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CHRISTINY
Eu não sabia que havia caído no sono até acordar. Já era noite.
Meus braços estavam doloridos por ficarem tantas horas na mesma
posição. Além do desconforto físico, a fome também era motivo de
me deixar irritada. A fome sempre me deixava irritada.
— Maisie? — chamou. — Tá acordada?
— Sim — balbuciei, confusa. — E o nosso plano? Quando o
colocaremos em prática? — A voz saiu diluída.
Nick virou o rosto dele. Ficamos tão próximos, que eu até pude
sentir seu hálito quente acariciar meu rosto de forma terna. Parecia
uma pluma a me alisar.
— Eu já te disse para ficar fora disso.
— Estamos amarrados um ao outro. Não seja idiota. Você não
conseguirá fazer isso sem a minha ajuda — rebati, em um
chacoalhar do barco. Minha voz estava especialmente seca naquele
momento.
— Por que está tão zangada, chick (garota)? — perguntou ele,
em um sorriso audível.
— Por que estou com fome. Não há nada que mexa mais com o
meu humor que a fome.
— Ah, que sorte a minha em ficar amarrado à uma onça com
fome — zombou, mas sem deixar transparecer que zombava. Nick
tinha uma capacidade admirável de ser debochado e sério ao
mesmo tempo. — Ouça, se vamos fazer isso — fez uma pausa para
avaliar o local —, precisa ser agora.
Demorei alguns minutos para compreender que Nick se referia
ao plano de se desfazer da mala de joias. Quando olhei para Iolanda
e a vi absorta de nós, entendi o porquê ele dissera que aquele era o
momento. Os sequestradores pareciam muito entretidos com algo
que Iolanda segurava. Era um mapa? Forcei a vista para enxergar
com mais clareza, ainda que a noite não estivesse tão estrelada, era
possível me guiar apenas com a iluminação da Lua.
— Você tem certeza de que quer fazer isso comigo, Maisie?
A vontade em dizer “não” me pareceu muito tentadora, mas eu
era uma escocesa e os escoceses nunca, nunca recusavam um
desafio.
— Apenas me erga, Nicholas Coleman, e eu lhe mostrarei como
eu sou quando estou em ação.
Não era preciso ter muita experiência, mas, erguer uma mulher
em minhas costas com um barco em movimento, as mãos
amarradas e com bandidos com armas em punhos... Ah,
definitivamente, eu não estava preparado para aquele dia. Contudo,
se eu não tentasse coisa alguma, iria para a Grécia com Maisie.
— Nick? O que está esperando? — Acelerou-me em um
cochicho.
— Espero pela oportunidade certa — falei, por fim.
— Suas mãos estão suando — reparou, em um entrelaçar de
dedos.
Seus dedos trespassando os meus estava longe de ser erótico,
mas a minha mente ardilosa se excitou com o movimento
escorregadio e me lançou lembranças do corpo sardento e nu em
meu quarto. Do seio pequeno em minha mão. Do beijo molhado e
ardente. E lembrei de todas as coisas que não fiz, mas que pensei
em fazer.
— São as reações do meu corpo me alertando que estou
prestes a cometer uma burrada. — A respondi, me esquivando o
máximo possível da realidade.
Esperei até que o amigo de Iolanda, que conversava com o
rapaz surdo, o deixasse sozinho. Como era ele quem estava
resguardando a mala que eu pretendia roubar, tive de esperar que
ele me desse as costas. Mesmo que todos os outros estivessem
entretidos do outro lado do barco, era mortal tentar algo com o surdo
nos observando.
Assim que ele me desse as costas, eu agiria.
— Prepare-se para se levantar comigo — alertei a ruiva.
Ela assentiu.
— Agora — ordenei.
Assim que o sujeito fez menção de se virar, Maisie e eu
tentamos nos erguer. Um usando o outro de apoio. O fato de eu ser
muito mais pesado que ela — como comparar o peso de um cavalo e
o de um coelho — dificultou bastante o processo.
— Use algo para empurrar com o pé — aconselhei. — Deve
haver algum pilar de madeira a seu alcance.
Ela arfou, cansada, na segunda tentativa fracassada. A maré
aumentava, quanto mais avante.
— Sim, há uma aqui. Mas não sei se...— E respirou fundo. —
Tudo bem, vamos tentar de novo.
— No três, ok? — Esperei ela confirmar com a cabeça para
iniciar a contagem. — Um, dois. Agora.
Depois de algumas tentativas frustradas, finalmente
conseguimos ficar de pé.
A caminhada foi ainda pior que tentar se levantar.
— Na minha cabeça, isso era mais fácil e menos doloroso —
comentei, levando uma pisadela no meu tendão de Aquiles
esquerdo.
— Doloroso? — questionou, inocente, pisando pela segunda vez
em mim.
— Sim. Suspeito que não chegarei ao objetivo com todos os
membros em meu corpo. Ande direito!
— Ah, me perdoe se não estou acostumada a andar de costas
amarrada há outro ser humano! — replicou. Ela sempre tinha, entre
os lábios, uma resposta para se dizer. — Pare de queixar-se e preste
atenção para aonde está nos levando.
— Estamos quase lá. Os outros ainda estão atentos ao mapa?
— perguntei, já que eu estava de costas para eles.
— Sim, mas não será por muito tempo. O que...por que raios
parou?
O homem surdo e eu nos encaramos em uma troca de olhares
embaraçosa. Não era para ele ter se virado tão rapidamente. Faltava
menos de três passos para Maisie e eu alcançarmos a mala. Eu teria
que lidar com ele, era a nossa única chance. O sujeito foi com a mão
no revólver e se preparou para sacá-lo.
— Maisie, acha que me aguenta? — inquiri, com urgência.
— Se eu te...Ahhhh... — Ela ganiu quando soltei meu peso em
suas costas, a usando de apoio para empurrar o homem com os dois
pés para fora do barco. Foi uma jogada arriscada e dolorosa para a
ruiva, ela poderia não suportar o peso e levar nós dois para o chão,
mas Maisie e suas pernas finas se saíram muito bem.
— Nunca. — Respirou ofegante. — Nunca mais faça isso, está
me ouvindo? Estou com as pernas bambas!
Não tive tempo de respondê-la. Àquela altura os outros já
estavam cientes do que fizemos.
— Estão vindo...Nick, estão vindo até nós — alertou-me. Eu
pude sentir o tremor percorrer por seu corpo.
A ergui em minhas costas com toda minha força, e a virei. Era
hora de trocarmos de posição. Agora eu podia ver os bandidos
agindo. Um dos homens de Iolanda correu em direção à uma boia e
a lançou no mar para o outro que eu impiedosamente empurrei para
fora do barco. A garota, uma loira de aproximadamente 1,60 de
altura, sacou sua pistola e a mirou em mim, parecia estar
aguardando a ordem da chefe, Iolanda.
Chefe. Pensei com ironia.
Eu teria que lidar com a situação. Tentei precisar quanto tempo a
ruiva e eu teríamos até que Iolanda desse a ordem do disparo. Eu
poderia me render naquele instante, colocar Maisie e eu de joelhos,
só que já estava tudo fodido. Era tarde demais para qualquer
rendição. Eu sabia como criminosos pensavam, e Iolanda fora muito
específica quando disse que se Maisie e eu tentássemos algo, ela
mataria um de nós.
— É agora — murmurei para Maisie. — CORRE!
Foi tudo muito rápido, desde nos aproximarmos da mala e eu
erguer Maisie para que ela a pegasse com os pés e a jogasse ao
mar. Eu só soube que a tática funcionou, porque Iolanda gritou à
plenos pulmões e também porque um disparo foi dado em direção ao
céu.
A próxima casa daquela bala será na minha cabeça.
— Vocês dois — começou Iolanda, dando um passo por vez —
morrerão. Nessa noite e aqui. Mas não será com um tiro
misericordioso. Eu abrirei a barriga de vocês e arrancarei cada órgão
para alimentar os peixes.
Maisie segurou em minhas mãos e rastejamos um pelas veias
do outro; naquele momento o medo era a única coisa que
compartilhávamos.
Iolanda chegou muito perto de mim e algo metálico surgiu em
sua mão. Uma faca, afiada, e que em um piscar de olhos foi parar
em minha barriga. Mas Iolanda não a penetrou fundo em minha
carne, apenas a encostou e pressionou a ponta para um corte
pequeno na região do meu pâncreas. Eu não senti dor, ainda que
devesse. Graças ao meu pai, antes dos meus doze anos, eu já tinha
enfrentado sofrimento pior.
Os olhos de Iolanda mergulharam fundo nos meus. À essa
altura, meu sangue já coloria sua lâmina. E Iolanda certamente
esperava que um ganido permeasse de meus lábios. Eu não lhe
daria esse gosto.
— Qual dos dois buscará minhas joias? — Ela questionou e deu
uma leve torcida na faca.
Apertei meus lábios.
— Você não achou que eu mandaria um dos meus entrar nessa
água fria por um erro de vocês, achou, seu policial?
Claro que achei. Não contava com Iolanda sendo piedosa com
seus cães.
— É impossível recuperar as joias à essa altura — eu disse.
— Então alguém morrerá tentando — respondeu e puxou a faca.
— A questão é: qual dos dois?
Todo esforço foi em vão. Era um bom plano, só não contávamos
com Iolanda ser esperta. Se fosse algum outro criminoso, já teria
saltado no mar para salvar as joias. Mas não aquela criminosa.
Aquela criminosa era calculista, manipuladora, e, acima de tudo,
calma. Ela sabia mover as peças do tabuleiro sem tomar xeque-
mate. E naquele momento, as peças do tabuleiro eram Nick e eu. Ela
ia jogar com a gente. Claro que ia.
— Tudo bem. Se nenhum dos dois se oferece para ir, eu
escolherei — ela acrescentou após um tempo. — Você sabe nadar,
bonequinha ruiva?
Olhei para o horizonte e não vi nada devido a escuridão.
— Ela não irá! — A resposta de Nick foi mais rápida que a minha
e muito mais áspera.
— Claro que irá. Eu já tomei a minha decisão. — Iolanda veio ao
meu encontro com um passo cadenciado e sorriu com seus dentes
monstruosos. — É simples, ruivinha. Você mergulha, pega minha
mala e pronto.
— É impossível encontrar algo dentro do mar nessa escuridão
— falei. Foi um milagre minha voz não ter falhado. O oceano, àquela
noite, era como um quarto escuro onde os meninos tinham medo de
ir.
— Não tenho pressa. Você pode procurar até o nascer do sol —
respondeu, bem serena. Era visível seu divertimento.
— Tudo bem — respondi, por fim. Não era parte de mim ser tão
covarde. — Me desamarre.
— Ah, eu ia me esquecendo desse detalhe. — Sua cabeça
pendeu para o lado e ela acrescentou em um cruzar de braços. Sua
maldade se desvelando aos poucos. — Você fará isso amarrada.
— O quê? — bradei, com um horror perseverante. — Se quer
me matar, mate de uma vez!
E outra vez ela jogou seu veneno.
— Ouça, bonequinha ruiva. Eu não sairei daqui sem minhas
joias. Ou você faz isso, ou eu cumpro minha promessa em...
Inspirei e expirei. Era minha culpa Iolanda ter nos raptado. Eu
era a causadora de tudo aquilo. Se eu não tivesse a roubado Nick
não estaria em perigo. Ele estaria agora com sua filha. Nada era
mais triste, trágico e profundo.
— Eu irei — eu disse, tenaz, quando na verdade, estava usando
a forca em meu pescoço como se ela fosse um colar, pois eu não
queria demonstrar meu medo, apesar de meus membros estarem
congelados e eu sentir como se meus pés estivessem pisando em
cacos de vidro.
— Não. Não irá! — Declarou Nick, com um espantoso ímpeto, e
largou minhas mãos. Me senti solitária. — Quer culpar alguém pelos
colares? Culpe a mim. Se quiser usar essa faca em meu corpo, que
use. Apenas a deixe fora disso!
Meu coração saltou dez batidas ao mesmo tempo. Aquelas
palavras me rasgaram em pedaços. O meu disfarce se despedaçou.
Provei a sensação das lágrimas salgadas na minha bochecha. Eu
amava e odiava a forma como ele demonstrava se importar comigo.
Odiava o fato dele dizer não me querer quando estava claro que meu
nome era tudo o que se passava na sua mente.
Meus cabelos se soltaram à brisa do vento que ganhava força a
cada hora, levantando furiosas ondas e dando um balanço ao barco.
— As ordens sou eu quem dou, seu policial. Você não querer
que eu fira a ruiva, só me faz ter mais vontade ainda em fazê-lo.
Estou brincando com o coração dos dois e ao mesmo tempo. — Ela
soou como algo semelhante à um monstro. E deu a ordem à um de
seus amigos: — Tragam uma corda para eu amarrá-la longe dele.
Nicholas se agitou. Minha boca seca fazia parecer que eu
comera areia a noite toda e meus olhos queimavam como se eu
chorasse puro sal.
— Iolanda... — Ele tentou atrair a atenção da mulher que se
preparava para passar a faca na corda que nos unia. — Alastor.
A criminosa cessou o movimento de vai e vem da lâmina afiada.
— O que disse? — ela indagou.
—Alastor — Nick repetiu. — Você me ouviu bem!
Ala... quem?
Iolanda agiu como se tivesse perdido seu ponto de equilíbrio e
eu podia jurar que ficou boquiaberta. A mulher agora não passava de
um vão na penumbra.
— Não pode ser... Isso é... é impossível. — Ela disse, então. Na
voz, um visível traço de pânico.
— Solte-me agora mesmo! — Ordenou Nicholas, com uma
espessa fúria e eu imaginei um lajedo frio em seus olhos. Os
mesmos olhar que para mim tinha seu selo de coisa inesquecível.
— Você é... é um policial. — Ela o lembrou.
Que raios está acontecendo aqui?
— Eu mandei me soltar! — O fez pela segunda vez.
Por que ela o obedeceria? SOMOS SEUS REFÉNS!
Só que aconteceu. Pelos deuses, Iolanda nos soltou. Quer dizer,
ela soltou Nicholas, mas, por estarmos juntos na mesma corda, em
consequência, fui libertada também.
Me virei de imediato e a tempo de ver Nicholas agarrar o
pescoço da mulher e prensá-la contra a pilastra. Eu, como todos os
outros, apenas observei. Perdida, era um espaço que eu nunca
esperei ocupar, mas lá estava eu; tão esquecida quanto as paredes.
— Nick? — O chamei, alheia em tudo. Eu sabia que ele não me
responderia. Ele estava completamente fora de si.
— Ordene que seus cães baixem as armas! — Ele grunhiu para
ela. — Você sabe quem sou e sabe como adoro torcer o pescoço
daqueles que me desafiam.
Quem sou...? Quem sou? O que quer dizer? Nicholas Coleman.
Você é Nicholas Coleman.
Me tremi inteira, reentrando diversas vezes no mesmo vazio de
seus olhos, porque agora eu estava de frente para ele e não era
capaz de dizer se aquela havia sido uma boa ideia. Tentei manter
aceso o fogo da consciência: ele era doce e gentil.
— Baixem as armas. AGORA! — Ordenou Iolanda, à meio fio de
voz.
— Mas... — Tentou dizer um dos rapazes. O outro, ensopado,
apenas observava tudo com olhos tão arregalados quanto eu.
— EU MANDEI BAIXAR AS ARMAS! — Iolanda se esforçou
para ser mais clara e autoritária da segunda vez. Eles obedeceram.
— Maisie — pulei ao ouvir meu nome soar com a voz de Nick
—, traga as armas para mim.
Não consegui agir. Ele virou o rosto e me encarou com olhos
vagos que pairavam de mim, além. Àquele ponto, não havia mais
ossos em meu corpo para se quebrar, mas Nick conseguiu.
— Maisie — farfalhou macio dessa vez. As ondas acenavam em
seus olhos —, eu preciso de você.
— Precisa de mim? — questionei, arrepiada. — Mas quem
diabos é você?
Não era para ter acontecido daquela forma. Eu fui obrigado a me
revelar para reverter aquela situação irremediável e triste. Pelo amor
de Deus, Maisie me cravou olhos que só se cravam na pior espécie
de assassino. Não que existisse tipos bons de assassinos, mas eu
também não me enquadrava nos piores.
Ela estava ali, plantada de imobilidade absorta. Estranhamente
quieta, murcha, resignada. Olhos agudos numa tristeza que me
corroeu, que abortou a minha coragem. Que me consumiu de víscera
a víscera.
Como eu poderia mudar aquele olhar julgador sendo que ela
ainda não sabia nem 1% de tudo que já fiz? Que tive que fazer. Ela
não era capaz de imaginar os tipos de segredos que eu abrigava na
minha mente. Que em meu cérebro existia um descomunal jazigo
onde havia vermes aos mil.
— Então a bonequinha ruiva não sabe quem você é de
verdade? — Iolanda provocou, com o pescoço entre meus cinco
dedos, alcançando novas proporções de sua mortalidade. — Não
sabe o segredo que ambos partilhamos?
Os verdes de Maisie ficaram raiados de preto, como uma estrela
fossilizada.
— Que segredo? — Ela questionou. O fruto infeliz da sua
curiosidade a fez ignorar que Iolanda há poucos minutos estava
prestes a matá-la.
— A ignore, garota, depois eu explicarei tudo a você. Eu
prometo! — Garanti, mas era mentira. Eu nunca teria coragem de lhe
contar tudo o que Alastor fez. Foram tantas coisas que nem cabiam
dentro de mim. Mas eu não me esqueceria jamais daqueles dias de
tormento, sob a pressão de um inverno rigoroso; a razão de Alastor
ter nascido.
Ela me olhou da mesma forma que alguém olha uma lagarta
devorar uma maçã.
— Maisie, eu preciso de você — acrescentei, agoniado com
aquela incomensurável distância de meio metro que me impedia de
tocá-la para arrancá-la daquele transe que entrara. Cada átomo da
minha carne queria senti-la. Mas eu não podia. Não enquanto havia
uma mulher cujo pescoço eu desejava enforcar sob minha mão.
Ela finalmente reagiu. Recolheu as armas do chão, cerca de
quatro, mas me entregou apenas três.
— Amarre-a — ordenou, mirando em mim a pistola que ela fez
questão de não me entregar.
— O que está fazendo!?
Em resposta, ela chutou uma corda em minha direção.
— Mandei amarrá-la! — repetiu e disse para os outros três, sem
desviar de mim sua face fria: — Vocês, para a cabine!
— Obedeçam-na — acrescentou Iolanda, feito um bicho atento,
ao perceber que os três não se moveram após a ordem da ruiva.
Assim que eles se foram, Maisie seguiu em direção à cabine e a
trancou.
— Maisie...
— Eu não me importo com quem você seja, se não acatar minha
ordem, eu darei o disparo — me interrompeu. Sem escolha, eu a
obedeci. Amarrei Iolanda na pilastra com um nó bem apertado e me
voltei para a ruiva que, naquele momento, eu não reconheci. Ela já
não era quem foi naquela manhã.
Nos dirigimos até a proa do barco sem que nenhum de nós
falasse. Ela já não me apontava sua arma, no entanto, continuava
intocada e sem aparentar querer trégua.
— Eu posso explicar — falei, o busto inteiriçado.
— Quem é você? — questionou, voraz, sem rodeio.
— Nicholas Coleman — afirmei.
— E Ala... — Ela aparentou dificuldade em repetir o nome.
— Alastor? — A ajudei.
Assentiu.
— Quem é?
Engoli em seco e examinei serenamente o meu problema.
— Eu — fui objetivo. Eu responderia qualquer coisa que ela me
perguntasse, mas de forma alguma lhe daria informações por
vontade própria. O que eu pudesse esconder de Maisie, eu
esconderia.
Ela arqueou a sobrancelha e, para minha tragédia, também foi
objetiva em sua pergunta.
— E o que Alastor fez?
— Essa é uma pergunta tão vasta quanto uma música —
desconversei. — Pode largar essa arma, por favor?
— Responda minha pergunta, Nicholas Coleman! — exigiu e
ignorou o meu pedido.
Suspirei. Eu podia facilmente desarmá-la, tinha oportunidade e
destreza para fazê-lo, mas sabia que isso só me deixaria em
desvantagem com a ruiva.
— Alastor é meu codinome. Eu o uso para executar — fechei os
olhos, não podia encará-la — meus crimes.
— Seus...seus crimes? — balbuciou, notei a ênfase. Foi tão
baixo que o vento sobressaiu sua voz. — Você não é um policial?
Tornei a fitá-la.
— Sou.
— Seja claro! — Foi autoritária e impaciente. Eu não teria
escapatória, Maisie não era o tipo de garota que eu conseguiria
enrolar.
— Alastor é um apelido que me deram na Grécia. Digamos que
eu não fui um bom hóspede quando estive por lá. Eu fiz coisas que
um policial não deveria fazer — fui específico, pois sabia que ela
faria a pergunta: — Eu roubei e matei.
Ela cambaleou para trás, como se o vento a tivesse empurrado
e se segurou no barco.
— Ifrinn (inferno). Por que você faria algo assim?
— Tive meus motivos.
— Isso não me consola — falou.
— Não estou tentando consolá-la — rebati.
— Essa é a verdadeira razão de você não querer ir à Grécia?
Medo de ser reconhecido? — inquiriu em um timbre acusatório.
— Ninguém conhece meu rosto, se é isso que quer saber. Bem,
ninguém vivo. Apenas você e aqueles quatros — indiquei com a
cabeça para Iolanda e os outros na cabine.
— O que fará comigo? — Sua voz tremeu. — Eu quero voltar!
— Não posso levá-la de volta — falei.
— Então eu voltarei nadando! — ameaçou e fez que ia pular do
barco. A agarrei por trás a tempo. Ela se debateu em meus braços e
foi obrigada a largar sua arma.
— Controle essa cauda, sereia. Nós ainda temos muito o que
conversar.
Se ontem me dissessem que um dia eu odiaria ser carregada
pelos braços de Nicholas Coleman, eu acusaria essa pessoa de
desajuizada. Mas, naquele instante em que Nick, ou Alastor, me
carregava em seu ombro, eu o odiei. Eu fiquei furiosa. Eu quis
mordê-lo e arrancar pedaço.
Ele mentira para mim durante todo aquele tempo, me acusara
de ladra enquanto ele não passava de um impostor, de um
assassino.
Pelos deuses. ASSASSINO!
— Me coloque no chão agora mesmo! — exigi, socando suas
costas com força.
— Não — disse, apenas. Após alguns minutos, acrescentou: —
Não permitirei que dê uma de peixe e vá embora nadando. Você é
mesmo doida a esse ponto?
— Ao menos na água eu tenho alguma chance de vida — rebati
em um ranger de dentes.
— Eu não irei machucá-la.
— É isso que diz para todas suas vítimas antes de enfiar uma
faca no peito delas?
Ele me colocou no chão e começou a amarrar minhas mãos. Ele
estava me amarrando. ME AMARRANDO!
— O que está fazendo? Me solte. — Me sacudi, e dificultei de
todas as formas o nó que ele inutilmente tentava dar em meus
pulsos.
— Ficará amarrada até eu terminar de me explicar. É para sua
segurança.
Me empurrei com os calcanhares para o mais distante possível
dele e assim que consegui ficar de pé, corri para a proa. Julguei ouvir
Iolanda rir ao se deparar com a cena, só que podia ser um engano,
eu estava nervosa demais para ter certeza.
— Maisie! — Nicholas me chamou e advertiu: — Não faça isso.
Você vai se afogar!
Coloquei uma perna para fora do barco. Projetei o pescoço para
frente, afim de avaliar a situação do mar. Foram poucas vezes em
que estive no mar de noite, a escuridão era de asfixiar. Eu não tinha
muita certeza se valia a pena encarar o risco da maré alta. No
entanto, eu sempre me dei melhor com a natureza que com os
homens.
— Você pode morrer. Desça já daí! — disse, feito o latido de um
cão e me perseguiu até o limite do barco. Um passo por vez. — Não
irei machucar você. Eu prometo. Isso nunca nem passou por minha
cabeça.
Meu coração deu alguns pulos na brevidade de um instante
cruel. Um silêncio hostil nos rodeou. Apenas um sussurro brando do
vento.
Ah, coração tolo! Inocente. Estúpido. Juvenil.
— Você matou pessoas — disse solene e majestática, mesmo
que com medo.
O pé fora do barco parecia bobo. O outro, firme no chão nas
madeiras que estalavam.
— Não eram inocentes — disse de súbito. Olhos incrédulos e
astuciosos. — Eram monstros. Todos eles!
Ouvi suas pegadas frescas se aproximarem ainda mais.
— Você se enquadra perfeitamente em seu próprio comentário.
Cretino! — devolvi. A ofensa não era para ter sido ouvida, mas,
àquela altura, Nick já estava muito próximo. Até o mais baixo suspiro
seria audível para ele.
Com um sorriso mórbido, pungente, me respondeu:
— Tem todo direito de me ofender. Eu sou um mentiroso, um
grande filho da puta. Mas se você saltar desse barco, eu irei atrás de
você, mesmo se levar dois tiros em cada perna, mesmo sem ser um
bom nadador, eu irei atrás de você. Então saiba que se resolver
encarar a maré alta, não será apenas sua vida que colocará em
perigo — declarou sem piscar. Com reflexos de uma sinceridade
desenhada à giz, e eu acreditei...por um segundo.
Engoli em seco e, entre um floco de cabelos osculado pelo
vento, devolvi:
— Por que não me deixa ir? Eu não direi nada a ninguém —
garanti em um murmúrio. Não sabia bem em que momento minhas
tranças se soltaram e eu fiquei tão descabelada, que fazia parecer
que passei a tarde toda em frente a um tornado.
— Apenas me ouça. Por favor, Maisie. — O olhar liberto
penetrou o meu.
— Faça isso sem me amarrar. Sem tocar em mim! — Acabei lhe
dando uma trégua impensada.
Ele concordou com um balançar de cabeça, mas não disse
nada. Uma sílaba sequer.
— E então?
— Eu não quero que ela nos ouça. — Se referiu a Iolanda, que
nos olhava como se assistisse uma novela.
— Será difícil isso acontecer em um barco tão pequeno —
atentei, de modo rude. O suor da inquietação me escorrendo pelas
costas.
— Eu não sei porque estou amarrada se agora somos aliados,
Alastor. — Iolanda gritou para ser ouvida claramente. Ela estava
adorando jogar álcool na fogueira. Claro que sim.
— CALE A BOCA. — Nicholas gritou para ela.
— Por que ela o soltou? — resolvi perguntar.
Ele me fitou de soslaio.
— Por que todos que me ajudam ganham minha gratidão e há
boatos de que eu sei muito bem recompensar.
— Dinheiro? — perguntei, inocente.
— Favores. — Uma expressão tristonha dominou sua face.
— Ele mata — esclareceu Iolanda.
— Sim, eu mato. E é o que farei com você se continuar se
intrometendo. — Nicholas a respondeu. — Maisie, desça daí.
Esqueça por um momento o que ouviu sobre Alastor. Eu ainda sou
Nicholas Coleman.
— Escute, bonequinha ruiva, você já está muito envolvida nessa
merda. Ou você entra em um acordo com ele ou eu terei que ser
dura com você. Tudo o que não farei, será levá-la de volta para casa.
Vocês dois acabaram com meus planos, espero que saibam me
pedir perdão.
— Você está amarrada, não pode me impor nada! — retruquei.
— Não. Não estou — ela disse e ergueu as duas mãos, me
deixando desolada. — Eu sempre ando com um canivete no bolso,
tolinha.
Nick se virou para ela. E não me pareceu nenhum pouco
surpreso por vê-la livre.
— Eu não a ajudarei — falei para ela.
— Então terei que matá-la. — Respondeu. Usou a mais cruel
linguagem e se levantou, aproximou-se aos poucos. Havia uma arma
em suas mãos. Não vi quando a pegou.
Nicholas se colocou na minha frente e ficou entre nós duas.
— Se encostar nela eu não farei nada por você. Eu esquecerei
que poupou minha vida e me agarrarei ao fato de que você viu meu
rosto e que essa é uma boa segunda razão para eu matá-la.
— E qual seria a primeira? — Iolanda perguntou, em um timbre
sibilino e deu um distraído palpite: — Ela!?
Eu?
Eu era a única trêmula ali? A única que tinha suor em cada
dobra do corpo?
— Sim. Ela — ele confirmou. — A leve de volta e eu farei
qualquer coisa que me pedir.
Tentei olhar por cima do ombro de Nick para saber que
expressão Iolanda usava, mas ele era muito alto.
— Eu seria muito idiota se fizesse isso, Alastor. Essa
bonequinha ruiva é minha garantia de que não fará comigo e com
meus amigos o mesmo que fez a todos que viram seu lindo rosto.
Ele fechou as mãos em punhos. Mas logo relaxou.
— Me deixe falar com ela. A sós.
Eu ouvi os passos de quando ela se afastou. Não entrava na
minha cabeça a facilidade que os criminosos tinham de entrar em um
acordo logo após se atracarem. Por Odin, eu nunca confiaria em
alguém que até poucos minutos queria me matar.
— Tudo bem. Essa é a hora que peço para que confie em mim
— disse, ao se virar. — Iolanda sabe quem sou; se ela espalhar pela
Grécia que Nicholas Coleman é Alastor, o sujeito que assassinou
grandes criminosos, eu colocarei a vida da minha filha em risco. Eles
virão atrás de mim e usarão todas as minhas fraquezas para se
vingar.
— Você MENTIU para mim. Como pode me pedir para que eu
confie em você quando fingiu o tempo todo que...
Vi em seus olhos, o brilho do luar.
— Eu não fingi o tempo todo. Todas as vezes em que a beijei, eu
fui eu mesmo. Posso ter dois nomes, Maisie, mas tenho um único
coração e agora ele é seu — falou, no calor do momento.
Aquilo foi mais doído que uma ferida rasgada a navalha.
Ele é seu. Ele é seu. Essas palavras ecoaram sem cessar em
meus ouvidos. Outra vez eu estava sendo embalada no berço da
ilusão.
— Iolanda não deixará você ir embora, não com vida. Eu
conheço pessoas como ela. Confie em mim, Maisie — ele
acrescentou.
Voltei com a perna para dentro do barco e me sentei na borda.
Cair daquela altura não me assustaria, quando o tombo que levei ao
descobrir a verdadeira face de Nicholas Coleman fora muito maior.
— Eu prefiro morrer nesse imenso oceano sombrio a ajudar
pessoas como vocês. — Minha voz foi fraca, mas meu coração foi
valente.
Assim que minha frase foi concluída, eu senti um impacto no
peito. Uma dor violenta e nova. Foi como se algo estivesse me
esmagando.
Eu estava caindo feito uma folha, numa velocidade apavorante,
um silêncio desmedido, um frio que parecia o de inverno. Então fiz
um cálculo rápido durante a queda: eu levara um tiro e ele me
lançara para fora do barco.
O foco me abandonou como se tudo fosse névoa e muros. Meus
músculos pareciam cansados demais para que eu obrigasse minhas
mãos a agarrarem algo. Por mais que tentasse, já não sentia meu
coração bater.
E, como quem sabe que está morto ou prestes a morrer, fechei
os olhos e esperei o mar me engolir.
Preparei-me para morte.
Tudo parecia sossegado. Tudo o que podia se ouvir era o som
da voz de um homem, e aves - um monte delas. Ergui as pálpebras
pesadas. A claridade do sol, atravessando a janela, cuja cortinas
azuis abertas oscilavam à leve brisa do dia, pinicou meus olhos
como se fosse agulha.
Minha garganta estava seca demais para que eu conseguisse
projetar palavras e meus lábios ardiam como se estivessem
cortados. Por outro lado, os objetos à minha volta iam ganhando
foco. Tudo era branco, desde as paredes texturizadas ao cobertor
sobre meu corpo na enorme cama. Mas as cortinas, reparei mais
uma vez, eram azuis.
Obriguei a saliva descer por minha garganta.
— Á-gua. — Foram quatro letras que me custaram muita energia
e desabrocharam no ambiente, onde o silêncio afluía e se
concentrava, como um grito.
— Maisie? Finalmente você acordou. — Ele esticou os lábios no
mais diminuto sorriso e esticou a mão para pegar um copo ao lado
da cama. — Venha, eu a ajudo. — Ele passou uma mão por detrás
da minha cabeça e me ajudou a alcançar o canudinho.
O líquido escorreu feito ácido, mas me ajudou a desfazer o nó
na garganta.
Deslizei o olhar pelo seu corpo. Seu rosto tinha uma cor que não
se distinguia dos ossos, mas sua face fria parecia brilhar sempre que
me fitava.
— O que aconteceu?
Uma sombra apagou o lampejo dos seus olhos.
— A fraqueza da memória fortalece as pessoas, garota — falou
com cuidado e devolveu o copo para seu devido lugar ao lado da
cama.
— Eu quero saber. Eu...eu — levei as duas mãos às têmporas e
as pressionei com força. — Eu me lembro do tiro. — Tentei no
mesmo minuto tatear o ferimento, mas Nick segurou meu pulso.
Era o seu porte, seu olhar, seus dedos, mas não era o Nick
Coleman que eu julgava conhecer. Aquele, com os cinco dedos em
meu braço, me parecia vulnerável.
— Você precisa descansar.
— Estou aqui há quanto tempo?
Onde é aqui?
— Quatro dias.
Eu vi algo se esconder na sombra dos seus olhos.
Quatro dias. Puxei meu braço.
— Como saí da água? Eu acho que me lembro de ter caído de
costas no mar. Como...como...
Eu estava confusa. Já não sabia diferenciar o sonho da
realidade. Talvez eu não tivesse caído. Talvez...
— Eu lhe disse, garota, que se você pulasse, eu pularia —
disse, subitamente. A maestria e maciez das suas palavras aos
poucos me acalmou.
Meu corpo foi afundando no colchão como se eu estivesse
deitada em areia movediça e tivesse o peso de um chumbo. A dor
latente na minha cabeça me obrigou a fechar as pálpebras
novamente.
Eu queria continuar acordada e fazer mais perguntas a Nick,
mas dormir parecia ser inevitável. Antes que eu pegasse no sono
profundo, senti o toque cálido dos lábios dele em minha testa e suas
palavras foram claras:
— Eu os farei pagar. Ninguém mexe com a minha garota.
— O que nós vamos fazer? Por que está andando tão rápido?
Não virei o rosto para Gael ao responder:
— Estou tentando pensar.
— Não há nada para se pensar. Só precisamos fazer o que nos
foi ordenado. — A voz carregava um resto de medo e fúria.
Olhei por cima do ombro para a luz brilhante que pouco a pouco
desfalecia, entre o luar e a folhagem. O vento frio e brando, agitou
novamente as folhas em uma orquestra. O ar úmido nos preparava
para uma chuva que não tardaria.
Fechei os olhos para me concentrar no odor do ar que respirava.
— O problema será afastar Damon de Nick. Se ele souber o que
temos em mente, ele fará de tudo para nos impedir e encontrar outra
solução, mas você ouviu o que a loira disse. Não posso falhar.
Quanto mais gente souber, maiores são as chances de dar merda! —
Soei esganiçada, dando a impressão de que correntes me
sufocavam pelo pescoço.
Gael correu e barrou meu caminho com seu corpo. Eu não tive
outra alternativa que não encarar o ruivo cuja cabeça parecia se
formar uma coroa de névoa.
— Estamos juntos nessa, piuthar. Diga-me o que quer que eu
faça, e eu farei — disse, cheio de brio.
— Pra isso dar certo precisamos trair não apenas Damon.
— Alastor?
Uma ventania carregada de gotas me envolveu.
— Sim. — Foi tudo o que eu disse.
Bisbilhotando pela porta entreaberta, vi quando dois
empregados passaram correndo. Nesse instante, Damon e eu
soubemos que nosso tempo havia se esgotado. Naquele momento,
era certo que todos já sabiam da morte de Dionísio e de Tales.
— Quanto tempo levará para descobrirem que fomos nós? —
Perguntei, baixinho.
— Eu arrisco dizer que todos já desconfiam de você. O que não
sabem é que eu o ajudei. — Refletiu. — Não dou mais que dez
minutos para nós.
— Mas ainda não sabemos onde minha filha está.
— Isso é um problema, mas não podemos mais ficar aqui.
Comecei a sentir fortes palpitações. Se eu não descobrisse onde
Luli e as garotas estavam, os gregos as mataria. Eu tinha que pensar
em algo e logo.
— Além do superior e de Tales, há outro poderoso que podemos
interrogar?
— Interrogar? — Zombou. — Matar, você quis dizer. — O
repreendi com um olhar. — Até onde sei, éramos em três, como já
eliminamos dois, restou apenas eu para você interrogar.
— Você é inútil para mim. A não ser que...Você já deu uma
olhada no que há nesse pen drive?
Damon estreitou os olhos, em desconfiança.
— É só uma lista.
— Limite-se em responder a minha pergunta! — Retruquei,
impaciente. Essa era uma das razões que me fazia odiar trabalhar
em equipe.
— Disse e repito, é só uma lista com os nomes de todos que já
contrataram os serviços de Érebos e dos membros que trabalharam
para eles. Se está pensando que Dionísio deixou o endereço do
cativeiro da sua filha nesse negócio aqui, esqueça. Não pensei que
você fosse tão burro assim.
— Não é esse tipo de coisa que eu esperava encontrar. Quero,
na verdade, o endereço de um ou dois membros que trabalham aqui.
— E por que infernos iria querer isso?
— Quem está sendo burro agora? — Não pude me conter. —
Quero descobrir quais desses clientes pagaram por serviço de
sequestro e qual dos membros da Sociedade Dionísio designou para
a função.
— Descobrindo quem atua como sequestrador em Érebos, você
saberá quem foi o responsável por levar sua filha da Escócia. —
Concluiu e assoviou. — Você é menos idiota do que eu pensava,
afinal.
Mostrei os dentes para ele em uma espécie de sorriso duro.
— Suponho que você tenha um computador.
Assim que o corvo e eu demos nosso primeiro passo para fora
da biblioteca, trombamos com Gael que tinha no rosto o mais
absoluto terror. Procurei pela ruiva à sua volta.
— Onde Maisie está? — O segurei pelos cotovelos sem calcular
força.
— Precisamos conversar — sussurrou para mim e direcionou
seu olhar para Damon em seguida. — A sós.
— O que foi que aconteceu? Diga de uma vez onde Maisie está.
Se algo aconteceu com ela eu juro que você não sairá vivo dessa
ilha!
— Ela está bem — assegurou. — Eu preciso falar com você.
A entonação usada naquela palavra me fez compreender que
algo terrível estava acontecendo. Uma espécie de gelo tocou meu
coração e fez meu corpo todo tremer.
— Lá fora. Vamos conversar lá fora.
Esperei precisamente três minutos para ter certeza de que Nick
e Gael não retornariam. Assim que sumiram na penumbra da noite,
eu sai do meu esconderijo. Eu seria incapaz de descrever o quão
temerosa estava. Era péssima em orquestrar planos e aquilo tinha
que dar certo. Seria mortal se não desse.
Meu coração e meu cérebro enfrentavam a mais árdua das
batalhas. Enquanto um ordenava que eu fosse sincera com Damon e
Nick, o outro dizia claramente que os trair era a única opção.
Escondida atrás de uma estátua grega, não pude ouvir o que
Gael precisou dizer a Nick para que ele aceitasse deixar Damon para
trás, mas eu confiava cegamente no meu amigo escocês. Ele foi
verdadeiro quando me assegurou de que não revelaria nada da
situação para Nicholas.
Damon ficou confuso ao me ver e cerrou a testa.
— Por que vieram de lados opostos? — Questionou.
— Não estávamos juntos. Tivemos que nos separar. — Fui
sucinta para não me embolar. — Sabem de algo sobre a filha de
Nick?
— Nada ainda. Como foi com os amigos de Iolanda? O que
queriam? — Foi direto.
Cravei as unhas na palma das mãos.
— Eles acham que Nick a matou e agora querem se vingar.
Disseram que queriam se encontrar com você para oferecerem uma
boa quantia em troca da cabeça de Alastor e que se você não
aceitasse, a cabeça decepada seria de Jailson. Me obrigaram a lhe
dizer isso.
Pecadora.
— E o que você respondeu?
Mentirosa.
— Não...não me deram tempo de responder. Mas acho que eu
não responderia mesmo se permitissem. O que eu diria? — As
lágrimas que derramei foram sinceras.
Mealltach (trapaceira).
Damon passou as mãos pela barba, aflito. Quando cravou seus
olhos em mim, foi como se soubesse que eu o enganava. Como se
soubesse que eu era uma farsante, uma desonra para todos os
escoceses. Alguém que merecia ser lançada à fogueira em vida.
— Por que não está dizendo nada disso para o próprio Alastor?
— Questionou.
Contive um suspiro de alívio digno de pena. Dei mais um passo
no precipício da mentira.
— Porque ele é inconsequente. Ele os enfrentaria sem pensar e
isso poderia matar Jailson de uma vez.
Ele aceitou a minha mentira sem fazer objeções. Talvez eu fosse
boa em enganar, ou talvez o corvo não achasse que eu era do tipo
que traía depois de fazê-lo se sentir parte do time.
— Se você me procurou é porque acha que eu posso fazer algo
a respeito. Diga de uma vez.
Aquilo foi o estopim para me fazer querer vomitar. O chão sumiu
sobre meus pés. Eu estive brincando na beirada do precipício, até
que caí.
— Eu preciso que venha comigo e que confie em mim.
Dia 23: “Queria ter boas notícias nessa semana, mas as coisas
continuam iguais. Todo movimento de Maisie, somos nós que
despertamos. Tenho ajudado as enfermeiras com os exercícios
diários, acredito que em breve eu mesmo poderei fazê-los sozinho.
Em relação aos cabelos de Luiza, assegure Gael que os
primeiros fios já começaram a aparecer. Não é nada que possa ser
visto de longe, o processo é lento como uma plantinha que cresce.
Att,
Coleman.”
“Caro senhor Coleman, não acredito que seja muito seguro o
senhor cuidar dos movimentos da minha irmã, sozinho, já que não
tem especialidade no assunto. Temo que algo possa sair do controle.
Gael pediu que eu lhe dissesse que o frio da Escócia está
impedindo que a plantinha dele cresça. (Espero que esteja se
referindo aos cabelos).
Cordialmente,
C. Mikhailovich.”
— “Temo que algo possa sair do controle”. Que diabos poderia
sair do controle? Honestamente, seu amigo acha que sou um
completo idiota?! — Grunhi. Olhar para Maisie na cama cheia de
equipamentos, era como voltar ao inferno, me doía inteiro.
— Você é um completo idiota. — Damon me respondeu e
encostou-se à porta, se deliciando com um morango. — Novamente
conversando sozinho?
Guardei a maldita carta no mesmo lugar de sempre e senti
minha mandíbula enrijecer quando rosnei pro outro:
— O médico disse que talvez Maisie me ouça.
— Ainda assim, ela não o responde, ou seja, está conversando
sozinho.
Se sua intenção era me irritar, eu devia admitir que Damon se
saíra muito bem.
— Não há um lugar mais agradável para você comer seu
morango!?
Mastigou bem devagar e engoliu.
— Aqui me parece bom o suficiente. Além do mais, vim lembrá-
lo que temos uma reunião em alguns minutos. Alguns gregos,
inclusive, já chegaram.
Quis gritar com as mãos em volta do meu rosto, mas contive o
trovão que rugia no fundo da garganta.
Tinha ciência de que não podia mais faltar em nenhuma reunião
ou sofreria as consequências. Os membros exigiam os pagamentos
atrasados e os novatos pediam desesperadamente por serviços.
Tudo estava de cabeça pra baixo como qualquer outra empresa, só
que naquele caso, os funcionários portavam arma de fogo e não
tinham receio de usá-la.
— Sabe que não posso sair antes das enfermeiras retornarem
do almoço — o alertei. Eu não tinha a menor chance de escapar de
Damon mais uma vez, reconhecia isso.
— Não fale como se eu não soubesse que demitiu uma delas só
para ter mais tempo com a ruiva.
— Há algum crime nisso? — Entrei na defensiva.
Pegou outro morango no prato e mordeu.
Ainda mastigando e sendo como uma erva daninha, ele disse:
— Nenhum, só queria despertar esse seu lado agressivo porque
estou farto de ver o seu fantasma.
Rangi os dentes e empurrei meu alvo porta afora, fazendo com
que ele trombasse na parede. Eu já tinha reciclado toda minha
paciência.
— Quer que os gregos me vejam nesse estado? Tudo bem,
então vamos lá. Só não reclame quando cair sangue no seu
mocassim — revirei, sem conter minha mente escrupulosa.
O desgraçado deu um sorriso diabólico.
— É um Berluti, se quer saber.
Revirei os olhos, numa antipatia clara, porém, senti a pressão
deixar meus ombros.
— Não, Damon. Não quero saber sobre seus sapatos. Só quero
que saia da minha frente para acabarmos logo com isso.
Ele jogou o braço sobre meus ombros como se fôssemos velhos
amigos. Eu só não arranquei essa ideia estúpida da sua cabeça
porque, apesar de todas nossas diferenças, Damon fora o único que
não desistira de mim.
— Você está mais fedido que o “puga” — falou sem qualquer
tato. O encarei de canto. — O cachorro. A corvinha o chama assim.
Acho que se soubesse falar, diria “puLga”.
O olhei de canto.
— Está tentando me fazer suspendê-lo em uma corda, Damon?
Ele sorriu, egocêntrico.
— Também senti sua falta, Alastor.
Todos já estavam sentados à enorme mesa quando Damon e eu
entramos, inclusive os gregos que nos deram àqueles cargos.
Bastava olhar para eles e eu me lembrava do helicóptero caindo, do
choro de Luiza, de seus olhos com a mais intensa cor do medo.
Minha filha podia ter morrido e eu nunca os perdoaria por esse
“quase”. Nem se me dessem toda a porra de dinheiro do Mundo.
— Vejam só quem resolveu dar as caras. — Um deles comentou
em timbre de deboche. — Pensei que nosso “líder” já tinha saído de
férias.
Todos da mesa riram, apenas o corvo disse:
— Cale a boca, seu merda!
O grego continuou com o riso estampado na face, mesmo após
a grosseria de Damon. Tudo que eu enxergava, era um apenas
moleque com um pavio curto.
— Virou a puta dele agora, corvinho? Ah, não, espere. A puta
dele está de cama. Acho que ele fodeu tanto ela que a deixou
inconsciente.
Outra vez os risos ecoaram, esplendores.
Perdi o controle de mim mesmo, minha mente mergulhada no
veneno. Nem percebi o que estava fazendo, só senti minha mão ir na
cabeça daquele maldito grego e levá-la mais de dez vezes no tampo
da mesa de vidro. Não Nick, mas Alastor foi influenciado pela mera
menção da pessoa que era importante para ele e resolveu assumir o
controle do seu jeito feroz.
Rachei o crânio do desgraçado, abrindo-o de meio a meio. Não
pude sentir a dor nos ossos das minhas mãos ao matá-lo porque eu
era só uma construção de pedras.
Enxuguei o suor da minha testa e pude sentir que me pintara de
vermelho. Dentro de mim, Nicholas desaparecia e desaparecia,
enquanto Alastor renascia feito uma fênix.
— Vocês querem a porra de um líder? Então aqui está — berrei,
na passividade do silêncio de todos. — Mas antes quero que
encarem a mesa. Este é o preço que qualquer um pagará ao insultar
a mulher daquele quarto. — Fiz um juramento com o sangue grego
na minha mão. Eu precisava ser frio. Precisava ser muito frio se
quisesse sobreviver entre canibais.
Ninguém gastou seu precioso fôlego para me contrariar. Nem
mesmo Damon.
Agora era eu quem sorria.
Dia 28: “Mikha...
A caneta caiu duas vezes da minha mão ainda lambuzada de
óleo. Roguei pragas ao bendito cão que me fizera passar a manhã
inteira limpando a bagunça que deixara na cozinha. Luiza estava tão
apegada ao animal que acabou assumindo a culpa e o protegeu até
o último minuto, dizendo que fora ela quem mordera a garrafa de
óleo.
Saí do quarto e lavei a mão pela segunda vez, sequei na própria
camiseta e peguei a caneta do chão. No momento em que ia puxar
a cadeira para me sentar e escrever a carta de toda semana, senti
um olhar sobre mim. Não qualquer olhar, era o olhar...dela. Aquela
inocência linda de se ver.
Eu olhei.
E de novo.
Não era uma pintura da minha cabeça. Todas aquelas cores
estavam mesmo ali. O verde cristalizado, a mais bonita das luzes
queimando tão brilhantes.
Abri a boca sem conseguir reproduzir qualquer ruído. Minha
língua parecia atolada no fundo da lama.
Vinte segundos, e meu coração parou. Meu corpo começou a
tremer.
— V-ocê acordou.
Deixei o quarto em passos trôpegos, enquanto meu sangue
fervia, e gritando pelo Dr. Masalis.
O encontrei tomando café na sala, quase o fiz derrubar quando
o toquei no ombro para chamar sua atenção para mim.
— Ela acordou. — Foi basicamente um grito. — Maisie
finalmente, acordou.
E as cores do Mundo voltaram a se reorganizar.
Tess não mentiu quando disse que usaria toda a casa para a
decoração. O espaço fora dividido em dois temas, enquanto em uma
das salas tinha um urso do tamanho de Luli, no bar, um unicórnio
igualmente grande nos aguardava na entrada. Eu realmente não
sabia onde ela conseguira encomendar todas aquelas coisas, só o
que eu sabia, era que a casa estava recheada de bexigas e
guloseimas.
— Ei, não toque! — Ela me repreendeu quando pretendi pegar
um cupcake.
— Como conseguiu fazer tudo isso em tão pouco tempo?
— Tive ajuda da dona Galanis. Nos comunicamos através de
gestos. — Tess desistiu de pregar a meinha de bebê no varal
decorativo logo que Maisie entrou. — O que você pensa que está
fazendo aqui!? Não é pra você ver ainda!
— Ver o que? Roupinha de bebê? — Zombou a ruiva,
apreciando um sapatinho cor-de-rosa. — É tão pequenininho.
— Saia daqui agora. Vocês dois. Este cômodo e o outro estão
extremamente restritos! — Rosnou Tess, agarrando meu pulso e o
de Maisie. Ela estava mesmo levando tudo aquilo muito a sério. —
Saiam. Agora!
Não tivemos alternativa quando a porta foi fechada na nossa
cara.
— Ela é sempre tão mandona? — Perguntei a Maisie.
— Desde que se tornou uma escocesa.
— Eu sou escocês e não sou mandão — retruquei.
Vi o brilho dos dentes dela ao sorrir e eu fiquei namorando
aquele sorriso.
— Você age como se tivesse ouro no umbigo, Sr. Coleman. Não
se engane.
A encarei com atenção. Eu odiava dar uma de orgulhoso quando
o que eu mais queria, era correr pros seus braços.
— Nunca lhe dei uma ordem.
— Sim, o senhor já deu. Eu quem me recuso a obedecê-lo.
— Sinto que se aproveitará de toda oportunidade que tiver de
me contrariar.
— De cada uma — afirmou, corajosa, deixando um novo sorriso
escapar no canto dos lábios.
Só me dei conta de que tínhamos saído de casa, quando ouvi
um miado. Segui a direção do som e vi o bichano cinza em apuros
na árvore.
— Ah, tadinho. Será que está ferido?
— Só há uma forma de descobrir. — A respondi e logo comecei
a me pendurar nos galhos para salvar o felino. Eu precisava tirá-lo de
lá antes que o cão o encontrasse, ou Luiza. Se minha filha visse o
bicho, não duvidava que imploraria até que eu o deixasse ficar.
Assim que botei minhas mãos no gato, o desgraçado arranhou
minha cara e o susto me levou de costas pro chão, aos pés de
Maisie, mas não era a primeira vez que eu ficava em devida posição.
Seus joelhos se dobraram e uma mão foi em meu rosto. Olhar
para ela era como olhar o pôr do sol de cima de uma montanha.
— Você está bem? — Observei suas pupilas se dilatarem
enquanto tocava minha ferida.
Gemi de dor antes de finalmente conseguir respondê-la.
— Posso garantir que já estive melhor.
Ela pendeu a cabeça pro lado e sentou sobre os calcanhares.
Maisie representava muito bem o estilo de garota do campo.
— O felino foi mesmo malvadinho com você. Veja, que sacana,
agora resolveu descer sozinho.
Não me dei ao trabalho de conferir para não me estressar ainda
mais com o gato que me fizera de bobo.
Me sentei e passei a mão pela bochecha arranhada.
— Talvez não fique marcado — disse Maisie, acompanhando
meus movimentos com atenção.
— Podia ter sido pior. Podia ter acertado meus olhos.
— Teríamos um problemão. Será que...Será que foi assim que
fiquei cega de um olho?
Engoli em seco. Ela tinha facilidade de tirar e trazer minha
felicidade quando bem entendesse.
— Não precisa mais se preocupar com isso, não quando
enxerga perfeitamente com os dois. — Tentei persuadi-la. Se Maisie
quisesse ir por esse caminho eu não saberia convencê-la do
contrário.
Ela se distraiu arrancando a grama e o modo como desviou o
olhar para o chão, me fez ter certeza de que a conversa estava longe
de terminar.
— Diga-me, Sr. Coleman, se estivesse em meu lugar não
gostaria de tentar recuperar suas lembranças?
Eu não mentiria para ela. Não podia.
— Pode ser que seu cérebro esteja protegendo você.
— Como assim?
— Talvez nem todas lembranças sejam boas, Maisie, e você
pode não estar preparada para elas.
Cerrou o cenho.
— Eu era uma pessoa má? Eu fazia coisas...coisas
vergonhosas?
— Coisas vergonhosas? — Trinquei o maxilar. — E não. Você
não era uma pessoa má.
Seus olhos transitavam entre indecisão e timidez.
— Deixe pra lá.
— Não. — Agarrei seu pulso quando tentou se levantar. — Me
diga o que a preocupa.
— Eu sei o que você, eu e Damon fizemos. Eu me lembro de
muita coisa.
Gelei e descansei nos escombros de mim mesmo. Ela lembrava-
se dos assassinatos?
— E como se sente em relação a isso? — Perguntei com
cautela.
Suas maçãs coraram. Deus do céu. A pobrezinha não conseguia
nem dar nome ao que fizemos de tanto pavor que sentia.
— É...é algo que nunca imaginei fazer.
— Acho que é algo que ninguém espera. Não se sinta culpada,
por favor. Você nos salvou, Maisie.
— Salvei? Como isso pode tê-los salvado!?
Senti tanta coisa, que nem minhas trêmulas palavras
conseguiriam retratar.
— Você fez com que Damon e eu aprendêssemos a trabalhar
juntos. Você é o nosso equilíbrio, a nossa sensatez.
Ela se levantou imediatamente, carregando no rosto todas as
incertezas. Eu não esperava diferente. Ela acabara de voltar de um
sono profundo para descobrir que cometia crimes. Como não
adoecer diante uma situação dessas?
— Não consigo imaginar como isso pode funcionar. Vocês
são...grandes e fortes.
Não entendi onde ela queria chegar. Me levantei em seguida.
— Isso é o que nos deixa em vantagem — falei, confuso.
Me avaliou dos pés à cabeça. Estava com o rosto cada vez mais
vermelho.
— Já me machucaram alguma vez?
— Eu e Damon, nunca. Mas os gregos...
— Como assim os gregos? Há mais homens envolvidos? —
Perguntou em um sobressalto.
— Bem, sim, alguns.
Se distanciou alguns passos e fez cara de dor, como se tivesse
acabado de arrancar as cascas dos seus machucados.
— Acho que...que já ouvi demais por hoje. Procurarei um buraco
onde eu possa enfiar minha cabeça para nunca mais tirar.
E se foi, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa que fosse.
Era verdade. Era tudo verdade. Eu era a garota de dois machos.
Antes de Nicholas confirmar tão claramente, eu ainda tinha um
resquício de esperança de ser tudo fantasia da minha cabeça. Mas
agora...agora eu estava perdida. Como podia voltar a encará-los e
saber que eles já me viram até de ponta cabeça?
Você é o nosso equilíbrio. Sabia que Nicholas tentou falar polido
para me tranquilizar, mas na verdade, ele me arrastou para uma
destruição iminente.
E meus amigos...Por Odin, eles sabiam o quão cadela eu era?
Trancei meus cabelos em frente ao espelho, vesti minha
camisola e não desci para o jantar naquela noite.
Tess nos passou uma lista sobre onde era permitido transitar
pela casa antes da grande festa, mas não foi bem isso que me
impediu de ir em certos cômodos. Eu só evitei a cozinha, porque
sabia que Nicholas e Damon estavam por lá. Enquanto eu não
conseguisse absorver o que ouvira dos lábios do loiro, eu os evitaria.
— Ei, ruivinha, ainda não está pronta? — Disse Gael, vindo ao
meu encontro. Ele parecia ter acabado de fazer a barba.
Avaliei o vestido azul desbotado em meu corpo.
— Estou tão ruim assim?
Ele enlaçou seu braço no meu e me arrastou escada acima.
— Hoje a noite também é sua. Vista sua melhor roupa, porque
você renasceu. Consegue entender que os deuses podiam tê-la
levado, mas não o fizeram? Quantas pessoas pisam na escuridão e
conseguem voltar intacta dela?
O encarei com os olhos marejados. Eu ainda não tinha visto a
situação por aquele ângulo. Eu quase tinha morrido. Eu perdi tantos
dias culpando minha mente por ter apagado uma grande parte de
mim, que não agradecera aos céus por terem me dado uma segunda
chance.
— Você está certo, Gael. Eu estou viva e viverei da melhor
forma possível.
Ao retornar ao meu quarto, retirei todos os vestidos do armário
— vestidos que eu não reconhecia, mas que admitia serem lindos —
e optei pelo amarelo pastel decotado e longo. Algo na cor me trazia
paz, me remetia a um dia de céu limpo e ensolarado. O vestido era
de tecido leve e fluído, saia levemente rodada e que ganharia
movimento com a brisa da noite.
Desfiz o coque e deixei que meus fios ruivos espargissem por
meus ombros sardentos. Eu me reconhecia quando via meu reflexo,
porém, sentia no meu âmago que algo em mim mudara. Eu podia ter
me esquecido de uma parcela da minha vida, podia ter me esquecido
sobre as escolhas que fiz, mas eu confiava em mim mesma, na
Maisie de antes e na Maisie de agora. Não me culparia e nem me
envergonharia das decisões que tomei. Eu viveria, simplesmente
viveria, e não permitiria que nada ficasse entre isso.
Já era tarde quando saí do quarto pela segunda vez. A música
escocesa faltava pouco estremecer as paredes de tão alta que
estava. Grandes bexigas brancas presas ao teto decoravam o
corredor.
— Aí está você. Ual. — Tess deixou escapar um assovio ao me
ver. — Você está espetacular.
— Não seja boba. — Revirei os olhos com graça e observei ao
redor. — Como é que você fez tudo isso?
— Sou incrível, não sou? — Disse sem ser modesta. — Me
ajude com o zíper do vestido.
Subi o zíper assim que ela se virou. Enquanto meu vestido
amarelo era despojado, o preto de Tess era elegante e desenhava
sua silhueta como se fosse um pincel.
— Só falta uma coisa em você. — Ela enfiou a mão no bolso do
seu vestido e me entregou um batom vermelho-sangue.
Hesitei. Eu já tinha vermelho demais em meu corpo.
— Acho que a cor não combina comigo.
— Liberte essa onça da jaula, querida. Se você acha bonito e
quer, de que importa se combina ou não? Apenas vá em frente e
atreva-se.
— Você está certa. — Peguei o bendito batom e me virei pro
espelho pra passá-lo.
Ela deu palminhas e esticou o sorriso pra mim assim que
terminei.
— Agora, venha. Estão todos na festa da Kate. Sabe, primeiro
comemoraremos a dela e depois a sua. Não daria pra ser o contrário
porque só Deus sabe como sairemos do bar.
A acompanhei e todos os olhares se voltaram para nós assim
que chegamos, exceto a filha de Nicholas e a emprega,
provavelmente as duas já tinham se recolhido.
Como todo o resto da casa, havia balões decorativos no teto,
mas ali o ambiente estava mais suave. As cores, todas muito
clarinhas e em azul e rosa, e uma faixa que dizia: “Para os papais do
ano”. A mesa que foi colocada apenas para a festa estava repleta de
doces, mas foi o delicioso bolo que chamou minha atenção.
— Nesse momento, Maisie está querendo saber quando
poderemos comer — disparou Jailson, me analisando.
— Não posso negar — respondi e todos gargalharam.
— Antes de atacarem a comida, vamos para as brincadeiras que
organizei. — Tess entregou uma bexiga cheia para cada um. —
Quero todo mundo grávido aqui hoje. Até vocês, rapazes. Podem
colocar a bexiga por dentro da camisa. Principalmente você que está
torcendo o nariz, querido. — Ela encarou a Damon.
— Acho que o Jailson não precisa de uma bexiga — brincou
Gael e levou um tapa de Jailson, mas não houve quem não riu.
Do outro lado da sala, Kate ordenava para o marido:
— Acho que você tem mais fôlego que isso, Hamish. Encha
mais sua bexiga, anda!
— Na teoria, estou grávido de um bebê, não de um alienígena.
— Ele rebateu e ela estreitou os olhos para ele.
— Direi de uma forma que você consiga entender. Está vendo
essa barriguinha aqui do tamanho de um melão, querido? Em um
piscar de olhos ela se tornará uma melancia e se quando este dia
chegar você disser que eu estou carregando um alienígena, eu darei
um chute no seu traseiro que o mandará para outro planeta. Agora
assopre essa droga de bexiga!
Todos gargalharam sem piedade.
Tess e eu fomos pra um canto escondido para podermos colocar
a bexiga por baixo do vestido. E quando retornamos, ela anunciou:
— Tudo bem, agora quero que todos se sentem porque a noite
está só começando.
— Não podemos aparecer assim na reunião. — Amolou Damon,
fazia dois minutos que ele estava tentando se sentar sem estourar
sua “barriga.” — Estamos ridículos.
— Ficaremos só mais um pouco e então nos encontraremos
com eles — sussurrei de volta.
— Como foi que você se sentou com essa coisa atrapalhando?
— Perguntou-me Charlie, do outro lado, com a mesma dificuldade de
Damon.
— Faça como se fosse se deitar. Não. Não, assim você vai... —
Não tive tempo de concluir, ele já tinha estourado sua bexiga.
— Pelo amor de Deus, Charlie. Você matou o seu bebê! —
Criticou sua esposa. — Graças a Deus você não tem um útero.
— Perdoe-me se não nasci com o dom de não estourar bexigas.
— Ele ironizou.
Ela fez careta para ele.
— Toma. Tente de novo.
Depois de inúmeras tentativas fracassadas, Damon e Charlie
conseguiram se sentar, mas foi preciso diminuir o tamanho da bexiga
dos dois.
— Deviam se envergonhar do tamanho da barriga de vocês —
amolou Gael, se vangloriando com o bexigão que carregava.
— Minha barriga e a de Damon está do mesmo tamanho da de
Kate. Esse era o objetivo do jogo. — Charlie se defendeu.
— A barriga dos dois está definitivamente menor — intrometeu-
se Maisie e eu não teria capacidade de descrever o quão linda
estava com aquela falsa gravidez.
— Por que não apostamos? — Sugeriu Tess e pegou um rolo de
fita rosa, como se aquele fosse seu plano desde o início. — Cada um
cortará a fita do tamanho que acha que está a barriga de Kate. Quem
acertar, ganhará um cupcake.
— Esteja pronto para perder, grande Balder — provocou Gael.
— Esteja pronto para a sua centésima derrota, meu irmão! —
Revidou o outro escocês.
Tess se levantou e passou o rolo de fita por cada um de nós
para que cada um cortasse do tamanho que quisesse. Eu, que antes
estava apressado para ir embora, me vi ansioso em ser o vencedor.
— Pelo amor de Deus, Hamish. Corte esse negócio maior. Nem
na minha adolescência eu tinha a cintura fina desse jeito — criticou
Kate.
— Você está me deixando nervoso, fique quieta ou eu perderei
meu cupcake!
— Assim não vale. Ela está ajudando-o — reclamou Damon.
— Você não tem chance alguma de ganhar com seu meio metro
de fita, meu caro — devolveu Hamish, na ânsia de vencer.
— Vocês dois, parem de brigar ou serão eliminados! — Alertou
Tess, como uma verdadeira líder. — Todos já estão com sua fita? —
Afirmamos. — Certo. Kate, venha até aqui, por favor. Hora de medir.
O primeiro a ser desclassificado foi Jailson, a extensão da sua
fita deu duas voltas no corpo de Kate. O segundo foi Gael, mas foi
por muito pouco que ele não ganhou.
— Não fique chateado, Gael. Não é a primeira vez que você
perde na vida — provocou Charlie, mas Gael não teve oportunidade
de rebater.
— Sua vez, senhor sabichão. — Tess chamou o marido. O
escocês entregou sua fita e foi o terceiro a ser eliminado. Faltou pelo
menos um palmo para ele estar perto de acertar.
— Não chegou nem perto de vencer. — Gael não perdeu a
oportunidade de alfinetá-lo.
O próximo foi Damon, mas esse foi eliminado logo de cara. O
comprimento da sua fita não servia para a barriga de Kate, mas deu
um lindo laço no antebraço da moça.
Em seguida Hamish se levantou e coube ele e a esposa dentro
da sua fita.
— Diga que você não entendeu a brincadeira, Hamish — disse
Kate, em tom de crítica, mas, então, riu.
— Sabe que não funciono sob pressão.
— Então você não devia ter se casado com uma bomba relógio
— ela respondeu. Ninguém ousou interromper.
— Adoro explosões, querida, e eu amo você. — Os dois deram
um selinho e logo se desvencilharam.
— Certo. Então falta a Maisinha e o Coleman. Quem vai
primeiro?
— Primeiro as damas. — Apontei para Maisie.
— Você não devia agir feito um cavalheiro estando tão perto de
ser humilhado — desafiou-me. Nem uma coleção de estrelas no céu
tinha tanto brilho quanto aquele olhar.
— Só estou sendo educado, quando, na verdade, acho que você
devia sequer tentar. Só espero não a ouvir chorar ao me ver
comendo o cupcake. — Controlei o sorriso.
A tensão tomou conta de todos, enquanto Kate tinha sua barriga
envolvida pela fita de Maisie assim que foi entregue a Tess.
— Não acredito. Serviu — declarou Tess e a ruiva soltou um
grito vitorioso antes de me encarar.
— O vejo minúsculo, de tão humilhado, Sr. Coleman.
Eu não estava competindo com ela de verdade, mas adorava
despertar seu lado selvagem. Eu tinha vontade de rasgar seu vestido
e lambê-la como quem lambe uma colher de brigadeiro.
Não importa o que aconteça, desistir de você não está nos meus
planos.
— O jogo não acaba só porque você ganhou. — Me levantei e
entreguei minha fita para Tess. Ela a pegou imediatamente e não
perdeu tempo.
— Esqueça. Você nu...
— Não acredito. Acho que vocês terão de dividir o prêmio. —
Kate interrompeu nossa discussão. — Coleman também acertou.
— O quê? Impossível! — Disse Maisie, incrédula e irada.
Tentei não rir para não a deixar ainda mais zangada, mas foi
impossível. Ela estava monstruosamente indignada.
— Não dividirei meu prêmio com esse sujeito! — Ela declarou
para todos.
— Há vários cupcakes, dê um pra cada — sugeriu Jailson.
— Não será possível. O cupcake desse jogo é diferente dos
outros.
— Como assim? — Questionou Damon. — É de erva?
— Não. Com certeza, não. — Tess riu e sugeriu em seguida: —
Por que os dois vencedores não repartem o doce para descobrir o
que há dentro?
Maisie e eu nos encaramos, mas concordamos em dividir o
prêmio. Assim que o doce foi repartido, encontramos um bilhete onde
dizia: “Parabéns, você é papai/mamãe de um ovo. Cuide dele até o
final da festa ou sofrerá as consequências.”
— Tá de sacanagem? Como diabos cuidarei de um ovo até o
final da festa? — Questionei.
— Eu não sei cuidar nem de mim — acrescentou Maisie.
Tess deu de ombros, como quem não se importa.
— Pensem pelo lado positivo, vocês estão em dois. Na teoria,
será mais fácil — falou e me entregou um ovo desenhado. Tinha
olhos, nariz e um sorriso. — E antes que eu me esqueça, os que não
ganharam um ovo terá de tentar roubar o de vocês. Quem terminar a
noite com ele, ganhará o maior prêmio. Então, dona Maisie e Sr.
Coleman, não tirem os olhos do filho de vocês.
Depois de altas risadas e após inúmeras brincadeiras - até fralda
de boneca eu troquei - finalmente pudemos nos desfazer das
bexigas e fomos para a minha festa.
— Hora de você cuidar do bebê. — Nicholas disse e me
entregou o ovo.
— Como é que vou aproveitar minha festa tendo que cuidar de
um ovo?
— Eu tenho uma reunião importante agora. Não posso levar um
ovo comigo.
Cruzei os braços e ele disse cheio de graça:
— Cuidado, assim machucará o bebê.
— Eu poderia quebrá-lo na sua cabeça agora mesmo, Nicholas
Coleman.
— Que mãe feroz você é. Viu o que fez? Agora o bebê tá
chorando — prosseguiu, zombando.
Tess que estava com uma tiara de unicórnio, se aproximou e
colocou uma igualzinha na minha cabeça e na de Nicholas, e disse:
— Saibam que se não cuidarem direitinho do ovo de vocês, uma
fantasia ridícula os aguardará.
— O meu parceiro de desafio planeja me abandonar pouco
depois do parto. — Entrei na personagem e cruzei os braços para
Nicholas.
Ele me olhou com cara feia, mas tudo me levava a crer que não
era real.
— Que deduro você é. Meu plano era deixá-la ter um momento
com o recém-nascido e é isso que recebo. Acho que depois de ser
tratado como um péssimo parceiro, o que mereço é uma dança. —
Me estendeu uma mão de modo cavalheiro.
— E a sua reunião? — Perguntei, antes de aceitar o convite.
Ele desviou os olhos até Damon que o aguardava impaciente na
porta.
— Isso pode esperar. O meu tempo é todo seu agora. — E me
puxou para seus braços. Seu corpo pegando fogo me deixou em
dúvida se o inferno ficava mesmo tão longe.
— Talvez devessem deixar o ovo de vocês comigo, assim não
terão com o que se preocupar — sugeriu Tess, sendo prestativa, mas
eu não cairia no seu papo.
— Veja só, Nicholas, já estão tentando nos roubar.
— Isso que dá fazermos um filho tão lindo, querida Maisie.
Eu gargalhei em seus braços e Tess foi embora gargalhando
com o copo de cerveja na mão.
— A noite é toda sua, Maisinha. Se jogue. — Ela me gritou antes
de eu ser girada pelo macho que tinha todo meu corpo sob seu
controle.
Rodopiei e voltei para seus braços fortes, me fazendo pulsar,
flutuar e estremecer.
— Eu sou péssima nisso. — O alertei, antes que seu pé se
transformasse em chão para meus sapatos.
— Não ligo que pise, desde que possa garantir que no final da
noite você me ajudará a cuidar de cada ferida. — Soou malicioso, se
distraiu olhando para a minha boca com jeito de quem queria fazer
besteira.
Eu que estava cheia de marra, me atirei:
— Posso até colocá-lo para dormir.
Me deu um sorriso depravado.
— Malandra — respondeu, em máximo fulgor e segurou em
minhas costas com mais força. Corpo a corpo, olhos nos olhos, e eu
comecei a suar. — A noite é longa e eu costumo dormir tarde. O que
podemos fazer entre as feridas e o sono?
Passei os braços por seu pescoço, segurando o ovo com
firmeza. Já não nos importava o ritmo da música, tudo que
queríamos era sentir o toque um do outro.
— Tudo vai depender de como você se comportará até o resto
da noite, senhor Coleman. — Eu agia por impulso quando estava
perto dele e fazia promessas que não sabia se poderia cumprir. Era
difícil ser racional e remar contra a corrente do meu desejo.
Ele ficou surpreso, mas não recuou. Foi com os lábios em meu
ouvido e falou baixinho:
— Prometer me comportar significa que eu não poderei tirar
esse batom vermelho com a minha língua?
Minha garganta deu um nó quando senti seu volume na calça.
— Perdoe-me por atrapalhar os papais, mas, Alastor, nós temos
que ir — disse Damon ao se aproximar.
Recuperei minha dignidade e me desvencilhei daquele pecado
em forma de homem.
— Voltarei para cobrar o que combinamos, garota. Mas, agora,
espero que aproveite bem a festa e não tire os olhos do nosso ovo.
Seria uma pena ter de castigá-la por me fazer perder uma
competição — declarou Nicholas para mim de modo feroz e ousado.
Bufei irritada, mas não foi de verdade, e segui rindo para a
direção oposta a dele. Eu gostava daquilo, de quando ele me
causava sorrisos involuntários. Se tornou difícil não olhar para trás,
sabendo que ele estava lá.
Enquanto os outros dançavam, me servi com um drinque. Eu
não iria encharcar minha cabeça de álcool novamente, só precisava
suprir a falta do calor de Nicholas...
Ah, por favor, em que estou pensando?
— Um filho, hein, ruivinha? — Brincou Jailson de olho no meu
ovo. — Quer que eu cuide dele para que você possa dançar?
Estreitei os olhos para ele.
— O que o leva a pensar que sou tão tola?
Me respondeu primeiro com um sorriso.
— Não custa nada tentar. — E voltou para o centro da festa.
Observei todos por horas. Ri de Jailson e Gael dançando com
aquela tiarinha ridícula. De Hamish cheirando cada copo que Kate
pegava no bar. De Tess e Charlie jogando sinuca como se fossem
verdadeiros adversários.
E então eu e meu filho ovo que estávamos sentados no bar,
decidimos que Nicholas já estava demorando demais. Era a minha
noite, a minha festa e eu não conseguia aproveitar porque precisava
cuidar de um ovo. Se ele não quisesse dividir o desafio, então eu o
entregaria para outra pessoa, mas de forma alguma perderia a noite
por conta daquilo.
Decidida, me levantei.
Enquanto eu resmungava no corredor, em busca de Nicholas,
uma porta foi aberta e um homem alto saiu de lá. Ele me olhou de
cima a baixo como se eu fosse um aperitivo e disse algo que eu não
pude entender.
— Me desculpe. Não falo seu idioma — lamentei, e tive um mal-
estar repentino.
Ele deu um passo na minha direção e só não deu outro, porque
Nicholas apareceu por trás dele e esmagou o seu ombro com cinco
dedos, o impedindo de avançar.
Não sabia qual relação Nicholas tinha com meu estômago, mas
toda vez que eu o via, ele se remexia todo repleto de borboletas.
— Fique longe dela se não quiser que eu arranque sua cabeça
com um machado — falou Nicholas e o homem não discutiu. Apenas
ficou pálido e se foi.
— O que você disse para ele? — Questionei, curiosa, já que
Nicholas falara em grego.
— Ele só queria saber onde ficava o banheiro. — Me respondeu,
com sua mão em minhas costas. — O que está fazendo nessa parte
da casa?
— Vim lhe devolver seu ovo.
— Você quis dizer o nosso ovo. Se me lembro bem, você até me
ameaçou por ele.
— Quero aproveitar minha festa e não poderei fazer isso se tiver
que cuidar de um ovo.
Ele riu e eu encontrei o som rouco daquela risada por todo canto
do meu coração.
— Então está desistindo do desafio? — Cutucou a minha ferida.
— Pensei que fosse o tipo de escocesa que não desistisse.
— Eu nunca desisto. — Fechei a mão com o ovo e não tornei a
abri-la. — O que são esse monte de gregos? — Questionei, ao ver
uns cinco homens deixarem uma sala e como falavam alto, foi
impossível não reconhecer o sotaque.
Os ombros de Nicholas ficaram tensos de repente.
— Coisa de trabalho — disse, em um ranger de dentes e abriu
uma porta para mim. — Entre.
Nem me dei conta que o obedecera até dar de cara com Damon.
Todo meu sangue esquentou quando ouvi o som da porta sendo
fechada e eu me dera conta de que ficara sozinha em uma sala
parcialmente escura, com dois machos enormes e que eu
considerava perigosos. Contudo, quando procurei dentro de mim,
não encontrei nada que embasasse meu suposto medo.
— O que ela faz aqui? — O macho de olhos escuros questionou
ao loiro de olhos azuis.
— Está comigo. Vamos direto ao ponto. Não quero passar a
noite inteira aqui! — Nicholas se virou para mim e nossa troca de
olhares desmoronou minha ferocidade. — Sente-se, prometo não
demorar.
Me sentei na poltrona indicada porque minhas pernas já
estavam bambas. Coloquei meu ovo na mesinha de centro e
aproveitei para me servir de uma taça de vinho tinto, enquanto
observava os dois sujeitos perturbadoramente sensuais discutirem à
baixa luz do abajur. Não gostei de estarem dialogando em grego,
mas, quiçá, seria difícil me concentrar no assunto e ignorar aquelas
quatro pernas torneadas e o cheiro de perigo que cada um emanava.
Todas as noites, eu dormi pensando nos detalhes daqueles corpos, o
formato era lindo como dunas de areia.
Eu que há pouco criticara meu eu do passado...Agora, olhe para
mim. Sentada no escuro e tentando controlar o desejo como quem
tenta controlar um incêndio.
Quando Nicholas me fitou rapidamente eu forcei um sorriso,
mesmo com a libido me contorcendo.
Dei o primeiro gole no vinho e o calor dentro de mim se
intensificou. Agarrei no braço da poltrona na tentativa de me manter
estática, mas era fato que eu cometeria algum erro naquela noite.
Outro gole no vinho e pressionei os olhos fechados. Só que até
o som daquelas vozes...principalmente da de Nicholas, bagunçava
minha cabeça.
O desejo já tinha me sufocado, eu só queria sentir a língua dos
dois deslizando por toda minha pele, queria que me enchessem
inteira de satisfação.
Atreva-se.
Liberte-se.
Ah, Tess. Por que raios foi me dizer isso?
No terceiro gole eu já tinha decidido transformar em realidade
todos os meus desejos. Me levantei sem receio e girei a chave na
fechadura da porta. O clique fez os dois me encarar.
Meu coração acelerou, mas não tive medo. Eu confiava em
meus amigos, e se eles disseram que eu podia confiar em Damon e
em Nicholas, então eu confiaria. Além do mais, considerando a força
do meu querer, o imã que me atraía para os dois, eu podia dizer que
estava em um beco sem saída.
— O que está fazendo? — Questionou Nicholas, mas seu olhar
o denunciava. Ele gostava de maldade, e eu podia ser má.
— Me divertindo na minha noite.
— Quanto de álcool você ingeriu? — Damon questionou, como
um irmão protetor, mas o olhar por meu corpo era de alguém que
dormia em um purgatório.
— Se eu tivesse bebido o bastante, a essa altura já não teria
roupa no meu corpo.
— Maisie, não comece um fogo se não quiser se queimar —
alertou Nicholas, mas não me comoveu sua honra fingida.
— Acho que já sou grandinha o bastante para saber que quando
causo um incêndio, eu posso arder nele. — Por sorte, não me perdi
nas palavras.
Nos fitamos em uma atração fatal.
Ele era como uma droga ilícita que eu ansiava provar.
Me aproximei e fiquei entre eles. Dois lobos e apenas uma carne
para dividirem.
— Eu quero isso. Estou pronta para isso.
Damon se inclinou sobre mim, mas quando Nicholas soltou sua
ameaça, quase cuspindo fogo, ele paralisou.
— Toque nela e eu o transformarei em escombros sobre os
quais me deitarei.
Arqueei a sobrancelha, irritada.
— Quem você pensa que é? Eu não pertenço a você — grunhi,
mas era como se tivesse uma música na minha cabeça que ficava
me repetindo o contrário.
Encarei o loiro, mas, guiada pela cólera, foi o lábio inferior do
moreno que eu mordi quando me virei. Damon ficou estático, como
quem tenta se controlar, mas eu pude sentir seu gosto suave como
ameixa e o calor da sua língua em meus lábios.
A minha libido ficou satisfeita com aquele contato indecente,
mas senti que meu coração ficou confuso, como se tudo que ele
desejasse fosse Nicholas Coleman.
Quando passei uma mão pela nuca de Damon na tentativa de
intensificar o beijo, meu corpo foi arrancado de perto dele. Fui virada,
agarrada e prensada contra a parede pelo outro macho. E polegada
por polegada Nicholas se aproximou, cada vez mais.
Uma mão foi em meu pescoço e seu rosnado foi proferido entre
os dentes:
— É isso que quer? — Seu perfume se perdeu dentro de mim e
me deixou atormentada. — Diga com clareza.
Aquele rosto era a definição perfeita de êxtase. Eu vi minha vida
dentro dos seus olhos, raios tão perfeitos quanto os do sol.
Eu não tinha certeza de que era aquilo que eu queria. Na
verdade, eu sequer sabia o que diabos era aquilo, ou como
funcionava um sexo à três. Minha única certeza, era que meu corpo
precisava de algo. De alguém.
— O único ainda em dúvida é você, senhor Coleman —
murmurei, mais fraca que um cristalzinho.
— Não, querida. Quando eu entrar em você, não irei embora tão
cedo. — Ergueu meu queixo mais alto e quando vi uma escuridão
nascer dentro dos seus olhos, soube que era seu verdadeiro perigo.
Foi como se eu tivesse visto o pior lado de quem ele era. — Laranja
será sua palavra de segurança.
Aquilo tirou o chão dos meus pés.
Palavra de segurança?
Não tive tempo de perguntar o porquê eu precisaria de uma
palavra de segurança.
Ele me ergueu em seu colo com a força de uma mão, me
segurando apertado, como se tivesse medo de perder o controle, e
com a outra, jogou tudo que havia na escrivaninha, no chão.
— Se algo não for do seu agrado, diga sua palavra de
segurança que Damon e eu paramos imediatamente — ele disse, ao
me colocar sentada na escrivaninha. Foi um alívio ele ter me
explicado, mas eu duvidava muito que usaria a tal palavra de
segurança para um deles.
Eu achara, anteriormente, que Damon era a ponta mais forte
entre os dois, mas depois daquele olhar que ele lançou para
Nicholas, como quem pede autorização, eu soube que me enganara.
Nicholas Coleman era o verdadeiro líder e pensar que talvez eu
fosse a garota dele, me deixou inteiramente molhada.
Observei enquanto, muito calmamente, Nicholas colocava uma
música baixa e sensual para tocar, abafando toda a animação
existente do outro lado da porta. Onde os outros se divertiam com
todas as peças de roupa no corpo.
Também observei Damon se servir de uísque e entregar um
copo para o outro em seguida. Eu não sabia que tipo de tortura era a
que estavam fazendo comigo, e sequer entendia como meu corpo
podia estar reagindo tão positivamente. Os dois machos estavam
brincando com a minha ansiedade e eu estava gostando. Era ilógico.
Havia um conforto no pânico.
— Talvez devêssemos vendá-la — sugeriu Damon, como se eu
não estivesse presente.
— E amarrá-la. — Vi o nascer de um sorriso no rosto de
Nicholas.
— Com seu cinto ou o meu? — Damon deu um gole na sua
bebida após a pergunta.
— Com o vestido dela. — Os dois me fitaram. Eu me contorci. —
Vamos rasgá-lo em tantos pedaços que ela precisará de uma nova
roupa para sair daqui.
— Isso se ela tiver forças para sair — completou Damon.
Meu coração balançou como um pêndulo. Eu não sabia se fora
o efeito do vinho, mas meu corpo começou a suar com um calor
infernal, ao passo em que eu via o tempo se esvair através da janela
fechada.
Os dois se aproximaram de mim, em movimento cadenciado. Me
senti pega pela correnteza quando Nicholas agarrou meus cabelos e
puxou minha cabeça para trás sem muita gentileza, já Damon, levou
seu copo de uísque em minha boca. Bebi devagar para não me
engasgar e quando eu comecei a me acostumar com o sabor
amargo servido gradativamente e com os dedos de Nicholas em
meus cabelos, os dois se afastaram. Mas só um pouco.
— Diga, cabelo de fogo, qual dos dois você quer que tire esse
seu vestidinho lindo e termine de lambuzar seu batom vermelho?
Apesar do jeito que Nicholas zombou de mim, agindo como se
eu fosse parte da sua propriedade, era seu toque que eu mais
ansiava.
Mas foi o nome de outro que minha boca proferiu ao ser aberta:
— Você, Damon.
Nicholas cravou seus olhos em mim, cintilando, como se aquilo
fosse além do que ele pudesse suportar. No entanto, eu não daria o
braço a torcer e diria o quanto eu o desejava. Não quando eu sabia
esconder tão bem.
Meus sentidos ficaram entorpecidos ao sentir os lábios de
Damon em meu pescoço, me lambendo e mordendo, rumo aos meus
seios – desafiador e exigente. Apreciei aquele toque molhado e
esqueci todo o resto do mundo quando fechei os olhos. Suas mãos
ásperas e frias rastejando por minhas coxas nuas; eu senti tantas
coisas, mas nenhuma delas foi o bastante para me fazer gemer.
Porque era o outro que eu queria.
Era no outro que eu pensava.
Então, eu senti um toque cálido e suave afastar meus cabelos
da nuca, me levando em um voo de asa prateada, e foi assustador
como meu orgulho foi derrubado e eu não consegui segurar o
gemido causado por aquele nobre gesto.
— Mentirosa. — O sussurro ao pé do meu ouvido me sufocou
como se duas paredes estivessem se fechando comigo entre elas. —
Confesse.
Me aqueci com o hálito de Nicholas na parte detrás da minha
nuca, quente como o brilho de uma estrela azul. Eu abri os olhos e o
vi se afastar com seu copo de bebida.
Eu não tinha percebido que Damon afastara suas mãos das
minhas pernas até Nicholas ordenar:
— Rasgue. — E meu vestido foi rasgado ao meio, revelando
meus seios nus e minha calcinha branca e de algodão.
Fui devorada por todos os olhos. Os machos pareciam tentando
decidir onde lamberiam primeiro. Eu não tinha nada a dizer, mas não
podia acreditar que não caí de cara no chão quando vi Nicholas nos
dar as costas e se acomodar na poltrona que eu anteriormente
estava.
Não gostei da minha mente naquele momento, eu enlouqueci
antes de compreender o jogo de Nicholas.
Confesse. O ouvi repetir dentro da minha cabeça em meio à um
brilho ardente.
Ah, meu bem, você nunca ouvirá dos meus lábios que eu o
quero.
Continuei arrastando comigo aquele desejo e não cedi
facilmente. Eu usaria minha chance de atiçar a chama enquanto sua
fogueira queimava.
Puxei Damon pela camisa e o prendi entre minhas pernas. Ele
podia não ser o homem que eu mais desejava, mas tinha de admitir
que seu corpo e seus beijos eram de fazer qualquer uma perder a
razão. Ele me agarrou pelos quadris e pressionou seus dez dedos,
fazendo explosões surgirem dentro de mim.
Me lembrava de céus negros com cinzas caindo como neve.
Sombrio.
Imoral.
E como um sinal alarmante soando incessantemente dentro da
minha cabeça, eu abri os olhos, apenas para ver que Nicholas já me
fitava em constante estado de surpresa. Vê-lo esparramado naquela
poltrona fingindo ser insensível, me irritava. Era como se ele
soubesse o tempo todo que era o meu alvo principal.
Quando a sombra de um sorriso apareceu em seu rosto, foi a
gota d’água para mim. Foi quando eu soube que não confiaria em
mim mesma com ele.
— Chega de brincadeira, Damon. Vamos dar o que a garota
pede. — Embora suas palavras soaram firmes, havia algo vazio
dentro delas.
Nicholas colocou seu copo ao lado do nosso ovo e de repente,
como se não fosse abalar as minhas estruturas, como se não fosse
fazer uma enchente atravessar o interior das minhas pernas, ele
arrancou sua própria camisa.
E pelos deuses, foi a minha desgraça.
Ofeguei, ao som dos seus passos em ritmo violento. Eu não
sabia onde devia olhar quando Nicholas chegou tão perto de mim,
havia seus braços onde eu adoraria me tornar sua prisioneira, e seu
peito forte que me deixava um passo mais perto do limite, sem
espaço para respirar. Mas, de tudo, o que me chamou mais atenção
naquele monumento divino, foram suas cicatrizes – um universo
delas – que fizeram meus pensamentos girarem.
Eu já as tocara.
— Olhe para mim, garota. — Não foi um pedido. — Qual sua
palavra de segurança?
— Laranja. — Minha boca mexeu, mas minha cabeça
continuava pensando naquelas marcas à altura dos meus olhos.
Fui erguida em seu colo novamente, mas só para ser colocada
no chão, e tive a certeza de que meus seios já foram pressionados
por aquele peito. Queria ter prolongado o contato, mas a intenção de
Nicholas era um pouco mais indecente que isso.
Ele se inclinou e deslizou o que restara do meu vestido por
meus ombros. Meus pelos eriçaram sob a ponta dos seus dedos, ou
talvez fosse porque Damon chegou por trás de mim e encostou seu
pau duro na minha bunda.
Eu tinha o relâmpago às minhas costas e o fogo à minha frente.
— Diga, garota — o vestido caiu em meus pés e Nicholas
ergueu meu rosto pelo queixo com seu indicador —, devemos ser
gentis com você?
Raios, era perturbador ver o movimento lindo dos seus lábios e
não ter coragem de beijá-lo, nem pedir para que fizesse isso. Era tão
fácil puxar Damon pela camisa e tomá-lo com ânsia, mas quando se
tratava de Nicholas...tudo parecia ser bem mais complexo.
— Nada de gentileza por hoje — consegui murmurar.
— Ah, querida, você sempre foi escandalosamente corajosa.
Eu retruquei com firmeza:
— Então o que você está esperando?
Nicholas sorriu com o canto dos lábios. Ele era um problema de
duas faces.
— Apenas o seu comando.
Damon encontrou uma forma de manter suas mãos ocupadas
com meus seios. E a língua se aproveitou bem do meu pescoço,
lambendo e chupando.
Enquanto meus olhos estavam em um, meu corpo era devorado
por outro.
— Basicamente é isso que vai acontecer com você agora, abrirei
suas pernas e a chuparei até fazê-la gozar na minha boca —
Nicholas murmurou em meu ouvido.
— Hmmm. — Gemi em resposta e deitei a cabeça no peito de
Damon, permitindo que ele me lambuzasse com sua boca.
Era o êxtase mais profano que eu podia imaginar. Esperei ser
recebida por flashes, considerando que supusera que aquilo já
acontecera antes, mas não houve um único resquício de lembrança.
Tudo parecia muito novo para mim. Ter as mãos de dois homens
percorrendo o meu corpo, ao mesmo tempo...Aquilo parecia
totalmente novo.
Em compasse, como se fosse uma dança sincronizada, eles se
ajoelharam diante de mim e cada língua lambeu uma coxa minha.
Começaram de baixo para cima, eu estremeci, gemi alto e sem
temor.
As línguas subiram e passaram por meu umbigo e a finalização
se deu em meus seios. Cada mamilo pertenceu à uma boca.
O direito era de Damon e o esquerdo, Nicholas tomara para si.
Fui mordida e lambida com crueldade. Agarrei os cabelos de
Damon e depois os do loiro.
Os lábios continuavam.
Chupando.
Mordendo.
Abusando.
— Ah, por favor... — gemi. Eu não sabia pelo que clamava, mas
eu precisava saciar aquela explosão crescente dentro de mim de
alguma forma.
Os dois pararam o que faziam.
— Estamos aqui para servi-la, garota. Diga o que quer — falou
Nicholas, com seus lindos olhos fixados em mim.
Você. Pensei.
— Quero que me toque — balbuciei, sem perceber que dissera
no singular.
Nicholas me respondeu com um sorriso desestabilizador.
— Vire-se — ordenou, como um soldado.
Eu só obedeci e acabei de frente para Damon, que me encarou
profundamente e disse:
— Hora de conhecer o lado escuro do fogo. Divirtam-se.
Tive os olhos vendados por Nicholas e os pulsos amarrados em
seguida. Eu quis perguntar a Damon o que ele quis dizer com seu
último comentário, mas fui surpreendida por trás com uma mão em
meu pescoço que me obrigava a erguer o rosto. Quando nossas
peles se encostaram, eu soube exatamente quem era o dono
daquele corpo. Aquela brasa quente de um amante nato, o estilo sútil
de um conquistador.
— Minha. — Nicholas me puxou para ele, instigando uma guerra
de domínio. Grunhiu e mordeu o lóbulo da minha orelha. — E eu não
divido com ninguém.
— N-ão sou sua. — Eu teria sido bem mais convincente se
pudesse enxergá-lo.
— Então deixe-me lambê-la dos pés à cabeça, bem devagar —
pediu, já sabendo que eu não iria negar. Seus lábios encontraram o
meu pescoço, e ele me tornou uma garota louca apenas com o
movimento da sua língua — e se no final tiver forças para dizer que
todo seu corpo e coração não pertencem a mim, posso prometer que
chamarei Damon para continuarmos a brincar.
— Hmmm — gemi em resposta. Era injustificável como o som
da sua voz colocava meus pensamentos coesos no sentido reverso.
— Você sabe que pertencemos um ao outro. Seu corpo sabe
disso, ainda que seu cérebro negue.
Minha armadura foi quebrada. Nicholas Coleman era como um
furacão dentro da minha cabeça.
— Era o meu toque que você ansiava — continuou e foi com a
mão em meu seio direito.
Eu me arrepiei e tremi sob o ar quente e frio. O quente, devido
aqueles toques ousados de Nicholas, e o frio por ter sido descoberta.
— Não pode afirmar isso — murmurei e cavei meu próprio
túmulo. Devia estar escrito em meu rosto todas as mentiras.
A risada rouca em meu ouvido veio acompanhada com um tapa
em meu traseiro e eu gritei baixinho.
O corpo quente de repente se distanciou.
— Nicholas?
— Estou bem aqui.
Virei o rosto em direção ao som da sua voz. Queria poder ver
seu sorriso descarado – era fato que ele brilhava em seu rosto
naquele momento -, mas não diria minha palavra de segurança tão
cedo.
De repente, fui erguida em seu colo e deitada sobre...um tapete
felpudo aconchegante, com meus braços presos acima da cabeça.
Senti o peso do seu corpo sobre o meu, seu ar quente em meu rosto
em uma distância que devia ser insignificante, caso eu não
desejasse aqueles lábios tomando os meus como a explosão de uma
granada.
— Me diga o que quer, garota.
— Sabe o que quero.
Ele procurou outro lugar para manter sua boca ocupada, meu
mamilo tornou a ser sua vítima.
Chupadas friccionadas.
Lambidas e mordidinhas gananciosas em seguida. Ele era tão
bom que chegava a ser um tormento.
— Merda. Hmmm. — E os gemidos, vieram como ondas.
— Boca suja — brincou e reforçou: — Diga o que quer. — Uma
nova mordida tão pretensiosa, que me fez querer jogar tudo pro alto
e agir indecentemente. — Diga o que quer. — Desceu com a língua
por entre meus seios. Ninguém podia contê-lo, Nicholas sabia como
fazer o próprio trabalho.
Me contorci embaixo dele e se não estivesse amarrada, teria
direcionado sua cabeça para o meio das minhas coxas.
Fiz minhas preces e pisei em cima delas. O pecado já tinha me
devorado.
— Ah, Maisie. Nós fizemos isso tantas vezes. Não posso
acreditar que tenha se esquecido.
— O que éramos um do outro? — Criei coragem em perguntar.
Passou a língua em torno do meu umbigo antes de voltar para o
meu rosto e tirar a venda.
— Eu não sei o que eu era para você. Mas de todos os dias
vividos, os melhores da minha vida sempre foram ao seu lado.
Engoli com dificuldade. Suas palavras me pisotearam como se
fossem seu calcanhar.
— E Damon?
Nicholas cerrou o cenho no mesmo segundo.
— O que tem ele?
— Nós...três.
Ele perdeu um tempo analisando a pergunta com cautela. De
súbito, o espanto cobriu sua face.
— Você...você pensou que éramos os três um casal?
Meu rosto esquentou.
— Foi o que você me disse. Inclusive afirmou que existiram
gregos entre nós.
— Era disso que se tratava sua pergunta?
— O que pensou que fosse? — Indaguei.
— Sobre trabalho — respondeu devagar. — Por isso quis dormir
conosco?
Meu orgulho morreu.
— Nunca quis dormir com Damon. Você sempre foi meu alvo.
— Você me quer?
Corei novamente. O que eu responderia? Minha memória não se
lembrava do sujeito, mas meu coração agia como se nunca o tivesse
esquecido. Eu estava pronta para dizer a palavra de segurança,
quando ele falou há um segundo de ter tudo acabado:
— Você é a coisa mais preciosa que encontrei, por favor, fique.
E eu não pude negar.
Uma enchente estava prestes a atravessar meus olhos no
momento em que Nicholas me beijou. Eu não tinha certeza de que
meu sangue continuou fluindo quando minha boca foi aberta por sua
língua. Foi uma sensação completamente diferente da que eu senti
com o moreno. O gosto dos lábios de Nicholas sacudiu o meu Mundo
inteiro. Beijá-lo, foi como se o céu estivesse se abrindo depois de
uma tempestade.
Eu senti seu medo, sua sombra, suas mentiras. Eu fui levada ao
seu ponto de ruptura. Eu vi cores verdadeiras depois de passar dias
vivendo em preto e branco.
Foi como se...como se eu o amasse desesperadamente com
todas as partes do meu ser.
Segui meus instintos cegamente e mordi seu lábio inferior, ele
gemeu. Foi um som glorioso e que me tornava poderosa. Fiz
movimentos curiosos com a língua e não me perdi dentro deles. Era
como se eu soubesse exatamente o que fazer e como fazer.
Fui recebida por imagens desconexas, mas elas não me
assustavam.
Eu não tive medo, embora tenha ficado um pouco assustada
quando meus lábios, ainda grudados nos de Nicholas, disseram:
— A-cho que o meu coração sente algo por você. — Não
consegui me segurar, eu não funcionava direito quando estava com
aquele homem. Eu afundava meu orgulho dentro de mim mesma,
ficava cega, indefesa, insensata, e deixava todas as emoções
passarem por cima. Era como se eu tivesse meus ombros
pressionados por aquelas palavras. Dize-las, fizera tudo ficar mais
leve.
Pensei que seria enterrada no silêncio da resposta. Para a
minha sorte não foi o que aconteceu.
— Eu nunca, nunca, desistirei de trazer suas lembranças de
volta, mas começarei despertando as mais depravadas.
O senhor mandão não me soltou, mas para o bem da minha
curiosidade, não me vendou novamente, pude assistir de camarote
cada um de seus movimentos. Em contrapartida, o vi se desfazer da
minha calcinha com suas garras.
O sorriso cafajeste que me deu enquanto direcionava o rosto
para o interior das minhas coxas, foi de sufocar. Ele não tirou os
olhos dos meus em nenhum momento.
— Abra essas pernas, Maisie, e deixe minha boca ir aonde ela
quiser. Farei com que se lembre do quanto você gostava de ser
minha.
Era fácil saber o porquê meu “eu do passado” se encantou por
aquele macho, visto que o meu “eu do futuro” já estava
absurdamente molhada por ele.
Eu me abri para Nicholas Coleman. Abri as pernas, a boca, não
havia uma só parte de mim que não estava prontinha para recebê-lo.
Ele explorou meu corpo.
Beijando.
Acariciando minha barriga com a língua, costela, descendo para
as coxas e depois subiu devagar.
E então parou. De alguma forma, eu sabia para o que ele estava
se preparando.
Esperei pela mistura do quente e úmido da sua boca, contudo, o
que recebi lá embaixo foi frio. O líquido que deslizou por mim, me
encharcando, terminou por entre minhas nádegas.
— Ah, céus! — Me inclinei para saber que diabos Nicholas
derramara sobre mim e vi seu copo de uísque ao lado. Culpado.
— Relaxe. Agora vou limpar a bagunça que causei. — Me deu
uma maldita e imperdoável piscadela antes de cair de boca em mim
como um viciado. E diabos, fui colocada em transe. Eu perdi as
rédeas de mim mesma e fui demasiada fraca para engasgar os
gemidos, como uma virgem sendo tocada pela primeira vez.
— ...Nicholas. Não pare. Não pare nunca mais.
Ele me lambeu como se eu fosse um delicioso pêssego e
chupou meu clitóris.
Pinguei na sua boca.
— Não, meu bem. Não pretendo parar tão cedo. — Agarrou
meus quadris e me virou de costas para ele. — Empine essa bunda
para mim. — Me deu uma palmada ardida, em seguida, mordeu o
interior da minha coxa.
Minhas pernas tremeram, mas eu gostei de ser controlada.
Encontrei prazer na dor e submissão.
— Qual sua palavra de segurança, Maisie? — Enrolou meu
cabelo na mão e o puxou com força.
— Não a direi tão cedo — falei, maliciosa.
— Ah, garota. Você não vale nada. Você adora um carinho com
violência, não adora? — Deu um novo puxão em meus cabelos.
— Não sou um cristalzinho, Nicholas. Me deixe conhecê-lo de
verdade. O que me esconde?
— Talvez você não tenha se recuperado o suficiente para
conhecer Alastor. — Ele sussurrou suavemente para mim, era como
um anjo suspirando. Uma rápida calmaria em meio à sua natureza
selvagem.
— Meu antigo eu o conhecia? — Gotejei outra pergunta ácida,
enquanto meu sexo também gotejava.
Ele soltou meu cabelo e fez as unhas deslizar arranhando
delicadamente minhas costas. Joguei a cabeça para trás e gemi. Ele
era muito bom em ser mau.
— Éramos o próprio caos, mas nos entendíamos entre nossos
destroços. — Ouvi quando ele desceu o zíper da sua calça e
provavelmente botou seu pau pra fora, mas de tudo, o estalo do cinto
encontrando minha bunda foi o que mais ouvi. Não senti dor, a
ardência me fez gemer. O desconforto me dava uma sensação de
êxtase sexual. — Adoro seus gemidos ecoando em meus ouvidos,
adoro mais ainda olhar para esse corpo quente feito uma ilha
tropical. Você é como um pôr do sol e um eclipse solar acontecendo
ao mesmo tempo.
Suspirei.
— Me deixe conhecer o Alastor.
— Eu o mostrarei a você quando menos esperar. — Entendi
aquilo não apenas como um alerta, e sim como uma tortura
psicológica. Eu podia não o conhecer, mas ele me conhecia. Sabia
que uma vez que aquelas palavras entrassem por meus ouvidos, eu
viveria ansiosa à espera do acontecimento. Fazia parte do seu jogo
de sedução.
Respirei profundamente. Às vezes eu me esquecia de respirar
perto dele.
— Apenas faça-me voltar a ser o que eu era.
Aquele pedido mudou tudo.
Ele se aproximou de mim e me libertou. Eu não questionaria
suas intenções se seu plano fosse me dar prazer.
— Eu tento ser um cara mau com você, mas você só desperta o
melhor de mim. Levante-se. — Dessa vez não era uma ordem.
Assim que fiquei de pé, ele me ergueu em seu colo, eu tive minha
bunda pressionada por seus dedos, e me beijou com gula. Como se
minha boca fosse tudo o que ele quisesse inalar. — Eu preciso de
você agora, Maisie. Me toque, me arranhe, faça o que quiser comigo,
eu nasci para ser despedaçado por você.
Senti a parede em minhas costas e a invasão da sua língua na
minha boca ardendo intermitentemente. Perturbador e erótico com
gosto de uísque.
Nossas línguas molhadas se encontraram, parecíamos sirenes
em desespero.
Passei as mãos por seus braços fortes e bebi a água do seu
pescoço com a língua.
Eu não entendia muito bem o que significava tudo aquilo. Não
entendia como meu corpo precisava do toque de uma pessoa que eu
sequer me lembrava, mas de que eu sabia, afinal? Tudo era só um
borrão, então me deixei levar.
Gota a gota de prazer escorria por minhas coxas.
— Você quer isso?
— Quero.
— Diz que é minha. — Pediu e penetrou em mim, ardendo de
prazer, eu me senti o próprio caos, fui às alturas. Cravei as unhas na
sua carne e gemi a cada metida.
— Nicholas. — Gemi, insaciada e tarada.
— Isso, geme no meu ouvido enquanto eu te como.
Não era como se eu que o estivesse servindo, era como se eu
estivesse sendo alimentada. Eu me senti real. Eu o aceitei, sem
medo e sem remorso. Aquilo parecia se encaixar perfeitamente.
Nicholas era além de uma memória perdida, ele era o meu Oceano
inteiro, como se antes dele eu estivesse nadando em plena fumaça.
— Peça para que eu meta fundo em você — sussurrou. O suor
do seu corpo se misturou com o meu.
— Faça o que quiser comer — falei, com um vício a me
consumir.
E ele foi fundo em investidas rápidas e fortes.
— Ah, Maisie — gemeu, entorpecido.
Meu corpo grudou no dele como se suássemos cola.
Com os olhos queimando, com mãos que me seguravam
firmemente minha bunda, Nicholas Coleman disse enquanto
gozávamos juntos:
— Por favor, lembre-se de mim.
Pelos deuses, eu queria ser recebida por memórias de quando
eu era corajosa e forte...
Nada veio, além das emoções de tê-lo dentro de mim. Molhado,
duro e voraz.
Acordei suada e com o cheiro de libertinagem da noite passada
ainda impregnado em meu corpo. Me virei e dei de cara com um
vidro de conchinhas laranja no criado-mudo. O peguei.
— Não o abra, ainda — ele disse.
Sobressaltei e segui o som da voz com os olhos.
Nicholas.
— Prometa que isso só será aberto quando suas memórias
forem recuperadas — acrescentou.
— Há quanto tempo está parado aí? — Indaguei, ignorando seu
pedido.
— O suficiente para ter visto você se contorcendo gemendo meu
nome.
Meu rosto se tornou uma bola de fogo. Me sorriu com as
esquinas dos seus lábios e diminuiu a distância entre nós. O cômodo
se encheu com seu perfume.
— Não fique corada, eu também sonhei com você.
Optei por não mentir. No lugar disso, mudei de assunto.
— O que tem aqui dentro, além das conchas? — Chacoalhei o
vidrinho.
— Você saberá quando for a hora.
— Não gosto desse jogo. Isso pode levar meses ou anos!
Deu de ombros.
— Você terá de aprender adestrar essa sua curiosidade ou —
deitou na cama ao meu lado e passou as mãos atrás da cabeça —
podíamos repetir a dose da noite passada e instigar suas
lembranças. Foi uma delícia sentir seu gosto.
Revirei os olhos, me derretendo. O abusado jogava sujo pra
caralho.
— Noite passada foi um erro. — A mentira exerceu uma pressão
enorme em meus ombros.
Não surtiu impacto. Só me encarou com um brilho fosco.
— Você fica uma gracinha mentindo.
Arfei e deixei o vidrinho no mesmo lugar antes de me levantar.
— Sabe que perdemos o jogo de ontem, não sabe? — Ele falou
depois de um tempo, enquanto eu trocava de roupa no banheiro. —
Damon roubou nosso ovo.
— Quem se vingará dele. Você ou eu?
Ele gargalhou e me levou junto.
— Deixe comigo.