens. —
Rebateu à provocação no mesmo timbre.
Eu revidei:
— Já faz um bom tempo que esse posto não lhe pertence.
— O cargo de babá tem combinado mais com você. — Jailson
completou minha frase.
— Na verdade, escocês, nem mesmo nisso ele tem se saído
bem. Basta ver o que aconteceu na cabeça da minha filha. Talvez ele
se saía melhor passeando com cães, já que são da mesma espécie
— compactuei novamente.
Damon fechou a cara ao som das gargalhadas reverberando
pela sala de jantar. Nem mesmo Luli se conteve. Eu duvidava que
ela entendera um terço da conversa, contudo, as feições do corvo
fora o bastante para fazer a criança se debruçar em risos.
Após a refeição carregada de piadas às custas de Damon, levei
Luiza para a cama que dividiria comigo e retornei à mesa onde a
única que restara fora Maisie.
— Procurei por uísque, mas Gael e Jailson esvaziaram a última
garrafa. — Me estendeu uma taça de vinho tinto. Recusei.
— Apreciarei muito mais sua companhia estando totalmente
sóbrio.
— Me sinto honrada — gracejou.
Puxei uma cadeira e me sentei à sua frente.
— Ainda há resquícios de caneta em você. — Apontei com a
cabeça para seu braço. Acompanhou com o olhar.
— Ah, sim. Digamos que não fiz o menor esforço ao me lavar.
Ergui a sobrancelha, depravado.
— Talvez devesse considerar alguma ajuda da próxima vez.
Não recuou, tampouco acanhou-se.
— Sugere que essa ajuda seja de um homem?
— Não um homem qualquer.
— Você?
— Eu. Confesso que nos últimos minutos pensei nisso numa
medida que é verdadeiramente alarmante.
Observei com interesse a curva devassa dos seus lábios. Aquilo
estava longe de ser um sorriso inocente.
— Não imagino como possa me ajudar se quase não se aguenta
em pé.
— Quase — reiterei. — Meus dedos e outras coisas ainda
funcionam muito bem.
Dessa vez Maisie recorreu ao vinho.
Pigarreou antes de falar.
— Sendo assim, deixo a louça por sua conta. — Se levantou
para fugir.
— Covarde — falei baixinho.
Seus gloriosos olhos verdes me fuzilaram com a força de vinte
tiros.
— Egocêntrico — rebateu.
A cadeira arranhou o piso quando a empurrei para me levantar.
— Mimada — devolvi.
— Não sou mimada. — Franziu a testa ao falar.
— Você sempre fica emburrada quando as coisas não saem
como quer.
Deixou que o semblante carrancudo falasse em seu nome.
— Não fico emburrada. Eu só...só tenho medo de ser deixada
para trás. As pessoas sempre encontram alguém mais interessante
que eu e me esquecem.
— Não é verda...
— Sim. É. Gael encontrou Jailson, Charlie encontrou Tess. Você
encontrou Damon. Aos poucos todos vão encontrando suas
metades, mas não eu, porque não sou interessante o bastante para
completar alguém.
— Pare!
— Não sinta pena de mim. É apenas a verdade.
— Não entendo...
— Eu sei...
— ...Não entendo como alguém tão inteligente pode não ser
capaz de enxergar o que está tão claro. — Foi quando a peguei
pelos ombros e a sacodi. Eu estava irritado, zangado por aquela
autoflagelação sem sentido. — Me ter não basta para você?
Seus olhos tremeram, mas ela me encarou mesmo assim.
— Você não é meu.
— Não é tão óbvio de se ver?
Ela abriu a boca, porém, só sua respiração que ouvi.
— Maisie, eu quero respirar você. Posso até caçar vaga-lumes,
se isso fizer você sorrir; quero colher todas conchas laranja que vir
em meu caminho, apenas porque elas me lembram a você. —
Deslizei cinco dedos por seus cabelos. — Há o seu nome em meus
batimentos cardíacos. Você não é a minha metade porque você me
tem por inteiro. Eu estou aqui por você e morreria por você.
Consegue enxergar a profundidade desse amor?
Seus lábios tremeram e as pernas falharam. Ainda bem que eu
a tinha nas mãos.
— Você é como o meu paraíso, Nicholas.
Sorri, aliviado. Ela não ajudava na minha compostura quando
dizia meu nome daquele jeito.
— E você é meu inferno.
Eu achava que devia me manter afastada de alguém tão frio,
mas agora...agora eu sei o que há nas profundezas.
— Você tem cada versão minha. Da mais endiabrada, à mais sã.
Passou os braços em volta da minha fraqueza, me puxou pela
cintura e me queimou como todas as vezes antes.
— Prometo ser o melhor Nicholas e o pior Alastor, quando quiser
— continuou. Sua respiração quente e ardente acariciou minhas
bochechas.
— Eu devia estar sentindo seu coração bater tão depressa?
— Tem certeza de que é tudo o que pode sentir? — De súbito, o
senti mais perto e o grande poder entre suas pernas cresceu. Nick
ergueu meu queixo, mas, de tudo aquilo, foi o fogo em seus olhos
que me rendeu. — Sua beleza é demais para suportar.
Senti a parede em minhas costas no mesmo instante em que
sua língua invadiu minha boca alucinadamente para um grande beijo,
fazendo meu corpo pirar. Correspondi a cada investida dele, devolvi
os beijos, as mordidas. Me transformei na pior versão de mim
mesma porque aquela era a única forma que eu podia amá-lo
sobriamente estando tão despedaçada.
Ele me segurou mais forte, como se eu pudesse evaporar a
qualquer momento e desaparecer. Nossas almas ali se encontraram
e se desfizeram.
Sua mão deslizou por meus cabelos, fazendo parecer que
tentava amansar um animal.
— Você...não pode...fazer força...Hmmm — gemi, antes dele
afastar minhas preocupações com beijos de me fazer cortar laços
com a realidade.
— Então não farei — respondeu, sem qualquer convicção e
rasgou a camiseta masculina que me servia de vestido.
Eu estava totalmente nua por baixo.
— Nicholas! — O repreendi, temendo que alguém entrasse na
sala. Protegi os seios, mas algo me dizia que proteger minha parte
inferior era mais importante.
— Luiza é bem barulhenta. A ouviremos se ela se aproximar.
— Mas ainda tem os outros...
— Transforme o medo em prazer, doce chick. — A língua
molhada foi em minha nuca.
— É o que faz? — Perguntei, seriamente. Eu queria conhecer
um pouco mais do mundo de Alastor.
— Fazia — garantiu-me, ao se distanciar poucos centímetros.
Mesmo excitado, seu coração parecia frio como gelo.
— Já dividiu quantas garotas? — Insisti no assunto
gradativamente.
— É um pouco cedo para falarmos sobre isso — respondeu com
uma voz de trovão, impetuosa.
Não era preciso ser muito esperta para perceber que Nick não
me daria as respostas facilmente. Talvez seu passado fosse algo que
ele não gostasse de expor.
— Se quiser colocar sua boca aqui — apontei para o seio
esquerdo — ou aqui — para abaixo do umbigo. — Terá que me dar
algumas respostas.
Semicerrou os olhos com um ar de indignação.
— Você aprende rápido, não é mesmo?
— Dizem por aí que sou uma garota esperta — respondi.
Me chamou de um nome depravado antes de aceitar as regras.
— Livre acesso ao seu corpo para cada resposta?
Assenti e o empurrei para afastá-lo, mas não me soltou. Eu
amava o jeito que me segurava.
— Sabe que terminaremos em chamas, não sabe? —
Perguntou.
— Que o caos comece — provoquei. — Você já dividiu sua ex
noiva?
Rilhou os dentes e cerrou o punho. Tudo bem, talvez aquela não
devesse ser a primeira pergunta.
— Já — disse, ríspido. — Uma vez.
— Com algum conhecido?
— Burlando as regras do próprio jogo? Se não me engano, esse
seio aqui me pertence agora. — Encheu a mão com meu seio direito
e fechou os dedos devagar. Arfei, adorando ter aquela mão
possessiva me dominando. — A dividi com o desgraçado do meu
amigo, o sujeito por quem ela me trocou.
E tomou meu outro seio com a boca. Chupou, mordeu. E chupou
de novo, friccionando, de modo que fazia eu me contorcer para que
me tomasse com mais liberdade.
— Devo confessar que agradeço a tolice dela. — Ele riu com
meu mamilo em sua boca, causando-me espasmos. — Já desejou
outro homem?
— Não. — Se distanciou para responder e foi convicto. — Você
está perdendo esse jogo, querida. Está muito fácil para mim. Deixe-
me ver onde farei carícias com minha língua...Aqui me parece bem
convidativo. — Afastou meu cabelo da nuca com a ponta dos dedos.
O arrepio subiu por minhas costas como um sopro.
Sua língua deslizou do meu ombro pelo pescoço em uma
lambida molhada e sedenta.
— Quem está com os batimentos cardíacos rápidos agora, hã?
— Provocou. — Acho que eu quem devia fazer as perguntas.
— Canalha!
Ele se afastou. Estava corado e a respiração descompassada
entregava seu desejo.
— Onde quer que eu coloque a boca?
Arfei em resposta.
— Aqui? — Deu uma mordiscada em meu queixo e seguiu para
o pescoço. — Aqui?
Foram vários gemidos com seus lábios em minha pele antes de
eu conseguir verbalizar uma resposta descente.
— Mais embaixo.
— Aqui? — Encheu suas mãos com meus seios rígidos.
Pelos deuses...
Confirmei com a cabeça rapidamente. Era verdade, eu queria
sua boca cheia de fome em meus mamilos, mas uma parte bem
molhada de mim o aguardava com muito mais ansiedade. E,
Nicholas Coleman, o endiabrado e cafajeste, leu isso na minha face.
Desceu com um dedo para abaixo do meu umbigo e quando
sentiu meus pelos pubianos, ele simplesmente parou.
— Eu sei o que quer, só me diga quantos e você sabe o que
acontecerá em seguida — falou para me castigar.
Ter me algemado e açoitado, teria sido mais piedoso. Mas você
não aceita misericórdia, Nicholas.
Seu dedo ousado novamente se movimentou. Mais e mais,
descendo por uma estrada úmida. Eu me contorci e feri os lábios
para controlar o escândalo que quase atravessou minha garganta.
— Não seja tímida. Você sabe que eventualmente será minha.
O calor da minha pele incendiou a parede às minhas costas.
Nicholas Coleman me levava ao limite.
— Quantos quiser — respondi. O pecado amava minha
companhia.
Nick deu uma risada abafada, rouca, indecente.
— Ah, garota. Não me dê essa liberdade. — E penetrou aquele
bendito (ou maldito?) dedo em mim. Não foi fundo, só o suficiente
para me tocar por dentro. Para sentir como eu pulsava por ele.
Separei as pernas e empinei o traseiro contra a parede. Não me
importava a posição ou o lugar, tudo o que eu queria era tê-lo se
aventurando por meu corpo e expulsando toda a escuridão que ele
tinha por dentro. — Eu adoro quando a encontro esperando por mim.
— Abri meus olhos no instante em que retirou o dedo molhado e o
levou à boca. Provou do meu sabor como quem aprecia a bebida
perfeita e perdeu a cabeça. — Doce por fora e amarga na medida
certa por dentro. Não consigo ficar longe disso. Nem mesmo o
uísque é capaz de absorver o estrago que você me faz.
Meu orgulho se derramou por aquelas palavras.
— Eu tenho uma pergunta — murmurei e bati no limite. Minha
mente jogava truques e eu não tinha escolha a não ser aceitá-los. —
Quantas ruivas já teve na sua vida?
Olhou-me confuso.
— Na minha vida?
— Na cama...eu acho.
Ele se inclinou um pouco.
— Acreditaria se eu dissesse que é a primeira?
— Não minta para mim — o repreendi, áspera.
— Não estou. Eu sou apaixonado por você, Maisie. Por cada
coisinha que lhe diz respeito. Você é única. Essas sardas, esse
cabelo, esse arzinho de garota determinada. Eu nunca tinha lidado
com nada parecido e agora não me refiro somente à cor dos seus
cabelos. Não importa o que você faça, eu ainda a amarei cegamente
por ter me enxergado através do caos. Se eu tivesse intenção de me
casar algum dia, seria com você. Se me aceitasse, certamente.
Meu coração foi amassado como papel.
— Não quer se casar? Nunca? — Minha voz saiu enfraquecida.
— Eu pensei que... — Vi todos meus planos de adolescente
sonhadora serem soterrado, durou menos que um desenho na areia
da praia.
— Você por algum momento cogitou se casar comigo? —
Demonstrou ansiedade.
Tive que verificar se eu continuava respirando após desmoronar.
— Não — respondi, impulsiva e olhei para o vazio que deixei
com aquela resposta. Não soube se foi o choque pela pergunta ou o
espanto por sua resposta anterior, mas o “não” ríspido que
atravessou minha boca foi mais rápido que qualquer análise do meu
cérebro. Por que vivíamos uma relação de amor e ódio? Por que
gostávamos de ser malvados um com o outro quando
compartilhávamos as mesmas cicatrizes?
— Algo me diz que ambos mudaremos de ideia — falou,
veementemente. Ele viu uma faísca onde não tinha uma chama e
isso foi o que fez eu me sentir completa outra vez.
— E enquanto isso não acontece? — Era uma pergunta
importante. Se Nick não tinha intenção de se casar, então que diabos
estávamos fazendo juntos?
Ele tornou a possuir um olhar que fazia meu corpo desejar
sentar com força na sua boca, ou...Desci com os olhos até seu
grande volume. Se era para ser honesta, sentar ali seria
inegavelmente melhor.
Sua mão foi parar na minha nuca suada e, segurando forte, me
puxou para mais perto.
— Ter você é suficiente. Estou disposto a ser seu brinquedinho
por essa noite.
Eu dei a ele cada pedaço de mim.
Assim que projetou seu pescoço para frente, no intuito de
redesenhar meus lábios com sua língua, ouvimos passos.
Tragicamente alguém estava disposto a acabar com nossa noite
ardente. Não poupei maldições ao indivíduo.
— Para debaixo da mesa. Rápido. — Apressou-me Nick.
Sequer tive tempo de recolher meus retalhos no chão.
Arrastei minha nudez para debaixo da mesa como fora
aconselhado. Nick se colocou na minha frente para me acobertar,
caso a pessoa resolvesse passar por ali.
— Também está sem sono? — A voz cansada de Gael foi
límpida como a lufada de vento lá fora.
Bem, talvez o murro que lhe darei o ajude a dormir.
— Na realidade, o vinho é para disfarçar um pouco a dor. —
Nick respondeu. — Aceita uma taça?
Dor? Você me pareceu saudável demais deslizando seu dedo
para dentro de mim, Nick.
— Por favor. Quer saber, me passe a garrafa.
Ouvi quando Nick entregou a garrafa para o outro e então Gael
puxou uma cadeira para se sentar.
Isso vai demorar.
Soube que Nick pensara o mesmo que eu quando trocou a
perna de apoio.
— Então, é amanhã que você dará um jeito nos gregos ou
planeja mesmo se juntar a eles? — Questionou Gael, intrometido.
Se a conversa dos machos ia demorar, eu precisava de uma
distração.
Será que está mesmo disposto a ser meu brinquedinho essa
noite, Nicholas?
Me ajoelhei e levei as mãos no zíper da calça do macho à minha
frente. Deslizei vagarosamente para que Gael não ouvisse o ruído.
— O que pensa que está fazendo? — A grossa voz de Nicholas
fez minhas mãos ficarem mais determinadas. Eu sabia que a
pergunta não fora feita para Gael.
— Abrindo a garrafa...? — Respondeu o coitado do meu amigo.
Assim que fiz minha mão avançar uma etapa, o senti ficar muito
mais rígido. Mas aquilo não era o suficiente para mim. Eu queria
bebê-lo até me afogar. Queria senti-lo na minha boca, na garganta.
Ultrapassar todos os limites. Deixá-lo louco e sem reação.
Desci sua cueca. Foi curioso perceber o quanto o risco de ser
pega me excitava.
Cuidadosamente levei minha cabeça na sua direção e enchi
minha boca de Nicholas Coleman. Não fui uma boa garota. Fui
selvagem à cada chupada.
— Deus...do...céu — ele grunhiu, agarrando à mesa. Devia ser
muito difícil tentar controlar os gemidos e parecer normal aos olhos
de Gael. — Esse...esse vinho é uma droga. Não acha?
— Odeio ter que discordar, cara. Eu adorei — respondeu Gael.
Suavemente, subi e desci a língua o umedecendo com a minha
saliva, deixando-o molhadinho.
— Isso é bom. Muito bom. — Nick deixou escapar.
Me perguntei se ele ainda tinha cor nas bochechas.
— Você acabou de dizer que é péssimo — respondeu Gael,
atordoado.
Nick agarrou a mesa com mais força. Ficou claro que eu estava
indo muito bem.
— Me refiro a discordar de mim, às vezes. Isso demonstra que
você é... corajoso.
Acho que você está começando a perder o juízo, meu bem.
O tomei por inteiro outra vez e pude senti-lo na garganta. Deu-
me sensação de cócegas, mas de modo algum eu podia pensar em
tossir. Voltei para a cabecinha e chupei rápido.
— Achei que você fosse do tipo que vai com o dedo no gatilho
sempre que é contrariado.
Diminuí o ritmo quando seu pau endureceu drasticamente.
— Não seja cauteloso e não seja gentil — ele disse e claro que
não foi para Gael. — A propósito, você já ultrapassou todos os
limites, agora vá em frente.
— Acha que fui gentil? Você ouviu quando eu disse que você
assassina qualquer um sem dó?
— Diga tudo de uma vez, Gael.
O que Gael respondeu eu não pude ouvir. Toda minha
concentração foi direcionada a Nick. A fazê-lo delirar. Fiz
movimentos de sucção, porém, com suavidade, movi minha língua
ao redor e depois o chupei. Descendo e subindo com a cabeça,
colocando-o todinho na minha boca.
Não usei a língua com economia.
— ...o tipo malvadão. O cara que está sempre com o peito
estufado. — Ouvi um pedacinho da conversa.
— Você tem mesmo uma língua de ouro — murmurou para mim.
— É bom saber que posso ser sincero com você sem que surte.
— Isso está quase me deixando aliviado. Bem aliviado —
enfatizou. Foi como se estivesse me alertando que chegara ao limite.
— Deixo o convite aberto para...que seja sempre honesto. Quero que
possamos nos entender melhor daqui pra frente.
Eu tinha certeza de que o raciocínio de Nick já não existia mais.
Certa vez eu lera algo sobre os testículos, em como um
movimento poderoso com a língua podia levar um homem à loucura.
Ora, eu estava pronta para testar a veracidade.
Me abaixei um pouco e o lambi de baixo pra cima, como se
fosse um picolé derretendo. Nick agarrou a mesa com tanta força,
que fez seu desespero se tornar meu som favorito.
— Por Odin, você está pálido. Está com dor? — Gael perguntou,
preocupado.
— Mhmm — ele gemeu em resposta, desorientado. Ele estava
perto de gozar na minha boca.
Passei a língua mais uma vez. Eu podia imaginar o estufar do
seu peito.
— Gael, saia.
— Você precisa de ajuda...
Nick soltou uma risadinha.
— Olha, eu prefiro passar por isso sozinho.
Descarado.
— Como quiser. — O ruivo respondeu desconfiado, mas deu a
privacidade do outro e foi embora.
Eu não parei nem quando Nick e eu ficamos a sós. Pelo
contrário, fiz questão de terminar o que começara. Eu mostraria que
eu estava ali para fazê-lo se ajoelhar.
— Maisie! — Rugiu meu nome como um leão dono da selva. Ele
fervia, provavelmente mordia o lábio.
Não era como se eu fosse uma menina má, mas deixá-lo tão
congelado a ponto de não conseguir falar, era tudo o que eu queria.
Eu sabia exatamente o que fazer com seu pau na minha boca, então,
acelerei e o prendi como meu refém até que gozasse.
Seu corpo se chacoalhou em um choque e ele socou a mesa
com um punho que pareceu de aço.
Engoli tudo devagar assim que minhas bochechas foram
preenchidas. O gosto não era bom, mas o fato de eu ter deixado o
macho de joelhos por meus movimentos, deixou tudo mais saboroso.
E molhado.
Bem molhado.
Quase encharcado.
Desceu por mim como um suco doce.
Limpei os cantos da boca com o peito da mão antes de ser
arrancada de baixo da mesa assim que Nicholas voltou a ter
sanidade.
Senti os olhos de oceano pelos quais me apaixonei em cima de
mim, me deixaram sem ter para onde fugir, os observei enquanto me
exploravam.
Eu estava com seu nome na ponta da minha língua, quando ele
disse com maldade:
— Gostou de me domar?
— Foi satisfatório — respondi.
Fitou-me profundamente.
— Como alguém tão linda como você, pode ser um ser humano
tão terrível?
— Isso o assusta?
Negou.
— Estou vendo estrelas em seus olhos — reparou, sorridente,
me segurando muito perto dele — e isso me deixa entorpecido.
Me perdi no jeito que segurou em meus cabelos. No modo como
passou a língua por meus lábios molhados por ele. As ondas de
sentimentos que me tomaram foram assustadoras. Ele me tocava
como se nunca tivesse tocado alguém, me endeusava.
— Está tudo bem, minha menina. Eu sei o que você quer. Darei
o melhor de mim, você merece isso. Eu vou beijar toda essa tinta
que ainda há no seu corpo e pode apostar que vou experimentar
tudo duas vezes.
Perdi tudo. Todo meu autocontrole. Toda a droga da dominação.
Eu precisava estar em cima dele, porque não estar era como se eu
tivesse parado de respirar.
— Eu quero você. — Tentar negar era insano. Deixei que
assumisse o controle.
— Você me tem e me terá para sempre. — Me inclinou com
delicadeza na mesa, me apoiei com as mãos e joguei a cabeça para
trás. Ele traçou o contorno do meu corpo com seus lábios, em beijos
suaves, mas que danificavam minha lógica e fazia ser difícil falar e
ver. Depois de pintar um retrato com sua língua por meu abdômen,
deu uma mordidinha na parte interna da minha coxa. Meu corpo
oscilou como um galho numa tempestade.
Meu coração correu de costas e o gemido que soltei, dançou
pela sala.
— Gema outra vez. Eu gosto disso — pediu, sem deixar de tocar
em meu corpo com aquele pecado em forma de boca. — Passe uma
perna por meu ombro.
Fiz o que pediu. Ele aproximou-se com liberdade, mas ergueu
os olhos antes de me tomar por inteira. Eu senti eletricidade, o calor
como uma brasa. Aquilo era muito mais que paixão, o que eu sentia
era poderoso demais para ser parado.
— Você quer ser minha? — Nick perguntou.
— Eu quero ser sua — reforcei. Ele não precisava pedir, bastava
eu olhar em seus olhos e eu já era dele. — Eu sou sua.
Algo saiu do meu peito quando passou a língua por meus
pequenos lábios e me chupou devagar. Me amando, idolatrando. Me
larguei na mesa, mesmo que em uma posição desconfortável, eu me
perdi completamente naquele oral. De olhos fechados, enquanto me
bebia, me sugava e devorava, eu passei por montanhas e mares.
— Você é tão gostosa, Maisie e sabe como ferrar comigo. —
Sua barba ralinha arranhando sutilmente a parte sensível das minhas
coxas, tornou mais difícil de respirar.
Com a língua mole e bem lubrificada, Nick lambeu de baixo para
cima três vezes, bem lentamente. Fechei os olhos, ao passo em que
ele passeava por mim sem pressa, explorando tudo com a boca.
— Ahhh. Droga! — Gemi.
Para estimular ainda mais, ele deu um sopro fraquinho, chupou
e deu mordidinhas no meu clitóris, me amando suavemente,
saciando meu apetite. Senti meu corpo queimar quando meu prazer
cruzou a linha e alcançou um voo mais alto. Meus braços se
arrepiaram e eu inconscientemente prendi a cabeça de Nick em
minhas pernas ao passo em que eu gozava na sua boca e lhe dava
tudo que eu tinha.
Todos dormiam, enquanto queimávamos suavemente na noite.
Enquanto eu sentia meu corpo correndo em direção ao sol, senti
suas mãos fazendo pressão em meus quadris.
— Agora, olhe para mim e me veja de joelhos por você.
Eu me vi quase sem vida.
— O que? — Soei abalada, ainda estava me recuperando.
— Você é a única coisa pela qual eu me ajoelho e imploro. Você
apareceu enquanto eu atravessava o inferno e calou todos os ruídos
da minha mente com o mero som da sua voz. Não quero mais ficar
de joguinhos, eu preciso de você. Sei que está ferida e machucada
por tudo o que fiz, e me odeio por isso, mas eu quero que...quero
que me perdoe. — Ele finalmente disse as palavras que consertavam
as coisas que estavam quebradas.
Eu reconheci o fogo queimando em seus olhos, o caos
controlado na cabeça, e o coração partido exposto na minha frente.
Fiquei sem fôlego.
Sentei em meus calcanhares e o envolvi em um abraço
inesquecível no seu pior momento. Prendi seu corpo no meu como
uma tatuagem.
— Eu estarei aqui por você nas suas horas mais difíceis e nas
suas noites mais obscuras.
Sua respiração tocou minha nuca.
— Não vamos mais pegar pesado um com o outro e transformar
esse amor em uma guerra — ele disse.
— E nem ser rudes.
— Me perdoe por minha estupidez. Eu posso pedir perdão a
você um milhão de vezes, sei que sua fé por mim foi abalada. Eu não
tenho medo de me rastejar por você ou de me dobrar, se for preciso.
— Eu não quero isso. Que se rasteje e implore.
Ele segurou meu rosto e me obrigou a encarar seus olhos
molhados. Eu ainda estava paralisada.
Isso é real?
— Não ache que estou desesperado ou confuso. Tentei ficar
longe de você mesmo a amando... porque eu não fui totalmente
honesto com você. Eu irei lhe contar o que escondo porque não
quero mais que haja segredos entre nós, isso faz parecer que a
ponte que criamos está em pedaços.
Era possível ver como ele estava arrasado.
— Você pode confiar em mim, Nick — incentivei. Na verdade, eu
queria berrar: pare de morder a língua. Esse mistério está acabando
comigo.
Abriu um sorriso quebrado e tinha um semblante frio o bastante
para arrepiar meus ossos.
— A garota que Athos estuprou...Ela tinha o cabelo ruivo
também. Não era tão laranja quanto o seu, mas sempre que olho
para esses fios — seus dedos adentraram nos meus cabelos — eu
me lembro dela. Eu disse para você que não a conhecia, mas não é
a verdade. Seu nome era Graziella, eu a chamava de zizi. Seu
apelido era uma das poucas coisas que eu pronunciava quando
criança. Nós crescemos juntos, ela não morava muito longe da
fazenda em que eu morava. Brincávamos mesmo sem saber que
éramos quase irmãos. Uma das coisas que ela mais adorava, era
libertar os cordeiros de Athos pela noite para então caçá-los ao
nascer do dia e fazer parecer que ela salvara nosso inverno, além de
ganhar algumas moedas de recompensa. Ao passo em que Athos
empobrecia, zizi lotava sua garrafa. Meu padrasto ficava
enlouquecido tentando descobrir como os malditos cordeiros, tão
pequenos, escapavam, enquanto zizi e eu ríamos escondidos.
Nick respirou fundo e não se importou em deixar mais lágrimas
salgadas caírem no chão.
— Athos era esperto, eu sempre odiei a forma como ele tratava
tudo e todos, mas nunca deixei de dar crédito à sua inteligência. Três
invernos depois, zizi não foi à fazenda de Athos como o de costume.
Passou a primeira semana de frio intenso sem que ela desse sinal de
vida; eu pensei em ir à sua casa, mas Athos me proibiu veemente ao
erguer seu chicote. — Ele fechou o punho e trincou os dentes. — Na
semana seguinte, eu tive a estúpida ideia de libertar os cordeiros
sozinho e continuar o ritual de zizi. Eu pensei que talvez se um dos
cordeiros passasse pela fazenda dela, ela apareceria para brincar
comigo. Não funcionou. Em troca, quase todo o rebanho de Athos foi
perdido, a maior parte dos filhotes não suportaram o frio glacial, não
estavam preparados ainda...Foi uma fatalidade.
— E o que aconteceu depois?
Ele deu outra respirada daquelas.
— Meu padrasto já estava desconfiado de zizi há alguns
invernos, eu devia ter previsto isso. Não só previsto, eu devia ter
desconfiado dos braços roxos da menina e seu olhar cabisbaixo
como eu nunca vira. — Ele fechou os olhos com força. — Athos
pensou que a culpada pelo sumiço dos cordeiros tinha sido zizi,
como sempre, então quando minha amiga se recuperou da gripe que
tinha pego e eu não sabia, ela finalmente foi me visitar. — Ele
engasgou, como se estivesse com uma pílula difícil de engolir presa
na garganta. — Athos aproveitou a oportunidade e se vingou da
própria filha à sua maneira e deixou seu corpo morto na terra para
que eu visse. Foi a última vez que me ajoelhei para uma garota e ela
era só um cadáver.
— Nick...
— Ela morreu por minha culpa — soluçou. Foi como se as
palavras tivessem tirado o peso de algo que o esmagava todos os
dias. — Você pode pensar o que quiser de mim agora, não vou
julgar.
— Não. Não. Não. — O puxei para meus braços novamente e o
apertei com força. Naquela noite, como em nenhuma outra, Nicholas
Coleman precisava de mim por perto, e eu o seguraria. Sentiria sua
respiração em meu pescoço a noite toda, se precisasse.
Eu dissera que sentia muito umas vinte vezes e ele resmungou
palavras que deixavam claro o quanto ele se odiava.
A dupla visão que eu tinha dele finalmente ficou clara. Nicholas
se culpava pela morte da menina e se punia por isso. A alma ferida
de Nick gritava através de Alastor: por favor, me veja. Essa alma era
uma estrela perdida tentando iluminar toda a escuridão.
O homem que era tão difícil de entender, se tornou fácil como
um rabisco de criança.
— Você era só um garotinho querendo brincar, Nicholas. Eu
conheço seu interior e vejo luz nele.
— Não, eu a... — Ele estava sem fala e tropeçando nas
palavras.
Segurei seu rosto como ele havia feito com o meu outrora.
— Eu nunca teria me apaixonado por você se não fosse o
homem que sei que é. Athos matou aquela garota e acabou com
você, com seu eu verdadeiro. Eu sei que é difícil, mas você precisa
deixar tudo isso para trás. Seu padrasto morreu, permita que as
lembranças ruins vão com ele.
— Não sei se consigo — balbuciou com os olhos vermelhos e
inchados.
Inspirei seu hálito. Era uma mistura de vinho, prazer e água do
mar.
— Feche os olhos e eu o beijarei. Quando tornar a abri-los, tudo
terá desaparecido.
Me deu um sorriso cansado e o azul noturno dos seus olhos
brilharam. Se asas existissem, eu seria a primeira a voar naquele
céu.
— Como você consegue derreter toda a minha amargura?
Mordi um sorriso e ordenei:
— Feche os olhos. — Ele o fez e eu o beijei como se o amanhã
não fosse existir. Eu dei tudo através daquele beijo, todo meu amor,
paciência, atenção.
— Se todos meus dias derem errado daqui pra frente, eu me
lembrarei dessa noite em que abri todas minhas cicatrizes para você
— disse com os lábios grudados nos meus. A fala era cálida e
mansa. — Eu tenho esperado a vida inteira por alguém como você.
Você é exatamente o que quero e exatamente o que preciso.
Olhando para a bagunça que sou, ainda assim você me quer?
Casualmente e confiante, beijei suas lágrimas.
— Ainda assim, o quero. — O abracei novamente e se tornou
difícil saber onde ele terminava e eu começava. Foi como se as
estrelas finalmente tivessem se alinhado.
Levei as mãos nos quadris.
— Foi só uma pequena mudança no trajeto. — Ele disse pelo
que devia ser a quarta vez.
— Já disse que não vou ao médico. Ainda tenho um olho
funcionando, não preciso dos dois.
Ele suspirou e massageou as têmporas.
— Maisie, pare de agir como se eu estivesse a torturando.
Quero que vá ao médico para o seu bem. Já faz dias desde sua
cegueira...
Todos da mesa pararam de mastigar e me encararam.
— Que cegueira? — Foi Gael quem questionou.
Dessa vez eu quem suspirei e lancei um olhar fatal para Nick.
Na próxima refeição, eu daria concreto para o desgraçado comer.
— Eu sei o que está pensando, quer ver minha cabeça
decapitada por dedurá-la. Mas todos aqui querem o seu bem —
falou, ignorando os outros. — Vamos dar uma olhada em você e
depois partimos para a Grécia. Sei que Damon não se importará de ir
na frente e explicar a situação para os gregos.
— Eu concordo com a ruiva. Ela só precisa de um olho, mas
posso fazer o que me pede, Alastor. — O corvo respondeu.
— Será que dá pra alguém explicar pra gente o porquê de a
ruivinha ter só um olho? — Jailson gritou para atrair atenção. Graças
aos deuses Luli estava distraída com a televisão em outro cômodo.
— Posso deixar a resposta para Nicholas, ele já começou a
contar tudo mesmo! — retruquei, emburrada. Eu não estava zangada
por ele ter revelado meu segredo para os outros, mas sim por
permitir que minha cegueira fosse um empecilho. Eu não queria que
ele levasse aquilo tão a sério pelo fato de eu não querer me
preocupar. Tínhamos tantos outros assuntos que mereciam total
atenção...
Eles achavam que eu estava destruída, mas eu nunca estivera
tão bem. Sabia que eu vinha agindo irresponsavelmente há um
tempo, mas, o que eles não entendiam, era que eu queria ser livre e
não uma garota que precisava de alguém para salvá-la. Algumas
dores são importantes para nos fazer crescer e era inevitável que eu
crescesse. Eu precisei aprender o que fazer quando ninguém
aparecesse para me ajudar. E eu aprendi, ainda que de uma forma
muito cruel.
Me perdi em pensamentos enquanto Nick explicava tudo para os
outros e fui levada até a noite passada quando ele se ajoelhou por
mim e revelou a pior coisa que já acontecera na sua vida. Aquela
confissão nos deixara mais ligados. Foi além de um segredo
revelado, foi seu coração que ele colocou em minhas mãos. Ele
confiava em mim mais que confiava em qualquer outro e, para mim,
não existia prova de amor maior que essa. Sentia que se superamos
todos nossos pesadelos juntos, então podíamos superar qualquer
coisa,
O encarei, enquanto ele ainda falava. Você guarda meus vaga-
lumes e eu guardo seus dias de inverno.
— Maisie? — Gael me chamou.
— O quê? Já disse que estou bem. — Falei qualquer coisa
porque sabia que eles esperavam alguma reação minha.
Nick me deu um rápido sorriso sexy e me fez lembrar de quando
me fez gozar em sua boca.
— Está corada. Está bem? — O descarado perguntou e se
empertigou na cadeira. Tive uma visão clara de onde queria cavalgar.
— Ótima — retruquei, sem perder a compostura.
Como se já não bastasse a provocação verbal, senti o pé de
Nick roçar em minha perna por baixo da mesa. O devasso subiu meu
vestido bem devagar. O tecido alisando minha pele era uma
tremenda perdição. Ele separou minhas coxas e me transformou em
uma estrada para o inferno.
Me contorci e pigarreei, enquanto o macho tinha o olhar mais
divertido possível.
— Você devia ter nos dito que estava cega — criticou Gael.
Transferi um olhar duro para ele.
— Todos fomos feridos de alguma forma. Não transforme minha
situação em algo mais trágico só porque sou mulher. Estou cega,
mas estou viva. Não vou me lamentar por um olho quando sei que
algo muito pior podia ter acontecido — falei, embora todos
soubessem que eu não era tão durona assim.
Nick afastou seu pé de imediato.
— Podem nos dar licença!? — Seu timbre foi ríspido.
Entendemos que se tratava de uma ordem e ninguém estava com
disposição para contrariar Nick naquela manhã.
Assim que todos se foram, seu rosto metamorfoseou. Alastor
virou o centro da atenção. Eu vi sua luz escura, mas nem aquela
versão me assustava.
— Me deixe cuidar de você. Tudo na minha vida pode ser
substituído, exceto você e Luiza. Se eu não puder proteger e cuidar
das duas, então que diabos estou fazendo aqui?
— Não precisa cuidar de mim...
— Eu não posso evitar.
— Por que? — Indaguei em um erguer de sobrancelha sutil.
— Porque amar vai além de dar as mãos e proporcionar prazer.
Não vou deixar ninguém machucar você, nem você mesma.
Na presença dele eu estava sempre vivendo, mas nunca
respirando. Eu não sabia que palavras eram capazes de quebrar
ossos.
— Talvez eu concorde em ir ao médico se souber me barganhar.
Seus traços se suavizaram. Ele empurrou a cadeira e se
levantou, vindo ao meu encontro.
— E se eu disser que podemos comprar doce no meio do
caminho? Isso geralmente funciona com a Luiza quando voltamos do
dentista.
— Por acaso o senhor está insinuando que pode me comprar
com comida? — Fiz cara de zangada.
— Insinuei certo?
Abri um enorme sorriso.
— Certíssimo. — Me levantei e fiquei menos de um palmo de
distância dele. — E lhe prometo que se o doutor resolver meu
problema, eu deixo você escolher de que forma irei recompensá-lo.
Seus dedos atravessaram meus cabelos e seu sussurro veio em
meu ouvido:
— Quer saber minha fantasia? — Assenti e ele me alimentou
com suas ideias eróticas: — Acabei de imaginar como seria fazer
você gemer sobre essa mesa. Seus braços e pernas esparramados
e enquanto minha língua a lambe, seu prazer pinga no meu queixo e
suas unhas arranham minhas costas.
Engoli em seco. Ao invés de diminuir a temperatura, eu a aqueci
ainda mais:
— Eu poderia considerar dar sua recompensa antes do
resultado.
— Eu também acho que não devíamos esperar, porque no
segundo em que você me virar as costas, algo me diz que eu olharei
para seu extraordinário traseiro e não poderei me controlar.
Ele me puxou para mais perto do seu peito. Eu fingi estar
tranquila e ignorei a carne que eu ansiava e queria agarrar.
— Acho que se você conseguir se controlar, tudo será mais
divertido depois — declarei, como a refém que eu era do meu
orgulho.
Seu olhar foi o de um caçador esperando pela temporada. Dei
as costas e fiz questão de rebolar enquanto me afastava. Eu podia
não ter experiencia alguma com sexo, mas isso não me impedia de
saber levá-lo a loucura.
— Você é tão linda, garota, e eu sou tão apaixonado por você.
— Ele colocou todo seu coração naquelas palavras.
Isso é amor? Me parece muito com suicídio, porque a cada
segundo sinto que a felicidade está me matando.
— Acho que os gregos não gostarão muito de serem deixados
para trás — acautelou Damon, enquanto me ajudava a colocar as
coisas no barco. — Você disse para eles que ia acabar com Athos e
logo voltava.
— E o que você sugere que eu faça? Que deixe a garota cega?
Maisie está assim por minha culpa. Eu a ajudarei e se toda a
Sociedade de Érebos quiser vir atrás de mim, que venham!
— Você não entende, Alastor...
Larguei o baú de armas no chão. Tínhamos encontrado uma boa
quantidade de revólveres pela casa e eu me neguei a deixá-los para
trás.
— Não, Damon. É você quem não entende. Você provavelmente
não sabe do que estou falando, não compreende, então deixe-me
ser claro. Maisie apareceu antes que os demônios tomassem o
controle da minha cabeça. Antes dela, eu era só pele e osso. Estive
queimando no inferno por anos, e ela me fez voltar dos mortos.
Agora é minha vez de ajudá-la e se isso custar minha morte. — Dei
de ombros, indiferente. — Morrerei com um sorriso no rosto.
Ele processou minha mensagem devagar.
— Sendo assim, farei o possível para que ninguém vá atrás de
vocês. Tem a minha palavra.
Dei dois tapinhas em suas costas.
— Você é um bom amigo, Damon. Quando não está tentando
dormir com a minha garota ou colocando chiclete nos cabelos da
minha filha.
Ele riu alto e pegou o baú assim que fiz cara de dor. Aquele
ferimento estava me dando nos nervos.
— Foi um incidente. Como eu poderia imaginar que a menina
dormiria com chiclete na boca?
— Você ficaria surpreso se soubesse o tanto de coisas
inimagináveis que crianças conseguem fazer. Quando tiver sua
própria filha, você verá. — Aproveitei que ele cuidara do baú e
verifiquei a vela do barco. Estava ventando bastante a nosso favor,
então eu descartei o uso do motor. — Por falar nisso, o que deu com
a indiana? — Perguntei assim que o corvo retornou.
Todos os outros já tinham se alocado no barco. Luli trançava os
longos fios ruivos de Maisie, já Gael e Jailson, atiravam pedras na
água para saber quem fazia saltar por mais tempo.
— Não a vi novamente. Mas espero que ela tenha se acertado
com o noivo. Odiaria saber que estraguei um casamento.
— Mas você estragou mesmo.
Me olhou torto.
— Na concepção do pai dela, foi Nicholas Coleman quem
estragou. Se eu fosse você, andaria com os dois olhos bem abertos.
Seria uma pena se um indiano aparecesse bem no dia do seu
casamento e...
— Não irei me casar.
Franziu a testa e me olhou atentamente.
— Como não?
— Quando surgiu o assunto, Maisie foi muito objetiva ao dizer
que não tem a menor intenção de cruzar um tapete vermelho. E eu
também não solto fogos com a ideia.
Damon parou tudo o que estava fazendo para me ouvir.
— Então vão fazer o que?
— Estamos indo devagar. Não faz dois dias que nos
resolvemos. É um pouco cedo para se preocupar com isso, não
acha? — Eu não queria sua opinião, aquela era minha forma
educada de encerrar o assunto.
Mas ele surtou.
— Devagar? Vocês já deram a vida um pelo outro. Não tem
como ir devagar após isso. Eu vou abrir o olho que continua
funcionando da cabelo de fogo e v...
Segurei o sujeito pelos ombros antes que ele me fizesse jogá-lo
do barco.
— Damon, eu não sei se quero me casar. A última mulher que
pedi em casamento e coloquei dentro da minha casa, me trocou por
outro. Minha filha ficou arrasada, eu fiquei arrasado. Não estou
comparando Maisie, mas é normal que eu tenha um pouco de medo,
não acha? Eu a amo como nunca amei outra na minha vida, mas não
posso fazer Luiza passar por isso de novo.
Quando ele por fim entendeu minha frustração, mudamos de
assunto e foi muito mais agradável discutir sobre as mudanças que
faríamos em Érebos.

Algumas horas depois, já em solo firme, Maisie, eu e os outros


fomos recebidos muito cordialmente por outros escoceses em sua
casa. Eu me lembrava de um deles...
— Foi você quem me ameaçou na delegacia, não foi? —
Perguntei ao homem de semblante fechado. Ele estendeu sua mão
em forma de cumprimento. Correspondi.
— Sim. Esse é Charlie. — Maisie respondeu por ele. — Está
bem mais bronzeado que o normal. Por que está parecendo um
camarão?
Maisie tinha razão. Charlie parecia ter acabado de sair do forno.
— Tess disse que íamos passar a lua de mel no Brasil, mas
estou para dizer que a criatura me levou para o deserto. Que calor
dos infernos!
Sua esposa se aproximou em um revirar de olhos.
— Como você é exagerado, Charlie. Eu disse para passar
protetor solar, mas você e seu ego se recusaram. Agora saiba lidar
com as consequências e receba educadamente os convidados.
Ele bufou, no entanto, tinha o mesmo olhar apaixonado que a
esposa.
— Se eu puder lhe dar um conselho, policial. Não vá nunca ao
Brasil, mesmo se o amor da sua vida implorar.
Todos gargalharam. Eu só sustentei o sorriso pequeno que já
estava em meu rosto.
— Não dê ouvidos a esse tirano, ele passou metade das férias
tomando banho de sol com meu pai. — Tess arrastou seus olhos até
Luli. — Sua filha iria adorar o clima tropical. Qual o nome dela?
— Luiza. — Passei a mão pelo joelho da criança encolhida ao
meu lado. — Ela é um pouco tímida no começo, mas logo se solta.
— Hummm. Será que ela me ajudaria a preparar as xícaras de
chá? Sabe, Luli, eu sou muito desastrada na cozinha. Seria ótimo ter
suas mãozinhas habilidosas para me ajudar com os biscoitos. Ouvi
dizer que você é ótima nisso. — A brasileira trapaceou na tentativa
de conseguir um olhar direto de Luli para ela. E foi exatamente o que
aconteceu. Minha filha se animou com a ideia e movimentou a
cabeça de cima para baixo.
Me remexi desconfortável no sofá ao sentir os pesados olhos de
Maisie em mim. Eu estava em suas terras, sentado ao lado de seus
melhores amigos no mesmo dia em que dissera a Damon que
estávamos indo devagar. E agora...bem, agora minha filha seguia
uma mulher até a cozinha para preparar chá com ela.
Me vi andando em uma corda bamba quando Maisie também se
retirou, me deixando sozinho com selvagens que queriam protegê-la
de mim. Mesmo que Gael, Jailson e eu tivéssemos passado por
poucas e boas juntos, eu ainda não conquistara a confiança deles.
Na cabeça desses homens, eu era apenas um assassino frio que se
aproveitara da inocência de Maisie.
— Enquanto o chá não fica pronto, posso lhe oferecer um copo
de uísque? — Ofereceu Charlie.
Era um teste? Eu devia dizer que guardaria o estômago para o
chá com biscoitos da sua esposa ou aceitava o uísque para aliviar a
tensão dos meus ombros?
— Um pouco, por favor — falei, enfim.
Ele se levantou e foi até o bar. Voltou equilibrando quatro copos
cheios em poucos minutos.
— Está treinando para ser garçom? — Gael não deixou passar a
piada e pegou o copo que lhe foi entregue.
— É só uma forma de não precisar voltar ao bar e ter de ouvir
Maisie dizer como Nicholas é delicioso na cama.
Peguei meu copo com as mãos trêmulas. Eu nunca me sentira
tão deslocado em toda vida.
— Ele é bem quieto mesmo? — Charlie perguntou aos amigos.
Todos os olhos pairaram sobre mim.
— Não mesmo. Acho que ele só está considerando formas de
nos matar — respondeu Jailson.
Após os segundos de silêncio e seriedade, eles gargalharam
estridente.
— Não fique tão tenso, seu policial. Um amigo de nossa irmã, é
nosso amigo também — comentou Charlie, na esperança de me
deixar mais confortável. Eu só não contava com a ameaça que viria a
seguir: —Você já deve saber que eu era segurança da rainha Mary
— eu não sabia —, então pode imaginar que conheço os métodos
necessários para proteger uma pessoa. Eu pesquisei sobre você
antes de viajar para saber quanto sangue tinha nas mãos da pessoa
que eu estava deixando minha irmã. Eu descobri coisas a seu
respeito que não me agradam, por isso só fiquei sossegado quando
soube que Gael e Jailson estavam com vocês. Não irei condená-lo,
Sr. Coleman, não sou um exemplo de honra. Não ligo para o que
você fez no passado, não peço por confissões, mas quero que ouça
com clareza o que irei lhe dizer. — Se inclinou. Eu nunca tinha lidado
com uma pessoa tão controlada, porém, assustadora. — Você pode
ser o temível Alastor, mas eu sou o grande Balder e protejo a minha
família com unhas e dentes. Se você ferir minha irmã, se magoá-la,
eu irei atrás de você e usarei todo meu conhecimento para lhe
causar a mais profunda dor.
Foi como ter a mandíbula golpeada. O efeito de suas ameaças,
ou avisos, foi poderoso. Eu sabia que Charlie ou o tal de grande
Balder – um nome que eu já ouvira muito na mitologia nórdica -, não
intimidava em vão. Ele cumpriria tudo o que dissera e um pouco
mais.
— Eu poderia responder às suas ameaças da forma que sei,
mas Maisie me contou algumas coisas sobre você, sobre todos
vocês...sobre como são protetores. Sei que querem protegê-la, da
mesma forma que quero, mas acho que deviam saber que Maisie
cresceu. Por estarem construindo suas próprias vidas não
perceberam o quanto ela mudou e se tornou uma garota forte e
destemida. Ela não é mais a garotinha que precisava dos amigos
para salvá-la, agora ela mesma salva a si mesma e, se porventura
algum dia precisar de ajuda, garanto que eu serei o primeiro a
socorrê-la. Devo minha vida a ela e a amo.
Ele só assentiu. Não interrompemos aquele confronto de olhares
até que alguém fungasse.
— Nossa caçulinha cresceu tanto. — Jailson lamuriou, me
deixando emocionalmente esgotado.
— Está chorando, pançudo? Está mesmo chorando? —
Perguntou Gael, incrédulo.
— Claro que estou. Maisie e o policial vão se casar e irão
embora.
Ah, Deus. De novo a história de casamento?
— Nossa família está diminuindo aos poucos — completou Gael,
no mesmo timbre melodramático. Me senti tomando chá com velhas
rabugentas.
— Não sejam tolos. Eles morarão algumas casas ao lado.
Providenciarei isso — retrucou Charlie.
Providenciará? Quem é você, afinal?
— Charlie é o lorde de Guernsey — explicou-me Jailson diante
minha confusão estampada na cara.
Claro que é. Agora faz sentido você agir como se fosse o filho
do rei.
— E pensar que eu quase lhe quebrei os dentes — falei e bebi.
— Foi por muito pouco que eu também não quebrei o nariz de
um certo policial — revidou, ácido, e virou sua bebida em um único
gole. — Agora vão me dizer por que vocês dois estão carecas?
Naquele instante eu soube que me daria muito bem com
aqueles escoceses.
— Estou dizendo, Tess. Ele disse muito claramente que não
quer se casar. Sendo honesta com você...De que me adianta ele ser
delicioso na cama se não quer nada sério? — Falei baixinho. Mal me
dera conta de que Charlie cruzara a cozinha no exato momento em
que me expus de tal forma. Eu só precisava implorar a Odin para que
ele não tivesse ouvido minha depravação. Onde eu enfiaria a minha
cara se ele fofocasse para Nick?
Minha amiga esperou o marido sair para me responder.
— Não se desespere. Talvez você tenha entendido errado...
— Não entendi errado. Ele disse uma vez olhando em meus
olhos e outra para Damon. Provavelmente achou que eu não
conseguiria ouvir de onde estava, mas eu ouvi.
Ela virou o rosto para Luli e após ter certeza de que a criança
estava distraída com a missão que lhe foi dada, me segurou pelo
cotovelo e disse:
— Quer que eu peça para Charlie dar umas porradas nele?
Meus olhos se esbugalharam e eu fiquei pasmada até que ela
por fim, gargalhou. A criatura era excêntrica, sempre levava tudo da
maneira mais leve possível.
— Eu estou brincando, sua doida. Olhe para mim. Você sonha
em se casar?
— Sim. Sonho com o vestido branco, a faixa xadrez... —
Terminei em um suspiro sonhador.
— Então seja honesta com ele — aconselhou. — Um
relacionamento não é sustentado somente de amor. Precisa haver
honestidade e companheirismo. Se entrar no altar não for o desejo
de Nick, então talvez ele possa fazê-lo por você, porque a ama e
nada o deixaria mais feliz que ver o seu sorriso.
Minha garganta deu um nó apertado.
— Ele ficou traumatizado depois do que passou com a outra lá
— expliquei. — Talvez eu quem devesse respeitar sua vontade. Um
trauma pesa mais que um sonho, não é?
Minha amiga me deu um sorriso de canto.
— Quantos traumas na vida dele você o ajudou a enfrentar? Faz
pouco tempo que você me resumiu a história de vocês e eu pude
sentir a imensidão desse amor. Não quero tomar nenhuma decisão
por você; apenas conversem e sejam sinceros um com o outro.
Respirei fundo e voltei minha atenção para a água fervente.
— Acho que esperarei mais um pouco. É um pouco cedo para
conversarmos sobre isso.
Senti a mão de Tess em minhas costas em um afago quase
maternal.
— Você sempre foi a mais sábia entre nós. A decisão que tomar,
eu sei que será a correta. — E prosseguiu mais humorada: — Mas,
sabe, há no Brasil uma forma de trazer a pessoa amada em poucos
dias.
Soltei uma gargalhada espontânea que me tremeu inteira.
— Você é impossível, garota. Pelos deuses, quase derramei a
água toda.
— Ora, queria testar seu nível de desespero. Graças a Deus não
me perguntou como funciona.
Cruzei os braços com o sorriso ainda estampado.
— Estranho seria se você soubesse a resposta.
Ela deu de ombros com dissimulação.
— Charlie se casou comigo, não foi?
Outra vez a cozinha foi preenchida por risadas escandalosas e
incontroláveis.
— Eu senti tanta saudade da sua alegria, Tess. — Uma gota
salgada e intrometida escorreu pelo canto do meu olho.
— E eu de você, minha irmã ruiva. Vamos prometer que de
agora em diante não ficaremos mais tanto tempo sem se ver. — Ela
ergueu uma mão ao se virar para mim.
— Eu prometo. — Jurei sem titubear.
— Eu prometo. — Foi sua vez.
E, entre os apitos da chaleira, o sol gelado daquela tarde na
Escócia e o balançar das árvores vistas através da janela, uma
vozinha delicada e baixa murmurou:
— Eu prometo.
Nós duas olhamos para baixo e lá estava Luli, a doce criança de
sorriso largo e fácil, fruto do amor de Nicholas Coleman por ela.
O homem era amor. Ele era feito de amor e bondade, e eu
desesperadamente o amava.
Eu queria. Correção. Eu precisava fazer parte daquela família. Sentia
como se, de tudo que eu sempre desejei durante anos, aquilo fosse
mais forte que tudo. Como se eu tivesse esperado a vida inteira por
aqueles dois.

— A deixei com uma desconhecida que não tem nem um


telefone para onde eu possa ligar. — Nick resmungou.
Ele reclamara durante o caminho todo até o “doutor milagroso”
(foi como eu passei a chamá-lo após o excesso de elogios que Nick
fizera a ele). No final da minha consulta, eu até que cheguei a
concordar com Nick em alguns pontos. O médico era realmente
muito bom, foi atencioso e paciente comigo, e após os exames e
uma enxurrada de perguntas, eu saí do consultório com uma
tremenda lista de remédios. Nicholas comprou todos sem ponderar.
Antes de deixarmos a cidade, Nick e eu decidimos passar na
delegacia. Ele dissera que tinha algumas pendências para resolver e
que isso não podia mais esperar.
— Ela não é uma desconhecida. Tess é a melhor pessoa para
cuidar de criança — retruquei após um tempo. — Agora pare de
reclamar e entre logo.
Não foram poucos os olhares direcionados a nós assim que
atravessamos a porta. Eu realmente não fazia a menor ideia de
quanto tempo Nick ficara fora, mas eu soube que o tempo fora longo
quando os burburinhos entre os policiais começaram.
— Meu Deus, não acredito nisso! — Disparou uma moça e se
jogou nos braços de Nick. Era uma policial, eu me lembrava de tê-la
visto no tempo que passei ali.
Stela. Não. Sophia. Não. Como era mesmo o nome dela?
— Stephie! — Disse Nick com carinho e passou os braços ao
redor do corpo da moça.
— Por onde você andou, cara? Eu procurei por você até em
hospitais. — Falou ao se desvencilhar. Me parecia zangada.
— É uma longa história, não irei atormentá-la com isso. — Ele
desconversou. — Cadê Michel?
— Tem certeza de que quer falar com o delegado? Ele anda
bem furioso. Noite passada eu juro que quase puxei o gatilho.
O comentário arrancou uma risada rouca de Nicholas.
— Há algo que precisamos conversar. Eu o evitaria se pudesse,
sabe como sou bom nisso.
— Não gosto desse tom, Coleman. — A policial cruzou os
braços e foi com o meu balançar de cabeça que atraí sua atenção
sem querer. — É a... a garota dos pães? O que faz aqui!?
— Maisie está comigo. — Nick a respondeu.
— Droga, Coleman. Eu preciso prendê-la.
Recuei alguns passos, como se isso fosse me impedir de ser
presa estando em uma delegacia.
— Sob qual acusação!? — Ele a questionou.
— Não estivemos todo esse tempo procurando apenas por você;
procurávamos também por ela. Maisie esteve detida com Iolanda e
as duas fugiram juntas. — O delegado disse ao chegar. Bastou o
som da sua voz para me lembrar de como ele fora ríspido comigo no
último contato que tivemos.
— Fui obrigada a ir com ela — rosnei, num ímpeto delirante. —
Obrigada a fugir.
— Por que não poupa o meu tempo e admite que aquela cadela
ofereceu algumas libras para você e você não soube recusar?
— N-ão foi o que aconteceu — gaguejei, com os olhos já
úmidos.
— Não piore sua situação, ladrazinha. Se admitir agora eu a
prenderei, mas posso tentar reduzir sua pena. — O modo como
soou, fez eu me sentir menos que um lixo.
— Não encoste nela e muito cuidado com o jeito que fala. —
Nick grunhiu em pausas severas. O vi mudar bem na frente dos
meus olhos. Fiquei cara a cara com a escuridão.
— Ela é uma criminosa! — O delegado o encarou.
— Você não tem provas de nada. Se quiser colocar essas
algemas em Maisie, apareça com algo além de especulações
baratas.
— E quem é você? O advogado dela? — Michel não baixou a
guarda, mas eu reparei em suas pernas bambas e a falta de cor no
rosto.
— Só estou lhe ensinando a fazer seu serviço.
Silêncio, e então, rosnados.
— Me entregue seu distintivo. — Michel ordenou. Agora era Nick
quem estava no fogo cruzado. — Está afastado até que recupere o
juízo.
— Pode me exonerar, mas eu não saio daqui sem Maisie —
confrontou Nicholas.
Michel não escondeu a surpresa. Ergueu as sobrancelhas,
imerso em sua própria arrogância.
— Tudo bem. Prenda os dois — Ordenou para Stephie.
— Michel... — A voz da policial foi nada além de um murmúrio.
— Não se meta nisso, Stephie — Nick a cortou, mas não foi
rude. — Pode fazer o que lhe ordena. Eu sei como às vezes ele não
nos dá escolha e nos obriga a fazer o trabalho sujo por ele.
— Cale a sua boca! — O delegado atingiu o limite da paciência
e ergueu o punho para Nick.
— Se quer fazer isso, então mostre que não é um covarde e
vamos lá fora para que eu possa retribuir sem que tenha pessoas
para protegê-lo.
Os dois se encararam por um bom tempo, eu nunca tinha visto
Nicholas perder a cabeça tão rápido, mas foi Michel quem recuou.
— Os deixarei sair, mas saibam que irei atrás dos dois e
descobrirei a porra da sujeira que escondem!
— Esperarei ansioso. — Nick me empurrou com gentileza após
deixar um sorriso debochado para o delegado. Minhas pernas
estavam tão pesadas, que tive de me arrastar.
O ar frio anestesiou meu rosto assim que saímos. Me obriguei a
andar rápido ao notar o desespero de Nicholas em se afastar da
delegacia. Era certo que ele tinha medo de Michel encontrar algum
podre de nós dois. E, convenhamos, Nick e eu tínhamos muitos
segredos sujos.
— Você enlouqueceu? Na tentativa de não me deixar ir presa,
quase prendeu a nós dois — exasperei no primeiro olhar de Nick
para mim e sem interromper meus passos.
— Não lhe ensinaram a atravessar a rua!? Você precisa olhar
para os dois lados. — Me segurou pelo cotovelo e me puxou de volta
para a calçada.
— Não mude de assunto! — Revidei.
— Ele estava abusando do poder e não tinha nada físico contra
nós.
Ao ouvir aquilo, finalmente pude respirar.
— E mesmo que não estivesse, acha que eu o deixaria levá-la?
— Acrescentou enquanto fazíamos a travessia. — Quando se trata
da sua segurança eu quero que se dane tudo.
— Você terá que entregar seu distintivo.
— Eu já ia fazer isso de qualquer forma. Não posso estar na
Grécia e na Escócia ao mesmo tempo.
Desfiz a mala de esperança que eu fizera mais cedo. Estive tão
preocupada com o fato de Nicholas não querer se casar, que me
esqueci completamente de que ele estava de partida. Ele ia embora
para a Grécia e eu ficaria bem ali, na Escócia.
O simples pensamento me deixava fraca, mas eu não faria meu
Mundo girar em torno dele e de forma alguma o pediria para ficar.
— Mas espero levar um pedaço desse país pra lá —
acrescentou, como se tivesse lido meus pensamentos em desordem.
Flutuei em seus olhos e dei as mãos ao diabo.
— O quê?
Não diga essa palavra. Não chegue tão perto. Não posso ir com
você.
— Não está claro?
— E-u não posso ir. Não posso deixar tudo. Tenho amigos aqui,
uma família.
Pelo jeito como ele me encarou pelas beiradas, eu soube que eu
acabara com ele.
Nick abriu a boca algumas vezes, antes de dizer:
— Claro. Eu entendo.
Nos sentamos diante à fogueira nos primeiros sinais de lua no
céu. Charlie alimentava a chama com os gravetos que conseguira
graças a ajuda de Gael e Jailson. Eu não queria estar olhando para
ele e refletindo sobre tudo que ele e Tess enfrentaram até ficarem
finalmente juntos. Eu não podia comparar a situação dos dois com a
minha e a de Nick. Mas, era muito pedir por um amor tão forte
quanto aquele? Era injustiça eu culpar os deuses por me colocarem
em uma situação bem mais difícil?
— Por que Coleman não quis ficar? — Perguntou-me Charlie
sem notar que eu já o observava.
— Luiza queria ir pra casa e há coisas que Nick precisa resolver
antes de voltar para a Grécia.
— Voltar para a Grécia? — Indagou Tess, ajeitando o cobertor
nas pernas.
— É uma longa história — respondeu Gael.
— Então resuma — replicou Charlie com grande interesse.
Expus apenas os pontos mais importantes da guerra entre Nick
e Érebos. Eu não podia dizer que fui totalmente honesta, escondi
fatos sobre Athos e eu, não tinha razão para preocupar meus amigos
sendo que tudo já tinha se resolvido. Agradeci mentalmente por Gael
e Jailson terem respeitado minha escolha.
— Ainda bem que são águas passadas. Se você estava
reclamando do calor do Brasil, grande Balder, então nunca se atreva
a pisar na Grécia. Além de ser quente, é chato demais — falou Gael,
para descontrair.
— Você não me pareceu descontente enquanto se alimentava,
bràthair — revidei.
— Comeu como feito um cavalo e agora se faz de vítima —
compactuou Jailson.
— E você parecia um desesperado querendo jogar maçã nas
moças. Sabia que Jailson estava de olho na empregada grega,
ruivinha?
Me fiz de surpreendida, embora já desconfiasse de seus olhares
furtivos para a moça.
— Ouvi dizer que o povo grego é de uma beleza gloriosa —
falou Tess e recebeu uma reprimenda do marido através de um
suspiro.
— Já sei onde nunca botarei meus pés — resmungou Charlie
para ela.
— Não seja tolo, querido. Estou muito satisfeita com a carne
escocesa.
— E eu com o ardente gosto brasileiro. — Ele lhe deu uma
piscadela descarada.
— Pelo amor de Odin, se querem se engolir, ao menos façam
isso dentro de casa. — Gael reclamou.
Todos gargalharam.
— Você precisa urgentemente de uma dama, meu irmão —
disse Charlie entre risos e sentou ao lado dele na areia.
— Pra ela me levar ao Brasil e me deixar com cor de terra? Não,
muito obrigado.
— Você já tem cor de terra — retruquei. Ele mostrou a língua
para mim. Revidei, sendo tão infantil quanto ele.
— Ora, ora, me parece que alguém não tira o Brasil da cabeça
assim como minha irmã não tirava a Escócia — atiçou Tess e eu não
a culpava; quem podia esquecer a implicância entre aqueles dois
logo que se encontraram? Todos acharam que Lis e Gael seriam o
próximo casal a cruzar o tapete vermelho.
Gael revirou os olhos e passou a mão pela careca.
— Preciso de um gorro. O frio aqui em cima está diminuindo
algo aqui embaixo. — Mudou de assunto da melhor forma que
conhecia, fazendo graça.
— Por favor, Gael. Eu preferia ser queimada viva a saber disso
— reclamei, tendo a infelicidade de compreender muitíssimo bem o
que ele insinuara.
— Disse a garota que anda espalhando como Nicholas Coleman
é delicioso entre quatro paredes — devolveu, ácido.
Maldito seja!
Levei meus olhos até Charlie e o fuzilei. Só podia ter sido ele.
Tess nunca me entregaria.
— Não a culpe. Quando o homem sabe fazer bem o serviço
dentro de casa, a gente gosta de contar. — Tess entrou em minha
defesa.
— Não sei se isso me deixa aliviado ou temeroso. — Charlie
cerrou o cenho.
— Não se preocupe, meu lorde. Aqui todos sabem que o que
você faz comigo é como um jogo de xadrez. — A encaramos com
atenção até que concluísse: — Me come em todas posições antes de
dar o xeque-mate.
— Pelos deuses, boireannach (mulher)! — Charlie disse, um
tanto envergonhado e tentou esconder a cara.
Por sorte ninguém tinha nada na boca. Se tivesse, teria sido
cuspido. Não estávamos preparados para um comentário franco
como aquele, mesmo conhecendo Tess tão bem.
— Acho que devo ir dormir antes de ficar sabendo sobre a vida
sexual de mais alguém — declarou Jailson ao se levantar.
— Não sejam retrógrados. A noite está deliciosa — atentei.
Adorei vê-los tão deslocados quanto haviam me deixado. — Eu
ainda não disse sobre como é grande o...
— Eu não quero ouvir. Por favor, arranquem minhas orelhas.
— Eu me referia ao pé de Nick. Jura que não reparou em como
a bota dele é grande, Gael? — Zombei ao som da gargalhada de
Tess e sob o olhar azedo do careca.
— Se as duas moças vão mesmo brincar conosco, não
podemos enfrentar isso sóbrios — alegou Charlie e de repente todos
os machos foram embora.
— Ainda dizem que mulher é o sexo frágil — disse Tess.
— Rapidamente se transformam em menininhos — compactuei
e aqueci as mãos à fogueira.
— Quero visitar Kate e Hamish amanhã, gostaria de ir comigo?
Por favor, não.
Pensei em todas as possibilidades de negar. Eu amava Kate e
Hamish, mas seria uma tortura ter de contar sobre Nick, os gregos,
tudo outra vez. Pensei em dizer que estava gripada e começar a
simular vários espirros repentinos, ou eu poderia dizer que prometera
cuidar de Luli para Nick, porém, Tess descobriria a mentira
facilmente.
— Claro. Será ótimo — concordei, ao reconhecer que não teria
como fugir.

Na manhã seguinte pegamos um barco até a cidade e quando


desembarcamos, descobrimos que todo nosso cuidado em manter
os penteados intactos tinha sido em vão. A ventania desafiava nossa
vontade de ter classe.
Tess insistiu para que pegássemos um táxi em seguida, pois as
nuvens escuras no céu evidenciavam chuva forte nos próximos
minutos e ela realmente não queria chegar molhada na casa de
Kate. Eu não ousei contrariá-la.
Ao olhar para o céu, a maldade me fez pedir a Thor que
mandasse fortes trovões para aquela tarde.
— Odin, eu sou horrível.
— A acho tão doce. — Tess respondeu.
— Acabei de pedir aos deuses para que trovejasse só porque
sei que Nicholas detesta trovões.
— Você deve ter uma boa razão para querer puni-lo.
Olhei pela janela assim que as primeiras gotas de chuva
começaram a cair.
— Não sei se tenho. O odeio por saber que se mudará para a
Grécia e desistirá de nós. Mas — suspirei —, uma parte de mim
sente que eu quem o colocara nessa situação.
Ela cobriu minha mão com a sua sobre o banco do carro.
— Se ele a ama verdadeiramente, encontrará uma forma de
voltar para você. Tudo é temporário, tudo passará, exceto o amor.
Esse nunca passa.
— Não quero fazer minha vida girar em torno dele. Há milhares
de homens por aí — disse, com os dentes cerrados. — Se Nicholas
Coleman for embora, quem perderá será ele.
Tess me deu um sorriso torto e singelo.
— É incrível o quanto os amamos e os odiamos, não é?
Bufei e praguejei. Abri a porta do carro assim que ele parou e
desembarquei.
— Preciso ocupar minha cabeça, não quero chegar assim na
casa de Kate — falei, logo que senti os olhos marejados.
— Quer que eu vá com você?
— Não precisa. Depois a encontro lá.
— Combinado. Só tente não ir presa dessa vez.
Acabei rindo.
Que diabos me tornei?
Sempre achei as ruas de Dindow as mais melancólicas. Não me
conformava com aquela falta de cor nas paredes dos castelos e
casas – não depois de ver como a Grécia tinha brilho e vida - e nem
com a quantidade de pessoas se protegendo de uma simples garoa.
Eu devia ser uma das únicas que apreciava as gotas refrescantes
em meu rosto e o cheiro úmido do ar...
Na verdade, foi um grande engano achar que eu vagava sozinha
pelas calçadas e que era a única que não temia ser molhada.
Só soube que fora atacada, quando minhas costas se chocaram
no chão duro e a dor foi excruciante.
Me deu uma mordida na canela e quando sua tentativa foi de ir
em meu rosto, me protegi com o braço.
— Não, Bucky. Largue-a!
Encarei o cão assim que foi arrancado de cima de mim.
— Deamhan! (demônio)
— Eu sinto muito. Ele a machucou? — Perguntou-me e me
ajudou a levantar após ter o domínio do animal.
Passei a mão pela canela. A mordida não tinha sido forte, no
entanto, eu estava acabada, humilhada.
— Você é lindo, porém, muito atrevido. Veja o que me fez! —
Desafiei o cachorro com um olhar.
O dono do bicho caiu na risada, depois, procurou sinais de
mordida por mim. Eu teria sido ríspida, caso ele não fosse um
homem já de idade. Olhando para o idoso e toda sua fragilidade,
ficou claro que até mesmo um cachorro de pequeno porte teria
conseguido escapar sem a menor dificuldade.
— Ele não queria machucá-la. Bucky é muito brincalhão. Acho
que ele a viu rodopiando e pensou que fosse um convite — explicou-
me, receoso. — Sinto muito.
Fiz sinal de “deixa pra lá” com a mão.
— Posso pagar um chá para você? Para me redimir pelo o que
aconteceu.
Meu primeiro impulso foi o de recusar, mas então os sinais da
sua velhice me comoveram e o olhar carregado de desespero me fez
perceber o quão importante era aquilo para ele.
— Só aceito se o senhor me prometer que poderei pedir algo de
comer para acompanhar — contrapropus.
Ele aceitou com um balançar de cabeça e um sorriso meio
banguelo.
O segui até o Coffee Marmale. Pegamos uma mesa ao lado de
fora por conta do cão; por ser uma área coberta, não precisávamos
nos preocupar com a chuva aumentando exponencialmente.
— É um Bull Terrier — disse, ao me flagrar encarando o animal.
— Ganhei da minha filha. Eu disse para ela que não queria ter
trabalho com animal nenhum, mas ela insistiu dizendo que eu
precisava de companhia após a morte da minha esposa.
— Sinto muito por sua esposa. E o cão é lindo — admiti. —
Acho que o senhor fez muito bem em aceitá-lo.
— Hã? O que disse? Eu já sou velho, menina. Fale mais alto —
pediu. Eu então repeti com toda paciência.
Pedimos por duas xícaras de chá com leite e rosquinhas para
acompanhar. Não conversamos por mais de vinte minutos, era difícil
encontrar semelhanças com uma pessoa tão mais vivida que eu.
Falamos sobre o tempo, aves, plantas e também sobre o
danado do seu cão. Descobri que o velho se chamava Robert e que
morava há poucas quadras do café. Foi uma conversa amena que
me distraiu e fez parecer que meu peito não era um campo minado.
Notei que já era tarde quando Robert e eu nos tornamos os
únicos no Café, todos os outros clientes já tinham saído.
— Tenho que ir. Preciso encontrar uma amiga. Se eu demorar a
aparecer ela ficará preocupada — falei.
O esperei pagar pela conta e ri quando ele me disse que
insistiria em me acompanhar se fosse trinta anos mais jovem.
— Foi um prazer imenso conhecê-lo, Robert, e seu cãozinho
atrevido também – falei, sincera, acariciando a cabeça do cão. — Se
cuidem e tentem não derrubar mais ninguém.
O homem sorriu para mim com as linhas de expressão
desenhadas em seu rosto e não disse nada. Talvez nem tivesse de
fato me escutado.
Dei meus dois primeiros passos na rua e vi um cão da mesma
raça do de Robert na outra calçada, eu parei, virei e chamei pelo
velho, ansiosa para lhe mostrar, mas o barulho de buzina sobrepôs
minha voz.
Depois do som, veio o impacto.
E eu fui abraçada pela escuridão como duas mãos que agarram
um pescoço.
Eu me recusava a ir embora sem ter uma conversa com Maisie.
Eu não me atreveria em pedir para que fosse comigo, ela estava
certa. Seus amigos... pior ainda, sua família inteira estava naquela
ilha. Pessoas importantes para ela. Eu não seria egoísta em sugerir
que abrisse mão de todos por mim sendo que eu sequer era digno
de alguém como ela.
Mas eu a quero.
A amo.
Respiro através dos seus pulmões.
Inferno.
Em contrapartida, eu tinha de partir como fora o combinado com
os gregos, não me atreveria em colocar mais pessoas em risco por
um erro meu. Decidi, então, que se Maisie pudesse me esperar, eu
voltaria após consertar tudo dentro e fora de mim. Ela merecia muito
além daquela bagunça que eu tinha para oferecer.
— Papai, como os peixes respiram?
Arrumei seu gorro para proteger seus ouvidos do vento ruidoso.
— Eles respiram pelas brânquias. Absorvem o oxigênio da água.
— E não se afogam?
Dei uma risada.
— Não, filha. Não se afogam.
Luiza olhou para a água por mais tempo, até pensar na próxima
pergunta.
— Por que a Lua não cai do céu?
— Tem certeza de que a doninha quer ir por esse caminho? —
Perguntei, em dúvida. A sua curiosidade era coisa de outro planeta.
— A gravidade a mantém lá.
— Gravidade? A lua tá grávida?
A peguei no colo para descermos do barco.
— Não, meu bem. A lua não está grávida — falei, continuando
entre risos. — Você é um pouco nova pra entender sobre isso. Por
que não me faz uma outra pergunta?
Ela ficou pensativa e até segurou o próprio queixo.
— Terei uma nova mamãe?
Me senti saindo de órbita.
— Você quer uma nova mãe? — Perguntei com cuidado e a
coloquei no chão, já em terra firme.
— Quero. Você não sabe brincar de chazinho, papai.
Fiz um gesto bem dramático para me fingir de ofendido.
— Você tinha dito que eu era bom. Mentiu para mim?
— Pra você não ficar triste.
— O que seria de mim sem você, filha? — Fiz carinho na sua
cabeça e continuamos a andar.
Um tempo depois, ao longo da caminhada, Luiza continuou:
— E isso, papai? — Ergueu o vidrinho cheio de conchas laranja
que ela me ajudara a preparar.
— Daremos de presente para uma pessoa muito especial.
— Você fez algo errado?
— Não.
— É aniversário dela?
— Não. Por que essas perguntas? — Franzi o cenho.
— Uma vez ouvi a tia cacau dizer que as pessoas só dão
presentes quando fazem algo errado ou é aniversário.
— Nem sempre. Algumas pessoas ganham presentes apenas
por merecerem.
— Como quando eu como toda comida?
— Sim. Ou quando lava suas mãozinhas após usar o banheiro.
Notei que ela ficou visivelmente preocupada.
— Não vou ganhar presente então, papai.
— Usou o banheiro e não lavou as mãos? — Parei e cruzei os
braços.
— Mas eu não me limpei com as mãos. — Colocou o vidro
debaixo do braço e ergueu as mãozinhas. — Estão limpinhas.
Não pude me segurar. Ri da sua pureza e continuei a andar.
— Ah, minha filha. Eu a amo do fundo do meu coração.
— Tem que ser do rasinho, papai, do fundo afoga.
Ainda com sorriso no rosto, eu arrematei:
— Ainda bem que o papai sabe nadar.
— Você aprendeu quando tava na barriga da sua mamãe?
Assim que abri a boca para rebater mais uma de suas pérolas,
dei com os olhos em Charlie e nos outros. Não avistei a ruiva perto
de nenhum deles.
— Viu a Maisie? — Perguntou-me Jailson logo de cara.
— Não. O que aconteceu? — Indaguei ao sentir o temor de cada
um.
— Estamos preocupados. Não vimos Maisie desde hoje cedo —
respondeu Gael, em um roer de unhas.
— Íamos nos encontrar na casa de Kate, mas ela não apareceu.
Pensei que tivesse voltado...— acrescentou Tess.
Alguém bufou. Não soube quem.
— Tudo bem. Coleman era nossa última esperança de encontrá-
la. Acho que agora podemos começar a nos preocupar de verdade
— decretou Charlie.
— Não há nenhum outro lugar onde ela possa ter ido para ficar
sozinha? — Sugeri, com um silêncio no rosto, por dentro, tudo era o
contrário.
Gael disse um não firme.
— Maisie não é garota de marcar com alguém e furar —
comentou Jailson.
Aquela era minha última esperança antes de finalmente começar
a surtar e ficar absolutamente imerso no meu desespero. Levei meus
pensamentos há uma distância que apenas as estrelas alcançavam,
somente meu esqueleto e minhas trilhões de células permaneceram
ali com os outros.
Fiquei tão cego, que minha única reação foi pegar minha filha no
colo e dar o fora dali.
— Aonde vai? — Perguntou-me um deles. Meu atordoamento
me impediu de saber de qual dos homens era a voz efusiva.
— Encontrá-la — falei, andando a passos lentos, quase que
naturalmente.
As infinitas possibilidades do que podia ter acontecido a Maisie
acordou algo diferente em mim. Pensar que os gregos ou, na melhor
das hipóteses, a polícia pegara a ruiva causou o alvoroço de uma
explosão nuclear no meu cérebro. Até minha imunidade parecia
baixa.
— Vou com você! — Declarou Charlie. Dessa vez vi seus lábios
se movendo ao falar.
— Nós também — dissera os outros dois homens.
— Eu ficarei e se acaso ela voltar, dou um jeito de avisar vocês
— disse Tess e acariciou o bracinho de Luiza. — Deixe-a comigo.
Vamos tomar chocolate quente e brincar de algo, o que acha?
Encarando minha filha, perguntei:
— Quer ir com o papai ou ficar com ela?
— Quero ficar, papai. — E me cochichou: — Aqui tem chocolate.
— Tem certeza?
Ela assentiu com os olhos ansiosos. A abracei forte, dei um
beijo demorado em sua bochecha e fui embora como se tivesse um
dragão dentro de mim prestes a ser libertado.

Procuramos incansavelmente, mas àquela hora da noite poucos


lugares ficavam abertos. Entramos em bares, mesmo que a chance
de Maisie estar dentro de um fosse zero. Também fomos em
parques. Como uma das hipóteses era a delegacia e as coisas
terminaram péssimas para mim, pedi para que Gael e Jailson que
entrassem e perguntassem a Stephie se Michel tinha pego Maisie.
Eles nem titubearam, só obedeceram.
— A policial disse que também não a viu — disse Gael ao
retornar.
Comecei a suspeitar dos gregos. Talvez Damon não tivesse
conseguido segurá-los e eles levaram Maisie para se vingar de mim.
Senti uma pontada no peito que me obrigou a sentar na calçada
e respirar fundo.
— Ainda não procuramos nos hospitais — declarou Jailson e se
explicou, já que todos repudiaram a ideia: — No último pub que
entramos ouvi duas senhoras conversarem sobre um acidente que
teve aqui pela tarde.
Meu coração foi esmagado pela insinuação, mas não dei crédito
a isso, eu estava certo de que os responsáveis pelo
desaparecimento de Maisie, eram os gregos.
E eu ia destroçá-los.
— Eu não suporto a ideia, mas Jailson tem razão, precisamos
verificar também nos hospitais — disse Charlie ao notar meu
desconforto. — Vamos nos dividir e nos encontramos aqui em uma
hora.
Não esperei pela confirmação de ninguém para iniciar minha
busca.
Existia somente dois hospitais naquela cidade e a minha
surpresa foi quando, quarenta minutos depois, descobri que Maisie
estava gravemente ferida em um deles.
Se um dia existiu chão sobre meus pés, ele deixou de existir.
DUAS SEMANAS DEPOIS.

— Por favor, me deixe levá-la. Eu quero cuidar dela, mas não


posso fazer isso da Grécia. — Eu não tinha forças nem para brigar.
Foram dias difíceis desde que descobri que Maisie fora atropelada e
estava em coma no hospital. Não saí de perto dela por nenhum
minuto durante aquelas semanas turbulentas. Bem, nem eu e nem o
senhor que encontramos com ela, inclusive fora Robert quem nos
contara como tudo aconteceu. Sobre seu cão tê-la derrubado, o chá
que tomaram e o final fatídico de quando Maisie não viu o carro vir
na sua direção e a jogou longe.
Eu não queria deixá-la, meu corpo se recusava a sair de perto
do seu, mas então Damon chegara na Escócia para me buscar e me
alertara que aquela era a última tentativa amigável dos gregos. Se eu
quebrasse o acordo que fizera com Érebos, então os gregos agiriam
de forma sangrenta. O corvo estava mesmo preocupado comigo, ele
entendia minhas razões de querer ficar, mas dizia que os gregos não
entenderiam e ele estava certo.
— Se Maisie acordar, vai querer ver os amigos dela — retrucou
Charlie. Ele parecia tão destruído quanto eu. Seu círculo escuro
embaixo dos olhos disputava com o meu.
— Quando ela acordar e se quiser voltar, eu serei o primeiro a
trazê-la para casa. Enquanto isso não acontece, quero poder
oferecer o melhor tratamento médico para ela e longe de um
hospital. Maisie terá o especialista mais qualificado que eu puder
conseguir e todo conforto possível. Só peço para que me deixe levá-
la e fazer por ela tudo o que fizera por mim. — O copo de uísque
tremeu na minha mão. Se Charlie continuasse relutante, eu não
sabia do que seria capaz. Fora ele quem cuidara de toda papelada
no hospital. Ninguém sabia onde diabos estava a família de Maisie.
Ele acabara tomando a frente de tudo antes que eu pudesse abrir a
boca e eu odiava isso, mas respeitava. Eu nunca poderia competir
com tudo o que eles passaram juntos.
Ele se levantou e andou pela sala da sua casa. O peso daquela
conversa fazia o cômodo parecer ridiculamente pequeno.
— Eu não sei. A Grécia fica muito longe.
Soltei um suspiro e algumas lágrimas até pingaram na minha
bebida. Só o simples pensamento de deixar a Escócia sem Maisie,
arrebentava algo dentro de mim. Eu não suportaria, não seria forte o
bastante.
— Querido, acho que Maisie gostaria de ir com ele. Além do
mais, o que Nicholas está oferecendo pode ajudar na recuperação
dela. — Foi por Deus que Tess estava conosco. Charlie parecia ser o
tipo de homem que ouvia sua esposa mais que ouvia a qualquer
outro. Era como se ela fosse para ele, a deusa mais poderosa dentre
todos.
— Eu também posso oferecer tratamento particular para a minha
irmã — retrucou, bem menos abrupto do que fora comigo.
— Sim, eu sei. Mas, mesmo que você a ame e dê tudo de si
para ajudá-la, acho que é do amor dele que Maisie precisa agora.
Charlie ficou calado por um tempo e então me dirigiu um olhar
de arrepiar até as costelas, antes de rosnar como um lobo lutando
por seu território:
— Me mandará um relatório completo sobre o estado de Maisie
toda semana, se perder os braços, escreva com o pé ou com a
língua, não me importo. Se deixar de me enviar por qualquer razão
que seja, eu irei buscá-la e ainda arrebentarei sua cara. Estamos
entendidos?
Mesmo com toda sua incivilidade, eu o agradeci profundamente
e de todo coração.
— Obrigado — falei para ele e, principalmente, para Tess.

Dia 18: “Senhor Mikhailovich, hoje é o décimo oitavo dia desde o


acidente de Maisie. Tenho acompanhado de perto todo procedimento
feito pelo Dr. Masalis e as enfermeiras. Posso não entender de
medicina, mas vejo o empenho de toda a equipe para a recuperação
da nossa ruivinha ruiva.
Estamos todos esperançosos.
Att,
Coleman.”
“Coleman, espero realmente que esse médico seja o mais
qualificado ou lhe prometo que cortarei...
Caro senhor Coleman, perdoe tal indelicadeza de meu marido,
acredito que a insolação tenha afetado severamente sua boa
conduta. Lhe asseguro que nada do senhor será cortado.
Estamos aliviados por saber que nossa querida ruivinha tem
sido tão bem tratada pelos especialistas. Sabemos que ela não
poderia estar em mãos melhores.
Gael anseia saber se já há indícios de novos cabelos em sua
filha.
Aguardamos novas informações e mandamos boas vibrações
escocesas.
Cordialmente,
Tess Araújo e seu escocês bruto.”
Dobrei a carta em três partes assim que terminei de ler e a
guardei na cômoda ao lado da cama de Maisie. Era fato que assim
que ela acordasse, gostaria de saber tudo o que aconteceu enquanto
esteve em seu sono profundo.
— Não acha que já está na hora de acordar, minha chick? Os
doces do Mundo esperam por você — murmurei. Peguei sua mão
enfraquecida. — Eu sei que estamos em universos separados agora,
mas, se puder me ouvir...volte para mim. Eu já estou enlouquecendo
sem o som da sua risada. Sinto falta até mesmo das suas ofensas.
Como sempre, nenhuma reação. Apenas a lembrança do
rastejar da sua voz em meu peito.
Lembranças. Era só disso que eu me alimentava há semanas.
— Papai, papai, tio De trouxe um cachorro. — Luli entrou
eufórica dentro do quarto.
— O que eu disse sobre correr pela casa?
— Você só disse que eu não podia correr nesse quarto.
— Sim, e você concordou que Maisie não precisava ser
incomodada, lembra-se?
— É que tio De trouxe um cach...
— Eu sei, mas de forma alguma você deve entrar correndo e
gritando aqui. — A repreendi.
— Me desculpe, papai. — Aproximou-se da cama e deu um
inusitado beijo no rosto de Maisie. — Me desculpe.
Disfarcei uma lágrima que escorreu pelo rosto e toquei no ombro
da minha filha.
— Tudo bem, vamos ver que cachorro é esse que seu tio trouxe.
Deixei o quarto assim que as enfermeiras voltaram. Já fazia
alguns dias que eu retornara para Érebos e fora apresentado para a
Sociedade. Admitia que eu não estava sendo o líder que eles
esperavam, principalmente quando minha única ordem foi que
trancassem Esnarriaga no cativeiro e que aguardassem minha
ordem para executá-lo. Eu não apareci em nenhuma reunião, nem
dei qualquer outra ordem ou resolvi os problemas que os antigos
líderes deixaram. Minha estadia ali se resumia em cuidar de Maisie e
escrever cartas para a Escócia. Nada além disso.
Damon me aguardava no jardim principal com um peludo babão
rolando na grama. Luiza não pensou duas vezes antes ir atrás do
cão.
— De quem é esse cachorro? — Perguntei ao corvo.
— Acho que agora é nosso. Ele estava aqui na porta quando
cheguei.
— Deve estar com fome.
— Sim, estou.
— Me refiro ao outro cão.
Ele primeiro bufou, depois cruzou os braços e me encarou com
atenção.
— Como a cabelo de fogo está?
— Da mesma forma que estava pela manhã quando você a viu.
O corvo se aproximou e me tocou no ombro.
— Ela acordará. Continue esperançoso, não deixe ninguém
roubar isso de você — falou e foi como se tivesse regado uma
semente de esperança dentro de mim que estava já seca. — Agora
vamos entrar e conversar sobre esses malditos gregos.
Vi que Luli estava bastante distraída com o cachorro, sequer deu
atenção para Damon e eu.
— Dona Galanis, prepare algo para o cão comer e dê água, por
favor — pedi, assim que entramos.
Ela assentiu e foi para a cozinha.
— Me surpreende ver que restou empregados nessa casa
depois de você ter mandado todos embora — alfinetou Damon
andando ao meu lado pelo extenso corredor.
— Não os demiti, apenas permiti que tivessem uma escolha.
Não aceitei liderar Érebos para continuar a escravidão que Dionísio
começou.
Ele soltou um riso de deboche.
— Então agora vai finalmente assumir o posto que lhe pertence
e me ajudar a controlar essa merda?
Entramos no escritório que Damon tomara para si e me joguei
na poltrona escura. Ele sentou na cadeira giratória atrás da
escrivaninha e das pilhas de papéis.
— Ainda não estou pronto.
Deu um soco na mesa.
— Cacete, Alastor. Se não começarmos a fazer nosso trabalho
farão conosco o mesmo que fizemos com os antigos líderes. Por
acaso se lembra de como destroçamos os miolos? Todos acham que
você só está aqui pelo dinheiro.
Me inclinei e apoiei os braços nos joelhos.
— O que faz você pensar que eu dou a mínima para o que as
pessoas pensam de mim? Se eu decidir agir agora provavelmente
afundarei minhas garras em muitos pescoços.
— Eu imagino o que esteja passando, mas você....
— Não. Não imagina — retruquei. Estava cansado de segurar as
palavras apenas porque eu tinha medo de ouvi-las. — Eu disse que
a protegeria e não estive lá quando o carro... — suspirei. — Se
posso dar algum conselho a você, Damon, não cometa meus erros.
Quando se apaixonar por uma garota não permita que nada fique
entre vocês; nem seu próprio medo.
Ele ficou sem fala, então me serviu de uma bebida para
preencher o silêncio que se estendeu naquele cômodo frio e solitário.

Dia 23: “Queria ter boas notícias nessa semana, mas as coisas
continuam iguais. Todo movimento de Maisie, somos nós que
despertamos. Tenho ajudado as enfermeiras com os exercícios
diários, acredito que em breve eu mesmo poderei fazê-los sozinho.
Em relação aos cabelos de Luiza, assegure Gael que os
primeiros fios já começaram a aparecer. Não é nada que possa ser
visto de longe, o processo é lento como uma plantinha que cresce.
Att,
Coleman.”
“Caro senhor Coleman, não acredito que seja muito seguro o
senhor cuidar dos movimentos da minha irmã, sozinho, já que não
tem especialidade no assunto. Temo que algo possa sair do controle.
Gael pediu que eu lhe dissesse que o frio da Escócia está
impedindo que a plantinha dele cresça. (Espero que esteja se
referindo aos cabelos).
Cordialmente,
C. Mikhailovich.”
— “Temo que algo possa sair do controle”. Que diabos poderia
sair do controle? Honestamente, seu amigo acha que sou um
completo idiota?! — Grunhi. Olhar para Maisie na cama cheia de
equipamentos, era como voltar ao inferno, me doía inteiro.
— Você é um completo idiota. — Damon me respondeu e
encostou-se à porta, se deliciando com um morango. — Novamente
conversando sozinho?
Guardei a maldita carta no mesmo lugar de sempre e senti
minha mandíbula enrijecer quando rosnei pro outro:
— O médico disse que talvez Maisie me ouça.
— Ainda assim, ela não o responde, ou seja, está conversando
sozinho.
Se sua intenção era me irritar, eu devia admitir que Damon se
saíra muito bem.
— Não há um lugar mais agradável para você comer seu
morango!?
Mastigou bem devagar e engoliu.
— Aqui me parece bom o suficiente. Além do mais, vim lembrá-
lo que temos uma reunião em alguns minutos. Alguns gregos,
inclusive, já chegaram.
Quis gritar com as mãos em volta do meu rosto, mas contive o
trovão que rugia no fundo da garganta.
Tinha ciência de que não podia mais faltar em nenhuma reunião
ou sofreria as consequências. Os membros exigiam os pagamentos
atrasados e os novatos pediam desesperadamente por serviços.
Tudo estava de cabeça pra baixo como qualquer outra empresa, só
que naquele caso, os funcionários portavam arma de fogo e não
tinham receio de usá-la.
— Sabe que não posso sair antes das enfermeiras retornarem
do almoço — o alertei. Eu não tinha a menor chance de escapar de
Damon mais uma vez, reconhecia isso.
— Não fale como se eu não soubesse que demitiu uma delas só
para ter mais tempo com a ruiva.
— Há algum crime nisso? — Entrei na defensiva.
Pegou outro morango no prato e mordeu.
Ainda mastigando e sendo como uma erva daninha, ele disse:
— Nenhum, só queria despertar esse seu lado agressivo porque
estou farto de ver o seu fantasma.
Rangi os dentes e empurrei meu alvo porta afora, fazendo com
que ele trombasse na parede. Eu já tinha reciclado toda minha
paciência.
— Quer que os gregos me vejam nesse estado? Tudo bem,
então vamos lá. Só não reclame quando cair sangue no seu
mocassim — revirei, sem conter minha mente escrupulosa.
O desgraçado deu um sorriso diabólico.
— É um Berluti, se quer saber.
Revirei os olhos, numa antipatia clara, porém, senti a pressão
deixar meus ombros.
— Não, Damon. Não quero saber sobre seus sapatos. Só quero
que saia da minha frente para acabarmos logo com isso.
Ele jogou o braço sobre meus ombros como se fôssemos velhos
amigos. Eu só não arranquei essa ideia estúpida da sua cabeça
porque, apesar de todas nossas diferenças, Damon fora o único que
não desistira de mim.
— Você está mais fedido que o “puga” — falou sem qualquer
tato. O encarei de canto. — O cachorro. A corvinha o chama assim.
Acho que se soubesse falar, diria “puLga”.
O olhei de canto.
— Está tentando me fazer suspendê-lo em uma corda, Damon?
Ele sorriu, egocêntrico.
— Também senti sua falta, Alastor.
Todos já estavam sentados à enorme mesa quando Damon e eu
entramos, inclusive os gregos que nos deram àqueles cargos.
Bastava olhar para eles e eu me lembrava do helicóptero caindo, do
choro de Luiza, de seus olhos com a mais intensa cor do medo.
Minha filha podia ter morrido e eu nunca os perdoaria por esse
“quase”. Nem se me dessem toda a porra de dinheiro do Mundo.
— Vejam só quem resolveu dar as caras. — Um deles comentou
em timbre de deboche. — Pensei que nosso “líder” já tinha saído de
férias.
Todos da mesa riram, apenas o corvo disse:
— Cale a boca, seu merda!
O grego continuou com o riso estampado na face, mesmo após
a grosseria de Damon. Tudo que eu enxergava, era um apenas
moleque com um pavio curto.
— Virou a puta dele agora, corvinho? Ah, não, espere. A puta
dele está de cama. Acho que ele fodeu tanto ela que a deixou
inconsciente.
Outra vez os risos ecoaram, esplendores.
Perdi o controle de mim mesmo, minha mente mergulhada no
veneno. Nem percebi o que estava fazendo, só senti minha mão ir na
cabeça daquele maldito grego e levá-la mais de dez vezes no tampo
da mesa de vidro. Não Nick, mas Alastor foi influenciado pela mera
menção da pessoa que era importante para ele e resolveu assumir o
controle do seu jeito feroz.
Rachei o crânio do desgraçado, abrindo-o de meio a meio. Não
pude sentir a dor nos ossos das minhas mãos ao matá-lo porque eu
era só uma construção de pedras.
Enxuguei o suor da minha testa e pude sentir que me pintara de
vermelho. Dentro de mim, Nicholas desaparecia e desaparecia,
enquanto Alastor renascia feito uma fênix.
— Vocês querem a porra de um líder? Então aqui está — berrei,
na passividade do silêncio de todos. — Mas antes quero que
encarem a mesa. Este é o preço que qualquer um pagará ao insultar
a mulher daquele quarto. — Fiz um juramento com o sangue grego
na minha mão. Eu precisava ser frio. Precisava ser muito frio se
quisesse sobreviver entre canibais.
Ninguém gastou seu precioso fôlego para me contrariar. Nem
mesmo Damon.
Agora era eu quem sorria.
Dia 28: “Mikha...
A caneta caiu duas vezes da minha mão ainda lambuzada de
óleo. Roguei pragas ao bendito cão que me fizera passar a manhã
inteira limpando a bagunça que deixara na cozinha. Luiza estava tão
apegada ao animal que acabou assumindo a culpa e o protegeu até
o último minuto, dizendo que fora ela quem mordera a garrafa de
óleo.
Saí do quarto e lavei a mão pela segunda vez, sequei na própria
camiseta e peguei a caneta do chão. No momento em que ia puxar
a cadeira para me sentar e escrever a carta de toda semana, senti
um olhar sobre mim. Não qualquer olhar, era o olhar...dela. Aquela
inocência linda de se ver.
Eu olhei.
E de novo.
Não era uma pintura da minha cabeça. Todas aquelas cores
estavam mesmo ali. O verde cristalizado, a mais bonita das luzes
queimando tão brilhantes.
Abri a boca sem conseguir reproduzir qualquer ruído. Minha
língua parecia atolada no fundo da lama.
Vinte segundos, e meu coração parou. Meu corpo começou a
tremer.
— V-ocê acordou.
Deixei o quarto em passos trôpegos, enquanto meu sangue
fervia, e gritando pelo Dr. Masalis.
O encontrei tomando café na sala, quase o fiz derrubar quando
o toquei no ombro para chamar sua atenção para mim.
— Ela acordou. — Foi basicamente um grito. — Maisie
finalmente, acordou.
E as cores do Mundo voltaram a se reorganizar.

Duas horas mais tarde o doutor e as enfermeiras deixaram o


quarto de Maisie. Eu estava sentado no chão e escordado à sua
porta, observando as luzes que revestiam aquele corredor. Assim
que ouvi o som dos sapatos se aproximando, me levantei cheio de
expectativas. A tempestade de esperanças batia em meu coração.
Relaxe, relaxe.
— Você pode entrar agora — falou o médico, mas não me deu
passagem. — Ela está um pouco confusa, o que é extremamente
normal. Tente ir devagar para não a assustar. Lembre-se, ela ainda
está em recuperação.
Concordei com a cabeça para me livrar dele o quanto antes.
Segurei na maçaneta, mas não a senti. Meus dedos estavam
duros e minha pressa gritava em agonia, no entanto, procurei me
manter calmo quando abri a porta.
Ela virou o rosto na minha direção assim que entrei. Seus olhos
pareciam cansados, mas amor era tudo que eu via. Um desfile de
estrelas em cada pinta da sua face branca.
Me aproximei, um passo por vez, e só parei quando alcancei a
cama.
— Bem-vinda de volta — balbuciei. Eu não devia jogar a
informação dessa maneira.
Uma sobrancelha ruiva me foi erguida e os lábios continuaram
mudos.
— O doutor me disse que você está um pouco confusa. Espero
poder esclarecer algumas coisas para você. Basta me perguntar.
Ela virou o rosto para a parede, depois, para a janela.
— Pode abrir, por favor?
— Claro. — Deixei que a luz entrasse naquele quarto e
dançasse na escuridão. — Assim está bom?
Só assentiu.
— Onde estamos?
— Em Ereb...Na Grécia.
— Mas o médico disse que eu sofri o acidente na Escócia.
— Eu a trouxe pra cá.
— Por que?
— Para poder cuidar de você — falei devagar.
— Porque faria uma coisa dessas? — Ela me olhou
selvagemente.
Eu precisava ir devagar ou ia assustá-la e só Deus sabia o que
podia acontecer. No entanto, como controlar a louca vontade que eu
tinha de abraçá-la? Eu só queria deslizar os dedos em seus cabelos.
— Porque Masalis é um ótimo especialista no assunto. Ele
cuidou muito bem de você.
Ela pareceu convencida com a minha explicação e deixou por
isso mesmo.
— Tenho que avisar seus amigos que você acordou. Há algo
que eu possa fazer por você antes de ir?
— Q-uero água, por favor. — Sua voz ficou bem rouca.
— Certo. Mais alguma coisa?
— Não. Obrigada.
No momento em que lhe dei as costas, suas palavras
atravessaram em todas as minhas veias.
— Espere, você ainda não me disse seu nome.
Se aquilo não me fez perder o fôlego, me deixou com uma
profunda cicatriz.
Tentei manter a calma como o doutor recomendara, mas tudo
era um vento na minha cabeça, vazio, confuso. Ele dissera que eu
sofrera um acidente de carro, mais especificamente: que eu fora
atropelada e dera uma pancada forte com a cabeça, o que me
deixou inconsciente por quase um mês. Bem, essas informações
deviam ter me deixado mais assustada que o simples fato de eu não
fazer a mínima ideia de onde estava, só que não deixaram. E ainda
tinha o homem que vi em meu quarto logo que abri os olhos. Eu
nunca tinha visto nada tão lindo quanto a forma que ele me olhou.
Me remexi na cama devagar, todo meu corpo doeu, mas deixei
de ganir assim que a porta do quarto foi aberta e ele entrou. O
mesmo homem, os mesmos cabelos de sol – dourados.
Ele se aproximou, como uma vela que se balança ao vento,
suave, e meu coração bateu um pouco mais forte.
O homem foi gentil quando pedi que me abrisse a janela e
também quando insisti em querer saber porque raios me levara para
a Grécia. Eu não me lembrava do seu rosto, nem daquela sombra
em seus olhos.
Tentei lutar contra o atrito, mas, eu estava tão fraca que me
deixei ser guiada por seu encanto e perguntei seu nome.
A princípio, me encarou de modo estranho e arrogante, quase
não aguentei a pressão.
— Nick — pigarreou. — Nicholas Coleman.
— S-ou Maisie, mas o senhor já deve saber disso — falei,
sentindo a garganta seca.
Ele não disse nada.
Dei um mergulho em seus olhos azuis antes de fazer a próxima
pergunta. Eu tinha pelo menos um milhão delas.
— Você é um médico ou um dos enfermeiros?
Trincou o maxilar como se eu tivesse lhe dado um tapa.
— Não. — Foi áspero na resposta. Parecia desesperado para ir
embora, demonstrando que eu lhe causava alguma perturbação.
— Ah.
— Preciso respirar um ar fresco. Pedirei que lhe tragam seu
copo de água.
Forcei um “tudo bem” e o assisti deixar o quarto.
Foram longos dois dias até eu finalmente conseguir deixar a
cama. Não recebi nenhuma visita em meu quarto, além das pessoas
de trajes branco que me ajudavam a recuperar os movimentos
esquecidos. Com uma lentidão absurda, feito uma idosa, conseguir
descer as escadas. Tentei não dar muita atenção às esculturas
gregas durante o caminho ou eu tropeçaria em meus próprios pés.
Segui o som das vozes, pois seria fácil demais me perder
naquela enorme casa.
Que lugar é esse?
Passei por objetos dourados, esbanjando riqueza, e acabei em
uma sala de jantar. Esperava encontrar meus amigos sentados à
mesa, mas tudo que recebi, foi o olhar frio de dois machos. Os olhos
de Nicholas em mim, pareciam brilhar através de árvores
sombreadas. O outro sujeito, nada de luz tinha. Era apenas uma
escuridão total da cabeça aos pés, como se o pecado de todo o
mundo se encontrasse na sua cabeça.
Precisei de um minuto para arrumar minha mente.
— Onde...onde está Charlie e Gael e Jailson? — Perguntei.
Eu os vi trocarem olhares e tive a trágica impressão de que
estavam jogando comigo.
— Na Escócia. Mas escreveram que em breve virão visitá-la —
respondeu-me Nicholas.
Senti meu corpo se agitar. Eu ainda não me sentia muito bem
para ficar tanto tempo em pé.
— Sente-se, deve estar faminta — disse Nicholas ao se levantar,
notando minha fraqueza. Ele caminhou até mim e eu podia dizer por
aquele olhar em seu rosto, que ele ficou indeciso sobre me tocar
para me ajudar a ir até a cadeira.
— Na verdade, eu gostaria de voltar para minha casa —
respondi, áspera, e fui sozinha me sentar, disfarçando a sensação de
dormência nos calcanhares.
Novamente, os dois se entreolharam. Não gostei de como aquilo
estava fazendo eu me sentir vulnerável.
— Não acho que seja seguro você embarcar em uma viagem
tão já — respondeu o sujeito de traje preto como a noite. Nem
sequer olhou em meus olhos.
— E você é quem?
Ele pressionou os lábios, dando a entender que tinha muito a
dizer, e encarou algo atrás de mim. Era Nicholas ainda em pé.
— É meio louco isso...
— Ele se chama Damon! — Nicholas o cortou e se sentou na
cadeira da ponta da mesa, como se fosse um verdadeiro monarca.
Deu um gole na sua bebida, devia ser café ou chá. — Agora,
comam.
Olhei para a variedade de frutas e cereais na mesa e contei a
maior mentira da minha vida:
— Estou sem fome.
Os olhos azuis me fitaram. Nicholas era tão bonito quanto um
sábado de verão.
— Não acho que esteja sendo sincera.
— E o que você sabe sobre mim? — Retruquei. Ele ficou tão
desconfortável, que virou sua bebida muito mais rápido que antes. —
Já nos conhecemos?
— Estive em suas terras algumas vezes.
— Foi dessa forma que acabei em suas mãos? — Indaguei. Ele
estufou o peito. Minhas bochechas coraram quando compreendi
como aquilo soou impróprio. — Digo, sob seus cuidados.
— Algo assim. Balder e eu concordamos que o Dr. Masalis a
trataria melhor que qualquer outro médico da Escócia.
Aceitei o que me foi dito quando Nicholas chamou Charlie pelo
codinome. Somente pessoas mais íntimas conheciam sobre sua
história. Ainda assim, eu escreveria uma carta aos meus amigos
para poder me sentir mais segura. Afinal, eu estava em uma casa
com dois homens que pareciam prontos para atacar algo a qualquer
momento.
Me inclinei e peguei uma uva. Se eu tinha dito que não comeria
nada, torcia para que eles já tivessem esquecido.
— Moram juntos? — Chamei a atenção do tal Damon que se
distraía com um jornal.
— Cuidado com o que está prestes a insinuar — rebateu o de
olhos preto.
— Damon — repreendeu Nicholas —, não seja tão estúpido. É
só uma pergunta.
— Perdoe-me, minha dama. Tenho tido péssimos dias no
trabalho. Meu sócio insiste em tentar resolver tudo com o uso da
força.
Não tive tempo de responder, pois Nicholas já tinha aberto sua
boca.
— Talvez ele tenha uma boa razão para isso. Mas, já que você
discorda da forma como ele administra as coisas, devia apresentar
uma ideia. Tenho certeza de que ele o ouviria.
Damon baixou o jornal na altura do nariz e encarou o outro.
— Ele anda muito exaltado. A última pessoa que o irritou,
acabou com o crânio aberto na mesa.
Soltei um grito de pavor.
— DAMON! — Nicholas deu um soco na mesa, exasperado.
Tinha as veias expostas na testa.
— Por Odin, você trabalha com o que?! — Perguntei a Damon.
Não imaginava que tipo de pessoa aceitava um sócio que mata
apenas porque foi provocado.
— Ah, cabelo de fogo, faço o que nenhum outro homem tem
coragem de fazer.
Aquele apelido causou uma estranha sensação em mim.
— Você me chamou de quê?
Se encararam.
— É de uma música. Seus cabelos são como os da moça da
canção.
Engoli em seco e enfiei uma nova uva na boca, sem conseguir
pensar em uma resposta.
— Papai, papai, eu não tô achando o puga. — Uma pequenina
chegou gritando e correndo. Estava com um chapeuzinho azul na
cabeça e um vestido jeans.
Filha?
— Já procurou pelo jardim? — Nicholas perguntou.
— Já.
— Nos dois?
— Já.
— Tudo bem. — Nicholas suspirou, empurrou sua cadeira, e
olhou de Damon para mim. — Me deem licença.
— Pulga! — Chamei e olhei na casinha do cão. — Pulga!
— Puga. Puga. — Minha filha vinha logo atrás.
— Qual a última vez que viu ele?
— Hoje.
— Onde?
— Ali. — Apontou com o dedo rumo ao porão onde Esnarriaga
era mantido prisioneiro.
A segurei pelos ombros.
— O que eu disse a você sobre brincar para aqueles lados,
Luiza?
— Eu não tava brincando, papai. Tava pegando flor.
— Flor? Pra quê?
— Pra dá pra moça laranja pra ela gostar da gente.
Soltei um suspiro profundo. Eu tinha dito a Luli que não
podíamos visitar Maisie porque ela estava cansada e que não
gostaria de ser incomodada por nós. Eu não tinha conseguido pensar
em qualquer outra desculpa boa o bastante pra impedir minha filha
de entrar no bendito quarto de cinco em cinco minutos. Eu só não
planejava que Luli entenderia que Maisie não gostava de nós.
— Filha, não podemos dar presentes para a moça laranja por
enquanto.
— Por que?
Fitei seus olhinhos de azeitona.
— Porque ela não se lembra de nós. Ela está um pouco
confusa. Sabe quando você tem um sonho e por mais legal que ele
tenha sido, você não se lembra dele pela manhã? — Esperei que
confirmasse. — Aconteceu algo parecido com ela. Precisamos dar
um tempo para que se lembre do sonho e se lembre de nós.
Por mais confusa que tenha sido minha explicação, Luli pareceu
ter compreendido.
— E se ela tomar chocolate quente, papai?
Sorri para ela. Chocolate quente era sua solução para tudo.
— E se nós tomarmos?
— Com creme?
— Com tudo o que você quiser. Só vamos encontrar seu
cachorro antes.
Ela saltitou e voltou a chamar pelo cão.
Encontramos o animal vinte minutos depois. Ele dormia
encolhido embaixo de uma árvore. Não duvidava que estivesse
fugindo da minha filha. Eu mais que ninguém sabia como Luli podia
ser inquieta e arteira.

Depois de alguns drinques e vários resmungos, aceitei me


encontrar com Damon na sala de reuniões para discutirmos sobre
Érebos.
— Mate todos — reforcei. — Os coloque enfileirado e dê um tiro
na cabeça de cada um. Se o calibre for bom, você consegue
atravessar dois crânios em um único disparo.
— Queria acreditar que você está brincando, mas sei que não é
o caso. Se os matarmos, não teremos ninguém para fazer o serviço
sujo. A não ser que você queira cuidar dos roubos, tráficos,
sequestros e por aí vai...
— Não, Damon. O que estou tentando lhe dizer é que não quero
e não vou aceitar ser um novo Dionísio. Não vou mandar esses
homens sequestrarem crianças ou assassinarem donas de casa
apenas porque estou sendo pago.
— O dinheiro que tem na conta de Érebos não é o suficiente
para pagarmos o que devemos. Precisamos aceitar serviços ou
iremos falir!
Eu tentava ser forte, mas eu tinha demônios despertados na
cabeça.
— Eu prefiro matar todos esses homens a permitir que
machuquem pessoas inocentes. Esse é o meu pensamento e não
irei mudá-lo.
Me encarou como se eu tivesse acabado de disparar um alarme
de incêndio.
— Essa não é uma decisão que você possa tomar sozinho!
Dei um tapa na sua mão e seu copo voou. Eu não tinha medo de
Damon. Eu não tinha medo de ninguém.
— Se quer fazer essas merdas, então faça. Eu estou fora.
Ele levou os olhos para o copo no chão.
— Estou tentando ser paciente com você, Alastor, por tudo o
que está passando devido ao estado de Maisie, mas admito que tem
sido fatigante lidar com você.
Dei um suspiro carregado.
— Ela pode nunca se lembrar de mim. Eu sou uma passagem
evaporada da mente dela. Nós, somos.
— Então vamos trazer todas as memórias de volta — sugeriu.
— Não são boas as lembranças que ela tem de nós. O
neurocirurgião disse que talvez seja exatamente por isso que seu
psicoemocional decidiu nos apagar. O cérebro, por meio de um
mecanismo de defesa, bloqueia lembranças traumáticas. — Me
larguei na poltrona novamente e passei as mãos pelo rosto. —
Consegue acreditar que fiz uma das mulheres mais incríveis se
apaixonar por mim e o destino tragicamente a fez se esquecer disso?
— Um riso de frustração atravessou meus lábios.
Damon pegou um copo e me serviu de uísque. Peguei sem
pestanejar e virei um gole.
— Você pode reconquistá-la.
— Eu não daria a mesma sorte duas vezes.
Me olhou sem piscar.
— Ela pode estar perdida, Alastor, mas dois corações que se
pertencem sempre darão um jeito de se reencontrar.
Não escondi a surpresa.
— Nunca o ouvi falar assim. Tão...
— Romântico?
— Gay.
— Vai se ferrar, Alastor — falou, rindo.
— “Dois corações que se pertencem sempre darão um jeito de
se reencontrar”. — Repeti sua frase. — Seu desgraçado. Você
acabou de me fazer ter uma ideia.
“Querida Tess, as coisas estão um pouco confusas na minha
cabeça. Me disseram que sofri um acidente...fui atropelada. Puff,
acabei de me recordar do porquê odeio cidade grande.
Enfim, não é para descarregar minhas paranoias que decidi
escrevê-la, na verdade, gostaria de lhe perguntar por que diabos
estou na Grécia com dois homens que simplesmente desconheço?
Eles me disseram que são próximos a vocês, mas, ainda assim, sinto
algo estranho quando os vejo. Não sinto medo, sinto...Não sei
exatamente o que sinto.
Apenas me assegure que esses homens não me sequestraram.
PS: Se não me responder nos próximos dias, juro que
encontrarei uma forma de fugir.
Talvez eu sequer lhe envie essa carta. Talvez eu apenas fuja.
Com carinho e recheio de saudades,
M.”

Eu só precisava descobrir como enviaria aquela carta sem ser


descoberta. A dobrei em muitas partes e a guardei no bolso do meu
vestido quando bateram à porta.
Eu ainda estava recebendo acompanhamento médico. Mas eu
duvidei da capacidade do homem quando me perguntou sobre minha
cegueira.
— Que raios de cegueira!? Não, doutor, enxergo perfeitamente
com os dois olhos. — Mesmo com minha afirmação, o sujeito meteu
uma luz em mim.
Dr. Masalis me fez mais algumas perguntas desconexas antes
de finalmente ir embora. Fiquei aliviada quando ele se foi e levou
consigo o odor desagradável de enfermidade que carregava em suas
roupas.
Desci as escadas irritadiça, em busca dos dois machos.
Encontrei apenas um deles deixando uma sala. Parecia ser um
escritório.
Com as mãos na cintura, questionei:
— Você disse para o médico que eu era cega de um olho!?
— Bom dia para você — respondeu Nicholas, em tom de
deboche.
O segui pelo corredor. O arrogante não se deu ao trabalho de
parar e me responder.
— Eu fiz uma pergunta!
Revirou os olhos como se tivesse uma criança petulante ao seu
lado.
— Você estava com um...probleminha no olho esquerdo. Pelo
visto, o acidente deu um jeito nisso.
— Que probleminha? — Esbarrei em uma das estátuas
masculinas nuas. Eu realmente queria entender a fixação dos gregos
por aquelas coisas.
— Nada com o que deva se preocupar; afinal, você me parece
especialmente ótima nessa manhã.
Rangi os dentes. Tudo naquele homem me tirava do sério. Ele
era confiante demais, irônico e debochado, e falava comigo como se
eu tivesse lhe dado alguma liberdade.
Passei na frente dele e o empurrei no peito. Meu corpo inteiro se
arrepiou ao tocá-lo. Não entendi o que aconteceu, foi eletricidade,
calor. Eu nunca sentira algo assim.
O azul oceânico dos seus olhos me encarava sem demora.
Afastei as mãos com a mesma urgência em que as coloquei sobre
ele.
— Pretendia me dizer alguma coisa ou apenas quis matar a
curiosidade sobre meu corpo?
Diga alguma coisa.
— Q-uero que envie uma carta para mim. — Peguei o papel do
meu bolso. Meus dedos ainda tremiam. — Eu saberei se abrir.
— Por que acha que sua vida particular é do meu interesse? —
Revidou. Eu sabia que tinha o ofendido.
— Eu não sei das suas intenções comigo. Só quero garantir que
a carta chegue do mesmo modo que a enviei. — Me mantive
impassível.
Tomou a carta da minha mão sem aliviar a expressão bruta.
— Estou aqui para cuidar de você, não para bisbilhotar ou
machucá-la.
Ergui o queixo com determinação.
— O que me garante que não é um assassino ou um
sequestrador?
Seus olhos se abriram mais, em pânico, e ele recuou. Minha
garganta deu um nó de pescador. Eu não sabia qual dos dois
pensamentos me assustava mais.
— Não vai dizer nada? — Minha voz tremeu. — Não irá negar?
Guardou minha carta em seu próprio bolso e desviou de mim
para continuar seu trajeto. Continuei o seguindo. Eu não conseguia
evitar estar perto de Nicholas. Algo no homem me intrigava.
— Eu não preciso abrir sua carta para saber que está querendo
confirmar com seus amigos tudo o que eu lhe disse. Você não
acredita na minha palavra. Se eu te disser que não sou as duas
coisas que alega, ainda assim terá suas suspeitas.
— Que modo ridículo de fugir da pergunta. E que droga de lugar
é esse? — Olhei para as colunas que pareciam um pergaminho
gigante.
— Um espaço sagrado para os gregos. Hiéros, “aquilo que não
se pode tocar”.
— E o que estamos fazendo aqui? — Olhei atenta para tudo na
sala quadrangular e de interior bem iluminado.
Ele se sentou em um dos bancos de frente para uma escultura
em alto relevo.
— Não é curioso existir um espaço tão grande quanto esse para
consagrar o culto de algum deus grego?
Arqueei a sobrancelha.
— Não entendo o porquê me trouxe aqui.
Ergueu as pálpebras para mim sem levantar o rosto.
— Não a trouxe. Você quem me seguiu. — Soltei um rosnado.
— Não vá, fique. Está vendo aquela marca preta ali? — Apontou
para uma das janelas e eu acompanhei com os olhos. — Certa vez
incendiaram uma das cortinas.
— Quem faria uma coisa dessas sabendo que é um lugar
sagrado para alguém?
Ficou quieto. Não tive resposta.
— Você é o dono disso tudo? — Resolvi perguntar.
Para a minha surpresa, ele respondeu:
— Agora, sim.
— Herança de família?
Ele riu.
— Não. Com certeza não. — Ficou sentado por mais um tempo
e então se levantou. — Vamos, dona Galanis já deve ter preparado
nosso café.
Dei mais uma olhada no lugar antes de ir.
— Você tem uma filha — falei, a caminho de onde o chá estava
sendo servido. O cheiro estava muito bom.
Os olhos de deixar minhas pernas bambas me fitaram por cima
do ombro.
— Sim, eu tenho. E antes que pergunte, é adotada.
— Eu não ia perguntar. — Menti descaradamente.
— Não mesmo? Podia jurar que estava na ponta da sua língua.
Torci os lábios.
O café farto já tinha sido servido. Eu ainda não me acostumara
com tantas variedades postas a mesa. Era um paraíso para mim.
A fuga pode esperar um pouco.
A empregada disse algo em grego para Nicholas e logo deixou a
sala.
— Damon e sua filha não virão? — Quis saber, ao não ver
vestígio de nenhum dos dois.
— Eles comeram e foram dar um passeio pela praia. Por favor,
sente-se.
Fiz o que disse e ele se sentou de frente para mim. Apenas uma
mesa nos separava.
— Chá com leite? — Me ofereceu.
Cerrei o cenho.
— Ah, sim.
— Pão doce para acompanhar?
— São os meus preferidos — falei, em dúvida.
— Um pouco de açúcar no chá, suponho — ele disse,
entornando o chá preto na minha xícara.
— Vai adivinhar a cor da minha calcinha também? —
Imediatamente levei uma mão à boca. — Pelos deuses, me perdoe.
E-eu.... Não sei porque disse isso. Estou absolutamente
envergonhada. Me perdoe. Não quis constrangê-lo.
Ele sequer corou. Só riu.
— Está tudo bem. Não é tão absurdo sugerir que eu esteja
interessado na cor da sua calcinha.
— Não sugeri. — Eu não sabia onde enfiar a cara, então levei
uma maçã à boca mesmo contra vontade. — Nem mesmo sei porque
algo assim se passou por minha cabeça.
Me empurrou o prato de pães e deitou os braços na mesa em
seguida.
— Talvez meus olhares para o seu traseiro tenham me
entregado.
Me engasguei e tive uma crise de tosse.
— Não sou uma promíscua.
— Não acho que seja.
— Sou virgem. — Dei outra vez com a língua nos dentes.
— Ah, é? — Não se fez de surpreso. Pelo contrário, seu sorriso
sarcástico deixou claro que não acreditara em mim.
— Não estou mentindo — retruquei, irritada. Eu até podia dar
um tapa naquele rosto egocêntrico.
— Eu não disse isso. Por que não termina o seu café antes de
falarmos sobre sua vida sexual?
— Não tenho uma vid... Sei o que está fazendo, está me
provocando para que eu lhe dê informações a meu respeito. Isso é
genial e assustador.
Se esticou na cadeira e passou os braços atrás da cabeça, em
uma posição bem confortável e abrangente. Salivei.
Eu não devia ir tão longe com os pensamentos.
— Eu só estava lhe servindo chá. Por falar nisso, acho que já
deve ter esfriado.
Empurrei a cadeira.
— Receio que eu tenha perdido o apetite.
— Então por que está levando o prato de pãezinhos com você?
Grunhi e segurei o prato de pães com mais afinco.
— Senhor Coleman, não é do meu feitio dizer isso, mas acho
que eu o odeio.
A gargalhada estridente reverberando pelo cômodo foi demais
para a minha cabeça.
"Me perdoe por demorar tanto em retorná-la, estamos todos
felicíssimos com a sua recuperação. Nossas bagagens estão prontas
para embarcarmos à Grécia. Pretendíamos partir na última sexta-
feira, mas Charlie recebeu uma visita de Hamish que acabou com
nossos planos. Está sentada? Pois lá vai...
Kate e Hamish serão papais.
A notícia veio acompanhada pelo desmaio de Hamish. Você
sabe como os machos tendem a ser dramáticos as vezes. Ele está
na fase de surto, então passa a maior parte do tempo no escritório
com Charlie. Confesso que estou com pena do meu marido, mas as
gargalhadas que tenho dado com Kate suprem este sentimento.
Por falar em Kate, ela está aqui ao meu lado lhe mandando os
abraços mais apertados e os beijos mais doces. Diz que está
ansiosa para reencontrá-la o mais breve possível.
Não queria prolongar a carta tanto assim, mas a saudade que eu
estava da minha amiga ruiva me deixou prolixa demais.
E antes que eu me esqueça, você está segura ao lado do
senhor Coleman, até mais do que estaria com qualquer um de nós.
PS: Espero que tenha desistido da ideia de fugir.
Com todo amor,
Tess
E Gael
E Jailson
Charlie
Kate
Hamish
E o bebê escocês que está por vir.
Amamos você.”
Acordei quando a porta já tinha sido fechada, mas empunhei a
faca que roubara mesmo assim. Me virei para acender o abajur
quando vi uma luz verde brilhar sobre o criado-mudo. Peguei o
vasinho de vidro e o estudei atentamente.
— Um vaga-lume. Como foi parar aí?
Sorri, apreciando a sensação boa das lembranças que aquilo me
despertara.
— Eu queria ter uma boa história para você, mocinho. Mas
ultimamente ando sem saber nada sobre minha própria história. —
Me levantei e abri a janela. — Acho melhor deixar você ir.
Observei o inseto voar por minutos, mas minha atenção logo foi
dispersada quando vi duas sombras seguirem para o Norte.
— Aonde é que vão?
Meu instinto me fez pegar um vestido no armário e não perder
tempo. Desci as escadas correndo para conseguir alcançar Nicholas
e Damon. Eu não queria ser flagrada bisbilhotando, sabia que se
eles fossem fazer algo de errado, não seria na minha frente. Os dois
se faziam de bom moço, contudo, eu sentia que não eram. Tinha
pressentimentos sombrios em relação a eles.
Assim que o primeiro galho arranhou meu braço direito quando
percorri a trilha de cascalhos, minha mente deu um rompante.
Eu já fiz isso antes?
Fiquei um tempo parada tentando distinguir aquela centelha de
recordação e por muito pouco não acabei perdendo os machos.
Espantei os galhos e continuei a corrida.
Os vi empurrar uma porta e descerem as escadas.
— Um porão? — O medo cantou uma canção em meus ouvidos,
mas foi da coragem que ouvi a última estrofe.
Tess dissera que eu estava segura com Nicholas, mas não
mencionara nada sobre Damon. Se Nicholas tivesse encrencado por
culpa do outro, eu não tinha nada a ver com isso, no entanto, por que
algo continuava me puxando para a mesma direção que ele? Por
que minhas pernas se movimentaram voluntariamente na intenção
de acompanhá-lo?
Eu queria girar os calcanhares e partir. Era a oportunidade de ir
embora da Grécia, ninguém estava olhando. Mas, quando dei por
mim, já tinha descido as escadas também.
A baixa iluminação do lugar não me agradava, tampouco o forte
cheiro de poeira que irritava minhas narinas.
Bastou ouvir a grave voz de Damon dizendo algo em grego para
todas essas calamidades desaparecerem.
Eu só queria que ele estivesse falando meu idioma, assim eu
não precisaria me aproximar ainda mais. Não aconteceu. O
desgraçado falou outra vez em grego e eu fui obrigada a atravessar
o mesmo estreito corredor de paredes de pedra que eles, sempre
deixando uma distância segura entre nós. Eu sabia que se um deles
resolvesse olhar por cima do ombro, eu estaria totalmente ferrada,
não teria onde me esconder. Só me restava implorar aos deuses
para que isso não acontecesse de forma alguma.
Então uma terceira voz masculina lamuriou. Bastou mais dois
passos para que eu visse um homem dentro de uma gaiola gigante,
preso feito um animal.
Nicholas se agachou à sua frente e agarrou as grades com fúria.
O que ele rosnou eu não pude entender, mas sem dúvida fora o mais
pobre insulto.
— Eu não preciso disso! — Disparou Nicholas para Damon em
meu idioma. — Tenho minhas próprias mãos para matá-lo.
Matar?
— Uma arma nos tomará menos tempo. Não seja ignorante.
— Tenho a noite inteira para ele. ABRA! — Ordenou para
Damon com um ódio que eu não conhecia. Damon não o obedeceu.
Não soube o que fez aqueles olhos negros se voltarem para
mim, mas quando Damon me viu, ficou espantado. Comigo não
aconteceu o diferente.
— O que está fazendo aqui!? — Seu timbre feroz foi bruto como
um soco na boca do meu estômago. Até Nicholas virou o rosto
quadrado na minha direção.
— V-ocês...são...monstros.
Não esperei ser respondida. O que vi foi mais explicativo que
qualquer resposta verbal de um dos dois. Subi as escadas como se
não tivesse mais que um degrau.
— MAISIE! — Nicholas gritou, correndo atrás de mim. Não vi
qualquer sinal de Damon.
Não sabia para aonde eu estava indo, só sabia que precisava ir.
Corri até inspirar o adorável cheiro do oceano e antes de ser
jogada na areia áspera e repleta de cascalhos.
— Peguei você.
— Me largue! — Me debati.
O que Nicholas fez, foi me virar e pressionar seu corpo contra o
meu, prendendo meus braços sobre minha cabeça. Fiquei em uma
posição, no mínimo, interessante.
— Será que pode me ouvir um minuto antes de correr histérica
pela praia e se atirar ao mar?
Como sabia que esses eram exatamente meus planos?
— Pelo andar da carruagem, sei bem o que irá dizer! — Devolvi.
— Você me chamou de monstro, garota. Ao menos me dê uma
chance de me explicar.
— Se o senhor puder me soltar, será um bom começo para ter a
chance que me pede.
Antes dos seus dedos se desvencilharem dos meus pulsos, fui
atormentada por um novo sacolejar na mente.
Eu já passei por isso. Esse toque. Esse corpo masculino sobre o
meu. Mas, por que eu não lembro de você?
Recusei a mão que me estendeu para me ajudar a levantar e o
fiz sozinha.
— Aquele homem que viu engaiolado, ele machucou a minha
filha. Tudo que estou fazendo é por vingança. Jamais tocaria nele se
fosse um inocente.
De monstro para pai protetor...
Passei as mãos pelo vestido enquanto pensava no que dizer.
— O que ele fez com a criança?
Foi sua vez de pensar.
— Prefiro não falar sobre isso. Acredite em mim, ele não é um
bom homem.
— O senhor não me parece muito diferente. Se puder, fique bem
longe de mim. — Aproveitei sua distância para voltar a correr.

O almoço do dia seguinte foi regado de silêncio. Eu nunca tinha


visto dois homens tão calados e apreensivos. O estado catatônico
fazia parecer que a assassina era eu, que eu quem engaiolara um
ser humano. Era ridículo.
— Papai, posso ir brincar com o puga agora? — Era a segunda
vez que a criança perguntava.
— Você não comeu quase nada.
Ela fingiu que comeu mais um pouco, mas, na verdade só
espalhou a comida pelo prato.
— Posso ir agora?
Nicholas soltou um suspiro de me causar pena. O olhar caído
indicava fadiga.
— Coma as batatas e pode ir.
Ela não perdeu tempo. Enfiou as batatas na boca e deixou a
mesa enquanto ainda mastigava.
O silêncio prolongou-se por mais um tempo quando ficou
apenas eu e os dois mistérios na minha vida. Pude ouvir o som da
água que Damon virou na garganta.
Enquanto os machos demonstravam interesse algum em seus
respectivos pratos, eu devorei o que havia no meu como se fosse
uma leoa faminta e sabia que era observada.
— Não confia em nós, mas come nossa comida? — Perguntou
Damon, em tom de crítica.
Finalizei a carne de porco que tinha na minha boca.
— Se me matassem por envenenamento, que tipo de
assassinos seriam vocês? Me parecem mais cruéis que isso. Eu vi o
que fizeram com aquele grego.
— Alastor, diga que ela está completamente louca.
Alastor?
— Damon, cale a boca — rosnou Nicholas.
— Não. Não vou me calar.
— EU MANDEI CALAR A BOCA! — Nicholas se levantou com
as palmas das mãos apoiadas à mesa.
O outro fez o mesmo.
— CONTE TUDO A ELA OU EU CONTAREI. — Eu não saberia
dizer qual dos dois estava mais pronto para atacar. A única certeza,
era que pratos voariam. — Ele quer protegê-la da verdade, Maisie,
mas se quer mesmo saber, você não era nenhuma santa. Suas mãos
têm tanto sangue quanto as nossas!
Meu rosto empedrou.
— Sangue? — Murmurei.
— Agora já chega! — Nicholas avançou em Damon como quem
não tem nada a perder e os dois se enfrentaram como se fossem
velhos inimigos. Eu fiquei no meio de tudo aquilo, com um mal-estar
que me deixou atordoada. Não os ouvia mais, contudo, vi objetos
passando por mim.
Me levantei e foi quando tudo girou.
— Eu disse para não a estressar. Para permitir que as
lembranças voltassem naturalmente — repreendeu o doutor.
— Nos desculpe. — Damon e eu dissemos em conjunto.
— Se quiserem que ela se recupere, então parem de perturbá-la
ou a perderão para sempre.
— Nos comportaremos a partir de agora. — Damon tirou o gelo
do olho inchado por um tempo, para me fitar.
O doutor não pareceu acreditar, mas foi embora mesmo assim.
No segundo em que a porta foi fechada, enquanto o clique da
fechadura ainda podia ser ouvido, eu e Damon tornamos a gritar um
com o outro.
— VOCÊ TEM MERDA NA CABEÇA? — Eu berrei. —
PERCEBE QUE FEZ A GAROTA DESMAIAR?
— EU???? — Levou uma mão ao peito de modo dramático e
berrou de volta: — APOSTO QUE FOI O COPO QUE VOCÊ
LANÇOU EM MIM QUE A DEIXOU PERPLEXA.
— EU DEVIA TER LANÇADO UMA PANELA DE FERRO
FUNDIDO PARA MATAR VOCÊ DE UMA VEZ.
Ele me estendeu o gelo.
— Coloque na sua boca, está começando a inchar. — Pausou a
discussão por um tempinho e logo voltou: — DA PRÓXIMA VEZ,
JURO QUE JOGAREI A CADEIRA EM VOCÊ.
Segurei a compressa de gelo no meu lábio inferior e só revirei os
olhos para Damon.
— Você devia arrumar a bagunça que fez e ter piedade da dona
Galani. — Ele sugeriu, observando a desordem ao redor da sala de
jantar.
— Não pense que você não irá me ajudar. Vá buscar uma
vassoura!
Nos viramos quando a porta foi aberta e a empregada entrou
mais pálida que o de costume.
— Meninos, acho que a paciente de vocês acabou de fugir.
— Como? Ela estava no quarto... — Falei, indignado e com as
mãos frias por conta da compressa.
— Acabei de vê-la enquanto limpava a janela — disse dona
Galanis.
— Droga! — rosnei. — Pegue, Damon. Você precisa mais que
eu. — Joguei a compressa na cabeça de Damon e saí correndo.
— EU VOU MATAR VOCÊ, ALASTOR — respondeu, vindo atrás
de mim.
— Primeiro, me ajude a encontrar Maisie, depois nos divertimos
fazendo você sofrer.

Já tinha anoitecido quando voltamos sem localizar nenhum


rastro da ruiva. Damon e eu nos atiramos cada um em um sofá na
sala de estar.
— Se pensarmos pelo lado positivo, Maisie ter fugido significa
que está quase totalmente curada.
Franzi as sobrancelhas.
— Juro que não entendi seu lado positivo. A garota está sozinha
por aí, sem nem mesmo saber de tudo do que ela é capaz. Vamos
descansar um pouco e voltamos a procurar.
Damon nem afirmou e nem negou. Só ficou quieto como se não
tivesse fôlego para falar.
— Papai, papai, o tio Gal tá no portão. — Minha filha entrou
correndo na sala. O vira-lata vinha logo atrás, como sua sombra.
Me levantei em um sobressalto.
— O que disse?
— Tio Gal. — E apontou para a direção do portão.
Meu coração disparou. Tudo que eu não precisava era dos
amigos de Maisie vindo visitá-la justamente no dia em que ela
resolveu fugir.
Sem ter outra opção, fui recebê-los cordialmente, cético de que
Charlie me esganaria assim que eu lhe contasse o ocorrido. Damon
me acompanhou.
Pensei em várias desculpas enquanto atravessava a porta, mas
quando vi a quantidade de escoceses me esperando, emudeci.
— Olá, Coleman. Bom vê-lo novamente — disse Tess. A
cumprimentei com um aperto de mão. — Esses são Hamish e Kate.
— Apresentou o casal para mim. — São amigos de Maisie também.
Era só o que me faltava. Várias pessoas ansiosos para verem a
amiga recentemente acidentada, desaparecida.
Eu ia morrer. Naquela noite, eu ia morrer.
— Sejam bem-vindos à Grécia. Este é Damon, ele ficará mais
que feliz em apresentar a casa para vocês.
— Ficarei? — O corvo cochichou para mim. O respondi com
uma cotovelada.
— Outro lugar quente como o inferno — resmungou Charlie.
— Será que conseguirei um bronzeado como o seu, meu caro?
— Zombou o tal do Hamish. Aquele tipo de graça não condizia com
sua expressão de zanga.
Charlie torceu o nariz.
— Charlie, quando foi que você se tornou um velho resmungão?
— A pergunta foi feita por Kate. Pelo seu comentário, ela me parecia
ter o mesmo humor brincalhão de Tess.
Charlie só torceu o nariz novamente.
— Será que podemos entrar? Minha barriga está roncando há
horas. Se eu continuar passando fome, Kate vai ultrapassar o
tamanho da minha pança — disse Jailson. Eu mal tinha visto seu
rosto dentre tantos.
— Viemos para ver a ruivinha, não para comer! — Desaprovou
Gael, ajeitando a alça da mochila nas costas.
— Sendo assim, ficarei feliz em comer por dois.
— Ei. A única que pode comer por dois aqui, sou eu! — Disse
Kate.
Aproveitei aquela discussãozinha medíocre e puxei Damon pelo
braço.
— Os distraia enquanto procuro por Maisie — sussurrei.
— Como é que vou distrair tantas pessoas ao mesmo tempo?
— Dê o seu jeito. Faça o que sabe fazer de melhor...
— Os embebedarei. — Ele me interrompeu como se a ideia
fosse a mais sensata que tivera.
— Deus do céu. Que você esteja brincando — eu disse, ainda
que estivesse evidente que ele não estava.
Damon não me respondeu, apenas se virou para os outros e os
convidou para entrar.
— Mostrarei o aposento de vocês. Antes de mais nada, saibam
que não conseguiriam uma hospedagem com quartos melhores que
esses que estão prestes a ver.
Logo que a atenção de todos se voltou para Damon, eu
aproveitei para fugir.
Aquilo não podia ter acontecido. Eu não era uma garota que
praticava aquele tipo de coisa.
Eu sou virgem. Repeti diversas vezes para tentar convencer a
mim mesma. Contudo, o que explicava aquelas lembranças que tive
logo ao me recuperar do desmaio? Foi muito clara a imagem de
Damon me beijando contra a parede e ainda mais clara a lembrança
que viera em seguida, a boca de Nicholas entre minhas pernas. Eu
me relacionava com os dois? Pelos deuses, eu dormira com os dois
machos que eu chamara de assassinos cruéis? Por isso Nicholas
debochou quando eu disse que era virgem. Ele mais que ninguém
sabia que era uma tremenda mentira.
Que cadela!
E ainda tinha a voz de Damon rodando na minha cabeça: “Suas
mãos têm tanto sangue quanto as nossas.”
Me joguei naquela areia seca e fitei o céu noturno. Eu precisei
fugir. Não podia encarar os dois que eu tanto julguei sem pensar que
talvez eu fosse a garota deles.
Uma garota de dois homens!
— Finalmente a encontrei. — Ele disse, surgindo por trás. — A
procuramos em todos os lugares. Pensei que...que tivesse partido.
Me levantei como se um raio tivesse caído próximo a mim.
— Não se aproxime.
Nicholas cruzou os braços fortes.
— Sobre o que Damon lhe disse, não dê ouvidos a ele. Em
breve descobrirá quanta merda ele é capaz de dizer e fazer.
— Eu sei que você tem mentido para mim. Tenho me lembrado
de coisas.
— Que coisas? — Perguntou com interesse.
Nunca direi sobre os beijos.
— Coisas que não me parecem sonhos e sim, memórias. Me
diga, Nicholas. Como nos conhecemos?
Ele mirou no mar atrás de mim e não desviou os olhos por
nenhum segundo.
— No casamento de Tess e Charlie. — Foi vago. Seria difícil
arrancar qualquer informação de alguém como ele. Nicholas parecia
ser o homem que tinha muito controle sobre si mesmo.
— O q-ue somos um do outro? — Gaguejei, entregando minha
fraqueza. Se mostrou pensativo, como se aquela fosse a pergunta
mais difícil da sua vida. Me senti estúpida por fazê-la, então o privei
da resposta acrescentando: — Você colocou um vaga-lume em meu
quarto?
Finalmente me olhou e sorriu, desmoronando meu mundo com
aquele sorriso.
— O que fez com ele?
— O soltei. Por que fez isso por mim?
— Porque eu sabia que você sorriria quando o visse. — Me
estendeu a mão. — Venha, há pessoas que quero que você veja.
— Quem?
— Confie em mim. Você vai gostar.
Peguei em sua mão como quem toca as nuvens com as pontas
dos dedos e me preparei para ver estrelas. Tinha um pedaço daquele
homem dentro de mim, e quando nossa pele entrou em contato, eu
soube que também havia uma parte grande de mim dentro dele.
O que eu sentia por Nicholas Coleman era forte com as ondas
se quebrando às minhas costas.
A primeira voz que ouvi ao atravessar a porta, foi a de Tess. Eu
não sabia em que cômodo ela estava, mas segui o som feito uma
criança que corre no escuro.
— Aí está você!
Todos meus amigos se levantaram ao me ouvir. Eu mal podia
acreditar no que estava vendo; até mesmo Kate e Hamish foram à
Grécia por mim.
— Mulher, o que está esperando para vir nos dar um abraço? —
Kate me perguntou. Até então, eu estava paralisada e com uma
lágrima prestes a cair.
Como ela era a única que não estava com um copo de bebida
na mão, foi a primeira que envolvi com meus braços e apertei.
— Quer dizer que você é a nova mamãe da Escócia? — Não
tirei meu rosto do seu ombro para perguntar.
— Pode acreditar? O velho amigo do meu marido ainda funciona
bem — ela brincou.
Gargalhadas não faltaram pela sala.
— Impossível algo em mim não funcionar quando olho para
você, querida. Mas, por favor, não vamos constranger os novos
colegas — respondeu Hamish, um pouco avermelhado, mas eu
desconfiava que o culpado pela cor era o copo de uísque.
Abracei todos; cada um por vez.
— A mim não constrangem, principalmente quando estou
bêbado — disse Damon.
— Tenha bondade. Está me dizendo que essa água colorida
surtiu algum efeito em você? — retrucou Charlie, particularmente
indignado e criticando o álcool servido.
Tess que vinha na minha direção, revirou os olhos pro marido do
seu típico jeitinho apaixonado. Pegou a minha mão e também a de
Kate.
— Venham, deixem os garotinhos se bicando e vamos ter uma
conversa de verdade em outro lugar.
— Ei, eu ainda não matei a saudade da ruivinha — protestou
Gael, sem largar seu copo.
— Gael, todos sabemos que você veio para ver se o cabelo da
filha de Nick cresceu. Não tente nos enganar — entregou-o Jailson e
recebera um tapa na cabeça.
Por que estão carecas?
— Não é verdade, quero mesmo saber como a nossa piuthar
está.
— Posso lhes garantir que estou nova em folha — eu disse. Não
era verdade, mas não havia razão para preocupá-los ainda mais.
— Sendo assim, agora posso ver a criança dessa casa sem ter
peso na consciência — respondeu-me Gael, com ansiedade. Pelo
que deixou transparecer, ele e a filha de Nicholas tinham alguma
história juntos.
— Venham, precisamos de uma conversa só entre garotas.
Ficaremos por tempo o suficiente para que todos matem a saudade
de você. — Kate e eu fomos arrastadas por Tess sem ter outra
escolha.
Entramos em uma sala de almofadas vermelhas e horrorosas
estátuas masculinas nuas. Não pude evitar o olhar para o membro
inferior daquelas esculturas e consegui evitar menos ainda o
pensamento depravado de já ter visto aquilo em carne e osso.
Se eu não era mais virgem, qual dos dois homens tinha lidado
com isso. Damon ou Nicholas?
— O que tanto olha? — Tess quis saber e seguiu a direção dos
meus olhos.
— Quero perguntar uma coisa a vocês e, por favor, não mintam
para mim — exigi. Se eu estava me relacionando com algum macho
antes do acidente, aquelas duas seriam as primeiras para quem eu
contaria.
— Essa pergunta constrangerá o meu feto? — Perguntou Kate
com seriedade, e só depois riu. — É brincadeira, só estou testando
frases que eu creio que grávidas dizem.
— Ninguém acreditou. Todo mundo sabe que você adora falar
sobre pau — disse a brasileira.
— Pelos deuses, Tess! — Me fiz de ultrajada, mas gargalhei
depois.
— O que foi? Você estava olhando tão reflexivamente para o
membro daquela estátua, que tudo que me ocorreu é que sua
pergunta seria sobre isso.
Me sentei nos calcanhares e peguei uma almofada no colo. Kate
e Tess se sentaram no sofá oposto.
— T-inha algum homem na minha vida?
O rosto das duas empedrou como das esculturas. Foi Tess
quem se dignou a dizer algo minutos depois.
— Querida, por que não deixa sua memória completar sozinha
as lacunas que tem?
— O que há de errado em pedir que vocês façam isso? Estou
enlouquecendo com os fragmentos que tenho recebido.
— Não queira apressar as coisas. Você ainda está se
recuperando do acidente que sofreu... — Tentou amenizar Kate.
Eu me exaltei e me levantei sem poupar escândalos.
— Vocês não entendem! Eu já não sei mais quem sou. Eu matei
pessoas? Sou uma pessoa ruim?
— Você é a pessoa mais bondosa que conhecemos, Maisie, e
exijo que jamais pense o contrário! — Retrucou Tess.
Meus lábios tremeram. Não chore. Não chore.
— Sinto que estou perdida dentro de mim. Só quero que tudo
volte a ser como era antes.
— Continue consultando o especialista. Aos poucos todos os
pontos se encaixarão — recomendou Kate, a voz sempre adorável e
madura.
— E enquanto isso? Estou em uma casa com dois homens que
não me recordo, mas que sinto coisas quando os vejo — admiti, sem
rodeios.
— Acha que está apaixonada pelos dois? — Tess questionou
com uma certa preocupação.
Senti um calafrio no corpo.
— Não sei. Eu não me lembro; tenho os dois na memória, mas
não sei qual deles está no meu coração. Eu não me esqueci de um
episódio particular. Eu perdi toda a minha identidade.
Tess se levantou e pegou minhas mãos.
— Sei que está cansada de me ouvir dizer, ainda assim repetirei.
— Me encarou com firmeza. — Deixe que tudo se resolva sozinho.
Confie em seus sentimentos e na sua intuição que você será levada
ao caminho certo.
Inspirei e expirei, ainda amargurada.
— Eu vi Nicholas e Damon torturarem um grego — revelei, para
a surpresa das duas. — Vocês compreendem que talvez eu tenha
me relacionado com dois assassinos? Talvez eu estivesse em perigo,
provavelmente foram eles que mandaram me atropelar...
As mãos de longos dedos esguios de Tess foram parar em meu
rosto, me segurando. Eu me recordava de quando ela teve aquele
seu dedo amputado, me recordava do seu casamento, de quando ela
e Charlie disseram sim no altar. Só que depois...depois tudo era
apenas um borrão. Uma escuridão claustrofóbica.
— Pare. De. Surtar — disse entre pausas.
— Então desligue a droga do meu cérebro, porque ele me faz
querer correr sem destino.
— Acho que precisamos de álcool. — Se intrometeu Kate. A
fitamos. — Eu me contentarei com chá, é claro. Da última vez que
peguei em uma taça de vinho, e eu estava apenas a segurando para
Tess, Hamish quase a quebrou na minha cabeça.
Esperei até que a gravidinha se levantasse e puxei minhas duas
grandes amigas para um abraço tranquilizador.
— Eu posso me esquecer de tudo, mas sei que jamais
esqueceria de vocês — murmurei com afeto.
Uma delas fungou.
— Aí, não diga essas coisas. Ando tão emotiva. — Kate se
entregou.
— Dia desses eu disse que a cor do cabelo dela estava bonita e
a criatura quase me pediu um beijo. — Contou Tess e eu gargalhei.
— Por quanto tempo pretendem ficar? — Perguntei assim que o
clima amenizou.
— Não sei. Mas adianto que Tess trouxe roupa para uns cinco
meses.
Tess revirou os olhos e passou o braço por minhas costas.
— Minha querida amiga Maisie, se prepare para lidar com a
grávida mais atrevida que toda a Escócia já viu.
Gargalhamos em conjunto.
Aquela foi a primeira vez em dias que eu me sentia inteira.
— Não sabemos até que ponto a memória dela foi afetada. O
doutor disse que pode ser que com o tempo tudo volte, mas que
pode ser que leve até anos. A recuperação da informação esquecida
pode ocorrer de maneira natural ou através de psicoterapia — contei.
— E sobre a cegueira dela? — Questionou Jailson.
— O médico disse que é um caso raríssimo o que aconteceu
com Maisie. Uma pancada a cegou e uma outra pancada reverteu
isso.
— Não sei se devo dizer que ela é uma garota de sorte. Ao
mesmo tempo em que um problema na cabeça dela foi resolvido,
outro foi comprometido. O que é melhor, perder a visão de um olho
ou todas as lembranças dos últimos meses? — A reflexão foi feita
por Gael ao retornar. Ele dissera que minha filha já estava dormindo
e achou melhor não a acordar.
Tomei meu uísque. Damon não brincara ao dizer que
embebedaria todos.
— Ela se lembra de todos vocês. Isso é tudo que importa —
falei, sincero.
Os cinco homens me olharam com pena e eu odiei me sentir tão
impotente.
— Ela se lembrará de você, Alastor — consolou Jailson.
Dei um sorriso amargo.
— Você não pode tentar fazê-la se lembrar de alguns momentos
que tiveram através de um fio emotivo? — Perguntou Hamish,
sentado ao meu lado no sofá.
— Posso. Tenho tentado estratégias para estimular as memórias
restantes dela através de apelo sentimental. Só que há riscos. — Dei
outro gole. — O sofrimento intenso produz um forte impacto e, com o
objetivo de nos proteger, nossa mente afasta do processo de
recuperação o evento traumático ou certas características
associadas a ele. Se há um vínculo emocional grande com
determinada memória ou acontecimento, pode acontecer de ela se
lembrar primeiro daquilo de mal que a tenha marcado, o que lhe
causou dor. Bem, ironicamente todas suas memórias ligadas a mim
há um sofrimento intenso, experiências altamente traumáticas.
Estamos dolorosamente unidos.
— Diabhal! — Rosnou Charlie.
— Sei que quer que ela se lembre de você e da relação que
tinham, mas você precisa pensar na saúde dela. Maisie matou
pessoas. Ela pode não estar preparada para se lembrar disso porque
não entenderá o que a levou a cometer tal ato — alertou-me Gael.
— Acha que não sei? — Grunhi, segurando o copo com força.
— Quando soube dos riscos, eu apenas parei de tentar trazê-la de
volta. Deixarei que o tempo e a terapia a ajude.
— E se...E se ela nunca se lembrar de você? — Perguntou-me
Hamish. — Eu não sei o que faria se Kate simplesmente me
esquecesse. Ela é o meu coração.
Virei o uísque até a última gota.
— Posso dar a minha vida para conquistá-la de novo, mas não
sei se sou o tipo de homem por quem ela se apaixonaria duas vezes.
Charlie ergueu seu copo no alto e todos fizeram o mesmo, até
os que estavam com o copo completamente vazio.
— Alastor, você se mostrou digno da minha irmã quando parou
sua vida para cuidar dela. Tem o meu apoio para reconquistá-la e
tem a minha palavra de que terá a minha ajuda, se fizer isso de
forma que não agrave a saúde dela ainda mais.
Me levantei. Tal devoção merecia ser recebida de pé.
— Às mulheres que amamos — eu disse, desinibido.
— Às mulheres por quem vamos à luta — concordou Hamish.
— Às criaturas que destroem nossa dignidade e nos fazem
apreciar ser grandes tolos — brincou Charlie.
— Às irmãs que nunca deixarão de ser nossas caçulinhas —
compactuou Gael.
— Às donas dos melhores Haggis — disse Jailson. — O que foi?
Eu gosto de comer.
Gargalhamos.
E em um canto da sala, apenas observando à distância, mas
com seu copo também erguido, Damon deu a última palavra:
— A vocês. Apenas a vocês.
E brindamos.
Fazia dias que uma refeição naquela casa não era tão animada.
Pedi a dona Galanis que preparasse o prato típico da Grécia.
Quando a Mussaká foi servida com um agradável cheiro de abrir
qualquer apetite, eu a convidei para se juntar à mesa.
— O que tem aqui? — Perguntou Kate, após dar a primeira
garfada e dizer que estava absolutamente fantástico.
Traduzi em grego para Galanis e ela me respondeu.
— Ela disse que é constituído por carne de carneiro, beringelas
e tomate; condimentado com azeite, cebola, ervas e pimenta —
contei para Kate.
— Querem apostar que esse será o primeiro prato que minha
esposa preparará ao retornarmos para a Escócia? — Perguntou
Hamish, e deu sua primeira garfada.
— Eu que não reclamarei se for convidado — disse Jailson. De
todos, ele era o que mais estava se deliciando.
— Jailson, coma devagar, em nome de Odin — disse Maisie,
entre risos. Vez e outra, seu olhar pairava sobre mim em uma análise
desconcertante.
— Piuthar, estou sentado ao lado de Gael. Se eu não comer
logo, terei meu prato invadido pelo garfo dele.
— Sabem que podem repetir quantas vezes quiserem, não
sabem? — Os lembrei. Por Deus, dona Galanis fizera Mussaká para
alimentar um batalhão.
— Esqueça, Coleman. Esses dois aí vivem em pé de guerra há
tempos. — Me disse Tess, comendo de modo elegante e sentada
com compostura, uma verdadeira dama da sociedade. Ao seu lado
estava o marido, segurando a faca como se estivesse pronto para
rasgar a barriga de um tubarão.
Vê-los juntos me fez perceber como Maisie se encaixava entre
eles. Era uma família, uma enorme família de amigos. A melhor que
qualquer um poderia ter.
— Alastor, você e Damon tem fetiche por homens nus? —
Questionou Charlie de modo espontâneo. O olhei sem entender. —
Em cada canto que olho há uma estátua e um pênis me encarando.
Água espirrou no meu braço quando Kate não pôde conter a
gargalhada.
— Me perdoe, Coleman — ela disse e me estendeu seu
guardanapo.
Recusei com educação e usei o meu próprio para me limpar.
— Quando se tem filha pequena você se acostuma a estar sujo
o tempo todo. Esteja preparada para ter tinta, terra, massinha e
coisas piores até nos cabelos.
— Est...
— Por que o chamam de Alastor? — Questionou Maisie,
interrompendo Kate.
Senti os pelos da minha nuca se arrepiarem. Todos esperavam
por minha resposta. Que diabos de desculpa eu inventaria?
— Aqui na Grécia estamos acostumados a apelidar as pessoas.
Eu apelidei Nicholas de Alastor, graças à mitologia grega, e ele me
chama de corvo porque eu e a cor preto temos uma espécie de
afinidade. — Damon foi mais rápido que qualquer raciocínio meu.
O fitei, extremamente agradecido, e ele devolveu com um olhar
que dizia: “Agora me deve uma, desgraçado.”
— Pensei que estivesse de luto — respondeu Maisie, se
referindo à roupa de Damon.
— A maioria pensa. — Sorriu para ela.
— Qual a história de Alastor? — Maisie tornou a me encarar.
Graças ao fato de eu conhecê-la como cada cicatriz em meu corpo,
soube que estava investigando. Não era curiosidade. Maisie sabia
que escondíamos algo dela, era esperta.
— Por favor, não vamos estragar o jantar falando sobre os
gregos — resmungou Hamish, para a minha sorte. — Sem ofensa,
Damon.
— Não ofende. Não sou grego. Pode me passar a salada?
O resto do jantar ocorreu bem e sem pratos voando como
acontecera mais cedo.
Maisie não tentou arrancar novas informações e também não
ousou levar seu par de colinas verdes para mim outra vez. Estava
distraída com seu garfo, porém, não comia.
Quando as cadeiras foram empurradas e todos se levantaram
para deixarem a sala de jantar, uma mão feminina agarrou meu
braço e me puxou para um canto privado.
— Maisie disse que você tem um grego de refém. Que porra é
essa, Coleman? — Tess tinha dedos fortes.
— Ah, droga. Ela ainda não se esqueceu disso? O grego é um
filho da puta que contribuiu no sequestro da minha filha.
— Ela está assustada. No momento você é alguém por quem
ela não se apaixonaria. Tenha cuidado com as coisas que faz ou a
perderá para sempre.
Ela me soltou depois disso, mas o que me disse ficou
impregnado na minha cabeça pelo resto da noite.
Não tinha intenção alguma em beber, tampouco sozinho na
beira da praia. Não pretendia ficar embriagado, apenas aliviar a
tensão que só se acumulava dentro de mim. Então eu vi alguém se
aproximar em passos mais trôpegos que os meus.
— Eeei — ela disse, elétrica. Um vestido vermelho a deixava em
chamas e os cabelos presos em um rabo de cavalo alto fazia com
que parecesse maior.
— Maisie? O que faz aqui? — Fiz que ia levantar, mas ela quem
se sentou. Notei a garrafa de vinho quase vazia na sua mão.
Me encarou como se eu brilhasse mais que a Lua.
— Você é tão lindo.
— E você está bêbada.
Tomou no gargalo.
— Eu não ficaria bêbada com...com uma garrafa de viiiinho. —
Falava feito um carro desgovernado em plena velocidade. Mesmo
sentada, ela continuava bamba, como se o vento a jogasse pro lado.
— Então acho que o bêbado sou eu. — Tomei da minha bebida.
Ela gargalhou, era a primeira vez que ela dava uma gargalhada
tão espontânea depois de perder a memória.
— Me dê um pouco disso. — Pegou o uísque da minha mão e o
virou. Fez careta quando o líquido amargo entrou na sua boca, mas
repetiu a dose. — Então, Alassstôr, eu e você.
— O que tem eu e você?
Pendeu a cabeça pro lado e piscou suas pálpebras de cílios
ruivos para mim à pálida luz da Lua.
— Quer me beijar?
— Se eu quero beijá-la? Eu adoraria beijá-la, mas para isso
você deveria estar sóbria.
— Os homens malvados não se importariam com isso.
Seus dedos dos pés descalços entrando e saindo da areia, era
uma visão quase terapêutica.
— Nesse caso, acho que sou um cara bonzinho. Venha, a
ajudarei com as escadas.
Ela recusou a mão que estendi ao me levantar.
— Não. N-ão quero ir embora. Q-quero ficar e quero que me
beije. Sei que já fez isso antes.
E faria um milhão de vezes.
— E Damon.
— Damon?
Que maldita lembrança você tem com ele?
Ela não me respondeu. Só se levantou com a minha bebida na
mão e começou a andar em direção a casa. A acompanhei para
segurá-la, caso tropeçasse nos próprios pés. Apesar de eu também
ter bebido uma quantidade considerável de uísque, ainda me sentia
sóbrio.
— Você é bonito — comentou baixinho. — E exibido.
Ri alto.
— E desalmado — prosseguiu.
— O que mais?
Deu um novo gole.
— Impiedoso. E tirano. — Se virou repentinamente. — Cadê sua
bebida?
Ergui uma sobrancelha.
— Bem na sua mão.
— Ora, como isso veio parar aqui?
Ela parecia realmente não se lembrar. Então resolvi que era
melhor eu fazer algo antes que ela bebesse até vomitar.
— O que acha de tomarmos um chá agora, hã?
— De todas as últimas ideias que ouvi, essa me parece a mais
sem graça.
— Vem. Posso prometer que será melhor do que imagina. —
Estendi uma mão para ela. Era uma tormenta muito grande tê-la tão
perto e tão longe ao mesmo tempo. A minha garota estava bem ali,
na minha frente e eu sequer podia tomá-la em meus braços.
Aquela foi a primeira vez que ela aceitou me tocar sem fazer
parecer que era a última coisa que desejava. Quando a delicadeza
dos nossos dedos se encontrou, Maisie olhou para mim e sorriu.
— O que foi? — Perguntei, sem entender.
— M-inha mão, ela...ela está formigando. Acho que é por causa
de você.
— Por que acha isso?
— Porque não aconteceu quando toquei em nenhum outro.
— O que deu em você, hein? Nunca a vi beber tanto.
Não consegui responder Tess antes de ter outro embrulho no
estômago e precisar enfiar a cara na privada pra botar tudo pra fora.
Ela segurou meus cabelos novamente e esperou eu me recuperar
pra dar uma nova bronca.
— Você está fazendo um tratamento à base de remédios. Está
totalmente proibida de beber.
— Bem-vinda ao time, querida — disse Kate, em solidariedade.
Segurava meu copo de água gelado enquanto eu ainda não me
sentia pronta para bebê-lo.
— Terei que ficar de olho nas duas mocinhas? Vocês já são bem
grandinhas, viu?
— Não seja má, Tess. — Dei descarga ao perceber que já
estava pronta para me levantar. — Exagerei só um pouquinho.
Ela soltou meus cabelos para cruzar os braços no seu estilo
mandona. Não estava emburrada de verdade. Preocupada, talvez,
mas não brava.
— Tome um banho. Estão todos nos esperando pro café. Menos
a Kate e o Jailson, esses dois devem estar em uma competição para
decidir quem come mais.
— Eu estou grávida. Não tenho culpa se meu neném quer virar
uma bolinha.
Tess revirou os olhos pra mim, rindo.
— Seu neném nem está acordado a esse horário,
principalmente para comer bacon.
— O meu neném gosta de gordura. Não tenho culpa.
— Sei, sei — disse, Tess, empurrando a outra porta afora. —
Vamos deixar a Maisinha tomar banho.
— Por que não acredita em mim? É sério, meu bebê gosta de
gordura. Estou com vontade de comer batata frita agora...quero
dizer, ele está. O bebê quer batata, não eu. Ele.
Esperei até que as duas saíssem e entrei no banho.
Enquanto a água quente caía sobre meu corpo e aliviava o mal-
estar, deixei que minha mente corresse até a noite passada. Não me
lembrava da última vez que ingerira álcool a ponto de não lembrar de
quase nada do que fizera. Talvez fora culpa dos remédios e não de
fato da bebida. Por favor, quem ficava ébria com vinho?
Ensaboei os cabelos e decidi que não me sentiria culpada por
sair da linha de vez em quando.
Talvez...talvez...paralisei as mãos...talvez tenha sido isso que
pensei quando decidi me envolver com dois homens ao mesmo
tempo. Era o que eu fazia, não? A recordação dos meus lábios
encontrando os de Damon e dos lábios de Nick entre minhas pernas,
a barba arranhando minhas coxas...eu não era capaz de ignorar isso
e fingir que minha nuca não ficava arrepiada toda vez que eu
fechava os olhos e pensava em quão boa devia ser a sensação.
Suspirei. Eu nunca perguntaria a eles o que havia entre nós. Eu
podia morrer com a curiosidade, mas não com a vergonha. Existia
alguma decência dentro de mim, ainda...
Desci com uma mão por minha barriga molhada e fechei os
olhos com força, prosseguindo perigosamente por um caminho que
eu julgava intocado. Joguei a cabeça para trás e deixei que a água
quente se tornasse brasa em minha pele nua. Meus dedos
alcançaram os grossos pelos crescidos e então, mergulhei dentro de
mim.
E gostei.
E gemi. Mas na minha imaginação, aquele dedo ousado não me
pertencia.
Dois maxilares masculinos tomaram conta da minha mente e
ordenaram que eu introduzisse um segundo dedo. Como uma boa
garota, obedeci.
Minha umidade, meu calor, o balançar do meu corpo apreciando
tamanha libertinagem...aquilo era muito bom. O vai e vem dos dedos,
entrando e saindo, indo cada vez mais fundo.
Aproveitei a mão livre e a preenchi com meu seio esquerdo,
massageando e me deliciando com meu próprio corpo.
— Maisie? — O encanto se quebrou quando bateram à porta.
Resmunguei baixinho e não vi mais sentido em continuar o
banquete que estava fazendo de mim mesma.
— Já estou saindo. — Gritei de volta.
— Está tudo bem? — Era Nicholas do outro lado da porta.
Aquela voz era deliciosa como uma mordidinha no pescoço.
O que há comigo...por favor!
— S-im. Já estou indo — gaguejei.
Terminei o banho e como não ouvi mais a voz de Nicholas,
acreditei veemente que ele já tinha ido, mas não. Quando abri a
porta, com apenas uma toalha enrolada em meu corpo e os cabelos
pingando no assoalho, dei de cara com o dono do meu desejo mais
selvagem. Ele não podia estar mais escandalosamente lindo.
Descobri que olhos de oceano combinavam com camiseta verde
musgo e que cabelos dourados e extremamente desalinhados na
testa, eram os meus preferidos.
E que homens egocêntricos largados na cama, me faziam querer
ficar nua. E que sorrisos, pelos deuses, sorrisos eram capazes de
fazer comigo além do que meus pobres dedos faziam.
— Só queria me certificar de que estava bem. Você demorou;
todos ficaram preocupados. Eu fiquei preocupado. — Enfatizou e se
levantou. Era como se um deus se levantasse e reivindicasse o
Universo para si.
— Estou bem. Só estava — pigarreei — relaxando.
Assentiu e pelo olhar desconfiado em seu rosto, soube que não
acreditou.
— O enjoo cessou?
— Ah, sim. Talvez piore quando eu comer, mas isso nunca me
impediu de comer.
Ele riu.
— Certo. Me avise se precisar de algo. Estarei no escritório ao
Leste.
— Não ficará para o café? — Acabei soando mais ansiosa que
pretendia.
— Há coisas que preciso resolver e não posso mais adiar. —
Cruzou os braços e deixou explícito que algo o perturbava. Foi por
muito pouco que não o questionei.
Engoli em seco. O que o atormenta tanto?
— Como posso ajudá-lo? Quero dizer, tenho lhe dado despesas
que não sei como pagarei. Não sei se o senhor sabe, mas não
possuo tantos bens quanto os outros. — Encolhi-me, tímida.
— Você não me deve absolutamente nada, Maisie.
— Nicholas, você tem feito muito por mim. O tratamento,
remédios, hospedagem... — Engasguei de tão rápido que respirava.
Eu nunca tinha pensado sobre aquilo. — Eu irei pagá-lo.
— Não quero seu dinheiro!
Mergulhei ainda mais dentro dos seus olhos e fiquei lá por um
tempo.
— E o que quer de mim? Por que...Por que se preocupa tanto
comigo? Por que fez tudo isso por mim?
Ele se aproximou e esticou os braços para me tocar, mas não
me alcançou. Algo o congelou e fez com que desistisse. Como se
tivesse tomado um beliscão da consciência.
Se ele queria me tocar e não podia, então isso significava que
eu era a garota de Damon?
Talvez Nicholas fosse meu amante...Não. isso não me parece
certo. Raios, nada estava certo. Tudo parecia o mais errado possível.
— Em que eu me meti? — Gritei, com uma fúria ardente e o
espantei.
— O que está dizendo?
— O que é tudo isso? — Apontei para o quarto no geral. —
Nada disso me parece certo. Há um prisioneiro no seu porão, há
cicatrizes estranhas em meu corpo das quais não me lembro e eu
estou em uma droga de palácio em alguma droga de lugar na Grécia.
E... Você. Eu sequer me lembro de você.
— E-u sou só um amigo. — Nunca o ouvira gaguejar.
— Eu me lembro de todos meus amigos.
Deu de ombros, mas tinha um olhar triste, como se seus olhos
tivessem se acostumado a ficar dessa forma.
— Talvez eu não fosse tão especial.
Fiquei irritada por ele não me dar uma migalha sequer de
esperança. Ele podia ter me dito melhor como nos conhecemos,
podia ter dito qualquer outra coisa, algo que me fizesse entender
aquelas milhares de emoções que despertava em mim quando me
encarava.
Ah, não. Como pude ser tão ingênua? Era coisa da minha
cabeça, eu fantasiara tudo, botara sentimento em um rasgo de
lembrança. Eu não tinha mais dúvida de que me envolvera com
Nicholas, mas isso significar algo importante pra mim, não tornava
algo importante para ele.
Sua estúpida.
— É. Talvez não fosse.

Vomitei o resto da tarde. A grande droga foi descobrir que meu


coração não saíra em nenhuma das vezes.
Não me atrevi a pegar uma taça de vinho. Não com aquela dor
de cabeça me matando. Em contrapartida, aceitei de bom grado o
chá que a grega me serviu.
— Nós precisamos disso e sei que Nicholas e Damon não se
importarão — disse Tess. — Além do mais, nem comemoramos sua
recuperação.
— Não podemos comemorar tomando chá? Uma festa...acho
um pouco de exagero.
— Puff, não estrague meus planos, ruivinha. Pode ser a última
festa que irei. Do jeito que minha barriga tá crescendo rápido, temo
que em poucas semanas eu não consiga mais sair da cama —
compartilhou Kate.
— Ela foi sempre tão dramática ou é culpa da gravidez? —
Perguntei a Tess, ignorando a gestante bem ao meu lado.
— Você não viu nada, minha amiga. Tem sorte por ela ainda não
ter lhe pedido para tirar os sapatos.
— Eu não consigo me abaixar! — Reclamou Kate para se
defender.
— Certo, certo. Não acredito em você, mas faço porque a amo
— disse Tess.
— Ah, eu também amo vocês — respondeu Kate, com os olhos
já molhados.
Tess piscou algumas vezes de modo meigo e voltou a ficar séria
rapidamente.
— Agora vamos voltar a falar da festa. Tive uma ideia, podemos
comemorar sua recuperação e fazer o chá de bebê da Kate junto.
— Não é um pouco cedo pro chá de bebê? — Perguntei, em
dúvida.
— Por mim tudo bem. Talvez Hamish resmungue um pouco,
mas ele sempre resmunga de tudo, basta a gente ignorar ele que
tudo volta a ser flores.
Tess deu duas palminhas de felicidade.
— Já tenho algumas ideias na mente. Estou animada para
contar pros rapazes.
Mesmo desanimada, eu sorri apenas para não a chatear. Se
Tess queria se distrair organizando um evento naquela enorme casa,
eu que não roubaria isso dela.
— O que está ansiosa para nos contar? — Perguntou Charlie ao
entrar na sala. Vinha acompanhado de todos os outros rapazes.
Enquanto Gael e Jailson se atiravam no sofá como se
morassem lá, Hamish, Charlie, Damon e Nicholas, se serviram de
uísque e continuaram em pé.
— Daremos uma festa nesse final de semana.
— Nós o quê? — Charlie perguntou.
— Daremos uma festa para comemorar as boas novas: a
recuperação de Maisie e o bebê de Kate e Hamish — ela explicou,
um pouco impaciente.
— E por que não comemoramos ambos na Escócia? —
Questionou Gael.
— Porque estamos na Grécia, oras, e também porque estou
entediada e será adorável ter um espaço tão grande para a
decoração.
— Conseguirei fazê-la mudar de ideia? — Charlie perguntou.
— Definitivamente, não. Tudo o que eu preciso, é da aprovação
daqueles dois ali. — Segui a direção dos seus olhos até chegar em
Damon e Nicholas que permaneciam calados.
Os dois machos se retraíram e foi Nicholas quem deu a
aprovação que Tess esperava.
— A casa é toda sua.
E o sorriso da brasileira expandiu-se por toda a face delicada e
bronzeada.
— Ficou maluco? — Damon agarrou meu braço e me impediu
de andar. — Teremos uma reunião com os membros esse sábado.
— Vamos remarcar.
— Não podemos. É a segunda vez que adiamos, se fizermos
uma terceira vez...
— Então teremos convidados desagradáveis nessa festa. — O
cortei e puxei meu braço para continuar a andar. — Não me olhe
assim, eu odeio essa droga mais que você.
Damon me seguiu até o jardim. Ele deu alguns tapas nas rosas
para livrá-las do seu caminho. Torci para que um espinho o
espetasse, mas eu não estava com sorte naquela tarde.
— Não podia ter dito “não” para a outra lá? — Se referiu a Tess.
— E por que você mesmo não disse? Esse lugar é tão seu
quanto meu. Você só ficou calado e deixou que eu me ferrasse com
a decisão.
— E-u fui pego de surpresa, não tive tempo para inventar uma
desculpa.
Me sentei na cadeira de balanço e cruzei as pernas.
— Agora é tarde demais para lamuriar. Só precisamos dar um
jeito para que os gregos não queiram ficar na festa e precisamos
principalmente evitar que Maisie os veja.

Tess não mentiu quando disse que usaria toda a casa para a
decoração. O espaço fora dividido em dois temas, enquanto em uma
das salas tinha um urso do tamanho de Luli, no bar, um unicórnio
igualmente grande nos aguardava na entrada. Eu realmente não
sabia onde ela conseguira encomendar todas aquelas coisas, só o
que eu sabia, era que a casa estava recheada de bexigas e
guloseimas.
— Ei, não toque! — Ela me repreendeu quando pretendi pegar
um cupcake.
— Como conseguiu fazer tudo isso em tão pouco tempo?
— Tive ajuda da dona Galanis. Nos comunicamos através de
gestos. — Tess desistiu de pregar a meinha de bebê no varal
decorativo logo que Maisie entrou. — O que você pensa que está
fazendo aqui!? Não é pra você ver ainda!
— Ver o que? Roupinha de bebê? — Zombou a ruiva,
apreciando um sapatinho cor-de-rosa. — É tão pequenininho.
— Saia daqui agora. Vocês dois. Este cômodo e o outro estão
extremamente restritos! — Rosnou Tess, agarrando meu pulso e o
de Maisie. Ela estava mesmo levando tudo aquilo muito a sério. —
Saiam. Agora!
Não tivemos alternativa quando a porta foi fechada na nossa
cara.
— Ela é sempre tão mandona? — Perguntei a Maisie.
— Desde que se tornou uma escocesa.
— Eu sou escocês e não sou mandão — retruquei.
Vi o brilho dos dentes dela ao sorrir e eu fiquei namorando
aquele sorriso.
— Você age como se tivesse ouro no umbigo, Sr. Coleman. Não
se engane.
A encarei com atenção. Eu odiava dar uma de orgulhoso quando
o que eu mais queria, era correr pros seus braços.
— Nunca lhe dei uma ordem.
— Sim, o senhor já deu. Eu quem me recuso a obedecê-lo.
— Sinto que se aproveitará de toda oportunidade que tiver de
me contrariar.
— De cada uma — afirmou, corajosa, deixando um novo sorriso
escapar no canto dos lábios.
Só me dei conta de que tínhamos saído de casa, quando ouvi
um miado. Segui a direção do som e vi o bichano cinza em apuros
na árvore.
— Ah, tadinho. Será que está ferido?
— Só há uma forma de descobrir. — A respondi e logo comecei
a me pendurar nos galhos para salvar o felino. Eu precisava tirá-lo de
lá antes que o cão o encontrasse, ou Luiza. Se minha filha visse o
bicho, não duvidava que imploraria até que eu o deixasse ficar.
Assim que botei minhas mãos no gato, o desgraçado arranhou
minha cara e o susto me levou de costas pro chão, aos pés de
Maisie, mas não era a primeira vez que eu ficava em devida posição.
Seus joelhos se dobraram e uma mão foi em meu rosto. Olhar
para ela era como olhar o pôr do sol de cima de uma montanha.
— Você está bem? — Observei suas pupilas se dilatarem
enquanto tocava minha ferida.
Gemi de dor antes de finalmente conseguir respondê-la.
— Posso garantir que já estive melhor.
Ela pendeu a cabeça pro lado e sentou sobre os calcanhares.
Maisie representava muito bem o estilo de garota do campo.
— O felino foi mesmo malvadinho com você. Veja, que sacana,
agora resolveu descer sozinho.
Não me dei ao trabalho de conferir para não me estressar ainda
mais com o gato que me fizera de bobo.
Me sentei e passei a mão pela bochecha arranhada.
— Talvez não fique marcado — disse Maisie, acompanhando
meus movimentos com atenção.
— Podia ter sido pior. Podia ter acertado meus olhos.
— Teríamos um problemão. Será que...Será que foi assim que
fiquei cega de um olho?
Engoli em seco. Ela tinha facilidade de tirar e trazer minha
felicidade quando bem entendesse.
— Não precisa mais se preocupar com isso, não quando
enxerga perfeitamente com os dois. — Tentei persuadi-la. Se Maisie
quisesse ir por esse caminho eu não saberia convencê-la do
contrário.
Ela se distraiu arrancando a grama e o modo como desviou o
olhar para o chão, me fez ter certeza de que a conversa estava longe
de terminar.
— Diga-me, Sr. Coleman, se estivesse em meu lugar não
gostaria de tentar recuperar suas lembranças?
Eu não mentiria para ela. Não podia.
— Pode ser que seu cérebro esteja protegendo você.
— Como assim?
— Talvez nem todas lembranças sejam boas, Maisie, e você
pode não estar preparada para elas.
Cerrou o cenho.
— Eu era uma pessoa má? Eu fazia coisas...coisas
vergonhosas?
— Coisas vergonhosas? — Trinquei o maxilar. — E não. Você
não era uma pessoa má.
Seus olhos transitavam entre indecisão e timidez.
— Deixe pra lá.
— Não. — Agarrei seu pulso quando tentou se levantar. — Me
diga o que a preocupa.
— Eu sei o que você, eu e Damon fizemos. Eu me lembro de
muita coisa.
Gelei e descansei nos escombros de mim mesmo. Ela lembrava-
se dos assassinatos?
— E como se sente em relação a isso? — Perguntei com
cautela.
Suas maçãs coraram. Deus do céu. A pobrezinha não conseguia
nem dar nome ao que fizemos de tanto pavor que sentia.
— É...é algo que nunca imaginei fazer.
— Acho que é algo que ninguém espera. Não se sinta culpada,
por favor. Você nos salvou, Maisie.
— Salvei? Como isso pode tê-los salvado!?
Senti tanta coisa, que nem minhas trêmulas palavras
conseguiriam retratar.
— Você fez com que Damon e eu aprendêssemos a trabalhar
juntos. Você é o nosso equilíbrio, a nossa sensatez.
Ela se levantou imediatamente, carregando no rosto todas as
incertezas. Eu não esperava diferente. Ela acabara de voltar de um
sono profundo para descobrir que cometia crimes. Como não
adoecer diante uma situação dessas?
— Não consigo imaginar como isso pode funcionar. Vocês
são...grandes e fortes.
Não entendi onde ela queria chegar. Me levantei em seguida.
— Isso é o que nos deixa em vantagem — falei, confuso.
Me avaliou dos pés à cabeça. Estava com o rosto cada vez mais
vermelho.
— Já me machucaram alguma vez?
— Eu e Damon, nunca. Mas os gregos...
— Como assim os gregos? Há mais homens envolvidos? —
Perguntou em um sobressalto.
— Bem, sim, alguns.
Se distanciou alguns passos e fez cara de dor, como se tivesse
acabado de arrancar as cascas dos seus machucados.
— Acho que...que já ouvi demais por hoje. Procurarei um buraco
onde eu possa enfiar minha cabeça para nunca mais tirar.
E se foi, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa que fosse.
Era verdade. Era tudo verdade. Eu era a garota de dois machos.
Antes de Nicholas confirmar tão claramente, eu ainda tinha um
resquício de esperança de ser tudo fantasia da minha cabeça. Mas
agora...agora eu estava perdida. Como podia voltar a encará-los e
saber que eles já me viram até de ponta cabeça?
Você é o nosso equilíbrio. Sabia que Nicholas tentou falar polido
para me tranquilizar, mas na verdade, ele me arrastou para uma
destruição iminente.
E meus amigos...Por Odin, eles sabiam o quão cadela eu era?
Trancei meus cabelos em frente ao espelho, vesti minha
camisola e não desci para o jantar naquela noite.

Tess nos passou uma lista sobre onde era permitido transitar
pela casa antes da grande festa, mas não foi bem isso que me
impediu de ir em certos cômodos. Eu só evitei a cozinha, porque
sabia que Nicholas e Damon estavam por lá. Enquanto eu não
conseguisse absorver o que ouvira dos lábios do loiro, eu os evitaria.
— Ei, ruivinha, ainda não está pronta? — Disse Gael, vindo ao
meu encontro. Ele parecia ter acabado de fazer a barba.
Avaliei o vestido azul desbotado em meu corpo.
— Estou tão ruim assim?
Ele enlaçou seu braço no meu e me arrastou escada acima.
— Hoje a noite também é sua. Vista sua melhor roupa, porque
você renasceu. Consegue entender que os deuses podiam tê-la
levado, mas não o fizeram? Quantas pessoas pisam na escuridão e
conseguem voltar intacta dela?
O encarei com os olhos marejados. Eu ainda não tinha visto a
situação por aquele ângulo. Eu quase tinha morrido. Eu perdi tantos
dias culpando minha mente por ter apagado uma grande parte de
mim, que não agradecera aos céus por terem me dado uma segunda
chance.
— Você está certo, Gael. Eu estou viva e viverei da melhor
forma possível.
Ao retornar ao meu quarto, retirei todos os vestidos do armário
— vestidos que eu não reconhecia, mas que admitia serem lindos —
e optei pelo amarelo pastel decotado e longo. Algo na cor me trazia
paz, me remetia a um dia de céu limpo e ensolarado. O vestido era
de tecido leve e fluído, saia levemente rodada e que ganharia
movimento com a brisa da noite.
Desfiz o coque e deixei que meus fios ruivos espargissem por
meus ombros sardentos. Eu me reconhecia quando via meu reflexo,
porém, sentia no meu âmago que algo em mim mudara. Eu podia ter
me esquecido de uma parcela da minha vida, podia ter me esquecido
sobre as escolhas que fiz, mas eu confiava em mim mesma, na
Maisie de antes e na Maisie de agora. Não me culparia e nem me
envergonharia das decisões que tomei. Eu viveria, simplesmente
viveria, e não permitiria que nada ficasse entre isso.
Já era tarde quando saí do quarto pela segunda vez. A música
escocesa faltava pouco estremecer as paredes de tão alta que
estava. Grandes bexigas brancas presas ao teto decoravam o
corredor.
— Aí está você. Ual. — Tess deixou escapar um assovio ao me
ver. — Você está espetacular.
— Não seja boba. — Revirei os olhos com graça e observei ao
redor. — Como é que você fez tudo isso?
— Sou incrível, não sou? — Disse sem ser modesta. — Me
ajude com o zíper do vestido.
Subi o zíper assim que ela se virou. Enquanto meu vestido
amarelo era despojado, o preto de Tess era elegante e desenhava
sua silhueta como se fosse um pincel.
— Só falta uma coisa em você. — Ela enfiou a mão no bolso do
seu vestido e me entregou um batom vermelho-sangue.
Hesitei. Eu já tinha vermelho demais em meu corpo.
— Acho que a cor não combina comigo.
— Liberte essa onça da jaula, querida. Se você acha bonito e
quer, de que importa se combina ou não? Apenas vá em frente e
atreva-se.
— Você está certa. — Peguei o bendito batom e me virei pro
espelho pra passá-lo.
Ela deu palminhas e esticou o sorriso pra mim assim que
terminei.
— Agora, venha. Estão todos na festa da Kate. Sabe, primeiro
comemoraremos a dela e depois a sua. Não daria pra ser o contrário
porque só Deus sabe como sairemos do bar.
A acompanhei e todos os olhares se voltaram para nós assim
que chegamos, exceto a filha de Nicholas e a emprega,
provavelmente as duas já tinham se recolhido.
Como todo o resto da casa, havia balões decorativos no teto,
mas ali o ambiente estava mais suave. As cores, todas muito
clarinhas e em azul e rosa, e uma faixa que dizia: “Para os papais do
ano”. A mesa que foi colocada apenas para a festa estava repleta de
doces, mas foi o delicioso bolo que chamou minha atenção.
— Nesse momento, Maisie está querendo saber quando
poderemos comer — disparou Jailson, me analisando.
— Não posso negar — respondi e todos gargalharam.
— Antes de atacarem a comida, vamos para as brincadeiras que
organizei. — Tess entregou uma bexiga cheia para cada um. —
Quero todo mundo grávido aqui hoje. Até vocês, rapazes. Podem
colocar a bexiga por dentro da camisa. Principalmente você que está
torcendo o nariz, querido. — Ela encarou a Damon.
— Acho que o Jailson não precisa de uma bexiga — brincou
Gael e levou um tapa de Jailson, mas não houve quem não riu.
Do outro lado da sala, Kate ordenava para o marido:
— Acho que você tem mais fôlego que isso, Hamish. Encha
mais sua bexiga, anda!
— Na teoria, estou grávido de um bebê, não de um alienígena.
— Ele rebateu e ela estreitou os olhos para ele.
— Direi de uma forma que você consiga entender. Está vendo
essa barriguinha aqui do tamanho de um melão, querido? Em um
piscar de olhos ela se tornará uma melancia e se quando este dia
chegar você disser que eu estou carregando um alienígena, eu darei
um chute no seu traseiro que o mandará para outro planeta. Agora
assopre essa droga de bexiga!
Todos gargalharam sem piedade.
Tess e eu fomos pra um canto escondido para podermos colocar
a bexiga por baixo do vestido. E quando retornamos, ela anunciou:
— Tudo bem, agora quero que todos se sentem porque a noite
está só começando.
— Não podemos aparecer assim na reunião. — Amolou Damon,
fazia dois minutos que ele estava tentando se sentar sem estourar
sua “barriga.” — Estamos ridículos.
— Ficaremos só mais um pouco e então nos encontraremos
com eles — sussurrei de volta.
— Como foi que você se sentou com essa coisa atrapalhando?
— Perguntou-me Charlie, do outro lado, com a mesma dificuldade de
Damon.
— Faça como se fosse se deitar. Não. Não, assim você vai... —
Não tive tempo de concluir, ele já tinha estourado sua bexiga.
— Pelo amor de Deus, Charlie. Você matou o seu bebê! —
Criticou sua esposa. — Graças a Deus você não tem um útero.
— Perdoe-me se não nasci com o dom de não estourar bexigas.
— Ele ironizou.
Ela fez careta para ele.
— Toma. Tente de novo.
Depois de inúmeras tentativas fracassadas, Damon e Charlie
conseguiram se sentar, mas foi preciso diminuir o tamanho da bexiga
dos dois.
— Deviam se envergonhar do tamanho da barriga de vocês —
amolou Gael, se vangloriando com o bexigão que carregava.
— Minha barriga e a de Damon está do mesmo tamanho da de
Kate. Esse era o objetivo do jogo. — Charlie se defendeu.
— A barriga dos dois está definitivamente menor — intrometeu-
se Maisie e eu não teria capacidade de descrever o quão linda
estava com aquela falsa gravidez.
— Por que não apostamos? — Sugeriu Tess e pegou um rolo de
fita rosa, como se aquele fosse seu plano desde o início. — Cada um
cortará a fita do tamanho que acha que está a barriga de Kate. Quem
acertar, ganhará um cupcake.
— Esteja pronto para perder, grande Balder — provocou Gael.
— Esteja pronto para a sua centésima derrota, meu irmão! —
Revidou o outro escocês.
Tess se levantou e passou o rolo de fita por cada um de nós
para que cada um cortasse do tamanho que quisesse. Eu, que antes
estava apressado para ir embora, me vi ansioso em ser o vencedor.
— Pelo amor de Deus, Hamish. Corte esse negócio maior. Nem
na minha adolescência eu tinha a cintura fina desse jeito — criticou
Kate.
— Você está me deixando nervoso, fique quieta ou eu perderei
meu cupcake!
— Assim não vale. Ela está ajudando-o — reclamou Damon.
— Você não tem chance alguma de ganhar com seu meio metro
de fita, meu caro — devolveu Hamish, na ânsia de vencer.
— Vocês dois, parem de brigar ou serão eliminados! — Alertou
Tess, como uma verdadeira líder. — Todos já estão com sua fita? —
Afirmamos. — Certo. Kate, venha até aqui, por favor. Hora de medir.
O primeiro a ser desclassificado foi Jailson, a extensão da sua
fita deu duas voltas no corpo de Kate. O segundo foi Gael, mas foi
por muito pouco que ele não ganhou.
— Não fique chateado, Gael. Não é a primeira vez que você
perde na vida — provocou Charlie, mas Gael não teve oportunidade
de rebater.
— Sua vez, senhor sabichão. — Tess chamou o marido. O
escocês entregou sua fita e foi o terceiro a ser eliminado. Faltou pelo
menos um palmo para ele estar perto de acertar.
— Não chegou nem perto de vencer. — Gael não perdeu a
oportunidade de alfinetá-lo.
O próximo foi Damon, mas esse foi eliminado logo de cara. O
comprimento da sua fita não servia para a barriga de Kate, mas deu
um lindo laço no antebraço da moça.
Em seguida Hamish se levantou e coube ele e a esposa dentro
da sua fita.
— Diga que você não entendeu a brincadeira, Hamish — disse
Kate, em tom de crítica, mas, então, riu.
— Sabe que não funciono sob pressão.
— Então você não devia ter se casado com uma bomba relógio
— ela respondeu. Ninguém ousou interromper.
— Adoro explosões, querida, e eu amo você. — Os dois deram
um selinho e logo se desvencilharam.
— Certo. Então falta a Maisinha e o Coleman. Quem vai
primeiro?
— Primeiro as damas. — Apontei para Maisie.
— Você não devia agir feito um cavalheiro estando tão perto de
ser humilhado — desafiou-me. Nem uma coleção de estrelas no céu
tinha tanto brilho quanto aquele olhar.
— Só estou sendo educado, quando, na verdade, acho que você
devia sequer tentar. Só espero não a ouvir chorar ao me ver
comendo o cupcake. — Controlei o sorriso.
A tensão tomou conta de todos, enquanto Kate tinha sua barriga
envolvida pela fita de Maisie assim que foi entregue a Tess.
— Não acredito. Serviu — declarou Tess e a ruiva soltou um
grito vitorioso antes de me encarar.
— O vejo minúsculo, de tão humilhado, Sr. Coleman.
Eu não estava competindo com ela de verdade, mas adorava
despertar seu lado selvagem. Eu tinha vontade de rasgar seu vestido
e lambê-la como quem lambe uma colher de brigadeiro.
Não importa o que aconteça, desistir de você não está nos meus
planos.
— O jogo não acaba só porque você ganhou. — Me levantei e
entreguei minha fita para Tess. Ela a pegou imediatamente e não
perdeu tempo.
— Esqueça. Você nu...
— Não acredito. Acho que vocês terão de dividir o prêmio. —
Kate interrompeu nossa discussão. — Coleman também acertou.
— O quê? Impossível! — Disse Maisie, incrédula e irada.
Tentei não rir para não a deixar ainda mais zangada, mas foi
impossível. Ela estava monstruosamente indignada.
— Não dividirei meu prêmio com esse sujeito! — Ela declarou
para todos.
— Há vários cupcakes, dê um pra cada — sugeriu Jailson.
— Não será possível. O cupcake desse jogo é diferente dos
outros.
— Como assim? — Questionou Damon. — É de erva?
— Não. Com certeza, não. — Tess riu e sugeriu em seguida: —
Por que os dois vencedores não repartem o doce para descobrir o
que há dentro?
Maisie e eu nos encaramos, mas concordamos em dividir o
prêmio. Assim que o doce foi repartido, encontramos um bilhete onde
dizia: “Parabéns, você é papai/mamãe de um ovo. Cuide dele até o
final da festa ou sofrerá as consequências.”
— Tá de sacanagem? Como diabos cuidarei de um ovo até o
final da festa? — Questionei.
— Eu não sei cuidar nem de mim — acrescentou Maisie.
Tess deu de ombros, como quem não se importa.
— Pensem pelo lado positivo, vocês estão em dois. Na teoria,
será mais fácil — falou e me entregou um ovo desenhado. Tinha
olhos, nariz e um sorriso. — E antes que eu me esqueça, os que não
ganharam um ovo terá de tentar roubar o de vocês. Quem terminar a
noite com ele, ganhará o maior prêmio. Então, dona Maisie e Sr.
Coleman, não tirem os olhos do filho de vocês.
Depois de altas risadas e após inúmeras brincadeiras - até fralda
de boneca eu troquei - finalmente pudemos nos desfazer das
bexigas e fomos para a minha festa.
— Hora de você cuidar do bebê. — Nicholas disse e me
entregou o ovo.
— Como é que vou aproveitar minha festa tendo que cuidar de
um ovo?
— Eu tenho uma reunião importante agora. Não posso levar um
ovo comigo.
Cruzei os braços e ele disse cheio de graça:
— Cuidado, assim machucará o bebê.
— Eu poderia quebrá-lo na sua cabeça agora mesmo, Nicholas
Coleman.
— Que mãe feroz você é. Viu o que fez? Agora o bebê tá
chorando — prosseguiu, zombando.
Tess que estava com uma tiara de unicórnio, se aproximou e
colocou uma igualzinha na minha cabeça e na de Nicholas, e disse:
— Saibam que se não cuidarem direitinho do ovo de vocês, uma
fantasia ridícula os aguardará.
— O meu parceiro de desafio planeja me abandonar pouco
depois do parto. — Entrei na personagem e cruzei os braços para
Nicholas.
Ele me olhou com cara feia, mas tudo me levava a crer que não
era real.
— Que deduro você é. Meu plano era deixá-la ter um momento
com o recém-nascido e é isso que recebo. Acho que depois de ser
tratado como um péssimo parceiro, o que mereço é uma dança. —
Me estendeu uma mão de modo cavalheiro.
— E a sua reunião? — Perguntei, antes de aceitar o convite.
Ele desviou os olhos até Damon que o aguardava impaciente na
porta.
— Isso pode esperar. O meu tempo é todo seu agora. — E me
puxou para seus braços. Seu corpo pegando fogo me deixou em
dúvida se o inferno ficava mesmo tão longe.
— Talvez devessem deixar o ovo de vocês comigo, assim não
terão com o que se preocupar — sugeriu Tess, sendo prestativa, mas
eu não cairia no seu papo.
— Veja só, Nicholas, já estão tentando nos roubar.
— Isso que dá fazermos um filho tão lindo, querida Maisie.
Eu gargalhei em seus braços e Tess foi embora gargalhando
com o copo de cerveja na mão.
— A noite é toda sua, Maisinha. Se jogue. — Ela me gritou antes
de eu ser girada pelo macho que tinha todo meu corpo sob seu
controle.
Rodopiei e voltei para seus braços fortes, me fazendo pulsar,
flutuar e estremecer.
— Eu sou péssima nisso. — O alertei, antes que seu pé se
transformasse em chão para meus sapatos.
— Não ligo que pise, desde que possa garantir que no final da
noite você me ajudará a cuidar de cada ferida. — Soou malicioso, se
distraiu olhando para a minha boca com jeito de quem queria fazer
besteira.
Eu que estava cheia de marra, me atirei:
— Posso até colocá-lo para dormir.
Me deu um sorriso depravado.
— Malandra — respondeu, em máximo fulgor e segurou em
minhas costas com mais força. Corpo a corpo, olhos nos olhos, e eu
comecei a suar. — A noite é longa e eu costumo dormir tarde. O que
podemos fazer entre as feridas e o sono?
Passei os braços por seu pescoço, segurando o ovo com
firmeza. Já não nos importava o ritmo da música, tudo que
queríamos era sentir o toque um do outro.
— Tudo vai depender de como você se comportará até o resto
da noite, senhor Coleman. — Eu agia por impulso quando estava
perto dele e fazia promessas que não sabia se poderia cumprir. Era
difícil ser racional e remar contra a corrente do meu desejo.
Ele ficou surpreso, mas não recuou. Foi com os lábios em meu
ouvido e falou baixinho:
— Prometer me comportar significa que eu não poderei tirar
esse batom vermelho com a minha língua?
Minha garganta deu um nó quando senti seu volume na calça.
— Perdoe-me por atrapalhar os papais, mas, Alastor, nós temos
que ir — disse Damon ao se aproximar.
Recuperei minha dignidade e me desvencilhei daquele pecado
em forma de homem.
— Voltarei para cobrar o que combinamos, garota. Mas, agora,
espero que aproveite bem a festa e não tire os olhos do nosso ovo.
Seria uma pena ter de castigá-la por me fazer perder uma
competição — declarou Nicholas para mim de modo feroz e ousado.
Bufei irritada, mas não foi de verdade, e segui rindo para a
direção oposta a dele. Eu gostava daquilo, de quando ele me
causava sorrisos involuntários. Se tornou difícil não olhar para trás,
sabendo que ele estava lá.
Enquanto os outros dançavam, me servi com um drinque. Eu
não iria encharcar minha cabeça de álcool novamente, só precisava
suprir a falta do calor de Nicholas...
Ah, por favor, em que estou pensando?
— Um filho, hein, ruivinha? — Brincou Jailson de olho no meu
ovo. — Quer que eu cuide dele para que você possa dançar?
Estreitei os olhos para ele.
— O que o leva a pensar que sou tão tola?
Me respondeu primeiro com um sorriso.
— Não custa nada tentar. — E voltou para o centro da festa.
Observei todos por horas. Ri de Jailson e Gael dançando com
aquela tiarinha ridícula. De Hamish cheirando cada copo que Kate
pegava no bar. De Tess e Charlie jogando sinuca como se fossem
verdadeiros adversários.
E então eu e meu filho ovo que estávamos sentados no bar,
decidimos que Nicholas já estava demorando demais. Era a minha
noite, a minha festa e eu não conseguia aproveitar porque precisava
cuidar de um ovo. Se ele não quisesse dividir o desafio, então eu o
entregaria para outra pessoa, mas de forma alguma perderia a noite
por conta daquilo.
Decidida, me levantei.
Enquanto eu resmungava no corredor, em busca de Nicholas,
uma porta foi aberta e um homem alto saiu de lá. Ele me olhou de
cima a baixo como se eu fosse um aperitivo e disse algo que eu não
pude entender.
— Me desculpe. Não falo seu idioma — lamentei, e tive um mal-
estar repentino.
Ele deu um passo na minha direção e só não deu outro, porque
Nicholas apareceu por trás dele e esmagou o seu ombro com cinco
dedos, o impedindo de avançar.
Não sabia qual relação Nicholas tinha com meu estômago, mas
toda vez que eu o via, ele se remexia todo repleto de borboletas.
— Fique longe dela se não quiser que eu arranque sua cabeça
com um machado — falou Nicholas e o homem não discutiu. Apenas
ficou pálido e se foi.
— O que você disse para ele? — Questionei, curiosa, já que
Nicholas falara em grego.
— Ele só queria saber onde ficava o banheiro. — Me respondeu,
com sua mão em minhas costas. — O que está fazendo nessa parte
da casa?
— Vim lhe devolver seu ovo.
— Você quis dizer o nosso ovo. Se me lembro bem, você até me
ameaçou por ele.
— Quero aproveitar minha festa e não poderei fazer isso se tiver
que cuidar de um ovo.
Ele riu e eu encontrei o som rouco daquela risada por todo canto
do meu coração.
— Então está desistindo do desafio? — Cutucou a minha ferida.
— Pensei que fosse o tipo de escocesa que não desistisse.
— Eu nunca desisto. — Fechei a mão com o ovo e não tornei a
abri-la. — O que são esse monte de gregos? — Questionei, ao ver
uns cinco homens deixarem uma sala e como falavam alto, foi
impossível não reconhecer o sotaque.
Os ombros de Nicholas ficaram tensos de repente.
— Coisa de trabalho — disse, em um ranger de dentes e abriu
uma porta para mim. — Entre.
Nem me dei conta que o obedecera até dar de cara com Damon.
Todo meu sangue esquentou quando ouvi o som da porta sendo
fechada e eu me dera conta de que ficara sozinha em uma sala
parcialmente escura, com dois machos enormes e que eu
considerava perigosos. Contudo, quando procurei dentro de mim,
não encontrei nada que embasasse meu suposto medo.
— O que ela faz aqui? — O macho de olhos escuros questionou
ao loiro de olhos azuis.
— Está comigo. Vamos direto ao ponto. Não quero passar a
noite inteira aqui! — Nicholas se virou para mim e nossa troca de
olhares desmoronou minha ferocidade. — Sente-se, prometo não
demorar.
Me sentei na poltrona indicada porque minhas pernas já
estavam bambas. Coloquei meu ovo na mesinha de centro e
aproveitei para me servir de uma taça de vinho tinto, enquanto
observava os dois sujeitos perturbadoramente sensuais discutirem à
baixa luz do abajur. Não gostei de estarem dialogando em grego,
mas, quiçá, seria difícil me concentrar no assunto e ignorar aquelas
quatro pernas torneadas e o cheiro de perigo que cada um emanava.
Todas as noites, eu dormi pensando nos detalhes daqueles corpos, o
formato era lindo como dunas de areia.
Eu que há pouco criticara meu eu do passado...Agora, olhe para
mim. Sentada no escuro e tentando controlar o desejo como quem
tenta controlar um incêndio.
Quando Nicholas me fitou rapidamente eu forcei um sorriso,
mesmo com a libido me contorcendo.
Dei o primeiro gole no vinho e o calor dentro de mim se
intensificou. Agarrei no braço da poltrona na tentativa de me manter
estática, mas era fato que eu cometeria algum erro naquela noite.
Outro gole no vinho e pressionei os olhos fechados. Só que até
o som daquelas vozes...principalmente da de Nicholas, bagunçava
minha cabeça.
O desejo já tinha me sufocado, eu só queria sentir a língua dos
dois deslizando por toda minha pele, queria que me enchessem
inteira de satisfação.
Atreva-se.
Liberte-se.
Ah, Tess. Por que raios foi me dizer isso?
No terceiro gole eu já tinha decidido transformar em realidade
todos os meus desejos. Me levantei sem receio e girei a chave na
fechadura da porta. O clique fez os dois me encarar.
Meu coração acelerou, mas não tive medo. Eu confiava em
meus amigos, e se eles disseram que eu podia confiar em Damon e
em Nicholas, então eu confiaria. Além do mais, considerando a força
do meu querer, o imã que me atraía para os dois, eu podia dizer que
estava em um beco sem saída.
— O que está fazendo? — Questionou Nicholas, mas seu olhar
o denunciava. Ele gostava de maldade, e eu podia ser má.
— Me divertindo na minha noite.
— Quanto de álcool você ingeriu? — Damon questionou, como
um irmão protetor, mas o olhar por meu corpo era de alguém que
dormia em um purgatório.
— Se eu tivesse bebido o bastante, a essa altura já não teria
roupa no meu corpo.
— Maisie, não comece um fogo se não quiser se queimar —
alertou Nicholas, mas não me comoveu sua honra fingida.
— Acho que já sou grandinha o bastante para saber que quando
causo um incêndio, eu posso arder nele. — Por sorte, não me perdi
nas palavras.
Nos fitamos em uma atração fatal.
Ele era como uma droga ilícita que eu ansiava provar.
Me aproximei e fiquei entre eles. Dois lobos e apenas uma carne
para dividirem.
— Eu quero isso. Estou pronta para isso.
Damon se inclinou sobre mim, mas quando Nicholas soltou sua
ameaça, quase cuspindo fogo, ele paralisou.
— Toque nela e eu o transformarei em escombros sobre os
quais me deitarei.
Arqueei a sobrancelha, irritada.
— Quem você pensa que é? Eu não pertenço a você — grunhi,
mas era como se tivesse uma música na minha cabeça que ficava
me repetindo o contrário.
Encarei o loiro, mas, guiada pela cólera, foi o lábio inferior do
moreno que eu mordi quando me virei. Damon ficou estático, como
quem tenta se controlar, mas eu pude sentir seu gosto suave como
ameixa e o calor da sua língua em meus lábios.
A minha libido ficou satisfeita com aquele contato indecente,
mas senti que meu coração ficou confuso, como se tudo que ele
desejasse fosse Nicholas Coleman.
Quando passei uma mão pela nuca de Damon na tentativa de
intensificar o beijo, meu corpo foi arrancado de perto dele. Fui virada,
agarrada e prensada contra a parede pelo outro macho. E polegada
por polegada Nicholas se aproximou, cada vez mais.
Uma mão foi em meu pescoço e seu rosnado foi proferido entre
os dentes:
— É isso que quer? — Seu perfume se perdeu dentro de mim e
me deixou atormentada. — Diga com clareza.
Aquele rosto era a definição perfeita de êxtase. Eu vi minha vida
dentro dos seus olhos, raios tão perfeitos quanto os do sol.
Eu não tinha certeza de que era aquilo que eu queria. Na
verdade, eu sequer sabia o que diabos era aquilo, ou como
funcionava um sexo à três. Minha única certeza, era que meu corpo
precisava de algo. De alguém.
— O único ainda em dúvida é você, senhor Coleman —
murmurei, mais fraca que um cristalzinho.
— Não, querida. Quando eu entrar em você, não irei embora tão
cedo. — Ergueu meu queixo mais alto e quando vi uma escuridão
nascer dentro dos seus olhos, soube que era seu verdadeiro perigo.
Foi como se eu tivesse visto o pior lado de quem ele era. — Laranja
será sua palavra de segurança.
Aquilo tirou o chão dos meus pés.
Palavra de segurança?
Não tive tempo de perguntar o porquê eu precisaria de uma
palavra de segurança.
Ele me ergueu em seu colo com a força de uma mão, me
segurando apertado, como se tivesse medo de perder o controle, e
com a outra, jogou tudo que havia na escrivaninha, no chão.
— Se algo não for do seu agrado, diga sua palavra de
segurança que Damon e eu paramos imediatamente — ele disse, ao
me colocar sentada na escrivaninha. Foi um alívio ele ter me
explicado, mas eu duvidava muito que usaria a tal palavra de
segurança para um deles.
Eu achara, anteriormente, que Damon era a ponta mais forte
entre os dois, mas depois daquele olhar que ele lançou para
Nicholas, como quem pede autorização, eu soube que me enganara.
Nicholas Coleman era o verdadeiro líder e pensar que talvez eu
fosse a garota dele, me deixou inteiramente molhada.
Observei enquanto, muito calmamente, Nicholas colocava uma
música baixa e sensual para tocar, abafando toda a animação
existente do outro lado da porta. Onde os outros se divertiam com
todas as peças de roupa no corpo.
Também observei Damon se servir de uísque e entregar um
copo para o outro em seguida. Eu não sabia que tipo de tortura era a
que estavam fazendo comigo, e sequer entendia como meu corpo
podia estar reagindo tão positivamente. Os dois machos estavam
brincando com a minha ansiedade e eu estava gostando. Era ilógico.
Havia um conforto no pânico.
— Talvez devêssemos vendá-la — sugeriu Damon, como se eu
não estivesse presente.
— E amarrá-la. — Vi o nascer de um sorriso no rosto de
Nicholas.
— Com seu cinto ou o meu? — Damon deu um gole na sua
bebida após a pergunta.
— Com o vestido dela. — Os dois me fitaram. Eu me contorci. —
Vamos rasgá-lo em tantos pedaços que ela precisará de uma nova
roupa para sair daqui.
— Isso se ela tiver forças para sair — completou Damon.
Meu coração balançou como um pêndulo. Eu não sabia se fora
o efeito do vinho, mas meu corpo começou a suar com um calor
infernal, ao passo em que eu via o tempo se esvair através da janela
fechada.
Os dois se aproximaram de mim, em movimento cadenciado. Me
senti pega pela correnteza quando Nicholas agarrou meus cabelos e
puxou minha cabeça para trás sem muita gentileza, já Damon, levou
seu copo de uísque em minha boca. Bebi devagar para não me
engasgar e quando eu comecei a me acostumar com o sabor
amargo servido gradativamente e com os dedos de Nicholas em
meus cabelos, os dois se afastaram. Mas só um pouco.
— Diga, cabelo de fogo, qual dos dois você quer que tire esse
seu vestidinho lindo e termine de lambuzar seu batom vermelho?
Apesar do jeito que Nicholas zombou de mim, agindo como se
eu fosse parte da sua propriedade, era seu toque que eu mais
ansiava.
Mas foi o nome de outro que minha boca proferiu ao ser aberta:
— Você, Damon.
Nicholas cravou seus olhos em mim, cintilando, como se aquilo
fosse além do que ele pudesse suportar. No entanto, eu não daria o
braço a torcer e diria o quanto eu o desejava. Não quando eu sabia
esconder tão bem.
Meus sentidos ficaram entorpecidos ao sentir os lábios de
Damon em meu pescoço, me lambendo e mordendo, rumo aos meus
seios – desafiador e exigente. Apreciei aquele toque molhado e
esqueci todo o resto do mundo quando fechei os olhos. Suas mãos
ásperas e frias rastejando por minhas coxas nuas; eu senti tantas
coisas, mas nenhuma delas foi o bastante para me fazer gemer.
Porque era o outro que eu queria.
Era no outro que eu pensava.
Então, eu senti um toque cálido e suave afastar meus cabelos
da nuca, me levando em um voo de asa prateada, e foi assustador
como meu orgulho foi derrubado e eu não consegui segurar o
gemido causado por aquele nobre gesto.
— Mentirosa. — O sussurro ao pé do meu ouvido me sufocou
como se duas paredes estivessem se fechando comigo entre elas. —
Confesse.
Me aqueci com o hálito de Nicholas na parte detrás da minha
nuca, quente como o brilho de uma estrela azul. Eu abri os olhos e o
vi se afastar com seu copo de bebida.
Eu não tinha percebido que Damon afastara suas mãos das
minhas pernas até Nicholas ordenar:
— Rasgue. — E meu vestido foi rasgado ao meio, revelando
meus seios nus e minha calcinha branca e de algodão.
Fui devorada por todos os olhos. Os machos pareciam tentando
decidir onde lamberiam primeiro. Eu não tinha nada a dizer, mas não
podia acreditar que não caí de cara no chão quando vi Nicholas nos
dar as costas e se acomodar na poltrona que eu anteriormente
estava.
Não gostei da minha mente naquele momento, eu enlouqueci
antes de compreender o jogo de Nicholas.
Confesse. O ouvi repetir dentro da minha cabeça em meio à um
brilho ardente.
Ah, meu bem, você nunca ouvirá dos meus lábios que eu o
quero.
Continuei arrastando comigo aquele desejo e não cedi
facilmente. Eu usaria minha chance de atiçar a chama enquanto sua
fogueira queimava.
Puxei Damon pela camisa e o prendi entre minhas pernas. Ele
podia não ser o homem que eu mais desejava, mas tinha de admitir
que seu corpo e seus beijos eram de fazer qualquer uma perder a
razão. Ele me agarrou pelos quadris e pressionou seus dez dedos,
fazendo explosões surgirem dentro de mim.
Me lembrava de céus negros com cinzas caindo como neve.
Sombrio.
Imoral.
E como um sinal alarmante soando incessantemente dentro da
minha cabeça, eu abri os olhos, apenas para ver que Nicholas já me
fitava em constante estado de surpresa. Vê-lo esparramado naquela
poltrona fingindo ser insensível, me irritava. Era como se ele
soubesse o tempo todo que era o meu alvo principal.
Quando a sombra de um sorriso apareceu em seu rosto, foi a
gota d’água para mim. Foi quando eu soube que não confiaria em
mim mesma com ele.
— Chega de brincadeira, Damon. Vamos dar o que a garota
pede. — Embora suas palavras soaram firmes, havia algo vazio
dentro delas.
Nicholas colocou seu copo ao lado do nosso ovo e de repente,
como se não fosse abalar as minhas estruturas, como se não fosse
fazer uma enchente atravessar o interior das minhas pernas, ele
arrancou sua própria camisa.
E pelos deuses, foi a minha desgraça.
Ofeguei, ao som dos seus passos em ritmo violento. Eu não
sabia onde devia olhar quando Nicholas chegou tão perto de mim,
havia seus braços onde eu adoraria me tornar sua prisioneira, e seu
peito forte que me deixava um passo mais perto do limite, sem
espaço para respirar. Mas, de tudo, o que me chamou mais atenção
naquele monumento divino, foram suas cicatrizes – um universo
delas – que fizeram meus pensamentos girarem.
Eu já as tocara.
— Olhe para mim, garota. — Não foi um pedido. — Qual sua
palavra de segurança?
— Laranja. — Minha boca mexeu, mas minha cabeça
continuava pensando naquelas marcas à altura dos meus olhos.
Fui erguida em seu colo novamente, mas só para ser colocada
no chão, e tive a certeza de que meus seios já foram pressionados
por aquele peito. Queria ter prolongado o contato, mas a intenção de
Nicholas era um pouco mais indecente que isso.
Ele se inclinou e deslizou o que restara do meu vestido por
meus ombros. Meus pelos eriçaram sob a ponta dos seus dedos, ou
talvez fosse porque Damon chegou por trás de mim e encostou seu
pau duro na minha bunda.
Eu tinha o relâmpago às minhas costas e o fogo à minha frente.
— Diga, garota — o vestido caiu em meus pés e Nicholas
ergueu meu rosto pelo queixo com seu indicador —, devemos ser
gentis com você?
Raios, era perturbador ver o movimento lindo dos seus lábios e
não ter coragem de beijá-lo, nem pedir para que fizesse isso. Era tão
fácil puxar Damon pela camisa e tomá-lo com ânsia, mas quando se
tratava de Nicholas...tudo parecia ser bem mais complexo.
— Nada de gentileza por hoje — consegui murmurar.
— Ah, querida, você sempre foi escandalosamente corajosa.
Eu retruquei com firmeza:
— Então o que você está esperando?
Nicholas sorriu com o canto dos lábios. Ele era um problema de
duas faces.
— Apenas o seu comando.
Damon encontrou uma forma de manter suas mãos ocupadas
com meus seios. E a língua se aproveitou bem do meu pescoço,
lambendo e chupando.
Enquanto meus olhos estavam em um, meu corpo era devorado
por outro.
— Basicamente é isso que vai acontecer com você agora, abrirei
suas pernas e a chuparei até fazê-la gozar na minha boca —
Nicholas murmurou em meu ouvido.
— Hmmm. — Gemi em resposta e deitei a cabeça no peito de
Damon, permitindo que ele me lambuzasse com sua boca.
Era o êxtase mais profano que eu podia imaginar. Esperei ser
recebida por flashes, considerando que supusera que aquilo já
acontecera antes, mas não houve um único resquício de lembrança.
Tudo parecia muito novo para mim. Ter as mãos de dois homens
percorrendo o meu corpo, ao mesmo tempo...Aquilo parecia
totalmente novo.
Em compasse, como se fosse uma dança sincronizada, eles se
ajoelharam diante de mim e cada língua lambeu uma coxa minha.
Começaram de baixo para cima, eu estremeci, gemi alto e sem
temor.
As línguas subiram e passaram por meu umbigo e a finalização
se deu em meus seios. Cada mamilo pertenceu à uma boca.
O direito era de Damon e o esquerdo, Nicholas tomara para si.
Fui mordida e lambida com crueldade. Agarrei os cabelos de
Damon e depois os do loiro.
Os lábios continuavam.
Chupando.
Mordendo.
Abusando.
— Ah, por favor... — gemi. Eu não sabia pelo que clamava, mas
eu precisava saciar aquela explosão crescente dentro de mim de
alguma forma.
Os dois pararam o que faziam.
— Estamos aqui para servi-la, garota. Diga o que quer — falou
Nicholas, com seus lindos olhos fixados em mim.
Você. Pensei.
— Quero que me toque — balbuciei, sem perceber que dissera
no singular.
Nicholas me respondeu com um sorriso desestabilizador.
— Vire-se — ordenou, como um soldado.
Eu só obedeci e acabei de frente para Damon, que me encarou
profundamente e disse:
— Hora de conhecer o lado escuro do fogo. Divirtam-se.
Tive os olhos vendados por Nicholas e os pulsos amarrados em
seguida. Eu quis perguntar a Damon o que ele quis dizer com seu
último comentário, mas fui surpreendida por trás com uma mão em
meu pescoço que me obrigava a erguer o rosto. Quando nossas
peles se encostaram, eu soube exatamente quem era o dono
daquele corpo. Aquela brasa quente de um amante nato, o estilo sútil
de um conquistador.
— Minha. — Nicholas me puxou para ele, instigando uma guerra
de domínio. Grunhiu e mordeu o lóbulo da minha orelha. — E eu não
divido com ninguém.
— N-ão sou sua. — Eu teria sido bem mais convincente se
pudesse enxergá-lo.
— Então deixe-me lambê-la dos pés à cabeça, bem devagar —
pediu, já sabendo que eu não iria negar. Seus lábios encontraram o
meu pescoço, e ele me tornou uma garota louca apenas com o
movimento da sua língua — e se no final tiver forças para dizer que
todo seu corpo e coração não pertencem a mim, posso prometer que
chamarei Damon para continuarmos a brincar.
— Hmmm — gemi em resposta. Era injustificável como o som
da sua voz colocava meus pensamentos coesos no sentido reverso.
— Você sabe que pertencemos um ao outro. Seu corpo sabe
disso, ainda que seu cérebro negue.
Minha armadura foi quebrada. Nicholas Coleman era como um
furacão dentro da minha cabeça.
— Era o meu toque que você ansiava — continuou e foi com a
mão em meu seio direito.
Eu me arrepiei e tremi sob o ar quente e frio. O quente, devido
aqueles toques ousados de Nicholas, e o frio por ter sido descoberta.
— Não pode afirmar isso — murmurei e cavei meu próprio
túmulo. Devia estar escrito em meu rosto todas as mentiras.
A risada rouca em meu ouvido veio acompanhada com um tapa
em meu traseiro e eu gritei baixinho.
O corpo quente de repente se distanciou.
— Nicholas?
— Estou bem aqui.
Virei o rosto em direção ao som da sua voz. Queria poder ver
seu sorriso descarado – era fato que ele brilhava em seu rosto
naquele momento -, mas não diria minha palavra de segurança tão
cedo.
De repente, fui erguida em seu colo e deitada sobre...um tapete
felpudo aconchegante, com meus braços presos acima da cabeça.
Senti o peso do seu corpo sobre o meu, seu ar quente em meu rosto
em uma distância que devia ser insignificante, caso eu não
desejasse aqueles lábios tomando os meus como a explosão de uma
granada.
— Me diga o que quer, garota.
— Sabe o que quero.
Ele procurou outro lugar para manter sua boca ocupada, meu
mamilo tornou a ser sua vítima.
Chupadas friccionadas.
Lambidas e mordidinhas gananciosas em seguida. Ele era tão
bom que chegava a ser um tormento.
— Merda. Hmmm. — E os gemidos, vieram como ondas.
— Boca suja — brincou e reforçou: — Diga o que quer. — Uma
nova mordida tão pretensiosa, que me fez querer jogar tudo pro alto
e agir indecentemente. — Diga o que quer. — Desceu com a língua
por entre meus seios. Ninguém podia contê-lo, Nicholas sabia como
fazer o próprio trabalho.
Me contorci embaixo dele e se não estivesse amarrada, teria
direcionado sua cabeça para o meio das minhas coxas.
Fiz minhas preces e pisei em cima delas. O pecado já tinha me
devorado.
— Ah, Maisie. Nós fizemos isso tantas vezes. Não posso
acreditar que tenha se esquecido.
— O que éramos um do outro? — Criei coragem em perguntar.
Passou a língua em torno do meu umbigo antes de voltar para o
meu rosto e tirar a venda.
— Eu não sei o que eu era para você. Mas de todos os dias
vividos, os melhores da minha vida sempre foram ao seu lado.
Engoli com dificuldade. Suas palavras me pisotearam como se
fossem seu calcanhar.
— E Damon?
Nicholas cerrou o cenho no mesmo segundo.
— O que tem ele?
— Nós...três.
Ele perdeu um tempo analisando a pergunta com cautela. De
súbito, o espanto cobriu sua face.
— Você...você pensou que éramos os três um casal?
Meu rosto esquentou.
— Foi o que você me disse. Inclusive afirmou que existiram
gregos entre nós.
— Era disso que se tratava sua pergunta?
— O que pensou que fosse? — Indaguei.
— Sobre trabalho — respondeu devagar. — Por isso quis dormir
conosco?
Meu orgulho morreu.
— Nunca quis dormir com Damon. Você sempre foi meu alvo.
— Você me quer?
Corei novamente. O que eu responderia? Minha memória não se
lembrava do sujeito, mas meu coração agia como se nunca o tivesse
esquecido. Eu estava pronta para dizer a palavra de segurança,
quando ele falou há um segundo de ter tudo acabado:
— Você é a coisa mais preciosa que encontrei, por favor, fique.
E eu não pude negar.
Uma enchente estava prestes a atravessar meus olhos no
momento em que Nicholas me beijou. Eu não tinha certeza de que
meu sangue continuou fluindo quando minha boca foi aberta por sua
língua. Foi uma sensação completamente diferente da que eu senti
com o moreno. O gosto dos lábios de Nicholas sacudiu o meu Mundo
inteiro. Beijá-lo, foi como se o céu estivesse se abrindo depois de
uma tempestade.
Eu senti seu medo, sua sombra, suas mentiras. Eu fui levada ao
seu ponto de ruptura. Eu vi cores verdadeiras depois de passar dias
vivendo em preto e branco.
Foi como se...como se eu o amasse desesperadamente com
todas as partes do meu ser.
Segui meus instintos cegamente e mordi seu lábio inferior, ele
gemeu. Foi um som glorioso e que me tornava poderosa. Fiz
movimentos curiosos com a língua e não me perdi dentro deles. Era
como se eu soubesse exatamente o que fazer e como fazer.
Fui recebida por imagens desconexas, mas elas não me
assustavam.
Eu não tive medo, embora tenha ficado um pouco assustada
quando meus lábios, ainda grudados nos de Nicholas, disseram:
— A-cho que o meu coração sente algo por você. — Não
consegui me segurar, eu não funcionava direito quando estava com
aquele homem. Eu afundava meu orgulho dentro de mim mesma,
ficava cega, indefesa, insensata, e deixava todas as emoções
passarem por cima. Era como se eu tivesse meus ombros
pressionados por aquelas palavras. Dize-las, fizera tudo ficar mais
leve.
Pensei que seria enterrada no silêncio da resposta. Para a
minha sorte não foi o que aconteceu.
— Eu nunca, nunca, desistirei de trazer suas lembranças de
volta, mas começarei despertando as mais depravadas.
O senhor mandão não me soltou, mas para o bem da minha
curiosidade, não me vendou novamente, pude assistir de camarote
cada um de seus movimentos. Em contrapartida, o vi se desfazer da
minha calcinha com suas garras.
O sorriso cafajeste que me deu enquanto direcionava o rosto
para o interior das minhas coxas, foi de sufocar. Ele não tirou os
olhos dos meus em nenhum momento.
— Abra essas pernas, Maisie, e deixe minha boca ir aonde ela
quiser. Farei com que se lembre do quanto você gostava de ser
minha.
Era fácil saber o porquê meu “eu do passado” se encantou por
aquele macho, visto que o meu “eu do futuro” já estava
absurdamente molhada por ele.
Eu me abri para Nicholas Coleman. Abri as pernas, a boca, não
havia uma só parte de mim que não estava prontinha para recebê-lo.
Ele explorou meu corpo.
Beijando.
Acariciando minha barriga com a língua, costela, descendo para
as coxas e depois subiu devagar.
E então parou. De alguma forma, eu sabia para o que ele estava
se preparando.
Esperei pela mistura do quente e úmido da sua boca, contudo, o
que recebi lá embaixo foi frio. O líquido que deslizou por mim, me
encharcando, terminou por entre minhas nádegas.
— Ah, céus! — Me inclinei para saber que diabos Nicholas
derramara sobre mim e vi seu copo de uísque ao lado. Culpado.
— Relaxe. Agora vou limpar a bagunça que causei. — Me deu
uma maldita e imperdoável piscadela antes de cair de boca em mim
como um viciado. E diabos, fui colocada em transe. Eu perdi as
rédeas de mim mesma e fui demasiada fraca para engasgar os
gemidos, como uma virgem sendo tocada pela primeira vez.
— ...Nicholas. Não pare. Não pare nunca mais.
Ele me lambeu como se eu fosse um delicioso pêssego e
chupou meu clitóris.
Pinguei na sua boca.
— Não, meu bem. Não pretendo parar tão cedo. — Agarrou
meus quadris e me virou de costas para ele. — Empine essa bunda
para mim. — Me deu uma palmada ardida, em seguida, mordeu o
interior da minha coxa.
Minhas pernas tremeram, mas eu gostei de ser controlada.
Encontrei prazer na dor e submissão.
— Qual sua palavra de segurança, Maisie? — Enrolou meu
cabelo na mão e o puxou com força.
— Não a direi tão cedo — falei, maliciosa.
— Ah, garota. Você não vale nada. Você adora um carinho com
violência, não adora? — Deu um novo puxão em meus cabelos.
— Não sou um cristalzinho, Nicholas. Me deixe conhecê-lo de
verdade. O que me esconde?
— Talvez você não tenha se recuperado o suficiente para
conhecer Alastor. — Ele sussurrou suavemente para mim, era como
um anjo suspirando. Uma rápida calmaria em meio à sua natureza
selvagem.
— Meu antigo eu o conhecia? — Gotejei outra pergunta ácida,
enquanto meu sexo também gotejava.
Ele soltou meu cabelo e fez as unhas deslizar arranhando
delicadamente minhas costas. Joguei a cabeça para trás e gemi. Ele
era muito bom em ser mau.
— Éramos o próprio caos, mas nos entendíamos entre nossos
destroços. — Ouvi quando ele desceu o zíper da sua calça e
provavelmente botou seu pau pra fora, mas de tudo, o estalo do cinto
encontrando minha bunda foi o que mais ouvi. Não senti dor, a
ardência me fez gemer. O desconforto me dava uma sensação de
êxtase sexual. — Adoro seus gemidos ecoando em meus ouvidos,
adoro mais ainda olhar para esse corpo quente feito uma ilha
tropical. Você é como um pôr do sol e um eclipse solar acontecendo
ao mesmo tempo.
Suspirei.
— Me deixe conhecer o Alastor.
— Eu o mostrarei a você quando menos esperar. — Entendi
aquilo não apenas como um alerta, e sim como uma tortura
psicológica. Eu podia não o conhecer, mas ele me conhecia. Sabia
que uma vez que aquelas palavras entrassem por meus ouvidos, eu
viveria ansiosa à espera do acontecimento. Fazia parte do seu jogo
de sedução.
Respirei profundamente. Às vezes eu me esquecia de respirar
perto dele.
— Apenas faça-me voltar a ser o que eu era.
Aquele pedido mudou tudo.
Ele se aproximou de mim e me libertou. Eu não questionaria
suas intenções se seu plano fosse me dar prazer.
— Eu tento ser um cara mau com você, mas você só desperta o
melhor de mim. Levante-se. — Dessa vez não era uma ordem.
Assim que fiquei de pé, ele me ergueu em seu colo, eu tive minha
bunda pressionada por seus dedos, e me beijou com gula. Como se
minha boca fosse tudo o que ele quisesse inalar. — Eu preciso de
você agora, Maisie. Me toque, me arranhe, faça o que quiser comigo,
eu nasci para ser despedaçado por você.
Senti a parede em minhas costas e a invasão da sua língua na
minha boca ardendo intermitentemente. Perturbador e erótico com
gosto de uísque.
Nossas línguas molhadas se encontraram, parecíamos sirenes
em desespero.
Passei as mãos por seus braços fortes e bebi a água do seu
pescoço com a língua.
Eu não entendia muito bem o que significava tudo aquilo. Não
entendia como meu corpo precisava do toque de uma pessoa que eu
sequer me lembrava, mas de que eu sabia, afinal? Tudo era só um
borrão, então me deixei levar.
Gota a gota de prazer escorria por minhas coxas.
— Você quer isso?
— Quero.
— Diz que é minha. — Pediu e penetrou em mim, ardendo de
prazer, eu me senti o próprio caos, fui às alturas. Cravei as unhas na
sua carne e gemi a cada metida.
— Nicholas. — Gemi, insaciada e tarada.
— Isso, geme no meu ouvido enquanto eu te como.
Não era como se eu que o estivesse servindo, era como se eu
estivesse sendo alimentada. Eu me senti real. Eu o aceitei, sem
medo e sem remorso. Aquilo parecia se encaixar perfeitamente.
Nicholas era além de uma memória perdida, ele era o meu Oceano
inteiro, como se antes dele eu estivesse nadando em plena fumaça.
— Peça para que eu meta fundo em você — sussurrou. O suor
do seu corpo se misturou com o meu.
— Faça o que quiser comer — falei, com um vício a me
consumir.
E ele foi fundo em investidas rápidas e fortes.
— Ah, Maisie — gemeu, entorpecido.
Meu corpo grudou no dele como se suássemos cola.
Com os olhos queimando, com mãos que me seguravam
firmemente minha bunda, Nicholas Coleman disse enquanto
gozávamos juntos:
— Por favor, lembre-se de mim.
Pelos deuses, eu queria ser recebida por memórias de quando
eu era corajosa e forte...
Nada veio, além das emoções de tê-lo dentro de mim. Molhado,
duro e voraz.
Acordei suada e com o cheiro de libertinagem da noite passada
ainda impregnado em meu corpo. Me virei e dei de cara com um
vidro de conchinhas laranja no criado-mudo. O peguei.
— Não o abra, ainda — ele disse.
Sobressaltei e segui o som da voz com os olhos.
Nicholas.
— Prometa que isso só será aberto quando suas memórias
forem recuperadas — acrescentou.
— Há quanto tempo está parado aí? — Indaguei, ignorando seu
pedido.
— O suficiente para ter visto você se contorcendo gemendo meu
nome.
Meu rosto se tornou uma bola de fogo. Me sorriu com as
esquinas dos seus lábios e diminuiu a distância entre nós. O cômodo
se encheu com seu perfume.
— Não fique corada, eu também sonhei com você.
Optei por não mentir. No lugar disso, mudei de assunto.
— O que tem aqui dentro, além das conchas? — Chacoalhei o
vidrinho.
— Você saberá quando for a hora.
— Não gosto desse jogo. Isso pode levar meses ou anos!
Deu de ombros.
— Você terá de aprender adestrar essa sua curiosidade ou —
deitou na cama ao meu lado e passou as mãos atrás da cabeça —
podíamos repetir a dose da noite passada e instigar suas
lembranças. Foi uma delícia sentir seu gosto.
Revirei os olhos, me derretendo. O abusado jogava sujo pra
caralho.
— Noite passada foi um erro. — A mentira exerceu uma pressão
enorme em meus ombros.
Não surtiu impacto. Só me encarou com um brilho fosco.
— Você fica uma gracinha mentindo.
Arfei e deixei o vidrinho no mesmo lugar antes de me levantar.
— Sabe que perdemos o jogo de ontem, não sabe? — Ele falou
depois de um tempo, enquanto eu trocava de roupa no banheiro. —
Damon roubou nosso ovo.
— Quem se vingará dele. Você ou eu?
Ele gargalhou e me levou junto.
— Deixe comigo.

Nicholas e eu nos tornamos o centro das atenções quando


chegamos juntos para o café da manhã. Eu fiquei tímida e sem saber
para onde devia olhar.
Já esperava pelos burburinhos após termos desaparecido da
minha festa, só não contava que uma das pessoas que me viu nua,
dissesse:
— Acho que a noite de vocês foi boa, não é mesmo?
— Teria sido melhor se você não tivesse nos roubado. Traiçoeiro
— retrucou Nicholas, já que entre nós dois, ele fora o único que não
perdera a fala.
— Eu precisava sair ganhando de alguma forma, meu querido
Alastor — revidou Damon.
— O importante é que todos se divertiram. Alguns, mais que
outros. — Tess me olhou com uma cara de danada ao passo em que
mordia uma banana.
— Eu realmente não sei do que estão falando. — Puxei uma
cadeira e me sentei onde sobrara.
— Aahhh, Maisie, não se faça de sonsa. — Foram tantos que
desacreditaram de mim, que eu não soube ao certo quem fizera o
comentário.
— Sabemos que você estava cuidando de um ovo. Só não do
ovo que fazia parte do jogo — comentou Gael, fazendo Nicholas
engasgar com seu café.
— Isso é um convite para eu me retirar da mesa, bràthair? Pois
é exatamente com o que se parece — resmungou Charlie.
— Não banque o pudico, grande Balder, eu pude ouvir você e a
dona brasileira também — confessou Jailson.
— Ora, conte-nos mais sobre isso, Jailson. — Foi a minha vez
de descascar uma banana com um olhar depravado para Tess.
— Casais as vezes se divertem, sabiam? — Ela se defendeu
depois de me mostrar a língua, se saindo absolutamente melhor que
eu. — Mas, mudando de assunto, você e Coleman foram
derrotados. Sabem o que isso significa?
— Que temos que pagar o castigo. — Nicholas e eu dissemos
juntos.
— E eu ganhei um prêmio. Devo admitir, Tess, aquele uísque é
realmente o melhor que já provei — disse Damon.
— Suponho que seja, devido seu valor — ela o respondeu e riu.
— Por que não nos diz o castigo? — Eu a questionei e mordi a
banana.
Ela abriu a boca para me responder, quando um grito estridente
reverberou pelo cômodo.
— Papaaaaai!
Todos nos levantamos de imediato. Nicholas saiu correndo e
sem se importar com tudo que tinha em seu caminho, até as plantas
se chacoalharam. O acompanhamos até fora de casa, onde sua filha
estava caída no chão e com lágrimas escorrendo pela face.
— O que aconteceu? Você se machucou? — Nicholas estava
aflito.
— O puga me derrubou. — Vi o corte pequeninho em seu joelho
e logo soube que aquele era o motivo do seu choro.
O cão passou por mim em plena velocidade, afoito. Não era um
animal muito grande, mas tinha músculos.
— Pelos deuses, isso é um cachorro ou um cavalo? — Charlie
perguntou para ninguém em específico.
— É um chevalo — disse Gael. Fiz cara de interrogação para
ele. — Que foi? Cachorro + cavalo = chevalo.
— Alguém cala a boca do Gael, por favor? — Disse Hamish,
bem atrás de mim.
— Quem precisa ser contido é esse chavalinho. Olhe para ele,
está enlouquecido. Isso não é normal.
— Gael tem razão. Ele não é assim — concordou Damon. — Há
algo de errado. Me ajudem a capturá-lo. — Ele pediu. Como a área
da casa era muito grande, toda colaboração seria mesmo
necessária.
Os machos foram ajudar Damon. Já eu e as meninas, nos
prontificamos em cuidar da filha de Nicholas. Ele a carregou até o
quartinho cor-de-rosa e a deitou na cama, depois disso foi ajudar os
rapazes. A menina ficara manhosa com o pequeno ferimento, então
Kate concordou em fazer chocolate quente para ela quando foi lhe
pedido. Tess, por sua vez, limpou os machucados com todo cuidado
e em seguida disse que precisava ajudar dona Galanis a arrumar a
bagunça que fizemos na festa. Me senti estranha quando fui deixada
sozinha com a criança. Não sabia ao certo como me comportar ao
seu lado.
Ela me conhecia?
Quão próximas éramos?
— Você lembrou do seu sonho? — Ela me perguntou. Não com
todas as palavras ditas corretamente; eu me esforcei para entendê-
la.
— Sonho?
— É. Papai disse que o que aconteceu com você é como
quando eu tenho um sonho e não me lembro.
A perda de memória, é claro.
— Ainda não. Mas eu vou me lembrar.
— E então você será minha nova mamãe? — Perguntou do seu
jeitinho inocente.
Aquilo foi um golpe baixo. O golpe mais baixo que a vida me
dera – ao menos que eu me lembrava.
Meus pensamentos correram soltos, se Nicholas adotara a
criança isso talvez significasse que ela não tinha uma mãe presente.
Não podia afirmar que ele cuidara dela sozinho durante todo o
tempo, mas a forma como ela me fez a pergunta e o modo como
seus olhinhos ansiosos aguardaram por minha resposta...Foi um tiro
em meu peito. Eu mais que ninguém conhecia aquele anseio por um
carinho maternal.
— Você gostaria disso? — Perguntei, por fim.
— Sim. — Concordou com um aceno também. — Você é legal.
Passei a mão por sua cabeça e contive a curiosidade de querer
saber o que acontecera com seus cabelos.
— Sou, é?
— Você me deixava desenhar em você.
Olhei para ela, reflexiva.
— Quer desenhar em mim agora?
A criança esqueceu-se da dor em um passe de mágica e pulou
da cama. Abriu a última gaveta do seu armário e tirou um estojo de
caneta de lá.
— Você ainda é legal. — A menina comentou antes de começar
seu trabalho em minhas costas. E eu nunca senti tanta vontade de
abraçar alguém.
Odiava ser intrometido, mas quando vi Maisie e Luiza
conversando tão próximas, eu fiz questão de esquecer a boa
conduta e bisbilhotei.
E, Deus, foi glorioso vê-las se entendendo como se nada tivesse
mudado; como se minha doce Maisie nunca tivesse partido.
— Eeii, que coisa feia! — Repreendeu Kate, me flagrando e deu
um tapa em meu braço. O líquido dançou na xícara que ela
equilibrava na bandeja.
— Eu sei que é inaceitável, mas, dê uma olhada. Ainda pode me
culpar?
Ela se esgueirou e deu uma olhadinha rápida. Minha filha
rabiscava em Maisie como se ela fosse um pedaço de papel branco.
— Tudo bem. Elas são uma gracinha juntas. Dessa vez eu
deixarei passar.
— Obrigado — disse sincero.
Kate deu duas batidinhas na porta para alertá-las da nossa
presença. Maisie até ergueu suas pálpebras para nós, já Luiza...
— Descobriram o que aconteceu com o cão? — Maisie
perguntou para mim. Tinha um receio indecifrável na sua voz.
— Um ferrão na boca. Provavelmente de abelha.
— Pobrezinho. Conseguiram tirar? — Perguntou Kate.
— Damon foi mordido no processo e Charlie descobriu que não
é tão valente quanto pensava, mas, no final, conseguimos.
Maisie e Kate riram.
— Filha, por que você não toma seu chocolate quente agora? —
Perguntei, pressupondo que a ruiva já estava desesperada para ir
embora. Nem todo mundo tinha paciência para criancice e eu
respeitava isso.
— Você não pode entrar aqui e achar que pode nos interromper
— rebateu Maisie, irritada comigo. Eu realmente não esperava por
essa reação.
— É, papai.
Kate me encarou de rabo de olho e disse:
— Acho que não somos bem-vindos, Coleman.
— Eu que não me atreverei a contrariar essas duas —
concordei. E Kate e eu saímos de fininho.
Aproveitei o sol com rajadas de vento para me exercitar ao ar
livre. Pretendia dar o trigésimo pulo, quando Damon segurou minha
corda.
— Deu certo — disse. — Implantaram provas de que Iolanda e
seus amigos eram os únicos envolvidos no roubo das joias e
conseguiram apagar qualquer possível envolvimento de Maisie.
— Como?
— Não fiz questão de saber. Nós pagamos esses imbecis pra
cuidarem de tudo para que a gente não precise se envolver.
— Eles garantiram que a polícia desistiu de ir atrás de Maisie?
— Reforcei a pergunta.
— Sim. Usaram seu contato de segurança, a tal da Stephanie,
para se certificar.
— Ótimo. Uma coisa a menos para eu me preocupar. Agora será
que você pode sair da minha frente?
Ele soltou a corda, mas permaneceu ali.
— Sabe que esse servicinho pequeno que demos não será o
suficiente para eles, não sabe? Eles ganhavam isso e agora estão
recebendo isso. — Gesticulou com as mãos. — A conta não fecha.
— Ordene que se livrem do corpo de Esnarriaga.
— Achei que você mesmo quisesse fazer isso.
— Eu queria matá-lo e já o fiz. Agora só preciso que se livrem do
cadáver. Outra coisa, transfira uma boa quantia de dinheiro para a
família dele. A pobre esposa e filhos não tem culpa do verme que ele
era.
— Certo. Farei isso — concordou e continuou irredutível. — Só
que você há de concordar comigo, Alastor, nosso dinheiro só está
saindo. Não está entrando há um bom tempo.
— Resolverei isso.
— Quando?
— Eu não sei, corvo. Essa não é a minha prioridade agora —
rosnei. Damon sempre me levava ao limite da paciência.
— Deixe-me adivinhar, a ruiva é a sua prioridade — disse, com
sarcasmo.
— Sim. E você debochar não mudará esse fato.
— Acha que estou debochando? Eu só deixei vocês sozinhos
ontem por respeito a você. Se ela não fosse a sua garota eu jamais
teria ido embora.
— Você não foi embora por mim, foi porque se tornou um bom
homem e viu a indecisão no rosto de Maisie. Eu agradeço você por
não ser um filho da puta e ter tido forças para ir embora quando tudo
que mais queria, era ficar. São poucos os homens que optam pela
amizade e não pelo prazer. Eu prezo isso.
Vi algo nos olhos de Damon e por uma fração de segundos jurei
que eram lágrimas.
— É a primeira vez que sou chamado de amigo.
Estendi minha mão para ele em forma de cumprimento.
— É a primeira vez que o considero como tal. — Nos
cumprimentamos e eu o puxei para um abraço bruto. — Mas, que
fique claro, se eu o vir olhando para o traseiro espetacular de Maisie,
eu enveneno você.
Devia ser a primeira vez que aquilo terminava em gargalhada e
não em briga.
Quando encontrei os dois rindo eu esqueci da sacanagem que
havíamos feito e só me aproximei. Eu me sentia leve naquela
manhã, não sabia se fora devido ao meu momento com a filha de
Nicholas, eu só...só queria olhar para as flores e conversar com elas.
Queria jogar minha cabeça para trás e deixar que o sol me banhasse
com seu brilho esplendor.
Eu amava o frio, mas desde que conhecera o fogo de Nicholas,
o calor se tornara meu clima preferido.
E os pássaros. Os pássaros naquela ilha cantavam o som mais
harmonioso que eu conhecera.
E o mar, pelos deuses, tão, tão azul e cristalino. Tudo que eu
queria era me atirar em suas profundezas e colher cada pedra.
Eu estava ligada na potência máxima e repleta de vida. Deixei
de me importar com o que esquecera, eu criaria novas memórias,
talvez até melhores que as que eu perdera.
Talvez.
Tudo de mais valioso estava ali comigo. Eu tinha meus amigos e
eles sempre me apoiariam. E havia Nicholas Coleman também...meu
coração era só um tecido fino perto dele.
Ouvi barulho de cascalhos e logo duas sombras bloquearam a
minha passagem.
Senti um borbulho no estômago.
Olhei de um para o outro e resolvi que o melhor seria
descontrair.
— Damon, soube que o cão mordeu você. Ele passa bem? —
Brinquei. Descobri que a maldade era um sentimento que deliciava a
minha boca.
E, bem, foi gratificante fazê-los rir e aliviar a tensão que, de
acordo com a postura dos dois, eu era a única sentindo.
— Aí está, a cabelo de fogo como eu me lembrava.
Então era isso que ele esperava de mim? Uma mulher
impiedosa. Nada de sexo selvagem, nada de ser a garota de dois
machos.
Isso é um alívio.
— Ainda bem que a encontrei aqui. Estava agora mesmo
dizendo a Damon que ia procurá-la. — Nicholas botou os olhos em
mim e eu decretei o meu fim. — Se você tinha planos para essa
tarde, sugiro que cancele todos. Hoje você é só minha.
— O que faremos? — Perguntei, como se minha mente já não
estivesse alimentada de sonhos.
Ele entregou sua corda para Damon e pediu para que ele a
levasse. Damon se foi logo em seguida. O olhar felino que Nicholas
me transferiu ao ficarmos a sós, me deixou a dois passos do
precipício. Eu até pude ouvir os demônios na minha cabeça
mandando-me jogar.
— Só confie em mim.
Parei de respirar por um tempinho quando ele se aproximou e
me fez dar de costas em um pinheiro. Queimei como páginas. Seu
cheiro, seu corpo, o modo como se movimentava, nem vilão e nem
herói.
— Eu lamento. Já tenho planos com Tess. — Eu mentira
naquela manhã e continuava mentindo para ele. Era mais fácil do
que admitir que ele mexia comigo.
— Por que não para de bancar a difícil agora que sei que você
quer isso tanto quanto eu? — Deu mais um passo e me encurralou
como um predador.
— O q-ue eu quero?
Não gagueje. Droga!
— Se entregar
— Isso é o que seu egocentrismo está dizendo, Sr. Coleman.
Nunca lhe ocorreu que ele pode, muitas vezes, enganá-lo?
— Se é tão indiferente a mim quanto afirma, então mal algum
lhe fará me ceder alguns minutos do seu dia, não é mesmo?
Ele era bom na lábia.
Reconsiderei. A quem eu queria enganar? Em momento algum
pensei em recusar seu convite.
— Ceart! (certo)
O peguei rindo do meu gaélico.
A porta do inferno estava a um palmo de mim. E ao que me
pareceu, ao que descobri, eu queria beijá-lo de novo e infinitamente.
A minha dignidade não sabia lidar com aquele homem e a todo
momento teimava em querer me levar para o chão como uma
submissa com os tornozelos e mãos amarrados.
Nicholas se afastou.
— Então, venha, doce Maisie. — Aceitei a mão que me
estendeu e ele levou meu caos para passear.

Andamos por cerca de quinze minutos descalços na areia


quente, mas quando chegamos na rocha, tivemos de colocar os
sapatos outra vez. Ali devia ser o ponto mais alto de toda a ilha, dava
uma visão ampla do mar, sua estética me capturou. O mar tinha as
mesmas cores dos olhos de Nicholas - azul turquesa na superfície e
escurecia gradativamente em suas profundezas. Eu podia me afogar
nos dois infinitos.
— Me dê a mão. Ainda não chegamos onde eu quero — pediu e
eu o fiz. Fomos para a beirada horizontal pontiaguda da rocha. Era
uma descida que se encontrava com a água. Assim que nos
sentamos, eu me livrei dos sapatos e mergulhei os pés na água
gelada.
— Vá com calma, não queremos que você caia — falou.
— Sou uma excelente nadadora, senhor Coleman.
— Aposto que essa regra não se aplica quando está desmaiada.
Fiz careta para ele, brincando. Dividimos o espaço sentados e o
roçar dos nossos braços cruzava nossas energias. Fortalecia meus
alicerces, minhas estruturas.
— Por que me trouxe aqui? A beleza é inegável. — Olhei ao
redor. — Mas, por que eu?
— E por que “não você?” — Me devolveu a pergunta no esboço
de um sorriso.
— Eu não sei o que fez com que você se interessasse por mim.
Não pense que estou desmerecendo a mim mesma, senhor
Coleman, mas não são muitos os homens que escolhem mulheres
sardentas e cabeça dura. — As palavras me escancararam.
— Sardentas e cabeça dura são as minhas preferidas. — Seus
olhos transitaram por mim. Doeu, doeu de verdade. Eu não
costumava ser tão facilmente seduzida, mas Nicholas podia escolher
a forma de me afetar. — E, por favor, me chame de Nick.
— Era como eu o chamava?
— Sim. Você me atormentava com esse apelidinho atrevido.
Me tornei um arco-íris sorridente.
— Como nos conhecemos?
— Não sei se deveríamos voltar tanto no tempo, pode ser
perigoso para a sua recuperação...
— Por favor, eu preciso saber. — E queria dizer mais, porém
existia uma interrupção lateral na minha consciência, um torpor que
se alastrava no meu cérebro
Ele jogou uma pedra e ela saltou sobre a água, enquanto ele
revisitava seus pensamentos.
— Eu era policial na Escócia e você furtara uns pãezinhos.
— Eu o quê!?
— Bem, você queria pagar por eles, mas o padeiro não aceitava
dinheiro e era só o que você tinha no momento. Como a boa
dragãozinho que você é, você já tinha devorado TODOS os pães. —
Dei um empurrão nele. Atrevido. — Eu estava passando pelo local e
quando você me viu, ficou desesperada e saiu correndo.
— E então?
— Eu não queria ter de ir atrás de você por algo tão banal, só
que era a minha obrigação, então eu acabei a prendendo no dia do
casamento de Tess e Charlie.
— Que insensível!
— Eu me odiei por ter feito isso.
— Não se odeia mais?
Ele me fitou com trevas que brilhavam.
— Se eu não tivesse feito isso, não teria conhecido você e
conhecer você foi a melhor coisa que já me aconteceu.
Fiquei sem fôlego.
— Você me deu muita dor de cabeça — ele continuou. — Nunca
imaginei que prender uma ladra de pães fosse tão desafiador. O
padeiro tentou fazer um acordo com você logo em seguida, mas
você se negou a pagar o preço absurdo que ele cobrara.
— Eu odeio quando tentam me passar a perna — rosnei, como
se estivesse revivendo a experiência.
— Ah, sim, você deixou isso bem claro. Você sempre foi fiel às
suas convicções e acho que essa é uma das coisas que eu mais
admiro em você. Você me ensinou uma das lições mais importantes
da minha vida.
Eu engasguei com a saliva, e a confusão da minha mente eu
transformei em pergunta:
— O que?
— A confiar. — Os olhos, onde grandes mistérios habitavam,
eram suplicantes e extraviados.
— Eu cresci entre amigos. Sou como uma loba e sua alcateia,
confiar é a receita para se viver bem. Você disse que era policial, por
que não é mais?
Ele olhou para o horizonte como se a vida fosse um sopro.
— Acho que não tinha vocação. — Foi sucinto. — Me mostre
que nada tão bem quanto diz.
Nicholas se levantou e arrancou cada peça de roupa, camiseta,
bermuda, meia. Quando ficou só de cueca eu desviei o olhar.
— Ah, Maisie, não me olhe com essa cara de santa quando sei
que quer ficar pelada. — O maldito pulou no mar em seguida,
jorrando água para todos os lados. — Venha, eu desafio você.
Bastou aquilo ser dito.
Ela arrancou seu vestidinho e eu lutei contra a vontade de
arrancar o resto de roupa que sobrara em seu corpo, ela era a coisa
mais bela a cruzar o mundo.
Seu mergulho definitivamente foi melhor que o meu e ela não
perdeu a oportunidade de se vangloriar ao voltar à superfície.
— Podemos dar um crédito a você. Você deve ser melhor em
outras áreas da sua vida.
— Ontem você teve uma pequena demonstração de onde sou
bom.
Me fitou. Incendiada.
— Eu sei porque faz isso, não irei mais recuar — declarou.
— Não sei do que está falando.
— Você gosta de me deixar vulnerável e abusa desse poder que
descobriu.
— Por que acha isso? — Me aproximei vagarosamente.
— Eu estando vulnerável não penso direito e faço coisas que
não faria em sã consciência.
Estando tão próximo dela, eu soube que o oceano seria
pequeno demais para nós.
— E o que você faria agora se não estivesse em sã
consciência?
Sua respiração vacilou e ela não disse nada.
— Não tocarei em você, ao menos que queira isso — afirmei,
ainda que seu rosto fosse uma imagem clara do quanto ela queria
ser tocada. Seu corpo tinha o movimento daquelas ondas pacíficas.
O ar saindo por sua boca entreaberta, era suave como o vento
secando nosso rosto.
— Estamos no meio do nada... — ciciou, já rendida.
E eu sorri. Estava sendo um desafio extraordinário ter de
reconquistá-la. Eu podia fazê-lo mil vezes, se preciso.
Mergulhei e quando retornei, perto o suficiente para que nossa
respiração pudesse ser dividida, encostei meu nariz no dela e ela
antecipou seu rosto para frente como quem quer desesperadamente
ser beijada, mas não foi minha língua que entrou em seu corpo.
Ela não escondeu a surpresa de quando enfiei minha mão por
dentro da sua calcinha.
— Quente e doce como um pote de mel. Minha mão ficaria
grudada nesse corpo o dia inteiro.
Ela gemeu com a carícia que eu fazia. Se eu colocasse minha
boca bem ali, naquela sua particularidade tão molhada, eu me
afogaria.
Passeei por ela como quem passeia em um campo florido. Alisei
pétala por pétala sem pesar os dedos.
Inspirei.
Respirei.
— Você é um escândalo, Maisie, mas não gosto de como me
deixa parecendo um garoto viciado.
— Nicholas...a-lguém pode aparecer. Hmmm. — Apertou os
olhos fechados e, sem perceber, entregou-se inteira, despejando sua
ansiedade com movimentos dos quadris, ao passo em que meus
dedos massageavam seus lábios maiores.
— Você não pode esperar que eu me comporte rebolando para
mim desse jeito. — A puxei, até que não houvesse qualquer vácuo
entre nossos corpos. — Quer que eu pare?
Ela só continuou com um movimento circular.
Rebolando.
Gemendo.
Pulsando.
— Eu adoraria enfiar minha língua nesse traseiro bem agora.
Senta na minha boca, senta.
Apoiei meus pés na areia para ganhar forças nas pernas e a
ergui em meu colo. Só a coloquei de volta no chão, quando já
estávamos longe da água.
— Você não se atreveria — respondeu, em choque.
— Se você se lembrasse de tudo que já fizemos, saberia que eu
sempre me atrevo. Vire-se de costas para mim e me deixe minha
língua mergulhar em você.
— V-ocê não pode...s-e se alguém vir atrás de nós?
— Não se preocupe com os outros. Eles sabem que hoje você é
toda minha.
— Eu nunca disse que hoje eu seria toda sua. — Ela afastou um
passo e cruzou os braços para esconder os seios arrepiados dentro
do fino tecido do sutiã.
— Você me cedeu alguns minutos do seu dia, mas, olhe para o
sol e se pergunte há quantas horas já está aqui.
Virou o rosto na direção do céu e vi que ficou surpresa.
— Estávamos conversando.
— E a conversa estava realmente boa, não? — Provoquei e
avancei em um ritmo lento. Toquei seus braços com leveza e a fiz
descruzá-los. A queimando lenta e regularmente como um vulcão.
— Foi um erro ter vindo.
— Então por que ainda continua aqui? — Ergui uma
sobrancelha para ela, o que só fez com que a selvagem ficasse bem
mais zangada comigo.
— Porque algo me diz que assim que eu lhe der as costas, serei
atacada.
— Eu quero apreciá-la, não a destruir.
— Sendo assim, sugiro que pare de me olhar como se fosse me
devorar.
— Mas é exatamente isso que farei; ainda não a ouvi me
pedindo para recuar.
Ela ficou boquiaberta, sem fala por uns segundos.
— Você é um transtorno para mim, Nicholas Coleman.
Me afastei e disse com profunda sinceridade:
— Diga que não quer que eu a beije. Diga que não quer escorrer
entre meus dedos, encharcada. Me peça para parar e eu prometo
que nunca mais terá meus olhos descarados sobre seu corpo. Posso
ser um libertino, querida Maisie, mas possuo alguma honra.
A ruiva prendeu a respiração e piscou seus cílios laranja
molhados para mim, antes de se erguer nas pontinhas dos pés e me
puxar para um beijo audacioso.
— Eu posso não me lembrar de você, e sei que pode estar
brincando comigo, mas não consigo evitar isso. Tentar ficar longe
enche meu coração de espinhos — sussurrou.
A segurei com força, se ela quisesse, podia sentir meus
batimentos cardíacos. Aquela mulher era a doçura dos meus dias
amargos.
— Nunca mais sugira que estou brincando com você, Maisie. Eu
a amo — disse de peito aberto.
— Ama?
— Sinto um amor absurdo por você e você sempre soube disso
— afirmei. — Agi feito um garoto no passado e por muito pouco não
a perdi, mas agora estou aqui, disposto a dar cada sopro meu para
reconquistá-la.
Lágrimas escorreram por sua face. Eu só não sabia o significado
delas. Eram de felicidade? Ou eu me precipitara ao entregar meus
sentimentos? As enxuguei, independentemente do que elas podiam
significar.
— Nicholas... — Seus lábios tremeram e então Maisie começou
a chorar de verdade. Um choro de soluçar, mas os olhos vermelhos
para mim, foram ternos. — Me desculpe. M-e desculpe...

— O que eu fiz de errado?


— Você disse “eu te amo” a uma garota que não se lembra de
você — retrucou Damon e me entregou uma latinha de cerveja. Já
era a quarta.
— Ela também disse que sentia algo. Até falou sobre seu
coração se encher de espinhos quando ficava longe de mim. E-u
pensei que estivesse pronta para saber o que eu sentia.
— Você disse que estavam quase pelados. Talvez ela estivesse
se referindo à desejo. Eu, quando estou excitado, também sinto meu
peito apertar como se tivesse espinhos — disse Gael.
Todos os machos tiveram o mesmo olhar perplexo para ele, só
que logo voltei a ser o motivo de todos encharcarem o sangue de
álcool naquela tarde.
— Eu só queria que ela soubesse. Eu errei muito com Maisie e
talvez eu tenha me precipitado porque quero recompensar por esses
erros.
Hamish estava pronto para apresentar seu ponto de vista,
quando ouvimos algo arrastando pelo corredor, esperamos, até Tess
surgir no bar com sua mala de rodinhas ao lado minutos depois.
— Querida?? Para aonde é que você está indo? — Charlie não
perdeu tempo e se levantou.
Não foi o marido que a brasileira respondeu, suas pálpebras
pesadas e o olhar cabisbaixo se voltaram para mim.
— Maisie está indo embora.
Foi como se uma bomba tivesse explodido dentro de mim, o
coração foi parar em qualquer outro lugar, exceto, no peito. Meus
dedos se abriram e soltaram a latinha que caiu e molhou todo o
tapete. A notícia não me arrancou somente o coração, arrancou-me
a pele.
— C-omo indo embora? — Charlie a questionou, já que eu ficara
sem voz.
— Ela está confusa e assustada. Chorou a tarde inteira e me
implorou para que voltássemos para casa. Eu lamento, Coleman,
mas não posso pedir para que ela fique vendo-a tão arrasada.
— Não. Claro que não. Estou feliz por não ter feito isso. — Fui
honesto.
— Ela está arrumando as coisas, se quiser se despedir, essa é a
chance. Temos um tempo até que todos arrumem as malas — ela
disse. Eu não tinha dúvida de que os outros iriam com elas. Não
depois de conhecê-los melhor e perceber que eram tão unidos.
— Certo. — Não consegui pensar em uma resposta melhor, não
estando tão sem chão.
Não tinha certeza de como me levantei e deixei o bar. Ou de
como subi as escadas sem cair. Meu corpo era um barco de papel -
vazio e solto no mar. Não gostava de como o amor me deixava frágil
como um sussurro, mas, mesmo caminhando em direção ao quarto
de Maisie, com vozes de desespero gritando na minha cabeça que
eu falhara, mesmo estando visivelmente destruído eu não pediria
para que ela ficasse. Eu não tiraria sua maldita liberdade de fazer as
próprias escolhas. Não podia.
A encontrei sentada na beirada da cama e encarando o vidrinho
que eu lhe dera. Aquilo me comoveu e criou um nó na minha
garganta.
Dei duas batidas na porta, mesmo que entreaberta. Ela girou o
tronco na minha direção e imediatamente largou o vidrinho no criado-
mudo.
— Tess fofocou para você — acusou, seca como uma árvore no
inverno, e se levantou.
Cerrei o cenho e senti meu rosto flácido, frio e árido.
— Isso significa que não pretendia se despedir?
— E-u não queria que isso se parecesse com o que não é.
— Então não está indo embora porque eu disse que a amo?
Desviou o olhar para as próprias botas. As mesmas que eu dera.
Se você ao menos se lembrasse do quanto rimos das suas
desgastadas e horríveis.
— Não é apenas por isso. Eu preciso de um tempo para mim,
para me recuperar de tudo que aconteceu. Desde que eu acordei, só
o que tenho feito é tentado me lembrar das pessoas, quando o que
eu devia priorizar, era lembrar de mim mesma. Eu pensei que
pudesse deixar o passado para trás, só que eu realmente não posso.
Não depois de você ter dito que me ama e isso ter abalado comigo.
Enfiei as mãos nos bolsos da calça e me escorei no batente da
porta.
— Não sabia que isso faria mal a você. Me desculpe, agi po...
— Não se desculpe. A errada sou eu. Eu sinto que existia algo
especial entre nós, Nicholas, e não me lembrar está me matando. Eu
disse que tinha medo de você estar brincando comigo sendo que
acontecia o oposto. Me atirei sem pensar no que isso podia fazer
com você. Você merece mais que um pedaço de solidão ambulante
— disse, despertando sua fera interior. — Você não tem que passar
seus dias vivendo em função de mim. Você tem uma filha que
precisa do pai, tem toda uma vida que parou por minha causa.
— Por favor, Maisie...
— Não faça isso. — Me interrompeu ao me ver entrar no quarto.
Eu parei e me tornei apenas o rastro de uma presença física. Ofereci
minha alma e o coração e ela devorou os dois.
— Não me mande embora. Eu imploro — pedi, embargado.
Cheguei em um ponto que eu sabia que as próximas palavras que
saíssem da minha boca, seriam banhadas de lágrimas.
— Diabhal, Nicholas, não chore — pediu, quando ela mesma já
tinha perdido as estribeiras.
— Como você espera que eu a deixe ir embora e haja como se
isso não estivesse me devastando? Eu estou tentando, Maisie, não
me ajoelhar e pedir para que fique porque não seria justo com você,
mas não espere que eu controle também minhas lágrimas. Eu chorar
é apenas a ponta do iceberg de emoções que estou contendo. —
Respirei fundo e me obriguei a não perder o controle quando ela
segurou sua mala.
— Nicholas, eu preciso que me deixe ir. Enquanto eu não me
lembrar, não saberei se estou ficando com você por amor ou por
medo da solidão.
Ela tinha uma forma terrivelmente elegante de acabar comigo.
Esgotei todas as minhas forças.
— Deixe-me ao menos abraçá-la.
Maisie se tornou apenas um borrão para os meus olhos
encharcados, e ao que tudo indicava, eu era só um borrão para ela
também. Mergulhados em um momento de desordem, era o mais
belo fenômeno sobrenatural carregar em nossos corpos as ruínas do
amor.
Não vá. Por favor, me deixe tentar novamente. As palavras
assoviaram na minha cabeça.
Ela se atirou em meus braços, desaguando, e molhou minha
camiseta ao despejar suas dores. Eu lambuzei seus cabelos ao
reabrir minhas feridas e a abracei com todo meu extremo e de olhos
fechados. Até nossas pernas se tocaram.
Coração com coração, pulsando com dificuldade.
Soluço com soluço, demasiadamente sentimental. Eu morri
repentinamente.
Mas nenhum dos dois era egoísta o bastante para colocar um
ponto final naquele sofrimento. Eu não era egoísta para impedi-la de
partir, e ela não era egoísta a ponto de ficar sem saber a verdade
sobre o que sentia por mim. Porque a vida era injusta e, de repente,
uma qualidade que ambos possuíamos se tornou um grande
obstáculo para ficarmos juntos.
— Eu te amo, tá? — Sussurrei em seu ouvido, mesmo sem
fôlego, em guerra com tudo dentro de mim que ela não podia ver ou
ouvir. — E a saudade de você será insuportável. Eu não farei nada
que não seja enlouquecer.
Ela balançou o rosto; eu não pude vê-la para saber o que aquilo
significava, mas tinha som de riso. Seu sorriso ocupando o rosto
inteiro era um pedaço do céu, mas Maisie por completo era uma
tempestade devastando tudo no meu peito.
A soltei devagar e vi a tristeza dançar uma dança caótica em
seus olhos verde-campo. Eu queria dizer tanta coisa, só que queria
mais ouvir o que ela tinha para me dizer.
— Nunca foi tão difícil dizer adeus a um desconhecido.
Sua sinceridade não perdoou.
— Adeus, Nicholas.
O que ficou preso na minha garganta eu enfiei goela a baixo.
Maisie pegou sua mala outra vez e tudo que restou foi a
sensação da ponta dos nossos dedos se tocando quando ela
atravessou a porta e desapareceu como uma poeira em um feixe de
luz.
Eu esperei até que sua silhueta desaparecesse.
E logo desabei.
Eu tinha de ir. Porque eu respirava, mas não me sentia viva.
Todo meu coração se rompia a cada passo que eu dava e eu
não sabia se era o choro de Nicholas ou o meu o que eu ouvia
ecoando pelo corredor conforme eu me distanciava. Arrastei minha
mala, como quem carrega uma desgraça inesgotável, sendo
assombrada pela ideia de que eu estava cometendo um erro enorme
ao deixar aquele homem. Mas eu tinha que partir, estava sendo uma
assassina de mim mesma ao me esquecer de quem eu era.
Precisava me reencontrar e encerrar a guerra que começara
com meus limites, ainda que a tristeza da despedida se derramasse
sobre mim dia após dia. E, mais que tudo, queria descobrir o que
significava aquele palpitar furioso no meu coração.
Saí de casa contando meus passos e encontrei todos ao lado de
fora de casa. Meus amigos me esperavam para partirmos e quando
olhei Luiza ao lado do seu cachorro e vi a angústia daquela criança,
eu senti aquilo me obliterar. Ela era a parte mais sensível de tudo e
eu sabia que falhara com ela. De alguma forma, eu sabia.
Meu minúsculo corpo não era forte o bastante para suportar toda
aquela carga emocional e como a coisa selvagem e inquieta que eu
era, larguei tudo e fugi para sucumbir em silenciosa agonia.
Ouvi quando gritaram meu nome.
Quando gritaram o de Nicholas.
Quando me pediram para esperar.
Mas eu só corri.
E corri.
Corri.
— Minhas lindas nuvens, socorro. — Quando caí na terra, me
ajoelhei e olhei para o céu, com o sol fazendo carinho na minha pele
cansada. — Eu quero me lembrar.
Foi insuportável não receber respostas do Universo. Toda minha
fé foi abalada pelo silêncio de uma tarde ensolarada e regada de
culpa.
Meus joelhos se sujaram mais um pouco de terra, até que eu
criei coragem para me levantar e foi quando o impacto vindo de trás,
me jogou para frente e caí de cara no chão.
E então tudo veio, lentamente como a luz atravessando os
galhos das árvores. Perdi o fôlego como se estivesse me afogando.
Imagens desconexas passavam por minha cabeça e ganhavam
velocidade a cada vez que uma lacuna de memória era preenchida.
Esperei até que meus vãos fossem completados – um mural de
luz e caos.
Dor.
Sofrimento.
Medo.
Raiva.
Amor.
Eu senti tudo e de todas as maneiras, com uma tristeza nobre e
um pasmo soluço no meu coração
— Maisie? Maisie? Diabos, pulga. Por que foi derrubá-la? Cão
infeliz!
O olhei como se fosse cega e minha garganta se apertou
quando ele me retribuiu com um olhar translúcido. O que senti, foi
desenfreado.
— Nick — balbuciei.
— Você está bem?
— Eu me lembro. — Gostaria de ter tido coragem para dizer
algo mais. Só que o choro tomou conta da minha garganta.
— V-ocê se lembra?
Concordei com a cabeça e ele me puxou para seus braços.
— Você...eu...Como? — Seu rosto trazia marcas do estrago que
eu causara instantes atrás.
— Quando o cão me derrubou. Eu não sei. Tudo voltou — O
respondi. Era difícil de explicar.
— Eu não consigo acreditar. E-eu...eu... — Nick só chorava.
O cachorro subiu em cima de nós e lambeu meu nariz, braço.
Depois partiu para o rosto de Nick e também o lambeu com
liberdade.
Estávamos fadados a rir e chorar ao extremo.
Depois de consultar os especialistas por horas e deixar todos
felicíssimos por eu ter recuperado os eventos esquecidos, eu e meus
amigos nos reunimos em uma fogueira na praia.
O plano de ir embora foi devidamente encerrado. Eu não
pretendia sair tão cedo de perto de Nicholas Coleman. Não depois
de termos sofrido tanto.
— Foi o impacto ou o chevalo que recuperou suas memórias? —
Perguntou Gael.
— Acho que ambos — falei. — Foi como se eu tivesse revivido a
experiência.
— Ora, devíamos ter mandado o cachorro pular em você antes,
então — brincou Kate.
Todos gargalhamos.
— Era impossível imaginar que algo tão bobo seria o que sua
memória precisava para retornar — disse Charlie. — Em todo caso,
estamos felizes por tê-la de volta, Maisie.
— Eu mais que ninguém — disse Nick, ao chegar. Ele fizera
questão de se atrasar para a interação na fogueira só para desfazer
minha mala.
Ele se sentou ao meu lado e eu não perdi tempo em deitar
minha cabeça em seu ombro. De repente, foi como se todos ao redor
tivessem desaparecido, deixando o céu e as estrelas apenas para
nós.
— Eu amo você — murmurei para ele, dizendo em som o que eu
passara dias confessando no silêncio dos meus olhos.
— Você é meu mundo inteiro, Maisie. — Fiquei arrepiada dos
pés aos cabelos. — E eu nunca estarei pronto para ser lançado em
um futuro sem você. Pensar sobre isso, é tão sombrio quanto meu
passado mais obscuro.
— Eu nunca deixei de amá-lo, Nick. Eu podia estar perdida na
minha própria existência, mas meu coração sempre soube a quem
pertencia.
— Ficaria comigo para sempre, Maisie? — Perguntou com
seriedade.
— E nem um minuto a menos.
— Tem certeza sobre isso?
— Com todo meu coração. — Ele sorriu e virou o tronco para o
outro lado. — O-o que isso está fazendo aqui? — Peguei o vidrinho
de conchas da sua mão.
— Eu não fui só desfazer sua mala — confessou. — Eu lhe
disse que você devia abri-lo assim que recuperasse sua memória.
Curiosa como eu era, não perdi tempo. Girei a tampa e tirei o
varal de conchas laranja. Era a coisa mais linda e delicada que eu já
ganhara de alguém.
— O acenda — ele disse e clicou no botão que eu não tinha
visto.
Logo as conchinhas se iluminaram como vaga-lumes e eu não
fui forte o bastante para segurar o choro. Meu coração cresceu onze
metros e explodiu.
Mas aquilo não era tudo.
Meus amigos, que até então estavam quietos, se levantaram.
Gael pegou o varal da minha mão e o segurou de um lado, enquanto
Jailson segurava do outro.
Tess e Kate começaram a abrir as conchinhas, com todo
cuidado para não as quebrar. Notei que dentro de cada uma continha
uma letra. Me levantei e comecei a ler.
“Enquanto existirem estrelas”
— Eu o fiz antes de tudo acontecer, minha filha me ajudou, mas
eu não tinha colocado essas letras. Eu pretendia entregar a você
naquela noite terrível, só que tudo deu errado e eu acabei o
guardando comigo. Acho que não era o momento certo. Eu era um
tolo que não sabia a mulher incrível que tinha ao lado. Mas nos dias
em que fiquei sem ouvir o som da sua voz, sem conseguir me
conectar com você... foi como ter uma espada trespassando o meu
ser, em minha pele e meus nervos, em um movimento contínuo,
partindo o meu corpo. Você não se lembrar de mim foi a pior coisa
que já me aconteceu, Maisie. — Ele engasgou e precisou se
recompor. Quando o fez, me deu seu sorriso de verão. — Eu não
quero ver mais um único pôr do sol se não for ao seu lado a
chamando de minha esposa. Eu quero amá-la enquanto existirem
estrelas.
Ele arremessou aquilo, como se arremessa uma bomba para
além dos sóis de outros sistemas.
— V-ocê tem certeza? Você disse que não queria se casar —
gaguejei, numa brandura que não fazia jus à ansiedade existente em
mim.
— Isso foi antes.
— Antes do acidente?
— Antes de eu perceber que você sempre teve meu coração
para rasgá-lo da forma que quisesse. Me deixe ser quem ouve suas
histórias até todas as luzes do Mundo se apagarem? — Ele então se
ajoelhou e abriu uma caixinha com um anel, derrubando o muro da
minha lógica e a crosta dos meus sentidos. — Você aceita a mim, às
minhas versões, e à minha filha?
— Nick... — Me ajoelhei para ele e tomei suas mãos com as
minhas. — Eu fui sua um segundo antes de beijá-lo pela primeira vez
e fui da sua filha assim que botei meus olhos nela. Não há para mim
o que fazer no Mundo que não ser de vocês.
De repente, todos gritaram felizes, aplaudiram, choraram.
Naquela noite, a Lua cresceu no céu, pura, vibrante e laranja,
enfaticamente laranja, e encheu com força o meu peito.
Um corpo precisa do coração para funcionar, um automóvel
precisa do motor, um relógio, o tempo. Era dessa forma que eu me
sentia em relação a ele. Nicholas Coleman não era meu coração,
havia gente demais dentro dele para que eu pudesse doá-lo cem por
cento. Mas, olhar para ele era uma das razões que o fazia pulsar.

Estava quente como nunca. Meus braços e pernas coçavam


sem parar. Nunca na minha vida imaginei que Tess pudesse ser tão
cruel.
— Vocês estão deslumbrantes — zombou Damon.
— Alguém, por favor, poderia registrar esse momento? — Pediu
Gael em um deboche mais singelo.
— Isso é maldade pura. Deve estar uns trinta graus aqui dentro!
— Critiquei, antes de me olhar no espelho. Por um momento, achei
que Tess fosse se esquecer do meu castigo e o de Nick, mas então
ela chegou naquela manhã com duas fantasias de unicórnio e
dissera que promessa era dívida. Nick e eu não tivemos como fugir,
mesmo sendo os maiores dramáticos do mundo e dizendo que
queríamos curtir nosso momento noivos.
— Vocês estavam cientes da consequência e ainda assim
perderam o ovo de vista. Não posso sentir pena de vocês. — Tess
retrucou. — Agora, por que não curtir a tarde? Está um sol radiante
lá fora.
Todos riram, até a pequena Luli.
— Essa menina é uma corvinha mesmo. Vejam só, que riso
maldoso — reparou Damon, erguendo a criança no colo e a rodou.
— Compará-la a você não é um elogio, Damon — criticou
Nicholas.
— Do que você gosta mais, corvinha. De um unicórnio medíocre
ou de um corvo astuto? — Damon perguntou para a criança.
Ela olhou para mim, sem saber como responder.
— Pense direitinho, Luli, olha como eu sou colorida. — Tentei
suborná-la com meu macacão branco e rosa.
— Um corvo tem asas — contrapropôs Damon.
— Se você disser que prefere unicórnios eu a levo para um
piquenique. — Lancei minha última carta e seus olhos saltaram de
felicidade.
— Gosto de unicórnio — ela falou, por fim.
Damon me olhou feio.
— Que golpe sujo, cabelo de fogo. Devia se envergonhar.
— Golpe sujo foi quando você roubou nosso ovo em um
momento de descuido — rebateu Nick.
— É assim que chamam sexo hoje em dia? — Questionou
Damon.
Nick correu para tampar os ouvidos da filha, mas fora tarde
demais.
— Papai, o que é sexo?
— Algo que você aprendera quando tiver vinte anos.
— Tenha bondade, Coleman, com vinte anos eu já praticava
outros tipos d... — Hamish não pôde continuar seu pensamento
quando Kate tampou sua boca com a mão e olhou torto.
— Temos uma criança na sala — ela o lembrou.
Peguei Luiza do colo de Damon e disse para ela:
— Venha, querida, temos um piquenique para prepararmos.
Depois de tanto sofrimento e tantos empecilhos, eu finalmente
podia olhar para aquela ruiva sardenta – a mais linda que eu já vira –
e chamá-la de minha. Sentado naquele pano xadrez, sob o sol
quente de verão, eu não podia parar de olhar para as duas garotas
mais importantes da minha vida e pensar no quão sortudo eu era.
Minhas e para sempre irei protegê-las.
— Nick?
— Sim?
— Faz um minuto que estou lhe pedindo para me passar o mel
— disse Maisie, com um semblante impaciente.
Peguei o recipiente e entreguei a ela. Não pude não reparar no
diamante em seu dedo, e pensei em quando comprei aquele anel
sem qualquer perspectiva de Maisie voltar do coma.
E ali estava ela, sendo a melhor companhia que minha filha
poderia ter.
— O que há de errado com você?
Pisquei duas vezes para ela e depois para Luli.
— Eu as amo — disse, sincero.
Luli saltou no meu colo e me deu um aconchegante abraço.
Depois, pegou na mão de Maisie e a puxou para um abraço a três.
— Nós também te amamos, papai — disse Luli.
— Do fundo do coração — disse Maisie.
— Do fundo não, do rasinho, do fundo afoga — respondeu eu e
Luli ao mesmo tempo.
E, de repente, risos escandalosos ecoaram pelo jardim do
palácio.
— Vocês dois estão contra mim, é isso? — Perguntou Maisie,
brincalhona. — Eu vou devorar vocês dois. Começando por essa
pequenininha aqui.
— Aaaahh!! — Gritou Luli, quando Maisie avançou sobre ela e
começou a fazer cócegas.
A cesta de piquenique se espalhou toda pela toalha. Iogurte
para um lado, castanhas para outro. Até as pobres bonecas de Luiza
pagaram um preço.
— Papai, m-e ajude. — As lágrimas de felicidade saltavam em
seus olhinhos.
— Suba, doce criança, a levarei para longe desse unicórnio
maluco. — Me ajoelhei e Luli montou em minhas costas. Eu podia
estar derretendo dentro daquela fantasia, mas não havia nada que
eu não fizesse para colocar um sorriso no rosto da minha filha.
— Segure-se — falei para ela e ela passou os bracinhos em
volta do meu pescoço. Assim que a senti segura, comecei a correr
pelo campo.
— Assim não vale. Dois contra uma é covardia — gritou Maisie,
ficando para trás.
— Você não me pegaaaa! — Provocou Luli.
— Diz assim, filha: Eu desafio você — cochichei para Luiza,
olhando por cima do ombro.
— VEEEM TIA, MAH, EU DESAFIO VOCÊ.
E então, a fantasia de Unicórnio de Maisie se tornou um touro e
foi como se minha filha e eu estivéssemos segurando um pano
vermelho.
— Ah, Nicholas Coleman, eu vou acabar com você. — A ruiva
rosnou e correu em nossa direção.
Segurei as pernas da minha filha com mais força e disparei em
direção ao jardim de roseiras. Todos riamos tanto, que nossas
gargalhadas se misturavam e se tornavam uma só.
Eram risos sinceros. Os quais só dávamos se estivéssemos
juntos.
Três corações que batiam feito um.
— Isso não pode continuar desse jeito. Não quero ver esses
gregos nunca mais!
— E o que te leva a pensar que estou feliz com essa situação?
— Nick rosnou de volta. O maxilar trincado como uma fera.
— Se livre deles ou eu mesma me livrarei.
— Não me dê as costas! — Ele segurou meu pulso, sem aplicar
força. — Eu estou tentando resolver essa situação com Damon.
— Isso já era para ter sido resolvido. Não consigo olhar para a
cara desses homens e pensar em quantas pessoas fizeram sofrer. —
A saliva grudou na minha garganta como cacos de vidro. Quando
entrei na maldita sala de reunião e vi aqueles homens sentados...os
mesmos que quase me mataram. Eu surtei e foi por muito pouco que
não avancei sobre um deles. Se Nicholas não tivesse me segurado e
me arrastado para fora da sala...Uma vez com as unhas neles, nem
os deuses me parariam.
— Me perdoe se eu não estava com cabeça para lidar com essa
porra toda. Me perdoe se tudo o que eu conseguia fazer era pensar
em você. — Ele continuou furioso comigo. Carregava uma
tempestade severa nos olhos.
— Está me culpando por ter entrado em coma? — Puxei meu
braço e o empurrei com força.
Ele franziu o cenho.
— De onde tirou essa merda agora?
— Você fez parecer que eu tenho culpa por você não ter
resolvido tudo.
— Não foi o que eu disse. Ah, pelo amor de Deus, Maisie, por
que diabos está brigando comigo logo cedo?
— Porque estou brava. Estou...estou...Não gostei de ouvi-lo
rindo com eles. Parece que se esqueceu de tudo.
— Rindo? Você me ouviu rindo? Se isso aconteceu,
provavelmente deve ter sido quando eu disse a Damon que queria
matá-los e servir a carne em um churrasco — falou, gesticulando. —
Você não tem ideia do que está acontecendo, mas eu não posso
perder a cabeça como você quer. Da última vez que agi por impulso,
eu abri o crânio de um deles na mesa.
Engoli em seco. Ou talvez tenha engolido pólvora, porque minha
garganta queimou.
— O que você tem ordenado para eles? — O receio era palpável
na minha voz.
— Coisas bobas. Idiotices.
— Que idiotices?
— Está me perguntando se ordenei que assassinassem ou
sequestrassem alguém?
— Ordenou?
Ele massageou as têmporas e ficou tão irritado pelo botão da
manga da sua camisa abrindo toda hora, que o arrancou em um
puxão.
— Você está tentando me enlouquecer? E não, não ordenei
nada disso e é um insulto ter me perguntado.
Arfei, aliviada.
— Não morarei em um lugar onde assassinos entram e saem a
todo momento.
— Preciso lembrá-la que você dorme na mesma cama que um
assassino todas as noites? — Seu timbre foi áspero.
— Não se compare com eles, Nicholas. Você não machucou
inocentes.
— Tem certeza que não está me protegendo só porque eu a
faço molhar a calcinha?
— Nossa conversa não é sobre sexo.
— Não. Nossa conversa é sobre a minha futura esposa não
confiar em mim e achar que agora trabalho com carniceiros.
Fechei os punhos. Nicholas ia me levar a loucura antes de dar
meio-dia.
— Se quer que eu acredite em você, então se livre deles. — Me
virei e segurei na maçaneta para deixar o escritório.
— Pela segunda vez, não me dê as costas!
— Ou o quê? — Disse apressada, com a fúria de todas as
chamas e raiva de todos os ventos.
Ele trincou os dentes e se aproximou pisando firme. Tentei puxar
a porta, mas ele a empurrou de volta. Não tive medo, pelo contrário,
estava adorando rever Alastor.
— Ou eu vou foder você bem ali e não serei gentil. — Apontou
para a mesma escrivaninha onde eu, Damon, e ele fizemos
atrocidades.
— Talvez eu precise mesmo de uma lição.
Ele girou a chave na fechadura e me ergueu em seu colo. Colidi
com a porta e tive meu ombro mordido.
— Você gosta disso, não gosta? De me ver perdendo a cabeça.
As vezes acho que seu preferido é Alastor.
Agarrou minha coxa com as unhas e eu gemi.
— Olhe nos meus olhos e diga — exigiu.
Fiz o que me pediu. Uma escocesa nunca recuava diante o
perigo.
— Me fode, Alastor.
Não era a resposta que ele esperava. Foi muito mais que isso.
Eu trouxe sua sombra à tona inesperadamente e foi demais para que
ele pudesse contê-la.
Ele me colocou no chão e me virou de costas para ele. Rasgou
meu vestido de cima à baixo, e rasgou também minha calcinha.
— Empine sua bunda gostosa para mim, garota. Quero ouvi-la
gemendo bem alto. — Me empurrou até que minhas mãos pudessem
tocar meus pés e minha bunda ficasse à mercê do seu desejo. —
Sua palavra de segurança ainda é a mesma. Lembra-se dela?
— Não preciso disso.
Soltou uma risada rouca.
— Ah, Maisie, será divertido ter você como minha esposa. —
Deu um tapa com a mão aberta na minha bunda, mas antes de
gemer pela ardência, eu gemi ao ter sua língua lambendo a região
atingida.
— Bate e assopra. Que gentil, Alastor — aticei.
Ele me mordeu.
Eu gemi e ri.
— Abra as pernas. — Me agarrou com as duas mãos.
Eu o fiz, sem imaginar que sua língua iria tão longe.
Alastor me lambeu e me beijou como se o fizesse com a minha
boca. A língua molhadinha em movimento de vai e vem e os dedos
pressionando as nádegas eram mais que eu podia suportar sem
chegar ao escândalo.
— Ah, céus!
Tapas.
Mordidas.
Lambidas.
Mas aquilo estava longe de ter fim. Ele desceu o zíper da sua
calça e eu não aguentei não olhar.
— Se fizer isso outra vez, eu terei que amarrá-la e vendá-la —
alertou-me.
— Não seria o pior dos castigos.
Eu não aprendi a segurar a língua e Alastor não aprendeu a
controlar seu instinto predador.
— De joelhos — ordenou. Ele arrancou sua camisa e a usou de
venda para meus olhos. O que ele usou para amarrar meus pulsos
eu não consegui distinguir, mas devia ser uma parte do meu vestido.
A grande surpresa, foi quando senti meus tornozelos se
tornarem reféns como o resto. Ele deu um nó apertado em pulsos,
olhos e tornozelos. Eu não poderia escapar, nem se quisesse.
E eu realmente não queria.
— Me diga, Maisie — passou a mão por meu rosto —, você
confia em mim?
— Confio.
— Então chupe e lamba. — Enfiou um dedo na minha boca e eu
fiz meu melhor trabalho com ele. O tomei inteiro, com pressão, e
passei a língua em movimentos circulares na pontinha, como se ali
fosse a cabeça do seu pau, por fim, uma mordidinha maldosa.
— Desgraçada. — Agarrou meus cabelos com um riso sombrio
reverberando. — Por que brinca comigo?
— Porque sei que fará algo pior quando chegar a minha vez. —
O respondi assim que retirou seu dedo já bem lubrificado.
— Está coberta de razão. Vamos desligar os sentimentos por um
momento e viver só das sensações.
Ele me empurrou pela nuca, até que eu ficasse em uma posição
mais promíscua e ele pudesse fazer o que bem entendesse comigo.
Lambeu novamente o interior da minha bunda, mordeu minha
virilha, então introduziu seu dedo no meu ânus.
Eu gemi alto como um trovão.
— Diga que está pronta para mim.
— Estou sempre pronta para você — respondi e ele esfregou a
cabeça do seu pau na minha boceta, ainda com o dedo lá atrás.
— Encharcada como eu gosto. — Me penetrou devagar. Eu não
sabia pelo que devia gemer, pelo prazer que acontecia atrás ou pelo
que acontecia na frente. Nicholas Coleman certamente era uma das
maravilhas que os deuses compartilharam com certos mortais.
— Você é inteira minha, Maisie. A próxima vez que outro homem
tocar em você, eu o transformarei em carvão.
E meteu. Eu podia sentir sua raiva acumulada a cada vez que
ele ia mais fundo e forte.
— Pensei que gostasse de dividir.
Entrando, saindo. Me fazendo suar. Me fazendo voar.
Me devorando como se eu fosse uma amora.
De repente, parou. Ainda pulsava e ficara duas vezes maior,
mas parou.
— Gostava, até ver Damon metendo a língua na sua boca. Até
vê-lo contemplando suas sardas. Minhas, sardas. — Introduziu outro
dedo em mim, devagarzinho, só para me castigar. Eu toquei o inferno
e voltei para soltar um gemido.
Movimentei os quadris proporcionando prazer para ambos.
Aqueles dedos na minha bunda me deixavam ainda mais
apertadinha.
— Não importa o que aconteça, é por você que meu corpo se
arrepia.
Ele gemeu e pulsou mais forte.
— Ah, Maisie. Por que tão boa?
Alastor tirou os dedos de mim e me agarrou pelos quadris –
devorador e possessivo. Meu traseiro batendo com tanta força em
sua virilha, não era um som tímido, era mais alto que meu coração
querendo sair pela boca.
Eu me senti em uma queda sem fim em uma cidade cheia de
luzes. Era cruel e bom ao mesmo tempo.
Um desespero. Um desespero gostoso perceber que ele podia
explodir a qualquer instante.
Era melhor que qualquer paraíso, o cheiro de prazer exalando,
os cabelos bagunçados. Eu amava aquela desordem.
Eu era a neve e Alastor o fogo. Tudo que eu queria era derreter.
Mas ele não me deixou seguir em frente.
— Não tão já, doçura. — Se afastou.
— Nicholas! — Rosnei, com uma palpitação inefável. Sentia
como se o desgraçado tivesse cortado minhas asas em pleno voo.
Estalou a língua e acariciou o interior das minhas coxas, se
recusando a tocar onde eu realmente queria. Desejava ser lambida
como um sorvete derretido.
— Por favor — lastimei.
Passou os dedos pelas curvas do meu corpo, violando-as, e
teve minha pele embaixo das suas garras. Quando chegou em meus
cabelos, enrolou-os no braço como se fossem uma cobra.
— Você é suave como um mar de primavera e eu amo isso, mas
se eu der o que me pede você me desafiará de novo.
Mostrei os dentes para ele, enfezada.
— Você pediu por Alastor, querida Maisie, agora aprenda a jogar
o jogo dele. — Desceu minha venda.
— Eu vou arrancar as entranhas de Alastor com meus dentes.
— Recusei a discrição e elegância. As palavras não me soaram
estranhas, elas eram as mais sinceras. Vivendo entre animais eu
aprendera a me portar feito eles, a observar a presa e esperar pelo
melhor momento para devorá-la.
Deu um sorriu sexy e disse-me morno:
— Para isso você precisa primeiro conseguir se soltar.
Senti minhas veias dilatarem. Sorvi a última gota de ar.
— Tudo bem, nós brincaremos disso e você verá que vingativa é
o meu lado menos monstruoso.
Fitou-me nos olhos, a surpresa era enorme, mas o
deslumbramento foi maior ainda.
— Estou preparado para suas surpresas. Eu amo você, minha
pequena selvagem.
Se inclinou para um beijo delicado na minha testa antes de ir
embora dizendo:
— Trarei novas roupas para você.
— Não precisa. Me divertirei desfilando nua! — Gritei de volta,
mas ele já tinha partido.
Nick não conteve a surpresa quando cheguei para o almoço
cerca de uma hora depois. Eu teria o olhado com mais ira, caso ele
não tivesse deixado um estilete próximo a mim para que eu pudesse
me libertar. Ele tentava ser malvado comigo, a verdade era que ele
não conseguia.
Ignorando o fato de ele não ter me deixado gozar, claro. Isso era
imperdoável.
— Onde esteve o dia todo? — Indagou Kate. — Tess e eu a
procuramos.
— Descansando. — Menti e tive de suportar o pigarro de Nick.
— Não no quarto. A procuramos lá também — disse Tess.
Ninguém notara as gracinhas do macho.
— Em uma das salas. Me passe o molho. — Pedi a Gael. — O
que queriam falar?
— Queríamos saber se os noivos já tem alguma data para o
casório? — Kate perguntou para qualquer um de nós dois.
Nos encaramos devagar e eu me deleitei ao lembrar que tudo
aquilo, cada pedacinho daquele homem, era meu.
E eu ia matá-lo como bem entendesse...
Meu amor e minha morte.
— Ainda não tivemos tempo para falarmos sobre isso —
respondi.
— Pensei que fosse sobre o casamento que discutiam hoje cedo
— revelou Damon.
— Como assim discussão? Não me diga que estão brigados! —
Falou Tess.
— Claro que não estamos brigados. Maisie deve estar pensando
em formas de me torturar nesse exato momento, mas ainda assim,
eu a amo. — Nick respondeu, sem tirar os olhos de mim.
— Não tente se passar por inocente depois de ter me deixado
amarrada em uma sala! — Rebati.
Todos prenderam a respiração. Graças a Odin, Luli já tinha se
retirado da mesa.
— Você me pediu para ser malvado com você. Não imaginei que
fosse tão fraca — provocou.
Meus amigos olhavam de um para o outro, ansiosos, e ouvi Tess
comentar algo como: “Amarrada. Que picante.”
— FRACA? Quando eu colocar minhas mãos em você, Nicholas
Coleman, nem o diabo arrancará.
— Estou bem aqui, gracinha. Basta vir.
Segurei a faca e o garfo com força. Eu ia jantá-lo!
— Crianças, se controlem — disse Damon, mas logo
reconsiderou. — Na verdade, está divertido, continuem.
— Parece que os noivos entraram no espírito do casamento
grego. Tenho certeza que já, já pratos serão lançados. — Kate
comentou com Tess.
— Viu o que ela disse? Ele a amarrou. Isso me parece delicioso,
preciso tentar com Charlie. — A brasileira respondeu, como se a
única que pudesse ouvi-la fosse Kate.
— Ah, por Odin, pra quê vocês dão ideia? — Charlie retrucou. —
Se eu ficar amarrado tenham certeza de que farei vocês dois
pagarem, noivinhos.
Seu comentário nos fez rir e aliviou o estresse.
Enquanto eu levava um pedaço de frango à boca, pensei que
não havia uma única pessoa ali que eu não amasse
desesperadamente. Cada um tinha um espaço no meu coração,
inclusive Damon. Ele podia não ser a minha pessoa favorita, mas eu
tinha de admitir que ele mudara muito nos últimos meses e se
tornara alguém que eu até podia admirar. Ele ficara ao lado de Nick
no seu pior momento, ele era gentil com Luli, isso era uma coisa
grande demais para se esperar de alguém como ele. Era difícil
alguém que vivera nas sombras por tanto tempo, ter uma chama em
seu coração.
— Eu já tomei a minha decisão. Tudo que eu espero, é que você
compreenda.
— Então é isso? Vai embora!?
Por nenhum momento acreditei que Damon fosse compreender
facilmente, eu só não contava com aquele tom amargo.
— Eu tenho uma família agora, Damon, não posso colocá-la em
risco. Ficar aqui, cercado de assassinos, é arriscado demais. Você
quer coisas diferentes das minhas para Érebos, eu indo embora só
facilitará para você.
— Estou furioso com você, mas eu o compreendo.
— Nunca tive a intenção de fazer parte disso, você sabe. Aqui
não é o meu lugar. Você já tem tomado conta de tudo de qualquer
forma. Todos estão insatisfeitos comigo, ninguém implorará para que
eu fique.
Ele assentiu, porque era tudo verdade. Esperavam que por
Alastor ser considerado um assassino temível, ele fosse ordenar
grandes crimes, mas não foi bem o que aconteceu. Eu desistira de
deixar o ódio me guiar, parei de agir por impulso e comecei a pensar
em tudo que estava em jogo. Minha filha e Maisie.
Se viver em paz com as pessoas que amava não era o sentido
da vida. Qual seria, então?
— Voltará a ser policial na Escócia?
— Pretendo.
— Farei com que ameacem o delegado e o coloquem para fora
— garantiu.
— Estou contando com isso. — Nós dois gargalhamos.
— É sério. Aquele cara não merece estar lá. Você merece. E
posso garantir também que os gregos nunca mais os perturbarão.
Eu o puxei para um abraço.
— O espero no meu casamento, viu? Mandarei o convite e se
você não aparecer, eu venho aqui e o encho de porrada.
— Eu não perderia isso por nada. Estarei lá com você só para
lembra-lo que eu já beijei sua garota.
— Vou jogá-lo pela janela, corvo maldito!
O desgraçado só gargalhou, destemido e me abraçou ainda
mais forte.
— Você foi como um irmão para mim, Alastor. Nunca se
esqueça disso.
— Não estou morrendo, pelo amor de Deus. Nos veremos
novamente e em breve.
— Sim. Eu só preciso ajeitar minha vida agora, escrever minha
própria história. Tenho algumas grandes decisões a tomar.
— Vai se dar bem, é inteligente — falei, convicto. — Só tenha
cuidado com as mulheres com quem dorme. Garanta que não seja
de outro.
Ele riu.
— Meu Deus, Damon, você é um imprestável.

Esperei até que ela tivesse se trocado e escovado os cabelos.


Contei quantas vezes a escova deslizou por aqueles fios, contei
quantas sardas haviam em seus ombros onde ela massageava com
o hidratante, contei quantas batidas fortes meu coração deu assim
que ela se virou para mim com um enorme sorriso no rosto.
Eu contei, até perder a contas, e chegar à conclusão que ao
lado de Maisie eu só desejava viver sem ter noção do tempo.
— O que está olhando?
— Você é esplêndida. Como posso ter dado tanta sorte?
Suas bochechas coraram e a cor combinou com todo o resto do
seu corpo.
— Não seja bobo, Nick. Quem deu sorte aqui, fui eu. Quantas
mulheres podem ter dois homens em um único ser? O anjo e o
demônio.
— É assim que você me define?
Passou a mão pelo cotovelo, o hidratando. Mal sabia ela que em
poucos minutos eu tiraria tudo com a língua.
— Bem, levando em conta que você me amarrou e deixou uma
arma para facilitar minha fuga. Alastor até tenta assumir o controle,
mas é Nick Coleman quem comanda tudo.
A puxei pela cintura.
— Fui embora com o coração na boca. Mas você precisava
aprender uma lição.
Eu adorava quando ela me olhava como se eu fosse a coisa
mais fantástica que seus olhos já viram.
— Que malvado você é.
Passei a língua pelos seus lábios e mordi o inferior.
— Você não tem ideia do quanto. — E a prendi pela boca. Um
beijo com intensidade e amor. Muito amor.
Nossas línguas não guerrearam dessa vez, elas apenas
trabalharam juntas. Dançaram uma música lenta e erótica.
Maisie passou os braços pelo meu pescoço e adentrou os dedos
em meus cabelos. Nossos corpos se encostaram um pouco mais e
todos os vãos foram reduzidos a nada.
O frescor do seu corpo, o seu toque, suas curvas onde minhas
mãos deslizavam como se fossem acordes. Eu amava tudo aquilo. A
venerava como uma pintura.
Ela era o meu pedaço de infinito, o meu tranquilo sopro de vida.
— Eu respiro melhor quando estou com você, mesmo que vê-la
me falte o ar — sussurrei.
Sorrimos um só sorriso.
— Vamos embora para onde você quiser, Escócia, Grécia,
Inglaterra. Eu só quero estar com você e fazê-la feliz.
Afastou o rosto.
— Mas e Érebos? — Questionou. Senti no meu peito, seu
coração bater.
— Deixei tudo. Você me deu algo que eu nunca tive, algo que
nunca imaginei um dia ter. Você me deu uma família, Maisie, e nada,
nunca, ficará entre isso.
Aqueles olhos brilhando de emoção, foram tudo para mim.
— Voltaremos para casa?
— Sim, meu amor. Para a nossa casa e a transformaremos em
um lar.
Ela me beijou, cheia de volúpia. E naquela noite, regada de
sentimentos, no vácuo mudo do quarto, sobre o lençol feito de
suavidade e frieza, fizemos amor pela primeira vez.
E foi muito melhor que qualquer sexo selvagem.

O almoço de despedida foi mussaká e dona Galanis depositou


todo seu amor em cada tempero. A encontrei soluçando na cozinha e
ela tentou disfarçar assim que me viu.
— Por que está chorando? — Não consegui não perguntar.
— O senhor está indo embora e levando a menina Luiza — ela
fungou.
— Dona Galanis, venha até aqui. — Ela largou a colher na louça
e se aproximou. Segurei seu rosto com as duas mãos e olhei em
seus olhos gregos. — Minha casa sempre estará aberta para você,
poderá nos visitar quando quiser.
— E se eles não me deixarem sair? Como costumava ser antes
do senh...
— Isso nunca mais acontecerá! — Afirmei.
— O senhor não pode saber, está indo embora.
— Mas Damon continuará aqui e eu confio nele. Se algum
desses carniceiros desrespeitá-la de alguma forma, eu volto de onde
estiver e acabo com ele. Estamos entendidos?
Ela assentiu e finalmente conseguiu conter os soluços. A abracei
com todo carinho.
— Eu nunca poderei pagar por tudo que fez por mim e por
minha família. Você foi a mãe que eu nunca tive, mas agora eu
preciso ir e me tornar o pai que Luiza nunca teve.
Ela me abraçou de volta.
— Você é um bom homem, senhor Coleman, salvou muitas
vidas. Merece ser muito feliz.
Acenamos para Damon conforme nos distanciávamos.
Foi fácil deixar tudo aquilo para trás.
Era inegável que eu sentiria falta do mar azul, dos pássaros
alegres e daquelas ruínas. Mas todas aquelas coisas boas que
Érebos me proporcionara, não supriam as ruins. Eu sofri entre
aquelas paredes. Fui ferida e tive a alma violada. Eu conheci o pior
lado dos seres humanos e libertei o pior de mim mesma.
Agora eu estava indo embora. Era hora de deixar tudo aquilo
para trás e recomeçar do zero ao lado do homem e da criança que
eu amava. Eu daria o melhor de mim para eles, seria a mãe que
Luiza esperava e a esposa que Nick merecia.
— Em que está pensando? — Ele me abraçou por trás e olhou
para o oceano manso.
— Em como amo você. Em como somos fortes. Eu nunca tinha
parado para pensar em como fomos corajosos.
Me deu um beijo no rosto e me virou de frente para ele.
Ah, esses olhos.
— Você é a pessoa mais forte que eu conheço, Maisie, e você é
a minha força. Eu olho para tudo o que passamos e isso é só o que
consigo pensar. Enquanto você estava desacordada eu me tornei
vulnerável, perdi o rumo de tudo e achei que fosse morrer. Foi igual
quando você me deixou.
— Sabe que eu não era eu de verdade quando fiz o que fiz. —
Engoli em seco.
— Claro que sei. Só que isso não me impediu de chorar feito um
desgraçado — ele riu e meu corpo ficou mole.
Nick pegou minha mão e beijou o anel.
— Quero me casar com você o mais rápido possível e garantir
que você nunca mais fuja.
— Senhor Coleman, para onde eu poderia ir se o meu Mundo
inteiro vive dentro dos seus olhos?
— Minha ladra de pães. — Afagou meu rosto.
— Meu turrão descuidado.
— Descuidado?
— Sim. Graças a você, eu perdi um desafio.
Ele se afastou e cruzou os braços.
— Se me lembro bem, foi a senhorita que largou nosso ovo e
me distraiu com esse corpo divino.
— É isso que fará com nossos futuros filhos? Vai permitir que
alguém os leve e saia impune?
— Futuros filhos? — Perguntou em um sobressalto. —
Exatamente quantos você tem em mente?
Segurei um riso ao vê-lo tão espantado.
— Uns quatro, talvez cinco. Ora, Luli precisa de muitos irmãos
para protegê-la.
— Você sabe que policial não recebe tão bem assim, não sabe?
— É por isso que Charlie conseguirá um excelente trabalho para
mim. Não é mesmo, grande Balder?
O macho que estava lá na popa, se aproximou ao ser chamado.
— E correr o risco de você ser atropelada novamente? Nem
pensar.
Cerrei o cenho.
— Eu aprendi a lição.
— Aprendeu até ver um novo animalzinho na sua frente —
intrometeu-se Gael. — Por falar nisso, estou triste por não termos
trazido o chevalo conosco. Viram o olhar dele quando nos
despedimos?
— Pobrezinho. Lambeu minha cara todinha — comentei. —
Ainda não entendo o porquê Nick não nos deixou trazê-lo.
— É papai. Por quê? — Luli surgiu de algum canto, emburrada.
O rosto estava marcado pelo choro incessante.
— Eu já falei. Lá ele tem um espaço enorme para correr e
brincar. Logo, logo ele crescerá mais e uma casa pequena não seria
o ideal para ele. — Nick explicou pela segunda vez. Mas não entrava
na minha cabeça e na da criança, ainda que fizesse todo sentido.
— Precisamos de um cachorro, Jailson — disse Gael para o
amigo pançudo.
— Providenciaremos isso assim que chegarmos. — O outro
concordou.
— Fechado. — Selaram com um acordo de mão e cuspe.
— Não acham que vocês dois já são animais o suficiente para
aquela ilha? — Zombou Charlie e todo meu corpo se chacoalhou
com as gargalhadas.
DUAS SEMANAS DEPOIS.

Aceitei que Maisie transformasse meu apartamento em seu


conto de fadas. Ela arrancou o vaso de planta que costumava ficar
ao lado da porta, dissera que ele se tornara seu inimigo desde que
metera o pé nele. Eu não me importava com as suas mudanças,
para mim bastava encontrar sua escova de dente na pia, o fio de
cabelo laranja na banheira, ou os seus gritos clamando pelos deuses
toda vez que topava com o dedinho no sofá, e tudo valia a pena.
Luli a ensinara ver televisão e a mexer no computador – do seu
modo limitado. Maisie descobrira o poder da tecnologia quando
aprendeu que a internet sabia fazer todos os deliciosos doces que
vendia nas padarias. Em uma tarde de sábado fui convencido pelas
duas garotas da casa a fazer cupcake. A cozinha se tornou uma
confeitaria de desastres. Havia cobertura de chocolate até no teto,
mas mesmo com tudo dando errado com o cupcake, foi impagável
quando minha filha levou o doce à boca e soltou um: “Pelos deuses.”
Maisie e eu rimos como dois tolos encantados.
— Acho que já estou velha para isso. — Ela se jogou na cama
de bruços, exausta. Passara horas brincando de esconde-esconde
com Luli pela casa.
— Você não tem nem vinte e quatro anos. — A respondi.
Ela ofegou.
— Sinto como se tivesse sessenta. Pelos deuses, estou...morta.
— Luli tem muita energia. Acho bom ir se acostumando. Agora
você é nossa. — Pisquei para ela quando virou o rosto na minha
direção. — E eu também tenho muita energia.
— Estou fedendo como um porco — alertou.
— Tire sua roupa e me acompanhe.
Ela se sentou na cama.
— É uma ordem, Coleman...ou devo chamá-lo de Alastor? Com
qual dos dois brincarei agora?
Dei um passo na sua direção e quando pretendi saltar na cama
para abusar daquele corpinho sardento, minha filha entrou no quarto.
— Papai, tem um monstro embaixo da minha cama. — E coçou
os olhos. Fazia menos de vinte minutos que eu a colocara para
dormir e ali estava ela, em pé e choramingando.
— Venha até aqui, meu bem. Que monstro é esse? — A peguei
no colo e a sentei na minha perna.
— Eu não sei.
— Quer ir lá comigo espantar ele? — Ofertou Maisie.
Ela negou com a cabeça.
— Sabe de uma coisa, Luli? Você é uma menina corajosa e
meninas corajosas não tem medo de monstros. Os monstros é que
têm medo de meninas corajosas. Aposto nesse segundo que o
monstro saiu correndo de baixo da sua cama e prometeu nunca mais
voltar. Ele disse: “Essa menina é muito durona. Ela me dá medo.”
Prendi uma risada quando Maisie fez uma voz masculina e
estranha.
— Acha que ele disse isso? — Perguntou Luli a ela. Eu me
tornei só um telespectador das duas.
— Eu tenho certeza que ele disse isso. Se formos lá no seu
quarto e olhar, encontraremos até xixi desse monstro covarde. Quer
ir lá comigo conferir?
Dessa vez minha filha concordou.
— Ótimo. Venha. — Maisie se levantou e eu entreguei Luiza
para ela. Agora ela tinha meu coração, minha alma e minha filha.
As segui sem me envolver.
O quarto de Luli ficava quase que de frente para o meu. Tudo o
que fiz, foi acender a luz para elas.
— Está pronta? — Maisie a colocou no chão.
— Sim.
As duas foram de mãos dadas e se ajoelharam para olharem
debaixo da cama de edredom lilás.
— Viu só? Nenhum monstro aqui — anunciou Maisie.
— Não tem xixi! — Resmungou Luli, como quem não suporta ser
enganada.
Maisie gesticulou com a mão para mim, sem me olhar, e eu
entendi que precisava agir.
Corri no banheiro e com as mãos em formato de concha, peguei
água e joguei no pé da cama.
— Como não? Aqui está o xixi — disse Maisie, uns minutinhos
depois, apontando para a farsa que eu acabara de criar.
Foi impagável a cara de surpresa da minha filha naquele
momento. Vendo toda aquela inocência diante de mim, me perguntei
como um dia alguém pode recusá-la.
— PAPAI, O MONSTRO FEZ XIXI NA ROUPA. — Os olhos de
azeitona pareciam em choque.
— Claro que fez. Ele foi embora tremendo de medo de você. —
Passei a mão por sua cabeça e senti os fios grossos que
começavam a crescer. — Que orgulho da minha menina valente.
— Somos tão sortudos por termos uma guerreira nessa casa.
Agora finalmente podemos dormir tranquilos — acrescentou Maisie
em um cruzar de braços. Ela fazia caras e bocas tão bem, que até eu
estava acreditando nela.
— Acha que conseguirá dormir agora? — Me agachei e
perguntei para Luiza.
— Sim.
A peguei no colo e a carreguei até sua cama para um beijo de
boa-noite.
— Tenha bons sonhos, meu bem.
A cobri, enfiando o edredom por baixo do seu corpo, como um
casulo, que era como ela gostava. Dizia que dessa forma os
monstros não conseguiriam puxar seus pés. Apaguei a luz e quando
Maisie e eu já estávamos a um passo de sair, Luiza disse:
— Você também é uma guerreira.
E os olhos de Maisie marejaram instantaneamente. Trocaram
olhares e alguns sorrisos, e então Maisie a respondeu:
— Um guerreiro só se torna guerreiro a partir de um motivo para
lutar. E você foi o melhor motivo que o Universo me deu.
Assisti, sem conseguir me mexer por um instante, e meu
coração naufragou.
Tudo que costumava ser meu, se tornara daquela mulher.
Luiza era meu céu noturno e Maisie trouxera as estrelas que
ambos precisávamos.
Damon cumpriu o que prometera, o delegado foi obrigado a
abandonar seu posto. Eu não soube o que foi feito para que isso
acontecesse e não me importava. Michel era péssimo no que fazia e
eu sabia que não fora por mérito que ele alcançara aquele cargo.
Eu voltei a trabalhar como policial na Escócia e consegui
inventar boas desculpas para minha colega Stephie. Ela me rodeou
de perguntas nos primeiros três dias, depois, voltamos a ser o que
éramos e ela até aceitou bem meu relacionamento com uma ladra.
— Como você é estúpido, Charlie! — Resmungou Maisie. Ela
estava lendo as cartas que eu e seus amigos trocamos enquanto ela
esteve em coma.
— Eu só queria garantir que você fosse bem cuidada por esse
sujeito — ele retrucou, olhando para mim.
— Melhor impossível — Maisie se inclinou e me deu um selinho.
— Eu amo você.
— Não mais que eu a amo — murmurei de volta.
E todos que ouviram, nos olharam com os mesmos olhos ternos
e suspiros apaixonados.
— Não tem cerveja nessa geladeira, não? — Gritou Gael, lá da
cozinha.
— Não bebo durante a semana, lamento, rapazes. — Gritei de
volta.
— Se tornou um policial certinho agora? — Perguntou cacau.
Ela e a esposa tinham ido lá para finalmente conhecer Maisie. Eu
não pretendia ter minha casa lotada em plena terça-feira, mas depois
de Maisie e eu termos enviado os convites de casamento, a
campainha não parou de tocar. Até Kate e Hamish descobriram
nosso endereço.
— Você pede uma ladra em casamento e seu crime é beber
uma cerveja com os amigos no meio da semana? — Ironizou Jailson,
levando todos a gargalhar.
— Isso já é um crime bastante considerável, não? — O
respondi.
— E tem punição maior para Maisie que passar o resto da vida
ao lado dele? — Brincou cacau e eu lancei uma almofada nela.
— Diabólica!
— Papai, papai! — Minha filha entrou correndo na sala —
Chegou um presente.
Peguei a caixinha da mão de Luiza e desfiz o laço vermelho.
Havia um ursinho de pelúcia dentro e Luli não perdeu tempo ao
pegá-lo para brincar. No fundo da caixa, tinha um envelope preto,
antes mesmo de ler o remetente, eu já sabia a quem pertencia.
“Meu grande amigo Alastor, escrevo para dizer que recebi seu
convite de casamento e estou lisonjeado por ser o padrinho.
Lamento não poder estar aí para parabenizá-los e festejar do modo
como sei. Mas, recebi uma visita indesejada que está me causando
fios brancos. Assim que eu conseguir me livrar desse empecilho,
embarcarei o mais breve possível para felicitar você e a cabelo de
fogo como merecem.
Na última carta você me disse que já voltou a trabalhar aí na
Escócia, isso me deixa extremamente feliz, significa que esses
gregos inúteis sabem como fazer o trabalho. Mas, por favor, por que
maldição você me pagou pelo serviço? Isso é o meu presente de
casamento para você. O de Maisie...bem, infelizmente não consigo
mandar meu pau por carta, mas diga a ela que eu a espero sedento.
Brincadeiras à parte, por favor, pare de amassar o papel e nunca
mais repita que irá me lançar pela janela para ver se eu crio asas (sei
que foi exatamente isso que pensou agora).
Enfim, dê um grande beijo na corvinha por mim e diga a todos
que estou com saudades.
Quero dizer, diga nada. Não os faça pensar que sou uma
marica.
Exceto para Luli, essa pode saber como eu a amo.
Nos veremos muito em breve.
Respeitosamente,
O corvo das ilhas gregas.”
Eu sabia que teria um grande problema com a partida de
Alastor. Os membros da Sociedade não aceitariam facilmente, não
depois de serem feitos de tolos. Mas, eu daria um jeito nisso, não
permitiria que aqueles gregos filhos da puta interferissem na
felicidade dos meus amigos.
— Ele usou o nosso dinheiro e foi embora!? — Questionou um
deles, batendo os punhos da mesa.
É, eu tô fodido.
— Todo dinheiro será devolvido. — Menti. — Vocês não têm
com o que se preocupar. Eu resolverei tudo.
Os burburinhos, reclamações, advertências, não cessaram.
Então vi que o único modo de tranquilizar aquele bando de
criminosos, seria dando ordens. Érebos era uma Sociedade
aclamada, apesar de secreta, éramos conhecidos pela classe alta.
Quando os ricos tinham algum problema, era a nós que recorriam.
Mas, desde a morte dos antigos líderes não aceitamos mais nenhum
serviço, então a caixa de mensagem estava farta. Alguns clientes
questionavam quem seria o novo líder, outros pouco se importavam,
só queriam que seus problemas fossem solucionados. Então não tive
que pensar muito, apenas separei os pedidos e dei a cada grupo de
criminosos uma missão.
Se os clientes queriam alguém para traficar drogas por eles, eles
teriam.
Se a esposa do primeiro ministro foi pega o traindo, ela pagaria
por isso.
Não havia nada que não fizéssemos.
A reunião foi encerrada de modo bem mais harmônico que
começara. Mas eu continuei na sala, sentado com meu copo de
uísque na mão e uma dor de cabeça que não cessava.
Duas batidas à porta e meu sossegou foi ao fim.
— Entre — falei.
A empregada entrou com uma cor pálida no rosto. Eu nunca a
vira tão assustada.
— O que foi dona Galanis? — Larguei meu copo na mesa e me
levantei.
— Senhor Damon, um senhor exige falar com você. Eu tentei
dizer que o senhor está ocupado, mas ele insistiu e...
— Está tudo bem. Onde esse homem está?
— Na sala.
A deixei e fui me encontrar com a visita importuna. O som dos
meus sapatos atraiu sua atenção para mim. O indiano não me
recebeu com seu famoso Namastê, mas ao menos tirou os sapatos
ao entrar.
— Seu desgraçado. Seu maldito. — O homem pardo de roupa
colorida e cheia de decoração continuou: — Eu devia matá-lo bem
agora!
Demorei a saber quem era aquele cão rosnando na minha sala,
até ver uma coisinha encolhida no canto do sofá. Eu me lembrava
daquela menina, eu a desvirginei no dia do seu casamento e acabei
com seus planos de uma família feliz. Eu não era todo culpado, não
a forcei, mas, tampouco a impedi de se entregar para mim.
Seu pai foi até ela e puxou pelo braço, foi quando vi que havia
machucados em seu rosto. A indiana estava suja, ferida, e mais que
isso, assustada.
— Você a comprará! — O indiano gritou.
— Como disse?
— Você a desonrou, agora deve pagar por isso.
— Estava leiloando a virgindade da sua filha? — O questionei,
avançando um passo.
Ele nem ao menos se envergonhou ao responder:
— Não se meta nos meus negócios que eu não me meterei nos
seus!
Ele empurrou a garota para mim e eu a segurei para que não
batesse seu rosto em meu ombro. Foi quando olhei para ela que
notei seu desespero.
— Ela não me serve de mais nada, mas, se não pagar pelo que
você fez, farei com que se arrependa de ter atrapalhado meus
negócios — ele acrescentou.
Eu não estava à vontade com aquela situação, mas de longe se
via que a Indiana estava dez vezes pior que eu.
— Não me importa o preço, eu a compro.
Table of Contents
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Capítulo 92
Capítulo 93
Capítulo 94
Capítulo 95
Capítulo 96
Capítulo 97
Capítulo 98
Capítulo 99
Capítulo 100
Capítulo 101
Capítulo 102
Capítulo 103
Capítulo 104
Capítulo 105
Capítulo 106
Capítulo Final
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